Definição, importância do problema e aspectos epidemiológicos

A doença metabólica óssea (DMO) da prematuridade é uma situação clínica caracterizada por défice de mineralização da substância osteóide (por suprimento deficitário de cálcio ou fósforo) observada no RN/lactente em fase de crescimento com antecedentes de prematuridade, na idade pós-concepcional correspondente à gestação de termo.

Trata-se dum problema clínico cuja frequência é inversamente proporcional ao peso de nascimento e idade gestacional, compreendendo um espectro variado de alterações: desde a desmineralização ligeira (osteopénia), à desmineralização grave acompanhada de fracturas (raquitismo).

A importância desta situação decorre essencialmente de determinado tipo de morbilidade que tem acompanhado a diminuição da mortalidade de RN pré-termo; por outro lado, a partir da década de 70, começou a chamar-se a atenção para a necessidade de suplementação mineral, principalmente de fósforo, nas primeiras semanas de vida extrauterina para garantir uma mineralização óssea semelhante à verificada in utero, em RN pré-termo.

A DMO surge mais frequentemente na raça negra e em lactentes nos quais se verificou perda de peso mais acentuada no período neonatal precoce; estes últimos integram fundamentalmente os RN de idade gestacional <28 semanas e peso de nascimento <1.000 gramas, evidenciando alterações radiológicas ósseas em cerca de 60% dos casos.

Em diversos estudos epidemiológicos tem sido demonstrada maior frequência da doença em RNMBP alimentados com leite materno (~40%) comparativamente a RNMBP alimentados com fórmula para pré-termo (~20%). Em cerca de 30% dos casos de osteopénia verifica-se evolução para a forma mais grave de DMO: o raquitismo.

Etiopatogénese

O cálcio (Ca) é o catião mais abundante do organismo: cerca de 98% do cálcio corporal encontra-se nos ossos, constituindo um dos seus principais componentes inorgânicos (o RN de termo contém ~28 gramas de Ca).

O fósforo (P) constitui o segundo ião mais abundante do organismo. A sua distribuição é preferencialmente óssea, encontrando-se cerca de 80% no esqueleto (o RN de termo contém ~16 gramas de P), e cerca de 9% no músculo esquelético; o restante 1% distribui-se pelos lípidos da membrana celular, pelos compostos de alta energia (ATP), proteínas intracelulares de tradução de sinal, ARN e ADN.

A deposição crescente (ou acréscimo) de Ca e de P, quer durante a vida intrauterina, quer no período neonatal, depende duma oferta adequada dos referidos minerais, de vitamina D, e duma regulação hormonal que, por um lado, favoreça a mineralização e, por outro, limite a reabsorção óssea, promovendo aumento do conteúdo mineral ósseo.

O acréscimo ou incorporação mineral no feto (com ênfase para o Ca e P) ocorre a partir das 24 semanas de idade gestacional, continuando até ao final da gestação na presença de relação Ca/P constante (relação ideal de 2/1 ao nível ósseo e 1,7/1 no conteúdo extra-ósseo corporal). O pico máximo da referida incorporação mineral surge entre as 34 e 36 semanas de gestação (Ca<>120-140 mg/kg/dia e P <> 60-80 mg/kg/dia).

Vários factores hormonais favorecem o processo de mineralização óssea fetal:

  • A proteína relacionada com a PTH (PrPTH) que tem papel importante na manutenção do gradiente de Ca transplacentar;
  • A produção placentar de 1,25(OH)2 – vitamina D regulando a produção de proteínas transportadoras de Ca;
  • As baixas concentrações de PTH limitando a mobilização mineral óssea;
  • A presença de concentrações elevadas de calcitonina, favorecendo a deposição mineral;
  • Libertação de factores de crescimento semelhantes à insulina (IGF-I), estimulando o crescimento ósseo e incrementando a mineralização;
  • Elevados níveis de estrogénios circulantes no sangue materno, favorecendo a mineralização.

O resultado final da acção conjunta destes factores é a ocorrência de 80% da mineralização óssea no terceiro trimestre de gestação.

Estudos recentes demonstraram uma associação entre carência materna de vitamina D e ulterior alteração do desenvolvimento neurocognitivo dos lactentes filhos, disfunção notória já a partir dos 3 meses de idade.

Após o nascimento, a absorção intestinal constitui o factor determinante do suprimento mineral.

Em suma, um dos factores que contribui para a génese da DMO no RN/ lactente com antecedentes de prematuridade é a existência de reservas deficitárias de minerais, designadamente de cálcio e de fósforo; com efeito, como foi referido, cerca de 80% da mineralização óssea ocorre no 3º trimestre da gestação.

