Definição e importância do problema

A colestase do recém-nascido e lactente define-se como a redução do fluxo biliar, com consequente acumulação de pigmentos biliares nos hepatócitos e canais biliares e aumento da concentração sérica dos produtos que são excretados em circunstâncias normais pela bílis como bilirrubina, ácidos biliares, colesterol; tal processo traduz-se essencialmente por hiperbilirrubinémia conjugada desde o período neonatal (primeiras 4 semanas de vida) e prolongando-se nos primeiros meses de vida.

Na prática são adoptados os seguintes critérios laboratoriais no RN e lactente até aos 4 meses: bilirrubinémia conjugada >20% da total, ou >17 umol/L (1 mg/dL).

Como consequência da marcada redução de ácidos biliares no lume intestinal verifica-se, entre outros efeitos, défice de absorção de gorduras (até 50% de ácidos gordos essenciais e de LCPUFA), assim como de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K) e de outros micronutrientes como o zinco. Por outro lado, aumentam as necessidades energéticas na ordem de 120-150% do DRI, o que poderá obrigar a estratégias nutricionais específicas.

Factores etiológicos e classificação

O Quadro 1 sintetiza os principais factores etiológicos implicados na colestase do recém-nascido e lactente os quais permitem uma classificação. Dum modo geral podem estar em causa agentes exógenos e condições patológicas congénitas específicas.

QUADRO 1 – Colestase do recém-nascido e lactente: factores etiológicos e classificação

Adaptado de Suchy FJ, 2001

Hepatite neonatal

    • Idiopática
    • Infecções víricas
      • Citomegalovírus
      • Vírus herpes
      • Rubéola
      • Reovírus tipo 3
      • Adenovírus
      • Enterovírus
      • Parvovírus B19
      • Vírus da hepatite B
      • VIH (vírus da imunodeficiência humana)
    • Infecções bacterianas e parasitárias
      • Sépsis bacteriana e endotoxémia (infecção urinária,gastrenterite)
      • Listeriose
      • Sífilis
      • Tuberculose
      • Toxoplasmose
      • Malária

Obstrução das vias biliares

    • Colangiopatias
      • Atrésia das vias biliares
      • Quisto do colédoco
      • Hipoplasia biliar não sindromática
      • Síndroma de Alagille
      • Colangite esclerosante neonatal
      • Perfuração espontânea da via biliar
      • Doença de Caroli
      • Fibrose hepática congénita
      • Estenose da via biliar
    • Outras
      • Bílis espessa
      • Colelitíase
      • Tumores/massas (intrínsecas e extrínsecas)

Síndromas colestáticas

    • Colestase intra-hepática familiar progressiva causada por defeitos de transporte tipo 1 (doença de Byler), tipo 2 e tipo 3
    • Colestase hereditária com linfedema (síndroma de Aagenaes)
    • Colestase dos Índios Norte Americanos
    • Síndroma de Nielsen (Esquimós da Groenlândia)
    • Colestase recorrente benigna (defeito no mesmo gene da colestase familiar progressiva do tipo 1)
    • Síndroma de Dubin-Johnson neonatal
    • Síndroma de Rotor

Doenças metabólicas

    • Deficiência de alfa 1 antitripsina
    • Fibrose quística
    • Hemocromatose neonatal
    • Endocrinopatias
      • Hipopituitarismo (displasia septo-óptica)
      • Hipotiroidismo
    • Alteração do metabolismo dos aminoácidos
      • Tirosinémia
      • Hipermetioninémia
    • Alteração do metabolismo dos lípidos
      • Doença de Nieman-Pick
      • Doença de Gaucher
      • Doença de Wolman
      • Doença do armazenamento do colesterol
    • Doenças do ciclo da ureia (deficiência de arginase)
    • Alteração do metabolismo dos hidratos de carbono
      • Galactosémia
      • Frutosémia
      • Glicogenose do tipo IV
    • Doenças mitocondriais (cadeia respiratória)
    • Doenças dos peroxizomas
      • Sindroma de Zellweger
      • Doença de Refsum infantil
      • Outras enzimopatias
    • Defeitos de síntese dos ácidos biliares
    • Tóxicos
      • Drogas
      • Nutrição parentérica
      • Alumínio
    • Outras
      • Choque/hipoperfusão
      • Histiocitose X
      • Lúpus eritematoso neonatal
      • Cromossomopatias:
    • Trissomia 18,21 (síndroma de Down)
    • Linfo-histiocitose eritrofagocítica
    • Doença venoclusiva
    • Síndroma de Donahue (leprechaunismo)
    • Eritroblastose fetal
    • Défice congénito de glicosilação

Manifestações clínicas

Apesar de serem inúmeras as causas de colestase, a apresentação clínica é semelhante, reflectindo sempre a diminuição do fluxo biliar.

