Definição e importância do problema

A doença de von Willebrand (dvW) consiste num defeito da hemostase primária caracterizado por alteração quantitativa ou qualitativa do factor de von Willebrand (fvW).

O fvW é uma glicoproteína sintetizada pelos megacariócitos e células endoteliais; a glicoproteína sintetizada pelos megacariócitos armazena-se nos grânulos alfa plaquetários, e a das células endoteliais liberta-se de forma directa para o plasma, ou armazena-se nos corpos de Weibel-Palade.

O referido factor desempenha um papel fundamental na hemostase: 1) mediação da adesão plaquetária ao endotélio vascular lesado; 2) transporte e estabilização do factor VIII (FVIII) em circulação, impedindo a sua inactivação pela proteína C activada.

O referido factor circula sob a forma de multímeros agregados. Quando activado, são libertados para a circulação os multímeros de maior peso molecular, que correspondem às suas formas mais activas. Sendo protrombóticas, estas formas são fisiologicamente clivadas por uma protease (ADAMTS13), tornando-se menores e hemostaticamente menos activas.

A dvW é a coagulopatia hereditária mais frequente, afectando cerca de 1-2% da população (sem predomínio de sexo). Contudo, apenas 1% dos indivíduos afectados é sintomático. Embora raras, existem também formas adquiridas de dvW, geralmente secundárias a patologia autoimune ou oncológica.

Etiopatogénese e classificação

Em 2006 a International Society on Thrombosis and Haemostasis classificou a doença de acordo com o fenótipo nos seguintes grupos:

  • O relacionado com alterações quantitativas, integrando os tipos 1 e 3; e
  • O relacionado com alterações qualitativas, integrando o tipo 2.

O gene do fvW localiza-se no cromossoma 12, salientando-se a existência de um pseudogene parcial no cromossoma 22. No que respeita à hereditariedade, é importante pormenorizar os seguintes aspectos:

  • Tipo 1 (autossómico dominante) corresponde a cerca de 80% dos casos e traduz-se por um défice ligeiro a moderado de fvW;
  • Tipo 3 (autossómico recessivo) em que existe um défice grave de fvW;
  • Tipo 2 (autossómico recessivo ou dominante) pode ser subdividido nos seguintes subtipos:
    • 2A, em que existe perda de multímeros de maior peso molecular, com consequente diminuição da capacidade de ligação plaquetária;
    • 2B, caracterizado por aumento da ligação às plaquetas, aumentando a sua destruição;
    • 2M, que cursa com multímeros de dimensão normal, mas disfuncionais e com menor capacidade de interacção plaquetária; e
    • 2N, em que se verifica diminuição da capacidade de ligação ao FVIII, provocando a sua rápida eliminação.

Foram identificadas mais de 250 mutações, na sua maioria nos tipos 2 e 3. No tipo 1 o risco de transmissão da doença é ~50%, embora só em cerca de 1/3 dos casos se verifiquem manifestações hemorrágicas; tal é explicável pela variabilidade da penetrância e da expressividade do gene.

Manifestações clínicas

Tratando-se duma alteração da hemostase primária, as manifestações clássicas relacionam-se com discrasia mucocutânea (predominantemente equimoses fáceis, epistaxe, gengivorragias e menorragias). Na dvW dos tipos 2N e 3, pela diminuição mais significativa de FVIII associada, as manifestações podem ser sobreponíveis às da hemofilia.

A sintomatologia pode surgir em qualquer idade e com um espectro de gravidade variável. Quanto mais ligeira a variante fenotípica, mais difícil o diagnóstico. Além disso, as manifestações hemorrágicas podem por vezes ser subtis, ao ponto de poderem ser confundidas com as manifestações hemorrágicas da população sem doença.

Nesta perspectiva, importa relevar o papel da história clínica elaborada com rigor tentando investigar a eventualidade de antecedentes hemorrágicos em familiares e, portanto, de dvW subdiagnosticada. A este respeito, salienta-se que existe a possibilidade de recorrer a questionários estruturados tentando avaliar o risco hemorrágico e a probabilidade de coagulopatia (por exemplo, através dos Bleeding Assessment Tools – BAT e do Pediatric Bleeding Questionnaire).

Diagnóstico

Na suspeita de dvW, está indicada a realização dos seguintes exames complementares:

  • Antigénio fvW (fvW:Ag), que avalia a quantidade de fvW no plasma;
  • fvW:RCo ou funcional que avalia a actividade do fvW;
  • O doseamento de FVIII;
  • O hemograma permite excluir a presença de trombocitopénia associada ao tipo 2B.