O insuficiente suprimento do fósforo estimula a produção de 1,25(OH)2 – vitamina D com consequente aumento da absorção intestinal de cálcio e de fósforo. Por outro lado, verifica-se inibição da libertação de PTH, do que resulta diminuição da perda renal de fósforo e aumento da perda renal de cálcio (hipercalciúria). Com a referida inibição da libertação da PTH obter-se-ia, em princípio, “garantia de não reabsorção óssea” se a produção de 1,25(OH)2 – vitamina D não se mantivesse. Contudo, este metabólito continuando “em acção”, estimula a acção de osteoblastos, levando à remoção de Ca e P ósseos pela activação dos osteoclastos.

Mantendo-se insuficiente o suprimento em cálcio e fósforo, gera-se um círculo vicioso, com consequente intensificação da espoliação de Ca e P ósseos. Em tal circunstância, a par do défice em cálcio resultante do baixo suprimento, observa-se perda renal importante.

Uma vez que pacientes com DMO poderão evidenciar nível sérico normal do metabólito hepático mono-hidroxilado 25(OH) – vitamina D com suplemento de 400 UI de vitamina D, pode concluir-se que a carência da referida vitamina D não constitui, só por si, factor determinante de raquitismo.

Por outro lado, o nível elevado do metabólito renal di-hidroxilado – 1,25(OH)2 – vitamina D, sugere deficiência mineral “numa tentativa” de intensificar a absorção intestinal de Ca e de P para restaurar as respectivas reservas espoliadas no organismo.

Assim, neste processo patológico dinâmico, tal como a deficiência em fósforo afecta a homeostase do cálcio, também a deficiência em cálcio afecta a homeostase do fósforo.

O Quadro 1 resume as principais características bioquímicas das referidas deficiências.

QUADRO 1 – Bioquímica das Deficiências em P e Ca.

→ Deficiência em P:

P sérico < 4 mg/dL, hipofosfatúria (< 1 mg/kg/dia), hipercalciúria (> 4 mg/kg/dia);
Nota: hipercalcémia (> 11 mg/dL) pode surgir nas formas graves de deficiência em P

→ Deficiência em Ca:

Ca sérico < 8,5 mg/dL, hiperfosfatúria, hipocalciúria (< 1 mg/kg/dia)

Factores predisponentes

Na prática clínica, as situações que nos RN com antecedentes de prematuridade favorecem o desenvolvimento de DMO, podem ser assim sistematizadas:

  • Idade gestacional <32 semanas, especialmente com peso de nascimento <1.000 gramas;
  • Má absorção (incluindo de minerais);
  • Alimentação com leite da própria mãe (ou leite humano prematuro) com insuficiente teor em cálcio e fósforo relativamente ao leite “de termo”;
  • Deficiência materna em vitamina D;
  • Nutrição parentérica prolongada no pressuposto de suprimento deficitário de Ca e de P, em comparação com o acréscimo intrauterino em idêntico período de tempo;
  • Tratamento com diuréticos originando perda renal de cálcio proporcional à perda de sódio;
  • Problemas clínicos diversos que determinam o atraso no início da alimentação entérica e/ou deficiente suprimento mineral no regime alimentar em relação com limitações da concentração ou do volume de leite;
  • Imobilização prolongada, conduzindo à diminuição da massa óssea;
  • Utilização de corticóides, determinando diminuição da absorção intestinal, perda renal de cálcio e redução do conteúdo mineral ósseo.

Actualmente, investiga-se nalguns centros o possível papel duma proteína solúvel designada por alfa-Klotho (alfa-Kl, termo baseado na mitologia grega), cujos níveis séricos aumentam com a idade gestacional. A mesma tem influência na indução da resistência ao estresse oxidativo e no metabolismo fosfo-cálcico.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de DMO (que podem passar despercebidas em mais de metade dos casos se não existir índice elevado de suspeita) podem ser detectadas, em geral, cerca das 6 a 12 semanas de idade pós-natal. O respectivo espectro é variado, desde sinais inespecíficos, como ausência de evolução do crescimento longitudinal e do perímetro cefálico, a sinais clássicos da síndroma raquítica nos casos de evolução avançada: craniotabes, fontanela anterior alargada, alargamento das metáfises dos punhos e joelhos, e fracturas.

As fracturas das costelas (por vezes múltiplas e suspeitadas clinicamente em apenas cerca de 10-15% dos casos) poderão ser causa de dificuldade respiratória e dor.

