Definição e importância do problema
Tendo em consideração o número de cavidades, válvulas, septos e estruturas vasculares que entram e saem do coração, é fácil imaginar a enorme quantidade de defeitos estruturais relacionados com anomalias do desenvolvimento do coração: cavidades hipoplásicas ou inexistentes, septos incompletos, câmaras de entrada ou saída estenosadas, válvulas malformadas, vasos mal posicionados ou malformados, e ainda, persistência de estruturas que não tenham passado pelo normal processo de involução pós-natal.
Embora existam numerosas combinações de defeitos que determinam um considerável número de variantes anatómicas, é possível enquadrar essas entidades clínicas, sob o ponto de vista fisiopatológico, em cinco grupos, de modo a tornar mais facilmente compreensível o seu quadro clínico. O quadro clínico resultante é determinado pelas consequências das anomalias cardíacas, pelo que a sua avaliação deve ter em conta: a anomalia fisiológica básica e o tipo de carga que impõe ao sistema cardiovascular em desenvolvimento; o efeito possível sobre a dinâmica da circulação fetal e neonatal; e a influência dos fenómenos de adaptação circulatória pós-natal, (particularmente a maturação do leito vascular pulmonar) sobre as características do quadro clínico.
Grupos fisiopatológicos
De uma forma simplificada, as cardiopatias congénitas mais frequentes integram-se nos seguintes grupos fisiopatológicos, determinados pela influência da anomalia predominante:
- Cardiopatias congénitas com Shunts esquerdo-direito
- Lesões obstrutivas: esquerdas e direitas
- Cardiopatias congénitas cianóticas:
- Com shunts direito-esquerdo;
- Com fisiologia de transposição;
- Com fisiologia de mistura.
1. Cardiopatias congénitas com shunt esquerdo–direito
O shunt esquerdo-direito representa um volume de sangue sistémico que faz bypass à circulação sistémica, sendo derivado para a circulação pulmonar. Para que tal ocorra, é necessário haver uma comunicação anormal intracardíaca (auricular ou ventricular) ou extracardíaca (entre a artéria pulmonar e a aorta). Desta forma, o débito pulmonar está aumentado e é superior ao sistémico; tal situação, condicionando sobrecarga de volume ventricular, traduz-se por um quadro clínico de insuficiência cardíaca.
A sintomatologia é influenciada pela idade do doente, localização anatómica do shunt, tamanho do defeito e resistência vascular relativa entre as duas circulações, sistémica e pulmonar. No recém-nascido de termo, a resistência vascular pulmonar é elevada e, por isso, os sinais de insuficiência cardíaca devida a um grande shunt esquerdo-direito apenas se manifestam entre a terceira e a sexta semana de vida (após o declínio fisiológico da resistência vascular pulmonar).
A localização anatómica do defeito é uma condicionante importante do quadro clínico; os shunts a nível auricular, permitindo a comunicação entre câmaras de baixa pressão, têm, por isso, pouco efeito sobre a pressão arterial pulmonar. A alteração fisiológica fundamental é a sobrecarga de volume das cavidades direitas (aurícula e ventrículo), dependente do tamanho do defeito e da distensibilidade diastólica do ventrículo direito, o que se traduz na dilatação e hipertrofia ventricular direitas. Nos shunts esquerdo–direito a nível ventricular (como comunicação interventricular) ou das grandes artérias (como persistência do canal arterial), a magnitude do shunt, e por isso a sintomatologia, são determinadas pelo tamanho do defeito e pela relação entre resistências vasculares pulmonar e sistémica.
O aumento do débito pulmonar associa-se a um aumento da pressão sistólica na artéria pulmonar, e em resposta a esta sobrecarga ocorre dilatação da artéria numa fase inicial. Ao longo do tempo, se os defeitos não forem corrigidos, este estímulo vai desencadear espessamento da camada média das artérias pulmonares, podendo evoluir para doença vascular pulmonar, com aumento muito significativo da resistência vascular pulmonar, desaparecimento do shunt esquerdo-direito e, até, inversão deste com aparecimento de cianose. O desenvolvimento de doença vascular pulmonar obstrutiva (síndroma de Eisenmenger), uma complicação devastadora e irreversível, constitui um risco inerente a este tipo de shunts. A sobrecarga de volume do ventrículo esquerdo por aumento do retorno venoso pulmonar leva ao desenvolvimento de dilatação e hipertrofia ventricular esquerdas.
2. Lesões obstrutivas
As anomalias das válvulas cardíacas contribuem para a maioria das lesões obstrutivas na infância. Os casos restantes são obstáculos proximais ou distais relativamente às válvulas. Os obstáculos à entrada do coração afectam o sistema venoso, provocando ingurgitamento e edema nos órgãos drenados pelo segmento obstruído. Os obstáculos à saída provocam aumento de pressão na cavidade ventricular e o desenvolvimento de mecanismos de adaptação para vencer a resistência, designadamente, hipertrofia ventricular.
