Definições

A infecção urinária (IU) é um processo inflamatório do epitélio da bexiga e/ou do rim, acompanhado de sintomatologia, geralmente secundário à invasão e multiplicação de microrganismos uropatogénicos, primariamente bacterianos.

Dado que o isolamento de microrganismos na urina não significa necessariamente IU, é importante definir determinados conceitos (com eventual afinidade pela nomenclatura) tendo em conta as implicações na prática clínica:

Pielonefrite aguda (PNA) – IU localizada ao parênquima renal. 
Cistite – IU localizada à bexiga. 
Bacteriúria assintomática (BA) – Isolamento de bactérias na urina sem sinais ou sintomas.
Abcesso renal – Coleção de pús intrarrenal.
Nefrónia lobar aguda Fleimão corticomedular caracterizado por infiltrado leucocitário com áreas focais de tecido necrótico sem liquefação, confinado a um lobo renal. Constitui uma fase de evolução intermédia entre pielonefrite aguda e abcesso renal.
Contaminação – Presença de bacteriúria, sem leucocitúria (excepto nos casos de imunodepressão), ou isolamento de mais do que um microrganismo.
IU simples – Causada por microrganismo habitual em doente sem anomalias do tracto urinário e com função renal normal.
IU complicada – Presença de bactéria virulenta (por ex. Staphylococcus aureus) ou de alterações funcionais e/ou estruturais do tracto urinário (litíase, refluxo vésico-ureteral, nefropatia de refluxo, obstrução alta ou baixa, bexiga neurogénica, cateterismo vesical permanente).
IU atípica – IU associada a uma ou mais das seguintes situações: criança gravemente doente, fluxo urinário diminuído, massa abdominal ou vesical, valor sérico elevado da creatinina, septicémia, ausência de resposta à antibioticoterapia (AB) em 48 horas, infecção originada por outras bactérias que não Escherichia coli.
IU recorrente – Define-se como:

      • dois ou mais episódios de pielonefrite;
      • um episódio de pielonefrite associado a um ou mais episódios de cistite;
      • três ou mais episódios de cistite.

Na IU recorrente há erradicação da bactéria e, após período de tempo variável, reinfecção por outro agente.
Recaída de IU – Episódio de IU surgindo nas 2 semanas após término da antibioticoterapia, causado pelo mesmo agente. 

Importância do problema

A infecção urinária (IU) é uma das causas mais frequentes de doença aguda na idade pediátrica, com uma prevalência aproximada de 5% na criança febril.

Nas crianças, esta infeção assume particular relevância pela morbilidade associada e pela variabilidade na abordagem diagnóstica e terapêutica. A morbilidade, ultrapassando o episódio agudo de doença, estende-se às complicações renais secundárias, nomeadamente cicatriz renal (CR), hipertensão arterial (HTA), compromisso da função renal, podendo evoluir para doença renal crónica.

Desta forma, impõe-se um diagnóstico correcto para que seja possível instituição precoce de terapêutica adequada.

Aspectos epidemiológicos

A IU corresponde à terceira doença infecciosa mais comum na infância. Sabe-se que 7% das crianças do sexo feminino e 2% do sexo masculino têm a primeira infecção até aos 6 anos de idade. Em 50% dos casos verifica-se recorrência no período de um ano.

Nos primeiros três meses de vida, a IU é mais comum em rapazes. Após o primeiro ano verifica-se um aumento progressivo da prevalência nas raparigas, com alta probabilidade de recorrência (> 30%) por reinfeção por agentes etiológicos diferentes do primeiro. A prevalência é mais elevada nos rapazes não circuncidados (4 a 20 vezes superior).

Em 50-80% dos casos de IU febril verifica-se atingimento renal agudo; em cerca de 20% dos casos de atingimento renal agudo surge cicatriz renal (CR) e, em menor proporção, HTA e proteinúria.

Dezoito a 50% dos doentes com IU sintomáticas têm refluxo vesico-ureteral (RVU), e 10 a 15% alguma anomalia congénita da árvore excretora.

Etiopatogénese

Em condições normais o tracto urinário é estéril. A contaminação por microrganismos do microbioma comensal dos sistemas gastrintestinal ou genital que colonizam a região perineal pode desencadear um processo infeccioso no tracto urinário se o microrganismo envolvido for suficientemente virulento e/ou se o hospedeiro estiver imunodeprimido.

A etiopatogénese da IU é complexa, envolvendo a interacção de factores do hospedeiro e do agente etiológico. A via de infecção pode ser:

  • Ascendente, desde o orifício uretral até à bexiga, bacinete e rim, correspondendo à quase totalidade dos casos;
  • Hematogénica, mais frequente no recém-nascido.

A virulência do microrganismo invasor e a susceptibilidade do hospedeiro são fundamentais para a instalação da IU. O factor determinante da virulência microbiana está dependente da sua capacidade de adesão à mucosa urogenital, da existência de endotoxina e de antigénios da parede celular.

No caso de E. coli, cabe referir o papel das pili ou fimbrae, que permitem fixar-se à parede do sistema urinário, mesmo que não haja alteração do fluxo urinário. Existem fímbrias de 2 tipos:

  • Tipo I – encontradas na maior parte das estirpes de coli, não desempenhando qualquer papel na pielonefrite;
  • Tipo II – ligadas a receptores (glicoesfingolípidos) presentes nas células uro-epiteliais e eritrócitos, desempenham um papel importante na génese da pielonefrite, sendo que cerca de 75-95% das estirpes pielonefritogénicas têm as chamadas fímbrias P.

Assim, torna-se fácil compreender que, tratando-se duma IU causada por uma bactéria com menor capacidade para aderir ao urotélio, tal facto constitui um alerta para a possibilidade de existência de algum defeito congénito do tracto urinário, determinando diminuição do fluxo urinário ou estase, predispondo a IU.

De referir que a bexiga com normal funcionamento tem, entre outras, as seguintes propriedades:

  • Capacidade de depuração das bactérias em 24-72 horas pressupondo o seu total esvaziamento e, portanto, a renovação da urina;
  • Presença de substâncias bacteriostáticas que inibem o crescimento bacteriano e propriedades líticas da própria mucosa vesical.

Assim, qualquer condição que leve à estase urinária – obstipação, cálculos, uropatia obstrutiva, disfunção vesical ou refluxo vesico-ureteral (RVU) – predispõe a IU.

