“It´s time to develop multimedia-based interactive training modules that provide really good simulations of possible experiences in a manner similar to the training and recertification of airline pilots”.
Fanaroff AF,1999.
Introdução
As metodologias e estratégias no âmbito da Educação Médica evoluíram muito nos últimos 40 anos. Com efeito, tem-se assistido a um verdadeiro movimento renovador com base em estudos científicos cuja liderança tem cabido a vários centros dos EUA, Reino Unido, Holanda, Suécia, Canadá e Austrália. Na Europa, entre outros centros pioneiros, Maastricht na Holanda e Dundee na Escócia, podem ser considerados exemplos paradigmáticos de excelência.
Nesta perspectiva, chamando-se a atenção para as potencialidades das novas tecnologias, têm sido preconizadas mudanças curriculares clamando maior efectividade dos programas formativos, designadamente no período da pré-graduação.
Cabe, a este respeito, uma referência especial aos seguintes documentos: Tomorrow´s Doctors (versões de 1993 e 2003) sob os auspícios do General Medical Council (GMC), Declaração de Edimburgo (1988), Iniciativa de Lisboa (1988) e às conclusões do evento World Summit on Medical Education em 1994. Dos mesmos resultaram determinadas recomendações, salientando as relacionadas com os seguintes tópicos:
- Programas formativos em torno de problemas clínicos;
- Programas formativos chamados “em espiral” cuja ideia principal é a de que um mesmo conteúdo deve ser apresentado de modo progressivo, em diferentes níveis de complexidade crescente, para melhor compreensão da sua aplicação à prática. Tal implica um esquema organizativo muito rigoroso, o qual pode ser consubstanciado na criação de áreas pedagógicas “em rede” ou agrupamento harmonioso de conteúdos, em contraposição ao aglomerado de disciplinas em compartimentos estanques em que se verifica maior probabilidade de repetições, com inconvenientes óbvios, designadamente quanto à gestão do tempo lectivo;
- Participação dos alunos em projectos de investigação, sendo desejável o contacto com centros de investigação e personalidades ligadas a esta área;
- Contacto, desde os primeiros anos do curso, com a futura realidade profissional em diferentes ambientes em que se poderá processar a prática clínica (infantários, escolas, centros de assistência à terceira idade, centros de saúde, escolas, visitas domiciliárias, etc.);
- Programas utilizando a simulação em diversas modalidades associada aos métodos clássicos.
O objectivo deste capítulo é a abordagem de aspectos essenciais da “Simulação aplicável à Clínica Pediátrica” como estratégia de treino clínico tendo em vista a aquisição de competências técnicas e não técnicas.*
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Simulação aplicada à Medicina
Em Medicina, o treino para aquisição de skills implica a “utilização” de seres humanos, adultos ou crianças, saudáveis ou doentes, cujas manifestações traduzem grande variabilidade de fenómenos biológicos.
Imperativos éticos e certos condicionalismos actuais relacionados, quer com novas regras de governação, quer com novos paradigmas assistenciais (de que são exemplo os internamentos de duração cada vez mais curta) limitam significativamente as oportunidades de treino para a aquisição das referidas competências.
Exemplificando com a situação clínica de meningite, comprova-se que as oportunidades de um interno de uma especialidade médica fazer uma punção lombar são escassas e, mais escassas são para alunos no âmbito do ensino pré-graduado.
Nesta perspectiva, surgiu o conceito de ensino – aprendizagem através do treino baseado na simulação.
Simular é, como se sabe, imitar ou fingir, fazendo parecer real o que não é. Tal conceito tem sido aplicado com objectivos educativos em áreas profissionais muito diversas; cita-se como exemplo clássico o treino dos pilotos da aeronáutica militar e civil desde há mais de 80 anos, utilizando simuladores de voo, não só para aprendizagem e aperfeiçoamento do desempenho em situações reais, mas também para avaliação do desempenho e recertificação periódica.
Considerando a área da clínica pediátrica, as capacidades a adquirir podem ser de âmbito:
- Não técnico, compreendendo quer aspectos cognitivos (relacionados com conhecimentos fundamentais para a interpretação de dados clínicos), quer comportamentais (em relação com atitudes, tais como comunicação, liderança, atenção, trabalho de equipa, etc.);
- Técnico, compreendendo aspectos psicomotores (gestos, habilidades, procedimentos ou técnicas em relação com o manejo de diverso equipamento com destreza).