O quadro clínico é determinado por diversos factores: localização anatómica; gravidade da obstrução; presença de outras sobrecargas hemodinâmicas (lesões associadas); idade do doente; alteração da função miocárdica. A localização anatómica da lesão determina obstáculo à entrada ou à saída do coração, marcando desde logo as diferenças quanto a manifestações clínicas, história natural, tratamento e prognóstico. Quanto mais grave for a obstrução, mais importante será a sua expressão clínica. O grau de obstrução valvular pode ser estimado pelos achados obtidos por auscultação cardíaca, electrocardiograma, ecocardiografia Döppler, e ainda directamente por cateterismo cardíaco. A coexistência de defeitos associados (lesões obstrutivas ou regurgitantes com outras localizações ou shunt esquerdo-direito), alteram a fisiopatologia e a expressão clínica da lesão obstrutiva.
A idade do doente é um factor importante porque existem diferenças significativas nas respostas funcionais desde o período neonatal até à idade adulta, determinadas pelas diferenças inerentes à transição circulatória do período neonatal, à reserva funcional do miocárdio e à capacidade de adaptação a alterações hemodinâmicas determinadas pelo obstáculo. As alterações da função miocárdica são consequência da rapidez de desenvolvimento do obstáculo: um obstáculo que se desenvolva rapidamente provocará alteração hemodinâmica aguda com deterioração rápida da função miocárdica, enquanto uma obstrução que se desenvolva gradualmente permitirá uma adaptação do miocárdio à sobrecarga de pressão. Um dos mecanismos de adaptação é a hipertrofia ventricular. A sobrecarga crónica de pressão provoca alterações na circulação miocárdica, a qual se tornará insuficiente para corresponder ao aumento das necessidades metabólicas impostas pelo aumento da massa muscular ventricular; como resultado, surgirão isquémia e, consequentemente, disfunção ventricular e insuficiência cardíaca.
2.1 Obstáculos esquerdos
Os obstáculos esquerdos correspondem a obstruções à entrada ou à saída do coração esquerdo. A regurgitação valvular é muito frequente e não pode ser ignorada na avaliação destas lesões. A localização anatómica à entrada do coração esquerdo (exemplos: estenose das veias pulmonares, cor triatriatum, estenose supravalvular mitral ou doença mitral congénita) provoca inicialmente obstáculo ao retorno venoso pulmonar e, portanto, hipertensão venosa e edema pulmonar com consequente diminuição da distensibilidade pulmonar, o que conduz a aumento do esforço respiratório. Este quadro pode ser confundido com doença pulmonar.
Numa fase ulterior, desenvolve-se hipertensão arterial e arteriolar pulmonares, com sobrecarga de pressão do ventrículo direito. Nos obstáculos à saída do coração esquerdo (exemplos: estenose aórtica subvalvular, valvular e supravalvular, coarctação da aorta), a principal alteração hemodinâmica é a sobrecarga de pressão do ventrículo esquerdo por aumento da resistência à ejecção, com consequente aumento da pressão intraventricular e hipertrofia ventricular esquerda. A evolução para disfunção ventricular depende da gravidade e cronicidade do obstáculo. A associação de insuficiência valvular com a estenose aórtica pode determinar a data da intervenção terapêutica, independentemente da gravidade do obstáculo.
2.2 Obstáculos direitos
Os obstáculos à entrada do coração direito (ex. obstrução das veias cavas, atrésia ou estenose tricúspide), bem como as lesões regurgitantes da válvula tricúspide, produzem quadros de congestão venosa sistémica com hepatomegália e edema periférico (nas crianças mais velhas).
Os obstáculos à saída do ventrículo direito situam-se a nível valvular, subvalvular e, mais raramente, supravalvular. A gravidade destas lesões é relativamente fácil de avaliar pelas características da auscultação cardíaca e pelas alterações electrocardiográficas relacionadas com o grau de hipertrofia ventricular direita que determinam. A quantificação e definição morfológica obtêm-se com a ecocardiografia e a utilização do Döppler, que permite determinar o gradiente de pico transvalvular e desta forma especificar a gravidade da lesão.
3. Cardiopatias congénitas cianóticas
As cardiopatias congénitas cianóticas, caracterizam-se pela presença de cianose, a qual traduz um grau de hipoxémia na circulação sistémica. A cianose deve-se à presença de mais de 5 gramas de hemoglobina (Hb) não saturada em O2 por cada dL de sangue circulante. Salienta-se, contudo, que detecção clínica da cianose depende, não só da quantidade de Hb não saturada no sangue circulante, mas também da sua concentração total.