Se os germes microbianos atingirem o rim, poderá ocorrer pielonefrite. Em circunstâncias normais, as papilas renais possuem um mecanismo antirrefluxo, que impede a entrada da urina nos tubos coletores. No entanto, ao nível dos polos superior e inferior do rim, as papilas morfologicamente diferentes não previnem tal entrada.

Se a urina estiver infectada verifica-se estímulo das respostas inflamatória e imunológica, o que poderá culminar em lesão, designadamente CR.

Por outro lado, a glicose na urina constitui um meio de cultura e inibe as funções de agregação, adesão e fagocitose dos leucócitos polimorfonucleares, o que aumenta o risco de infecção; compreende-se pois a particular relevância do facto nos doentes diabéticos.

Em suma, o desenvolvimento de CR está dependente de vários factores para além da infecção e do refluxo, tais como: idade da criança, atraso no diagnóstico, início da terapêutica, características do agente etiológico, existência de infeCções urinárias de repetição ou defeitos anatómicos associados.

No entanto, a relação exacta entre RVU e CR não está ainda perfeitamente esclarecida.

As IU são mais frequentemente causadas por bacilos Gram negativos, sendo Escherichia coli o principal agente encontrado nas IU adquiridas na comunidade (80%).

Existe uma grande variabilidade (de país para país e de região para região) relativamente à epidemiologia e aos padrões de resistência dos microrganismos causadores de IU. Desta forma, é fundamental conhecer os principais agentes etiológicos locais, de modo a obter a máxima efectividade de antibioticoterapia empírica.

QUADRO 1 – Agentes de infecção urinária

Mais comunsE. coli, Staphylococcus saprophyticus, Proteus mirabilis
Menos frequentesProteus vulgaris, Klebsiella, Enterobacter, Citrobacter, Serratia marcencens, Acinectobacter, Pseudomonas, S. aureus
Não clinicamente relevantes em crianças saudáveisLactobacillus spp, Staphylococcus coagulase-negativos, Coryrenebacterium spp

Proteus spp são mais frequentes no sexo masculino, em associação a fimose e contaminação pelo esmegma. Podem ser causa de calculose e alcalinização da urina. Já Pseudomonas aeruginosa e Staphylococcus spp são mais frequentes após a manipulação das vias excretoras e/ou antibioticoterapia prévia.

Klebesiella spp e Streptococcus do grupo B são mais frequentes em adolescentes. Nas adolescentes sexualmente activas, apesar de E. coli continuar a ser o agente etiológico principal, Staphylococcus saprophyticus surge em segundo lugar sendo responsável por cerca de 15-20% das IU neste grupo. A sua predisposição pode ser secundária ao estado hormonal do hospedeiro (alterações hormonais que acompanham a adolescência), acarretando maior susceptibilidade à contaminação por S. saprophyticus na vagina, na área periuretral e no uroepitélio.

A infeção por Candida albicans é raramente encontrada na comunidade, mas frequente em doentes com factores de risco (principalmente doentes algaliados, com cateteres, imunodeprimidos e diabéticos).

Diagnóstico

1. Anamnese e exame físico

Os sintomas clássicos de IU poderão não ser observados na idade pediátrica, variando com a idade do doente (tanto mais inespecíficos quanto menor a idade) e com o tipo de infecção e grau de repercussão sistémica do quadro clínico.

A febre alta (> 39ºC) inexplicável é aceite como provável marcador clínico de envolvimento do parênquima renal, pelo que em toda a criança com idade < 2 anos com este sinal deve ser realizada análise de urina. Sintomas e sinais específicos do aparelho urinário surgem apenas nas crianças mais velhas.

Em todas as crianças com suspeita IU deverá ser dada relevância aos seguintes aspectos da história clínica:

  • Antecedentes pessoais: diagnóstico pré ou pós-natal de nefrouropatia, RVU, IU prévias, padrão miccional anómalo, obstipação, doença da medula espinal, antibioterapia recente e atividade sexual;
  • Antecedentes familiares – RVU, IU e defeito congénito génito-urinário.

No exame físico deverão ser pesquisados hipertensão, baixa estatura e baixo peso, sinal de Murphy renal positivo, massas palpáveis, alterações neurológicas, anomalias genitais e alteração do jacto urinário.

O quadro 2 resume os principais sinais e sintomas considerando os grupos etários.

QUADRO 2 – Sinais e sintomas de infecção urinária

Faixa etáriaSintomas e sinais  
Mais comuns ——————————————————————————————————————> Menos comuns
< 3 mesesFebre
Vómitos
Letargia
Irritabilidade
Recusa alimentar
Má progressão ponderal
Globo vesical e rins palpáveis
Dor abdominal
Icterícia
Hematúria
Urina com cheiro fétido
≥ 3 mesesFase Pré-verbalFebreDor abdominal
Dor lombar
Diarreia
Vómitos
Recusa alimentar
Letargia
Irritabilidade
Hematúria
Urina com cheiro fétido
Má progressão ponderal
Fase VerbalFrequência DisúriaPoliaquiúria
Incontinência urinária
Dor abdominal
Dor lombar
Febre
Mal-estar
Vómitos
Hematúria
Urina turva com cheiro fétido

2. Exames complementares

Após a suspeita clínica de IU é urgente ter um diagnóstico de certeza. Em pediatria, na presença de febre de etiologia desconhecida (≥ 38ºC, com mais de 24 horas de evolução), é necessário obter uma amostra de urina para confirmação diagnóstica de IU. Quando existe um foco alternativo de doença, não há necessidade de realizar análise de urina. Contudo, se após 24 a 48 horas não se verificar melhoria clínica, a mesma deverá ser realizada.

a) Colheita de urina

O método ideal para colheita de urina para o exame sumário depende da ausência ou presença de controlo de esfíncteres urinários. Em crianças com controlo de esfíncteres, o método preferencial de colheita é por jacto médio. No recém-nascido, no lactente e na criança sem controlo de esfíncteres, deve proceder-se a punção suprapúbica ou a cateterismo uretral. Neste último grupo, pode também ser realizada por saco colector, após lavagem correcta da zona perineal.

A punção suprapúbica é o método padrão de ouro para colheita de urina. Deverá ser considerado, sobretudo, nas crianças com menos de 12 meses, com balanopostite/vulvovaginite ou fimose importante, ou ainda com quadro infeccioso grave. Deve ser realizada uma hora após a última micção e, pelo menos, 30 minutos após mamada. Deve utilizar-se uma agulha de calibre 22; após desinfecção da pele com iodopovidona, deve puncionar-se 1 cm acima da sínfise púbica, a uma profundidade de 2 a 3 cm, com inclinação da agulha de 30 a 45º no sentido caudal.