A combinação destes exames laboratoriais possibilita, na maioria dos casos, a classificação dos principais tipos de dvW.

A determinação da razão fvW: Rco/fvW:Ag fornece uma ajuda importante na orientação do diagnóstico: uma razão inferior a 0,6 favorece o diagnóstico de alteração qualitativa (tipo 2A, 2B ou 2M).

A análise de multímeros do fvW e a realização de testes de agregação plaquetária induzida pela ristocetina (RIPA), apenas indicadas após estabelecido o diagnóstico de dvW, contribuem para a distinção das subclasses 2A, 2B e 2M.

Dado que na dvW do tipo 2N o doseamento do fvW é normal (ou quase normal) e o FVIII está diminuído, o diagnóstico diferencial com a hemofilia A ligeira implica a determinação da capacidade de ligação do fvW ao FVIII/estudo genético. (Quadro 1)

Existem várias circunstâncias susceptíveis de influência nos níveis de fvW:

  • Nos casos de grupo sanguíneo 0 os respectivos níveis séricos são cerca de 25% mais baixos em comparação com outros grupos sanguíneos; daqui se infere que se deverá proceder sempre à avaliação do grupo sanguíneo no contexto da possibilidade desta coagulopatia;
  • O estresse, infecções, exercício físico, gravidez ou terapêutica com anticonceptivos orais associam-se a variações dos valores basais; assim, a influência de tais factores poderá ser minorada se se proceder a duas determinações.

NB: De facto, sendo o f vW (e, também, o F VII) proteínas da fase aguda, há que atender à possibilidade de variações ao longo do dia dependentes de diversas influências.

Estudos de genética molecular estão reservados para casos específicos.

QUADRO 1 – Padrão laboratorial dos diferentes tipos de dvW

 PlaquetasfvW:AgfvW:RCoFVIII:CAnálise de multímeros
Alteração quantitativa do fvW
Tipo 1NormalNormal a ↓Normal
Tipo 3Normal↓↓↓↓↓↓↓↓↓Ausentes
Alteração qualitativa do fvW
Tipo 2ANormal↓↓Normal a ↓Perda de MAPM
Tipo 2B↓↓Normal a ↓Perda de MAPM
Tipo 2MNormal↓↓Normal a ↓Normal
Tipo 2NNormalNormal a ↓Normal a ↓↓↓

Normal

MAPM = multímeros de alto peso molecular

Tratamento

O tratamento da dvW está indicado em casos de hemorragia activa ou preparação para procedimentos invasivos.

  1. O acetato de desmopressina (DDAVP) é um análogo sintético da vasopressina que promove a libertação de fvW do endotélio vascular, aumentando também a semi-vida do FVIII. A resposta é variável de doente para doente, sendo favorável na maioria dos doentes com dvW tipo 1 e em alguns do tipo 2. No tipo 2B pode haver agravamento da trombocitopénia e no tipo 3 não há resposta, pelo que a administração não está indicada. Antes da utilização em situação aguda, deve ser realizada uma prova prévia que confirme a eficácia do DDAVP. Nas hemorragias ligeiras, utiliza-se preferencialmente a via intranasal (150 μg/dose em doentes com menos de 50 kg, e 300 μg/dose em doentes com peso superior), estando a via endovenosa (0,3 μg/kg/dose até máximo de 20 μg/dose) reservada para os casos mais graves/preparação para procedimentos invasivos minor.
    Como normas importantes, refere-se:
      – Restrição hídrica;
      – Não administração de doses com intervalos inferiores a 24 horas ou mais de três doses, dada a redução do efeito (taquifilaxia) e o aumento dos efeitos adversos (destacando-se a hiponatrémia).
  2. O tratamento com concentrado de FVIII + fvW permite a reposição do factor em falta, estando indicado nos seguintes casos:
    1. resposta ao DDAVP insuficiente;
    2. DDAVP não indicado (dvW tipo 3 e 2B);
    3. DDAVP contraindicado (idade inferior a 2 anos ou doença cardíaca);
    4. todos os casos de lesão traumática/hemorragia grave ou cirurgia major.
  3. A terapêutica adjuvante com agentes antifibrinolíticos (ácido aminocapróico ou tranexâmico) que actuam na estabilização do coágulo, tem também um papel importante na hemorragia das mucosas; poderão até ser utilizados isoladamente nas hemorragias minor em associação a medidas locais de compressão).
  4. Devem ser evitados os anti-inflamatórios não esteróides, pela sua acção anti-agregante plaquetária.

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