Em Medicina, o desenvolvimento da área de treino baseado em simulação tem sido lento. Efectivamente, foi nas últimas quatro décadas que se verificou o maior impulso na sequência de estudos de validação científica comprovando boa relação custo-efectividade em termos de desempenho profissional futuro.
Porém, tal área de treino deverá ser encarada como complemento do treino clínico de proximidade, à cabeceira do “doente “real”. Assim, através da simulação em ambiente fictício, o praticante poderá cometer erros e corrigi-los, o que se afigura de grande utilidade: o objectivo último é saber estar e saber fazer bem, de modo correcto, o que garantirá a segurança do doente em situações reais futuras.
Assim a concretização dum programa de simulação obrigará, pois, a três requisitos fundamentais:
- Condições logísticas que permitam criar um cenário, o mais aproximado possível da realidade;
- Equipa treinada de formadores;
- Equipamento para a simulação.
Âmbito da Simulação
Em Medicina o âmbito da simulação é lato, podendo abranger diversos cenários ou modalidades de treino de competências. Na sua forma mais simples e primitiva pode ser considerado acto de simulação o treino clássico na realização de determinadas tarefas ou procedimentos, com ou sem instrumentos, discriminados adiante, na alínea “Simulação aplicada ao ensino da Pediatria”.
Como modalidade clássica mais antiga de simulação, ainda hoje utilizada, remontando a séculos, cita-se a dissecção de cadáveres humanos e de animais como forma de treino em técnicas cirúrgicas.
Na década de 1960, a simulação começou a ter lugar na Medicina de Adultos com “doentes simulados”, ou seja, com pessoas treinadas (muitas vezes actores), para imitar situações clínicas diversas como expressão de dor com diversas localizações, tipos de tosse, dispneia, sibilância, estridor, crises epilépticas, abdómen agudo, etc.. Esta modalidade (Simulação com actores “doentes”, previamente treinados) permite igualmente o treino em comunicação.
Com o desenvolvimento da electrónica, dos sistemas multimédia e da criação das condições para a chamada “realidade virtual”, passou a ser possível utilizar programas de software permitindo obter treino em diversas áreas, nomeadamente em ventilação mecânica e na interpretação de casos clínicos, valorizando a semiologia e o treino em raciocínio clínico (Simulação baseada em computadores).
Ao mesmo tempo, a indústria passou a criar modelos com pormenores anatómicos e funcionais de grande minúcia (manequins simuladores) imitando fielmente o corpo humano, no todo ou em partes; inicialmente para treino de anestesistas, mais tarde passaram a ser utilizados para treino em reanimação básica e em procedimentos invasivos vários, como cateterismo, entubação traqueal, punção lombar, etc.. A chamada simulação híbrida congrega a combinação do cenário doentes actores com manequins simuladores.
Surgindo posteriormente a aplicação de programas de software aos manequins, entrou-se na era dos simuladores manequins de alta fidelidade ou baixa fidelidade, conforme o grau de sofisticação da tecnologia. Tais manequins robotizados, de corpo inteiro e assistidos por computador, adaptados à idade pediátrica, permitem reproduzir mais de uma centena de situações clínicas com fisiopatologia diversa.
Com a tecnologia que lhes serve de base, entre outras funcionalidades, executam movimentos de expansão e retracção torácica, cianose, palidez, sons e sopros cardíacos, pestanejo, adejo nasal, diversos tons de voz, diversos tipos de tosse, etc..
É igualmente possível observar o seu “comportamento” traduzido por efeitos ou “reacções” em função de determinadas intervenções terapêuticas ou procedimentos (correctos ou incorrectos); por exemplo, surgimento de cianose ou palidez, grito de dor, taqui ou bradicardia, etc.. É o caso dos simuladores designados por certas marcas de fabrico – SimMan (Laerdal Medical Corporation, Gatesville, USA) e por METI (Medical Educational Technologies Inc., Sarasota, USA).
Em suma, a tecnologia sofisticada passou a viabilizar manequins verdadeiramente “interactivos” com especial interesse, designadamente no treino em suporte básico e avançado de vida e em pneumocardiologia (Figura 1).
Outra modalidade é a chamada simulação baseada nas realidades virtual e virtual aumentada, com aplicação em diversos contextos, como no treino em técnicas cirúrgicas, designadamente em cirurgia laparoscópica. (pela particularidade da terminologia “realidade” no contexto deste capítulo, menos habitual, deverá consultar-se a caixa, a seguir à Figura 1).