No caso do cateterismo uretral, as primeiras gotas deverão ser desperdiçadas porque poderão estar contaminadas com bactérias da uretra distal; este método evidencia sensibilidade de 95% e especificidade de 99%.

Com a colheita por saco colector obtém-se taxa elevada de resultados falsos positivos com um valor preditivo negativo de 96-100%. Poderá ser usado se a clínica não for muito sugestiva de IU em criança com bom estado geral. No entanto, se a urina obtida revelar alterações, deve ser obtida segunda amostra por punção suprapúbica ou cateterismo uretral.

Após colheita de urina, recomenda-se não ultrapassar 1 hora para o processamento da mesma, em temperatura ambiente. Se não for possível processar a urina neste intervalo de tempo, deve ser refrigerada após colheita, a uma temperatura entre 2-8ºC, até 4 horas. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Métodos de colheita de urina

1Recomenda-se que a punção suprapúbica seja guiada por ecografia
Método de colheitaUrocultura considerada
positiva se:
VantagensDesvantagensIndicação
Jacto médio

≥ 100.000 colónias/mL

– indicadores de validade de diagnóstico aceitáveis
– não invasivo
– fácil

 – risco de contaminação dependente da higiene e medidas de limpezaTodas as crianças continentes
Saco colector

≥ 100.000 colónias/mL

– valor preditivo negativo 96-100%
– não invasivo
– fácil

– taxa de falsos positivos muito elevada (> 50%)
– necessita de outro método para confirmação se positivo

Método inicial para todas as crianças não continentes, em situações não urgentes

Cateterismo uretral

> 10.000 a 50.000 U colónias/mL

– elevada sensibilidade e especificidade

– invasivo
– risco de trauma uretral
– risco de contaminação

Método de confirmação e método inicial em situações urgentes de crianças não continentes
Punção suprapúbica> 0 colónias/mL se Gram negativo
> 1.000 colónias/mL se Gram positivo
– técnica de referência

– invasivo
– êxito variável (30-70%)
– idealmente requer controlo ecográfico

Método de confirmação e método inicial em situações urgentes de crianças não continentes1
b) Análises de urina  

A análise sumária de urina (Us) e a urocultura (UC) são dois exames de particular importância, dado que conduzem ao diagnóstico. A primeira, um instrumento de rastreio, dá uma informação rápida de suspeita com necessidade de confirmação do diagnóstico. A urocultura (UC), se positiva, permite estabelecer o diagnóstico definitivo de IU.

Os parâmetros a valorizar na amostra de urina centrifugada, havendo suspeita de IU, são: densidade baixa, presença de proteínas, presença de nitritos, leucosterase; > 5 leucócitos por campo com ampliação de 400 vezes ou > 25 leucócitos por mcL (leucocitúria significativa), presença de piócitos, presença de eritrócitos, presença de bactérias (microscopia).

Nas crianças a partir dos 3 anos poder-se-á utilizar fita reactiva (Combur®) para avaliação inicial, a qual tem 90% de sensibilidade e 70% de especificidade.

O teste para nitritos é pouco sensível nas crianças, particularmente no recém-nascido e lactente. Isto acontece pela elevada frequência de micções, o que impossibilita que a urina permaneça o tempo necessário na bexiga (cerca de 4 horas) para que as bactérias reduzam os nitratos em nitritos. Desta forma, se negativo, o teste para nitritos não invalida a presença de infecção. Contudo, a probabilidade de IU é elevada quando o resultado é positivo. Bactérias não redutoras de nitratos (Pseudomonas e Streptococcus), presença de ácido ascórbico e urina muito diluída são outras causas de negatividade quanto a nitritos. Por outro lado, se a urina permanecer muito tempo sem processamento, poderá ocorrer um resultado falso positivo.

A leucocitúria significativa (ver atrás) permite distinguir a BA (em que não existe leucocitúria significativa) da IU. No entanto, está frequentemente associada a falsos positivos, como no contexto de febre secundária a outro tipo de infecção, doença de Kawasaki e após exercício físico intenso.

A ausência de piúria na IU da criança é rara. A presença de bactérias numa urina fresca centrifugada, colhida em condições de assepsia é altamente específica de IU.

Quanto maior o número de parâmetros positivos, maior a probabilidade de IU na presença de sinais clínicos sugestivos. Assim, a positividade para nitritos e leucócitos na urina torna o diagnóstico de IU altamente provável. No entanto, em cerca de 10% dos casos pode existir IU com análise sumária normal, pelo que nunca se deve prescindir da realização da urocultura.

O Quadro 4 mostra a sensibilidade e especificidade dos parâmetros atrás referidos (componentes de urina considerados isoladamente ou em combinação) para o diagnóstico de IU.

QUADRO 4 – Sensibilidade e especificidade de parâmetros, isolados e em combinação, para o diagnóstico de IU

TesteSensibilidade %Especificidade %
Leucosterase83 (67-94)78 (64-92)
Nitritos53 (15-82)98 (90-100)
Leucosterase + ouNitritos +93 (90-100)72 (58-91)
Leucócitos (microscopia)73 (32-100)81 (45-98)
Bacteriúria (microscopia)81 (16-99)83 (11-100)
Leucosterase + ,  Nitritos + , ou Microscopia +99,8 (99-100)70 (64-92)
c) Urocultura

Os critérios de diagnóstico de IU em função da positividade microbiana em colónias/mL variam conforme o modo de colheita da urina em condições de assepsia:

  • Jacto médio ou saco colector: > 100.000 colónias/mL;
  • Cateterismo vesical: > 10.000 colónias/mL;
  • Punção suprapúbica: > 0 colónias/mL se Gram negativo e > 1.000 colónias/mL se Gram positivo.

Em pediatria, realização de urocultura (UC) está indicada nas seguintes situações:

  • Quadro clínico compatível com pielonefrite aguda;
  • Risco elevado ou moderado de doença grave;
  • Leucosterase positiva ou nitritos positivos;
  • IU recorrentes;
  • Ausência de resposta à antibioticoterapia em 48 horas;
  • Discordância entre a clínica e o resultado da fita reactiva/exame sumário de urina.