De salientar que a deficiência materna em vitamina D pode originar fracturas no RN.

A dolicocefalia pode ser explicada pela menor consistência dos ossos do crânio (por défice conteúdo mineral ósseo) e postura mantida da cabeça por hipoactividade motora originando deformação; admite-se que tal dolicocefalia possa originar miopia (miopia na ausência de retinopatia da prematuridade).

Exames complementares

Havendo necessidade de detectar a doença o mais precocemente possível, os exames a programar em função do contexto clínico poderão ser realizados, quer atendendo a factores predisponentes ou de risco (por ex. RN pré-termo de peso <1.250 gramas), quer a dados clínico-biológicos já disponíveis:

  • Doseamento da actividade da fosfatase alcalina (quinzenal), assim como do cálcio, fósforo e creatinina séricos (em geral, semanal, desde a segunda semana até à data de alta hospitalar);
  • Colheita de urina de 6 horas para determinação da calciúria (Cau), fosfatúria (Pu) e creatininúria (Cru) (no mesmo dia da determinação sérica);
  • Exame radiográfico ósseo (punho) entre o 28º e 35º dias de vida sempre que haja suspeita clínica e/ou biológica de DMO.

A verificação de P sérico <4 mg/dL em RN alimentado com leite materno sugere défice do referido mineral e possível DMO, a confirmar mediante os resultados da calciúria, fosfatúria e relação calciúria/ creatininúria. De salientar a importância da avaliação periódica do bicarbonato sérico, uma vez que a acidose favorece a “dissolução” óssea.

A fosfatase alcalina (FA) elevada (em concentração cerca de 5 vezes o valor de referência para o adulto), na ausência de doença hepática, estabelece a indicação de estudo radiológico ósseo; trata-se, no entanto, dum marcador pouco sensível. Mais sensível é a isoenzima óssea da FA cuja determinação ainda não faz parte da prática clínica corrente.

  • Considerando, no conjunto, os resultados dos exames atrás descritos, a verificação, no soro ou urina (u) de:
    • P sérico <4 mg/dL associado a:
      • Cau >4 mg/kg/dia + Pu <1 mg/kg/dia ou
      • Cau/Cru >0,6 ou a
      • Relação Cau/Pu ≥1

legitima o diagnóstico de DMO relacionada com suprimento mineral inadequado.

  • Se Cau ≥4,8 mg/dL<> 1,2 mmol/L; e Pu >1,2 mg/Dl <> 0,4 mmol/L;

e relação Cau/Pu <1, considera-se que o suprimento de Ca e P administrado ao RN é adequado.

A fosfatúria pode determinar-se calculando a percentagem de reabsorção tubular de fosfato (%RTF) segundo a fórmula:

Pu (mg/dL) Cr sérica (mmol/L)
% RTF = ______________ x ____________________ x 100
Cru (mmol/L) P sérico (mg/dL)

considerando-se hipofosfatúria se % RTF >95% (<> fosfatúria <1 mg/kg/dia)

De acordo com os critérios de Koo, as alterações radiológicas ósseas, dependendo da gravidade e da duração da desmineralização, podem ser assim sistematizadas:

  • Grau I: presença de rarefacção óssea;
  • Grau II: grau I + alterações metafisárias, alargamento metafisário em taça e alteração subperióstica;
  • Grau III: grau II + fracturas.

De salientar que:

    1. As alterações radiológicas esqueléticas somente se tornam evidentes se se verificar défice de mineralização para além de 30-40%; assim, os sinais bioquímicos podem preceder em 2 a 4 semanas os sinais radiológicos;
    2. Se deverá proceder a radiografia do punho: se P sérico <4 mg/dL nos RN de peso <1.000 gramas, mesmo na ausência de alteração de parâmetros bioquímicos.