Os lactentes com colestase evidenciam icterícia de intensidade variável, urina escura, fezes claras e hepatomegália, associando-se em geral sinais de disfunção de síntese e de necrose hepatocelular.

No exame objectivo alguns aspectos podem orientar para determinadas etiologias:

  • Lactentes com restrição de crescimento intra-uterino – síndroma de Alagille, doença metabólica, infecção intra-uterina;
  • Sinais dismórficos – síndroma de Alagille, cromossomopatias, síndroma de Zellweger;
  • Hipoglicémia – doença metabólica, hipopituitarismo, insuficiência hepática;
  • Sopro cardíaco ou manifestações neurológicas – sindromas congénitas específicas.

Diagnóstico

A avaliação do recém-nascido e lactente com colestase deve ser feita de modo sistematizado. De tal metodologia vai depender, em grande parte, a sua evolução, pelo que se aconselha o envio destas crianças a centros especializados com experiência neste tipo de patologia. É, de facto, imperativo reconhecer atempadamente situações com indicação de tratamento médico (galactosémia, tirosinémia, sépsis) ou de tratamento cirúrgico que não poderão ser diferidos sob pena de aparecimento complicações e sequelas (por exemplo, atrésia das vias biliares extra-hepáticas, que deverá ser operada até às 6 semanas) pelo risco de cirrose hepática.

Todo o aumento sérico da bilirrubina conjugada, superior a 15-20% da bilirrubina total, é patológico e deve ser sempre investigado. Em todo o recém-nascido com icterícia prolongada (mais de 15 dias) sobretudo se não estiver a ser alimentado ao peito, é fundamental excluir colestase determinando o valor da bilirrubina total e conjugada.

Durante a avaliação as fezes devem ser examinadas diariamente durante pelo menos 10 dias, dejecção a dejecção, para determinar se há acolia contínua ou intermitente. A persistência de acolia durante 10 dias ou mais sugere atrésia das vias biliares.

A avaliação de parâmetros bioquímicos que fundamentam a colestase deve ser feita por etapas. Numa primeira fase avalia-se a função hepática (incluindo o estudo da coagulação), começando por se excluir as situações mais frequentes. Numa segunda fase, há que proceder ao diagnóstico etiológico, (Quadro 2), o que é facilitado pelo algoritmo apresentado (Figura 1).

QUADRO 2 – Fases do estudo da colestase neonatal

1ª fase
Anamnese
Exame objectivo
Avaliação diária do aspecto macroscópico das fezes (dejecção a dejecção)
Sangue: hemograma, estudo da coagulação, bilirrubina total e directa, AST, ALT, GGT, Fosfatase alcalina; LDH, amónia, glicemia, alfa-fetoproteína, colesterol, triglicéridos, siderémia, ferritina, ácidos biliares, fenótipo de alfa-1-antitripsina, serologia TORCHES, vírus da hepatite B, hemoculturas
Urina: cultura, pesquisa de substâncias redutoras, succinil-acetona
Imagem: ecografia, cintigrafia hepatobiliar, radiografia do esqueleto
Histologia: biópsia hepática
Outros: paracentese (se ascite)
LDH: Desidrogenase láctica)
TORCHES: Toxoplasmose e outros rubéola; citomegalovírus; herpes; Epstein-Barr; sífilis
2ª fase
Sangue: proteinograma, cortisol, função tiroideia, aminoácidos, galactose-1-fosfato, uridiltransferase, cariótipo, serologia VIH, lactato, piruvato, estudos genéticos
Urina: aminoácidos, ácidos orgânicos
Imagem: CPRE, colangiorressonância
Outros: prova de suor, estudos enzimáticos nos leucócitos, fibroblastos (biópsia da pele), fígado, músculo, medula óssea.