A UC poderá ser negativa na fase inicial do processo inflamatório, no abcesso renal ou nefrónia lobar, na criança com micções muito frequentes ou se tiver sido instituída antibioticoterapia prévia.

A IU é causada por uma única bactéria, pelo que a presença de duas ou mais sugere contaminação.

A bacteriúria assintomática (BA) é mais frequente em raparigas de idade escolar, mas pode também ocorrer em lactentes. Estima-se que 1/4 dos rapazes e 1/6 dos rapazes diagnosticados como IU tenham, na realidade, BA.

Trata-se de uma condição clínica facilmente confundida com uma verdadeira IU. Não obstante, a ausência de piúria é um dado mais a favor do diagnóstico de BA. Convém, contudo, ressalvar o facto de uma criança com BA, que se encontre febril, poder evidenciar leucócitos na urina apenas devido à febre.

Na maioria dos casos, a BA não tem indicação para tratamento, uma vez que é habitualmente causada por uma estirpe de E. coli menos virulenta e não agressiva para o rim. Ao instituir antibioticoterapia, há risco de alterar a virulência da bactéria. Apesar disso, há situações que obrigam a antibioticoterapia: pacientes imunodeprimidos, diabéticos, grávidas, e insuficientes renais.

d) Análises séricas

Em função do contexto clínico, nos casos de suspeita de compromisso do parênquima renal (pielonefrite) é fundamental avaliar determinados parâmetros analíticos através do hemograma, proteína C reactiva (PCR), velocidade de sedimentação (VS) e procalcitonina. Constituem marcadores indirectos de provável compromisso do parênquima renal: leucocitose com neutrofilia e elevação da PCR e da VS.

A procalcitonina é um marcador directo de diagnóstico e de gravidade da lesão renal. Trata-se de um parâmetro sensível e específico para o diagnóstico precoce de pielonefrite aguda, salientando-se o seu valor preditivo mais robusto relativamente à PCR e ao leucograma. Considerando o valor de corte de 0,8 ng/mL, a sensibilidade e especificidade são 83,3% e 93,6%, respectivamente. No entanto, não se encontra ainda disponível na maioria dos hospitais.

O diagnóstico baseia-se, assim, no contexto clínico apropriado, na presença de piúria e UC positiva.

O Quadro 5 sistematiza a actuação com base na clínica, em faixas etárias, e em exames de urina.

QUADRO 5 – Clínica, exames de urina, faixas etárias e antibioticoterapia

Lactentes com menos de 3 meses
Todos os lactentes < 3 meses com suspeita de IU deverão realizar análise sumária de urina e UC e ser orientados de acordo com as recomendações para avaliação de doença febril nesta faixa etária
Crianças ≥ 3 meses e < 3 anos
Sintomas urinários específicosPedir Us e UC urgentes e iniciar antibioticoterapia (AB)
Sintomas não específicos do tracto urinário

Criança com risco elevado de doença grave: pedir Us e UC urgentes. Realizar restante avaliação de doença febril. Iniciar AB de largo espectro imediatamente após colheitas

Criança com risco baixo a moderado de doença grave: pedir Us e UC urgentes. Iniciar AB dirigida a IU se nitritos positivos ou exame do sedimento sugestivo de IU

Crianças ≥ 3 anos (pode utilizar-se tira reactiva)
Esterase leucocitária +
Nitritos +
Considerar IU, proceder a UC e iniciar antibioticoterapia
Esterase leucocitária +
Nitritos –
Proceder a Us e UC. Iniciar antibioticoterapia apenas se sintomas urinários óbvios. A leucosterase isolada poderá indicar infecção de outra localização que não o tracto urinário
Esterase leucocitária –
Nitritos +
Proceder a Us e UC. Considerar IU se a análise tiver sido efectuada em amostra fresca de urina e iniciar antibioticoterapia
Esterase leucocitária –
Nitritos –
Não considerar IU e não iniciar AB nem proceder a UC. Considerar outras causas de doença

Orientação de IU confirmada

Na abordagem clínica da IU devem ser tidos em consideração três aspectos:

  • Avaliação de factores de risco associados a patologia grave;
  • Localização da IU;
  • Critérios de internamento.

Factores de risco associados a patologia grave

A doença grave está associada a morbilidade importante, tanto aquando do episódio agudo, como a longo prazo. São considerados factores de risco associados a doença de base grave, os seguintes:

  • Jacto urinário fraco;
  • IU prévia confirmada (ou história sugestiva);
  • Febre recorrente de origem indeterminada;
  • Diagnóstico pré-natal de anomalia nefrourológica;
  • História familiar de RVU ou doença nefrourológica;
  • Obstipação;
  • Disfunção vesical;
  • Aumento das dimensões vesicais;
  • Massa abdominal;
  • Lesão da espinhal-medula;
  • Má progressão ponderal;

No caso da febre recorrente, dever-se-á considerar a hipótese de um ou vários destes episódios febris poderem ter correspondido a IU não diagnosticadas. Relativamente à obstipação, sobretudo se se tratar de uma forma grave e com má resposta à terapêutica já instituída, deverá suspeitar-se de bexiga e intestino neurogénicos.

Localização da IU

A localização da infecção do tracto urinário na idade pediátrica tem implicações terapêuticas e prognósticas e poderá ser determinada a partir dos dados clínicos. Desta forma, na presença de um quadro caracterizado por bacteriúria e febre ≥ 38ºC ou por bacteriúria, dor lombar e febre < 38ºC, o diagnóstico mais provável é de PNA. Por outro lado, a presença de bacteriúria e sintomas urinários do tracto urinário inferior, sem sintomas sistémicos, aponta para o diagnóstico de cistite.

Se existirem dúvidas quanto ao envolvimento do parênquima renal, poderão ser utilizados marcadores:

  • Indirectos: laboratoriais (leucocitose com neutrofilia, elevação da PCR) e imagiológicos (alterações ecográficas);
  • Directos: cintigrafia renal com DMSA (permitindo a localização da IU e ainda a pesquisa de cicatrizes).

Isoladamente, a PCR não deve ser utilizada para diferenciar PNA de cistite. Os exames de imagem também não estão recomendados para definir a localização da IU. No entanto, se for imprescindível excluir PNA, poderá ser realizada ecografia com Doppler (a PNA corresponde a uma área focal com diminuição da perfusão) ou cintigrafia com DMSA, quando o anterior exame não estiver disponível ou o diagnóstico permanecer por confirmar (por ex. criança com clínica muito sugestiva e 2 episódios de presumível contaminação).