Em doentes com saturação Hb-O2 (SpO2) de 60% surgirá cianose se o teor em Hb total for >12,5 g/dL; não surgirá cianose se a Hb for < 10 g/dL, situação a que corresponde teor em Hb não saturada de quatro gramas por cada dL de sangue circulante.
As lesões que determinam esta expressão clínica enquadram-se em três mecanismos fisiopatológicos: cardiopatias com shunt direito-esquerdo, cardiopatias com fisiologia de transposição ou com fisiologia de mistura.
3.1 Cardiopatias com shunt direito-esquerdo
Shunt direito-esquerdo é a derivação de uma quantidade de sangue venoso para a circulação sistémica, fazendo bypass à circulação pulmonar; desta forma o débito sistémico é superior ao pulmonar. A tetralogia de Fallot é o protótipo da fisiologia de shunt direito-esquerdo: consiste na associação de comunicação interventricular grande com obstáculo à saída do ventrículo direito a nível infundibular e, por vezes, também a nível valvular ou supravalvular pulmonar. A presença do obstáculo direito condiciona restrição ao débito pulmonar; e a comunicação interventricular faz derivar o sangue venoso do ventrículo direito para a circulação sistémica.
Várias cardiopatias congénitas complexas partilham este tipo de fisiologia, uma vez que associam uma comunicação intracardíaca grande com um obstáculo:
- à circulação pulmonar (obstáculo que pode ocorrer a diversos níveis, desde a válvula tricúspide à pulmonar); e, também,
- a nível das artérias pulmonares (exemplos: atrésia da tricúspide com comunicação interauricular, ventrículo direito de dupla saída com obstáculo pulmonar ou coração univentricular com obstáculo pulmonar).
3.2 Cardiopatias com fisiologia de transposição
A característica da fisiologia de transposição é a presença de sangue mais oxigenado na artéria pulmonar do que na aorta; tal só é possível se, devido a uma anomalia na posição das grandes artérias, o fluxo venoso do ventrículo direito se dirigir primordialmente para a aorta, e o arterial do ventrículo esquerdo para a artéria pulmonar.
Esta anomalia observa-se na transposição das grandes artérias, a cardiopatia congénita cianótica mais frequente no período neonatal, representando cerca de 5% de todas as cardiopatias congénitas. Caracteriza-se por concordância aurículo-ventricular (aurícula direita-ventrículo direito) e discordância ventrículo-arterial (ventrículo direito-aorta e ventrículo esquerdo-artéria pulmonar). Como consequência desta anomalia anatómica, a circulação pulmonar e sistémica encontram-se em paralelo. Clinicamente, a situação só tem viabilidade se existirem, a algum nível da circulação, comunicações que permitam a mistura de sangue oxigenado com o venoso, por forma a obter uma mistura oxigenada viável a nível sistémico. Tal é possível a nível auricular, pelo foramen ovale; nos ventrículos através de uma comunicação interventricular; e a nível das grandes artérias pela presença do canal arterial; quanto maior for a quantidade de mistura a nível das referidas comunicações, melhor será a saturação sistémica e maior estabilidade do recém-nascido.
Ao nascer, devido às modificações fisiológicas da transição da circulação fetal para a neonatal, os shunts fetais (foramen ovale e canal arterial) diminuem ou encerram-se, transformando esta anomalia congénita numa situação fatal, caso não se consiga manter a permeabilidade de tais comunicações tendo em conta a hipoxémia grave resultante desde as primeiras horas de vida.
O tratamento é, pois, emergente: 1- utilização de prostaglandinas para manter o canal arterial patente; e 2- realização de atrioseptostomia de Rashkind para criar uma comunicação interauricular ampla.
3.3 Cardiopatias com fisiologia de mistura
A fisiologia de mistura é uma anomalia hemodinâmica em que existe mistura completa e não restritiva das circulações venosa e sistémica, de modo a que saturação Hb-O2 do sangue é idêntica na artéria pulmonar e na aorta. O paradigma desta situação é o truncus arteriosus, cardiopatia em que existe uma comunicação interventricular na câmara de saída, mas apenas um único vaso (truncus), que dá origem a artérias coronárias, aorta e artérias pulmonares; a mistura das duas circulações é efectuada no truncus. O quadro clínico depende das resistências relativas das duas circulações, mas é dominado por insuficiência cardíaca e cianose moderada, de aparecimento precoce na vida neonatal, geralmente nas primeiras semanas de vida. Nestas lesões a cianose é de menor grau e normalmente bem tolerada, apresentando-se o doente com SpO2 superiores a 85%.
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