FIGURA 1 – Algoritmo para o estudo da colestase neonatal

Não há nenhuma análise bioquímica que seja patognomónica. Durante muito tempo usou-se a elevação da GGT para o diagnóstico diferencial de atrésia das vias biliares/hepatite neonatal. A grande variabilidade dos resultados tornou o seu uso controverso. No entanto, se a GGT evidenciar valores normais e a fosfatase alcalina estiver elevada, poderá tratar-se de colestase intracelular.

O estudo genético poderá estar indicado sobretudo em situações em que existem antecedentes familiares de colestase. Citam-se como exemplos, entre outros: – a colestase intra-hepática familiar progressiva do tipo 1 ou doença de Byler em que se verificam mutações no gene ATP8B1, localizado em 18q21-22; – idem , do tipo 2, associada a mutações no gene ABC11, no cromossoma 2; – idem, do tipo 3, associada a mutações no gene MDR3, no cromossoma 2; – síndroma de Alagille (hipoplasia ductular associada a fácies característica (fronte proeminente, hipertelorismo), malformações vasculares (hipoplasia ou estenose da artéria pulmonar), defeitos vertebrais e atraso do neurodesenvolvimento e insuficiência intelectual. Associadas a esta síndroma identificaram-se mutações no gene JAG1, no cromossoma 20.

A ecografia é importante para o diagnóstico de defeitos anatómicos, como o quisto do colédoco. A inexistência de vesícula biliar pode sugerir atrésia das vias biliares sendo de salientar que a importância deste método depende muito da experiência do imagiologista.

A cintigrafia hepatobiliar com tecnécio marcado por análogos do ácido iminodiacético pode dar contributo para estabelecer a destrinça entre a atrésia das vias biliares e colestase não obstrutivas. Para aumentar a excreção biliar do isótopo e aumentar a sensibilidade do exame, procede-se a administração prévia de fenobarbital na dose de 5 mg/kg/dia durante 5 dias.

A biópsia hepática é o exame mais importante na avaliação dum lactente com colestase. Nas crianças com menos de 6 semanas de vida os achados histológicos característicos de atrésia das vias biliares (proliferação ductular, alargamento dos espaço porta com escasso infiltrado inflamatório, fibrose portal, rolhões biliares e estase biliar) poderão ainda não estar presentes, sendo então necessário repetir a biópsia hepática após algumas semanas. A biópsia pode também sugerir doenças metabólicas ou de depósito (tesaurismoses) como causa da colestase (Parte XXXII).

Nos casos em que não é possível estabelecer o diagnóstico de certeza de atrésia das vias biliares, deve ser feita uma laparatomia exploradora com colangiografia intraoperatória. Este procedimento deverá ser feito por cirurgiões pediátricos com experiência deste tipo de patologia. Recentemente tem-se usado a colangiorressonância que, apesar de necessitar de anestesia, é uma técnica menos invasiva que a anterior.

Tratamento

O tratamento das síndromas colestáticas do recém-nascido e lactente depende do diagnóstico etiológico e da data em que o mesmo é realizado.

Os doentes com atrésia das vias biliares extra-hepáticas devem ser operados até às 6 semanas de vida. Depois dos 3 meses de idade há que ponderar a indicação operatória, pois estes doentes necessitarão de transplante hepático precoce.

Algumas doenças metabólicas também têm indicação para transplante hepático (deficiência de alfa-1-antitripsina, doença de Byler, tirosinémia), dependendo da evolução de cada caso.

Os restantes doentes necessitam habitualmente de tratamento médico. Usa-se o ácido ursodesoxicólico nos casos de obstrução incompleta e nas colestases não obstrutivas, na dose de 10-40 mg/kg/dia, além doutras medidas de suporte, tais como nutrição entérica contínua (tendo em consideração o incremento em necessidades energéticas ~120-150% do DRI) e suplementação de vitaminas lipossolúveis nas situações de colestase crónica (A:5.000-25.000 U/dia; D: 800-5.000 U/dia, ou calcidiol: 3-5 mcg/kg/dia; E (D-alfa-tocoferol): 25-200 UI/kg/dia; K: 2,5 mg duas vezes/semana).

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