Critérios de internamento

A decisão de internar ou não uma criança com IU não deve ser baseada exclusivamente na presença de febre ou em resultados de parâmetros laboratoriais sugestivos de pielonefrite; estes dados devem, contudo, ser tidos em conta ao avaliar a repercussão sistémico da IU, a alteração da função renal, o início imediato da terapia antibiótica, o tipo de tratamento e o estudo evolutivo.

São considerados critérios de internamento os seguintes:

  • Idade inferior ou igual a 3 meses;
  • Necessidade de administração de fluidos endovenosos (desidratação, vómitos);
  • Indicação para antibioticoterapia/AB endovenosa (doença grave, ausência de resposta ou agravamento em criança já sob AB oral);
  • Incerteza no cumprimento da terapêutica no domicílio;
  • Factores de risco identificados, nomeadamente anomalia génito-urinária major, suspeita de obstrução e síndroma de imunodeficiência.

Tratamento

Os objetivos do tratamento são a erradicação do agente etiológico, o alívio dos sintomas e a prevenção ou redução da lesão renal.

Início do tratamento

Recomenda-se que as crianças com diagnóstico presuntivo de IU sejam tratadas empiricamente com AB o mais precocemente possível, após colheita de urina para UC, de forma a reduzir o risco e a gravidade de CR. Logo que possível, a antibioticoterapia deve ser ajustada de acordo com o resultado do teste de sensibilidade aos antibióticos (TSA).

Na criança apirética, com bom estado geral e resultados de exames laboratoriais inconclusivos, pode adoptar-se a estratégia de observação clínica seriada/”expectativa armada” sem tratamento até que o resultado da urocultura esteja disponível.

Na instituição de terapêutica empírica, há que ter em conta factores que se relacionam com o agente infectante, com o hospedeiro e com a farmacocinética dos antibióticos. É igualmente importante ter conhecimento, em cada área comunitária, das bactérias mais frequentes e do respectivo padrão de sensibilidade. Relativamente ao hospedeiro importa considerar a idade, os agentes etiológicos mais frequentes de acordo com o grupo etário, a gravidade da situação clínica, a existência ou não de patologia nefro-urológica ou outra, bem como as terapêuticas antibióticas previamente instituídas.

No que diz respeito aos fármacos, deve ser utilizado um antibiótico bactericida, com espectro de acção selectivo, com boa concentração urinária, com mínimo de efeitos secundários e com baixa capacidade de induzir resistências. Igualmente importante é a posologia, a tolerância e aceitação dos preparados existentes no mercado, sobretudo quando a terapêutica é instituída em regime ambulatório. Os antibióticos com eliminação renal, mas que não atinjam concentrações terapêuticas na corrente sanguínea, tal como a nitrofurantoína, não devem ser utilizados para o tratamento da IU com febre, pois a sua concentração a nível do parênquima renal poderá ser insuficiente para tratar pielonefrite ou urossépsis.

Via de administração

A terapêutica oral ou parentérica tem a mesma eficácia. Neste sentido, a via preferencial de administração da antibioticoterapia deve ser a oral. A via parentérica deve ser inicialmente escolhida para crianças com compromisso importante no estado geral, que não toleram a vida oral ou para aquelas que cumprem critérios de internamento. Assim que a condição clínica o permita, o tratamento deverá ser completado pela via oral.

Duração do tratamento

A duração do tratamento antibiótico da IU associada a quadro febril deve ser de 10-14 dias. Na cistite é aceitável tratamento com duração de 3-5 dias, excepto se se verificar recidiva ou se a idade for inferior a dois anos; neste último caso, está recomendada duração de 7-10 dias.

Esquemas de tratamento

O esquema de tratamento deve ser seleccionado de acordo com o local da infecção (cistite ou PNA) e a idade da criança (Quadro 6). Como já mencionado, na escolha do antibiótico deve ainda ser considerada a epidemiologia local.

Em caso de IU associada a desidratação, deve ser instituída fluidoterapia para 100% a 150% das necessidades basais. O ajuste do ritmo de perfusão é feito de acordo com grau de desidratação e características da ingesta. Por outro lado, a instituição de fluidoterapia EV contribui também para o tratamento da IU, pois aumenta o débito urinário e, assim, o esvaziamento vesical.

Quadro 6 – Tratamento da IU de acordo com a faixa etária e localização

AAC: amoxicilina + ácido clavulânico; TMP-SMX: trimetoprim/sulfametoxazol; Na adolescente sexualmente activa a fosfomicina poderá não constituir uma boa opção, dado que neste grupo 15% das IU são causadas por Staphylococcus saprophyticus, agente com elevada resistência a este AB
IdadeLocalização e tratamento
Recém-nascido ≤ 1 semanaampicilina (200 mg/kg/dia, 8/8h) + gentamicina (4-5 mg/kg/dia, 24/24h)
Tratamento EV durante 14 dias
Recém-nascido > 1 semana e ≤ 28 diasampicilina (200 mg/kg/dia, 8/8h) + cefotaxima (75-100 mg/kg/dia, 8/8h)
Tratamento EV durante 14 dias
> 28 dias e < 3 meses ou > 3 meses com factor de riscoEV: cefotaxima (75-100 mg/kg/dia, 8/8h)
ou ceftriaxona (50-100 mg/kg/dia, 24/24h)
ou cefuroxima (50-150 mg/kg/dia, 8/8h) + gentamicina (5-6 mg/kg/dia, 24/24h)
Via oral – Ambulatório: na sequência da terapêutica parentérica e de acordo com o TSA
Duração total do tratamento: 10 dias
≥ 3 meses, sem factor de riscoPIELONEFRITE AGUDA
Via oral:
cefuroxima axetil (40 mg/kg/dia, 12/12h) ou
AAC/4:1 (40-50 mg/kg/dia, 8/8h) ou
AAC/7:1 (50-100 mg/kg/dia, 12/12h)

Se impossibilidade de via oral:
cefuroxima (50-150 mg/kg/dia, 8/8h) EV durante 2-4 dias (até 24-48h de apirexia e tolerância oral) ou
AAC (50 mg de amoxicilina/kg/toma, 8/8h) ou cefotaxima (150 mg/kg/dia, 6/6 ou 8/8h) ou ceftriaxona (50-100 mg/kg/dia, 24/24h)
Depois, continuação com AB oral de acordo com o TSA
Duração total do tratamento: 10 dias

CISTITE AGUDA
AAC/4:1 (40-50 mg/kg/dia, 8/8h) ou
AAC/7:1 (50-100 mg/kg/dia, 12/12h) ou
cefuroxima axetil (30-40 mg/kg/dia, 12/12h) ou
cefadroxil (30 mg/kg/dia, 12/12h) ou
ceflacor (40 mg/kg/dia 12/12h) ou
cefradina (100 mg/kg/dia, 8/8h) ou
TMP-SMX, se sensibilidade demonstrada no antibiograma (8-12 mg/kg/dia, 12/12h)
Tratamento oral durante 7 dias

Adolescentes do sexo femininonitrofurantoína (100 mg, 6/6h) ou
fosfomicina (3000 mg, dose única) ou
AAC/875/125 mg <> 1 cápsula – de 12/12h) ou
cefuroxima axetil: 500 mg, 12/12h

Nos casos em que é necessária via parentérica e não for possível tratamento endovenoso, deve ser considerada a via intramuscular.