Outros exames

  • Doseamento do metabólito 25 (OH)-vitamina D; já foi referido antes que, na presença de suplemento de vitamina D (400 UI/dia), o valor é normal.
    Nota: no que respeita ao metabólito 1,25(OH)2 – vitamina D, a respectiva concentração sérica é normal ou elevada, sendo que a hipofosfatémia estimula a secreção de 1,25(OH)2 – vitamina D.
  • Técnica de densimetria/absorciometria óssea – SPA (sigla do inglês single-photon absorptiometry) que permite avaliar de modo seriado as alterações da mineralização óssea em determinado local; o local onde se convencionou proceder a tal avaliação é a epífise distal do rádio.
  • Técnica de densimetria/absorciometria óssea – DEXA (sigla de dual-energy X ray absorptiometry) que permite medir o conteúdo mineral ósseo de modo seriado e, por conseguinte, monitorizar a velocidade de acréscimo mineral; esta modalidade, permitindo medir com maior precisão o referido conteúdo mineral empregando dose baixa de radiação, não permite, no entanto, fazê-lo à cabeceira do doente, o que constitui uma limitação nos casos de RN submetidos a terapia intensiva.
  • Técnica de ecografia quantitativa
    Trata-se duma nova técnica em expansão em países como a Espanha, Itália e Alemanha, com a vantagem de poder ser utilizada à cabeceira do doente.
    De salientar que estes exames imagiológicos mais sofisticados e mais rigorosos, não estão acessíveis à maioria dos serviços de neonatologia na actualidade.

Prevenção e tratamento

As estratégias que têm como objectivo prevenção primária da DMO devem incidir fundamentalmente sobre a eliminação ou redução da multiplicidade de factores que contribuem para a prematuridade.

Nas situações de prematuridade acompanhada dos factores predisponentes ou de risco está indicada vigilância rigorosa do balanço do Ca e do P, com suplementação dos referidos minerais.

No RN pré-termo, não existe consenso quanto à idade em que se deve iniciar o suplemento de Ca e P. Em geral, nas crianças alimentadas com leite humano, a suplementação (com aditivos do leite materno) inicia-se quando se atinge o volume de 100 mL/dia por via entérica.

Nos casos em que tal não é possível são utilizadas as fórmulas com mais elevado conteúdo de minerais relativamente às fórmulas padrão (fórmulas para pré-termo).

A interrupção de tal suplementação é levada a cabo quando o lactente atinge o peso comparável ao do RN de termo, tendo em consideração diversos estudos realizados sobre o período em que ocorre o acréscimo máximo de minerais in utero. Nos casos de RN com peso de nascimento <1.000 gramas está indicada a suplementação, pelo menos durante 3 meses, ou até ser atingido o peso de 3.500 gramas.

No RN pré-termo está indicada a dose profiláctica clássica de vitamina D, igualmente aplicável a lactentes de termo (160 UI/kg/dia até máximo de 400 UI/dia), pois os mecanismos de hidroxilação hepática (formação de vitamina 25(OH)-vitamina D) e de hidroxilação renal (formação de 1,25(OH)2-vitamina D) estão funcionalmente activos.

Se os parâmetros clínicos, bioquímicos e radiológicos legitimarem o diagnóstico de DMO, para além das medidas já descritas, há que adoptar os seguintes procedimentos:

  • Reduzir ao mínimo – sempre que possível – a interferência de factores predisponentes;
  • Restringir as medidas de fisioterapia que poderão contribuir para o aparecimento de fracturas ósseas;
  • Tratamento das fracturas ósseas (imobilização adequada de membros, etc.);
  • Incrementar o suprimento oral em fósforo utilizando fosfato monossódico (25 mg duas vezes/dia <> 50 mg/dia, podendo ser incrementado até 37,5 mg duas vezes/dia <> 75 mg/dia; este suprimento poderá ser reduzido progressivamente para metade se o valor de P >4 mg/dL e relação Cau/Pu <1 se mantiverem durante duas semanas consecutivas, sendo que a monitorização de Ca e P séricos deverá ser mantida durante 4 semanas;
  • Administrar gluconato de cálcio a 10% por via oral na dose de 100 mg/kg/dia (não concomitantemente para evitar precipitação) se se verificar valor sérico do Ca <8 mg/dL, mantendo-se o suprimento do fosfato monossódico.

Prognóstico

Relativamente às fracturas ósseas, uma das manifestações da forma mais exuberante de DMO (em cerca de 20% dos RNMBP aos 3 meses de idade pós-natal), de acordo com os estudos disponíveis não existe risco elevado de tal patologia em idades subsequentes.

Existindo ainda muitos aspectos controversos relativamente ao conteúdo mineral ósseo futuro e ao risco de osteoporose no adulto, ao analisar os resultados de séries estudadas a médio e longo prazo – nem sempre realizados com metodologias sobreponíveis – é importante entrar em consideração com os resultados de estudos demonstrando que ex utero o acréscimo mineral é mais demorado do que in utero (respectivamente 12 contra 5 semanas para idêntico acréscimo).

Na literatura, também há relatos de casos em que se verificou associação entre baixa estatura na segunda infância e valores mais elevados de FA no período neonatal.

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