1. SÍNDROMA de MARFAN

Definição

A síndroma de Marfan (SM) é uma afecção sistémica do tecido conectivo resultante de mutações no gene que codifica a fibrilina-1 da matriz extracelular, com consequente anomalia na síntese daquela. Caracterizada essencialmente por anomalias músculo-esqueléticas, oculares e cardiovasculares, o diagnóstico baseia-se nos dados clínicos, alguns dos quais são dependentes da idade.

Etiopatogénese

Salienta-se que a fibrilina-1 é uma glicoproteína que abunda nos tecidos elásticos e não elásticos (componentes fundamentais de artérias, estruturas oculares, esqueleto, pulmões e pele), desempenhando um papel importante na formação e estabilidade das fibras elásticas, assim como na sua deposição na matriz.

A alteração básica da SM radica em mutações no gene FBN1 localizado no cromossoma 15 (15q15-q21) que codifica a síntese da referida fibrilina-1. Conhecem-se cerca de 150 mutações de FBN1 em doentes com SM, sendo que cerca de 20% dos casos correspondem a mutações “de novo”. Este quadro foi designado por alguns autores como SM do tipo 1.

Em 2004 foram identificadas mutações no gene TGFBR2, situação que poderá corresponder a 10% dos casos; este último quadro foi designado por SM do tipo 2.

Importância do problema

Surge com uma frequência de 1-3/10.000 indivíduos, afectando ambos os sexos igualmente. Em cerca de 75% dos casos verifica-se transmissão autossómica dominante com uma penetrância elevada, ainda que variável dentro de cada família; os restantes cerca de 25% dos casos são de aparecimento esporádico.

A sua maior importância deriva, sobretudo, da morbilidade cardiovascular, salientando-se que o diagnóstico e terapêutica precoces melhoram a taxa de complicações e a sobrevivência.

Manifestações clínicas

Os achados mais característicos são: altura excessiva para a idade (acima do percentil 97), peso inferior ao percentil 50 (devido a massa muscular globalmente diminuída), dolicostenomelia (hipercrescimento das extremidades, longas e delgadas) e aracnodactilia (dedos longos e delgados). A razão entre o segmento corporal superior (medido pela distância entre a cabeça e sínfise púbica) e o segmento corporal inferior (sínfise púbica e solo) é superior a 2 desvios-padrão abaixo da média para a raça e idade, como reflexo do grande comprimento das extremidades inferiores. (Figura 1)

O hipercrescimento metacárpico (e a hipermobilidade articular) pode ser demonstrado pelo sinal do polegar que ultrapassa o bordo cubital da mão quando em oposição sobre a palma, e pelo sinal do pulso verificado pela sobreposição do polegar e do 5º dedo quando estes dedos contornam o pulso. (Figura 2)

FIGURA 1. Síndroma de Marfan: aspecto geral do fenótipo. (NIHDE)

As costelas são mais compridas que o normal, causando protusão condrocostal e deformidade esternal (pectus excavatum, pectus carinatum ou combinação de ambos).

É habitual a presença de dolicocefalia, abóbada palatina estreita e elevada, hipognatia e/ou retrognatia, malares planos e hipoplásicos que proporcionam uma expressão lúgubre.

A coluna vertebral pode ser sede de diversas anomalias: cifose e/ou escoliose (que, combinada com a deformidade torácica atrás descrita, pode resultar em síndroma restritiva torácica), espondilolístese, instabilidade da coluna cervical por laxidão ligamentosa, e ectasia dural (caracterizada por adelgaçamento das lâminas vertebrais de L4 a S2, alargamento do canal neural e proeminência da dura-máter no mesmo, assim como alargamento dos forâmen neurais).

Pode surgir hiperlaxidão articular e desenvolvimento de pés planos ou pés cavos com possibilidade de artrose da anca e joelho na idade adulta.

FIGURA 2. Síndroma de Marfan: Sinais do pulso e do polegar. (NIHDE)

Oculares

Os globos oculares são alongados com consequente miopia (a mais frequente anomalia ocular); em mais de metade dos casos aparece ectopia ou luxação do cristalino (ectopia lentis), habitualmente bilateral, devida a laxidão dos ligamentos suspensores.

Cardiovasculares

Constituindo os achados mais graves e a principal causa de morbimortalidade, condicionam fortemente o prognóstico.

É muito frequente o aparecimento de prolapso mitral associado a arritmias, progredindo para insuficiência mitral franca em cerca de 25% dos casos.

A dilatação dos seios de Valsalva e da raiz aórtica pode resultar em insuficiência valvular aórtica, ruptura aórtica, dissecção aórtica, enfarte do miocárdio, tamponamento cardíaco e morte súbita.

Outras

Podem observar-se ainda as seguintes alterações: camptodactilia (contractura dos dedos), e cotovelos, retrognatismo, hipoplasia malar, estrias cutâneas atróficas, hipotrofia e anomalias de distribuição do tecido adiposo e, na idade adulta, obesidade de tipo centrípeto, localizada sobretudo na região das ancas.