Se a criança estiver sob terapêutica profiláctica e se surgir IU, o tratamento deverá ser feito com AB diferente, e não com dose mais elevada do mesmo AB.

 

Nota importante: em caso de insuficiência renal certos antibióticos poderão necessitar de ajuste de dose de acordo com a taxa de filtrado glomerular.

Os Quadros 7 e 8 agrupam os antimicrobianos utilizados no tratamento da IU de acordo com a sua posologia.

QUADRO 7 – Antibioticoterapia por via parentérica na IU

AntibióticoDose, frequência e dose máxima diáriaComentários
Ampicilina EV

50-100 mg/kg/dia (dose máxima: 12 g/dia)
Recém-nascido: 100 mg/kg/dose
≤ 7 dias de vida: 12/12h
> 7 e ≤ 21 dias de vida: 8/8h
> 21 dias de vida: 6/6h

Reservado para crianças < 30 dias de idade para cobertura de infecção por Streptococcus do grupo B, Listeria monocytogenes ou Enterococcus, em associação com gentamicina

Cefuroxima EV/IM

75-150 mg/kg/dia, 8/8h
(dose máxima: 250 mg/kg ou 9 g/dia)

 
Ceftriaxona EV/IM

50-100 mg/kg/dia, 24/24 h

Reservado para via IM nas crianças com intolerância alimentar e/ou sem acesso venoso
A usar com precaução no recém-nascido com icterícia

Gentamicina EV/IM

4-5 mg/kg/dia, 24/24 h

Não usar em monoterapia
Se < 1 semana de vida – associar com ampicilina para cobertura de Listeria monocytogenes ou Enterococcus
A ajustar o intervalo de acordo com o doseamento sérico

QUADRO 8 – AB para tratamento das IU em regime ambulatório

Antibiótico

Dose, frequência e dose máxima diária

Comentários

Cefuroxima  axetil

30-40 mg/kg/dia, 12/12h
(Dose máxima: 1000 mg/dia)

Administrar após as refeições Absorção diminuída com fármacos que diminuem a acidez gástrica

Cefixima

D1: 8 mg/kg/dia – 2 tomas
D2-D10: 8 mg/kg/dia – 1 toma
(Dose máxima: 400 mg) (D = dia)

Suspensão oral com melhor absorção que o comprimido

TMP/SMX

6-10 mg de TPM/kg/dia, 12/12h
(Doses máximas: 320 mg TMP/1600 mg SMX)

Não usar no recém-nascido, na insuficiência hepática, no défice da G6PD e na anemia megaloblástica

Cefadroxil

30 mg/kg/dia, 12/12h
(Dose máxima: 2 g)

Absorção rápida e total

AAC

AAC/4:1 (40-50 mg/kg/dia, 8/8h) ou AAC/7:1 (50-100 mg/kg/dia, 12/12h)
(Amoxicilina – dose máxima: 3 g)

Boa biodisponibilidade
Dada a epidemiologia local só utilizar de acordo com TSA

Vigilância

Se após 24-48 horas de tratamento não ocorrer melhoria clínica, impõe-se revisão clínica, analítica e imagiológica. Na ausência de diagnóstico alternativo, deve proceder-se a urocultura (se ainda não tiver sido feita).

Se houver boa resposta clínica, não há necessidade de repetir avaliação analítica, nomeadamente UC.

Critérios de alta

São considerados critérios de alta clínica os seguintes:

  • Apirexia ≥ 48 horas;
  • Ingestão e tolerância de líquidos em função das necessidades;
  • Dor controlada com terapêutica oral;
  • Tolerância oral de AB;
  • Aceitação pelos pais e verificação de condições adequadas para a manutenção da terapêutica em casa;
  • Definição de programa de vigilância e controlo pelo médico assistente.

Prevenção

Sugerindo ao leitor a consulta do glossário geral em que são definidos os conceitos de prevenção e de profilaxia (o primeiro, mais lato que o segundo), cumpre referir que a taxa de recorrência no primeiro ano após o diagnóstico de IU é cerca de 30% nos rapazes e 40% nas raparigas, o que impõe a aplicação de medidas preventivas com o objectivo de diminuir a probabilidade de lesão renal (CR).

As medidas de prevenção consistem fundamentalmente em medidas gerais, na pesquisa de anomalias congénitas do tracto urinário (sendo o RVU o mais frequente) e na instituição de terapêutica antimicrobiana em dose profiláctica.

Medidas gerais

As medidas gerais destinadas a reduzir as recorrências de IU devem ser levadas a cabo em todos os doentes incluindo:

  • Identificação e tratamento de disfunção vesical e intestinal (bowel bladder disfunction): suprimento adequado de líquidos para promover esvaziamento vesical frequente e tratamento da obstipação;
  • Correção de factores locais (má higiene genitoperineal, parasitoses, vulvovaginite, balanite, sinéquias, fimose, coalescência de pequenos labios);
  • Evicção de irritantes locais (roupas apertadas, espuma de banho, cremes); e preferência de roupa de algodão folgada.

Quimioprofilaxia

Nos últimos anos, vários estudos aleatorizados demonstraram que num número significativo de crianças com idade inferior a 2 anos se desenvolve pielonefrite sem RVU, e que a profilaxia antimicrobiana tem escasso impacte na redução do número de recorrências. Outros estudos demonstraram que a quimioprofilaxia pode associar-se a diminuição do número de recorrências de IU, parecendo não ter papel na diminuição da probabilidade de desenvolvimento de CR. Segundo importantes estudos, como o RIVUR trial, verificou-se ainda que nas crianças com RVU após uma primeira IU, a quimioprofilaxia se associou a uma redução substancial do risco de recorrência, mas não de ocorrência de CR.

Assim, as últimas recomendações da Associação Americana de Pediatria acerca da infecção urinária acompanhada de febre em idades < 2 anos não preconizam a quimioprofilaxia em todos casos. Desta forma, a quimioprofilaxia não é recomendada, por rotina, após a primeira IU, não devendo também ser instituída nos casos de BA. O início de profilaxia antimicrobiana deve assim ficar reservada para os seguintes casos:

  • RVU grave (graus IV e V) – ver capítulo próprio;
  • Uropatia obstrutiva – idem;
  • IU recorrente;
  • Até à realização de cistografia, nos casos em que esta tem indicação;
  • Problemas miccionais diurnos.

Os fármacos mais utilizados na quimioprofilaxia encontram-se descritos no Quadro 9.

QUADRO 9 – Profilaxia antimicrobiana no contexto de infecção urinária

Antimicrobiano Dose Idade a partir da qual pode ser prescrito
Trimetoprim, solução oral a 1% (manipulado) (1 mL = 10 mg) 1-2 mg/kg, 24/24h Desde o nascimento
TMP/SMX 5 ml = 200/40 mg SMX/TMP TMP: 2 mg/kg, 24/24h > 2 meses de idade
Nitrofurantoína, solução oral a 0,5% (manipulado) (1 mL = 5 mg) 1-2 mg/kg, 24/24h > 12 semanas de idade (nos lactentes com idade inferior há risco de hemólise)

As baixas doses destes fármacos têm a vantagem de, perante níveis séricos baixos e elevadas concentrações urinárias, impedir o aparecimento de resistências a bactérias entéricas e, ao mesmo tempo, o seu crescimento na urina.

Não existe consenso quanto à duração da profilaxia, mas nas crianças a quem foi instituída justifica-se mantê-la até:

  • Conclusão da investigação imagiológica – ver adiante;
  • Cura da uropatia subjacente;
  • No caso de IU recorrente, existência de período ≥ 6 meses sem nova infeção;
  • Resolução das condições que favorecem a estase urinária e disfunção vesical.

Outras estratégias preventivas alternativas à profilaxia antimicrobiana são a utilização de probióticos, ou de frutos vermelhas. Especificamente, em relação à utilização de frutos vermelhos, de acordo com uma meta-análise da Cochrane de 2012 (avaliando imunodeprimidos, crianças com IU recorrentes, idosos e mulheres adultas) somente se verificou eficácia de tal medida em mulheres.

Avaliação imagiológica

Após diagnóstico de IU há que ponderar a necessidade de uma avaliação imagiológica que permita a detecção precoce de anomalias anatómicas ou disfuncionais do tracto urinário (nomeadamente RVU e nefropatia obstrutiva) de modo a prevenir o risco de reinfecção e lesão renal. A avaliação varia em função da idade da criança e da evolução clínica da mesma.

Ecografia renal e vesical

A ecografia renopélvica fornece informações cruciais sobre os rins (número, tamanho, localização e características do parênquima), o tracto urinário (dilatação, duplicidade) e a bexiga (ureterocele, resíduo miccional, espessamento da parede, sedimento urinário).

Contudo, é pouco sensível no diagnóstico de RVU, CR e PNA. Trata-se dum exame não invasivo, fundamental na orientação sobre o tipo de estudo subsequente a efectuar.

Este exame deverá ser realizado, aquando do episódio agudo de IU, nos seguintes casos:

  • Lactente com idade < 3 meses;
  • IU recorrente em lactente < 6 meses;
  • IU atípica, em qualquer idade. No entanto, em casos de IU por bactérias não coli, com boa resposta ao tratamento e na ausência de outros critérios de IU atípica, poderá ser realizada ecografia, apenas 6 semanas após o episódio agudo.

As seguintes situações têm indicação para a realização de ecografia renal e vesical 6 semanas após o episódio agudo:

  • Todas as pielonefrites, mesmo que tenha sido realizada ecografia em pleno episódio agudo (a inflamação decorrente da infecção poderá levar a aumento das dimensões do rim e mascarar rins atróficos);
  • Crianças com cistite, apenas se tiverem idade < 6 meses (idade em que é especialmente difícil diferenciar cistite de pielonefrite), ou história de IU recorrente.

Se a criança já tiver controlo de esfíncteres, a ecografia deverá ser realizada com determinação da capacidade vesical e do resíduo pós-miccional.

Cistouretrografia miccional e pós-miccional

A cistouretrografia miccional e pós-miccional (CUM) é o exame de escolha para o diagnóstico de RVU e determinação do respectivo grau. O RVU é detectado em mais de um terço das crianças após a primeira IU febril, mas em cerca de 90% dos casos é de baixo grau e tende a desaparecer espontaneamente. Poderá também detectar obstrução do tracto urinário inferior, especialmente se provocado ​​por válvulas de uretra posterior.

A realização de CUM está indicada nas seguintes situações:

  • Resultados anormais em exames de imagem prévios:
    • Ecografia renal e vesical (hidronefrose, perda de parênquima renal, assimetria renal, etc.);
    • DMSA (nos casos em que não foi realizada cistografia previamente) – ver adiante;
  • Nos casos de resultados normais de exames anteriores se:
    • IU recorrente (excepto nos casos de criança ≥ 3 anos nas quais nenhuma das IU correspondeu a PNA);
    • Casos de criança < 3 anos com IU atípica (nas crianças com ≥ 3 anos procede-se inicialmente a DMSA; e, se for detectada CR, posteriormente deve ponderar-se CUM);
    • História familiar de RVU.

Antes da realização de cistografia, deverá proceder-se a UC (cerca de uma semana antes); se a mesma for positiva, o referido exame não deverá ser feito.

Idealmente a cistografia deverá ser realizada sob cobertura antimicrobiana (deve prescrever-se um dos antimicrobianos utilizados para a quimioprofilaxia, na mesma dose/toma, mas em duas tomas diárias: na véspera, no dia, e no dia seguinte ao exame). É ainda de referir que a cistografia só deverá ser realizada cerca de 4 a 6 semanas após a IU.

Cintigrafia renal com DMSA (ácido dimer-capto-succínico marcado com 99m Tecnésio)

A cintigrafia baseia-se na afinidade do isótopo para as células tubulares. Dá informações sobre a extensão da lesão renal e sobre a função diferencial de cada rim.