O pneumotórax espontâneo devido a ruptura parenquimatosa pulmonar, com ou sem deformação torácica, é frequente.

Por fim, cabe citar a maior frequência de hérnias em relação à população normal.

Critérios de diagnóstico

O diagnóstico clínico é óbvio face à coexistência de achados como: dolicostenomelia, aracnodactilia, luxação do cristalino e dilatação aórtica, associados em geral a antecedentes familiares.

Para o diagnóstico clínico é habitual seguir a chamada nosologia de Ghent, revista em 2010, com base nos quatro achados mais importantes: alterações esqueléticas, dos olhos, do sistema cardiovascular e ectasia dural do canal espinhal lombo-sagrado.

Num caso índice, o diagnóstico de SM pode estabelecer-se quando se verifica:

  • Alteração grave/critério maior de 2 sistemas orgânicos diferentes + alteração ligeira/menor de um terceiro; ou
  • Alteração grave de 1 sistema orgânico/critério maior + alteração ligeira/menor de outro sistema orgânico + uma mutação no gene FBN1.

Para um paciente de um caso índice, o diagnóstico pode estabelecer-se quando existe um critério proporcionado pela história familiar (maior) e outro critério maior/alteração grave de 1 sistema orgânico + alteração de um segundo sistema orgânico.

Diagnóstico diferencial

Tendo em consideração determinadas características da SM, o diagnóstico diferencial faz-se com situações clínicas decorrentes de patologia sistémica do tecido conectivo/alteração da forma e da função de proteínas da família das fibrilinas, ou do foro metabólico, valorizando:

  • Pelas alterações cardiovasculares, designadamente aneurismas, com:
    • síndroma de Loeys-Dietz – tríade de aneurisma, hipertelorismo e úvula bífida ou fenda palatina;
    • aneurisma da aorta torácica familiar;
    • síndroma de Shprinzen-Goldberg – rara, em que predominam alterações músculo-esqueléticas e dilatação aórtica associadas a craniossinostose;
    • fenótipo MASS – sigla em inglês de prolapso mitral, miopia, dilatação aórtica, estrias cutâneas e alterações esqueléticas;
  • Pela luxação do cristalino/ectopia lentis, com: síndroma de Weill-Marchesani, homocistinúria);
  • Pelas manifestações sistémicas sobreponíveis, com aracnodactilia, abordada sucintamente na alínea 2.

Exames complementares

Havendo suspeita de SM e antecedentes familiares, torna-se fundamental proceder a exame ocular com lâmpada de fenda, ecocardiograma, ECG e análises de biologia molecular para detecção de mutações no gene FBN, estas últimas com uma sensibilidade de 90%.

Tratamento

O objectivo fundamental é prevenir ou retardar o aparecimento de dissecção ou ruptura aórtica, de alto risco (designadamente durante a gravidez); nesta perspectiva, alguns autores sugerem o uso sistemático de beta-bloqueantes como prevenção (designadamente bloqueantes do tipo 1 dos receptores de angiotensina II).

Em determinados casos está indicado o tratamento cirúrgico da dilatação aórtica para evitar dissecção ou insuficiência mitral.

As técnicas de tratamento médico-cirúrgico permitiram duplicar a expectativa de vida, elevando-se a 65 anos.

Sempre que sejam detectadas anomalias valvulares ou da raiz aórtica é recomendada a profilaxia da endocardite com antibioticoterapia.

A luxação do cristalino também pode requerer cirurgia.

A escoliose requer fisioterapia e, por vezes, tratamento cirúrgico.

As deformações torácicas também poderão requerer tratamento cirúrgico.

As actividades que levem a descompressões bruscas, pelo risco de pneumotórax, devem ser desaconselhadas (subida em ascensores muito rápidos, viagens em aviões não pressurizados, etc.).

2. ARACNODACTILIA CONGÉNITA

A aracnodactilia congénita, entidade semelhante à SM (com quadro dito Marfanóide), mas com contracturas e manifestações predominantemente esqueléticas, é causada por mutações no gene FBN2 que codifica a síntese da fibrilina-2.

Relativamente aos exames complementares e tratamento, tem cabimento nesta situação (aracnodactilia congénita) o que foi referido a propósito da SM.

Alguns autores propuseram as designações de microfibrilopatias ou fibrilinopatias para as afecções atrás mencionadas (SM e aracnodactilia).

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial deve fazer-se com outras situações em que se verifica contractura em flexão, tais como as síndromas com artrogripose.

A propósito do diagnóstico diferencial da síndroma de Marfan e síndromas Marfanóides, importa analisar os seguintes factos:

  • Os pacientes com SM, síndroma de hipermobilidade Marfanóide, ou homocistinúria, enquanto exibindo aracnodactilia, não manifestam contracturas em flexão;
  • Por outro lado, os pacientes com aracnodactilia congénita e contracturas, geralmente não evidenciam anomalias cardiovasculares nem luxação do cristalino. 

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