É o exame de referência para o diagnóstico de PNA (quando realizada na fase aguda, após as primeiras 48 horas) e de cicatriz renal.

Durante a fase aguda de doença, detecta zonas de hipocaptação, traduzindo a existência de áreas de isquémia. Estes dados correspondem a sinais clássicos de pielonefrite aguda e são preditivos de RVU de alto grau (IV-V), por sua vez associado a maior risco de lesão renal e IU recorrente. Se o resultado for normal, permite concluir que não há risco de desenvolvimento de cicatriz a médio e longo prazo.

Está preconizada a realização de cintigrafia após 6 a 9 meses da infecção urinária, para rastreio de CR (se realizada antes, poderá demonstrar alterações decorrentes ainda da infecção e não devidas a verdadeiras cicatrizes). No entanto, se a criança tiver uma nova IU enquanto aguarda pela realização da cintigrafia, deverá ser considerada a antecipação da mesma.

  • A cintigrafia renal com DMSA tem indicação nas seguintes situações: Alterações na ecografia e/ou cistografia com RVU (graus IV ou V).
  • IU recorrente (excepto se idade ≥ 3 anos e nenhuma das infecções correspondeu a PNA).
  • IU atípica (excepto se o único critério de IU atípica for infecção por bactéria não coli, houver boa resposta ao tratamento e não estiverem presentes outros critérios de IU atípica).

No Quadro 10 encontram-se discriminadas as indicações para a realização de cada um dos exames imagiológicos, por faixa etária, com base nas recomendações da NICE (The National Institute for Health and Care Excellence):

QUADRO 10 – Avaliação imagiológica recomendada de acordo com a faixa etária

1Realizar 6-9 meses após a IU.
2Realizar 4 a 6 semanas após a IU.
3Se: – se tratar de IU causada por bactéria que não E. coli; – o lactente responder bem ao tratamento; e – não estiverem presentes outros critérios de IU atípica, poderá ser realizada ecografia, somente 6 semanas após o episódio agudo de IU.
 Resposta ao antimicrobiano em 48 horasIU atípicaIU recorrente
Lactente com < 6 meses de idade
Ecografia no episódio agudoSim, se idade < 3 mesesSim3Sim
Ecografia 6 semanas após a IUSimNãoNão
Cintigrafia com DMSA1Não, excepto se RVUSimSim
Cistografia2Apenas se ecografia anormalSimSim
Lactentes ≥ 6 meses – crianças < 3 anos
Ecografia no episódio agudoNãoSim3Não
Ecografia 6 semanas após a IUSimNãoSim
Cintigrafia com DMSA1NãoSimSim
Cistografia2NãoConsiderar se:
– dilatação evidenciada na ecografia;
– fluxo urinário diminuído;
– Infecção por bactéria não E. coli;
– história familiar de RVU.
Crianças ≥ 3 anos
Ecografia no episódio agudoNãoSim3Não
Ecografia 6 semanas após a IUNãoNãoSim
Cintigrafia com DMSA1NãoNãoSim
Cistografia2NãoNãoNão

Seguimento

O seguimento de crianças diagnosticadas com IU é justificado pela possibilidade de surgirem alterações nefrourológicas secundárias e lesão renal, bem como pela probabilidade de recorrência.

As crianças que não tiveram indicação para avaliação imagiológica também não têm indicação para acompanhamento de rotina. Da mesma forma, crianças diagnosticadas com BA não têm indicação para seguimento.

As crianças assintomáticas após um episódio de IU não deverão fazer análise sumária (Us) de urina ou UC de rotina. A Us e a UC só devem ser realizadas numa criança com sintomatologia sugestiva de IU, ou febre não explicada.

Se os resultados dos exames imagiológicos forem normais, o doente poderá ter alta da consulta. Por outro lado, se a criança tiver IU recorrentes ou alterações nos exames de imagem, o seguimento deve ser mantido.

A avaliação de crianças com alterações do parênquima renal deverá incluir peso, altura, pressão arterial, microalbuminúria e avaliação da capacidade de concentração urinária, sendo necessário exame sumário de urina em amostra de segunda urina da manhã, após jejum nocturno (para apreciação da capacidade de concentração urinária).

A avaliação por especialista, nefrologista/urologista, deve ser considerada quando há dúvidas sobre orientação a seguir em situações documentadas de RVU, cicatriz renal, anomalias estruturais do aparelho urinário, disfunção vesical, litíase renal ou vesical, HTA, alterações da função renal ou proteinúria. Alterações minor e unilaterais do parênquima renal não constituem indicação para seguimento, excepto se houver história de IU recorrentes ou história familiar de hipertensão arterial, ou ainda estilos de vida que predisponham para a mesma.

Ideias-chave

  • Apesar de nem sempre fácil, é fundamental o diagnóstico correcto da IU para um correcto tratamento e seguimento.
  • A forma de colheita de urina é fundamental para o correcto diagnóstico de IC.
  • A interpretação da UC depende dos achados no exame sumário de urina e do método de colheita.
  • O achado de nitritos e leucócitos, na presença de sinais clínicos, torna o diagnóstico de IU altamente provável.
  • O diagnóstico de IU é estabelecido pela presença de contexto clínico apropriado, piúria e UC positiva.
  • O tratamento da IU depende da idade, localização (PNV versus cistite) e epidemiologia local.
  • Uma primeira IU em lactente com > 2 meses de idade, desde causada por coli, sem complicações e/ou sinais de alerta, e sem antecedentes pessoais nefro-urológicos de relevo, não tem indicação para investigação imagiológica (excepto ecografia).
  • A BA não constitui indicação para seguimento.
  • Os critérios mais rigorosos de IU recorrente e a introdução do conceito de IU atípica permitem seleccionar os doentes que têm indicação para ulteriores investigações (cistografia e cintigrafia).
  • É importante o diagnóstico diferencial entre IU e vulvovaginite.
  • É fundamental a identificação e tratamento da disfunção vesical e intestinal.
  • Deverá ser instituída profilaxia com antimicrobiano apenas em casos seleccionados.
  • A profilaxia com AB pode associar-se a diminuição do número de recorrências de ITU, mas parece não ter papel na diminuição da probabilidade de desenvolvimento de cicatrizes.
  • As IU nas adolescentes de sexo feminino estão muito frequentemente associadas ao início da actividade sexual.

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