Introdução

As anemias hemolíticas devidas a factores extracelulares (termo sinónimo de “de causa extrínseca”, de “causa imunitária”, ou “imunes”) devem-se à união de anticorpos IgG e/ou IgM à membrana do eritrócito, do que resulta hemólise, ocasionalmente através da activação do complemento e com a participação do sistema reticuloendotelial (SRE).

Genericamente classificam-se em iso ou aloimunes, autoimunes e provocadas por fármacos. De referir, contudo, que os fármacos também poderão actuar por mecanismo não imunitário.

1. ANEMIA HEMOLÍTICA ISOIMUNE

Etiopatogénese

A hemólise de causa isoimune (admitindo como paradigma a incompatibilidade sanguínea materno-fetal) é provocada por imunização materna activa contra antigénios fetais não existentes nos eritrócitos maternos. São exemplos os anticorpos contra os antigénios A, B, D e outros dos sistemas Rh Kell, Duffy, etc..

A hemólise anti-A e anti-B é provocada pela passagem transplacentar mãe ” feto de aglutininas (anticorpos naturais) da mãe do grupo 0 (com aglutininas alfa e beta) as quais poderão provocar hemólise em RN dos grupos A ou B respectivamente.

Tendo escolhido a anemia hemolítica isoimune do recém-nascido como paradigma, cabe referir que nas reacções hemolíticas transfusionais decorrentes de transfusão de sangue incompatível a etiopatogénese é sobreponível à de incompatibilidade de grupo sanguíneo, não mãe-filho, mas dador-receptor.

Manifestações clínicas e laboratoriais

As manifestações resultantes da hemólise (que no sistema Rh pode ocorrer já no feto) são anemia no feto/recém-nascido, possível hydrops fetalis, hiperbilirrubinémia, hepatosplenomegália, etc..

As provas de Coombs positivas (directa – realizada no recém-nascido, permitindo detectar anticorpos fixados sobre os eritrócitos, e indirecta, realizada na mãe, permitindo evidenciar anticorpos no respectivo soro), e a presença de precursores eritróides imaturos (eritroblastos) e de esferócitos no sangue periférico, permitem confirmar o diagnóstico.

Este tópico (anemia hemolítica isoimune/doença hemolítica perinatal) é retomado, com mais pormenor, na Parte XXXI.

2. ANEMIA HEMOLÍTICA AUTOIMUNE

Etiopatogénese e importância do problema

Na anemia hemolítica autoimune os anticorpos do doente são dirigidos de modo aberrante contra os antigénios eritrocitários normais do mesmo hóspede. Os anticorpos são, na maioria, quer do tipo IgG (anticorpos “quentes” ou “incompletos”, com máxima actividade em torno de 37ºC), quer do tipo IgM (anticorpos “frios”, com máxima actividade em torno de 0-4ºC). Nesta última situação (anticorpos de tipo IgM), e ao contrário do que ocorre com os de tipo IgG, verifica-se activação da via do complemento e citólise. Por este motivo, a hemólise relacionada com este tipo de anticorpos é de tipo intravascular e não através do SRE.

Trata-se duma patologia pouco frequente, com uma incidência estimada em 1/80.000 na população geral.

Na base do processo está provavelmente uma modificação de antigenicidade dos eritrócitos associada a lesão da membrana eritrocitária por infecção ou por agente químico (fármaco, por ex.); poderá também estar em causa o aparecimento de um novo antigénio (neoantigénio) formado pela combinação de agente infeccioso com o eritrócito.

As anemias hemolíticas autoimunes por IgG correspondem a cerca de 50-70% dos casos de anemias hemolíticas autoimunes.

Na prática, as situações frequentemente associadas a tal anomalia são:

  • Infecções por Mycoplasma, vírus de Epstein-Barr, outros vírus (nestas situações o paradigma é o aparecimento de aglutininas chamadas “anticorpos frios ou crioaglutininas”, isto é, actuando a temperaturas inferiores a 37ºC);
  • Doenças crónicas autoimunes (lúpus eritematoso sistémico, doenças linfoproliferativas, doença de Hodgkin, tiroidite de Hashimoto, leucemia linfóide crónica, síndromas de imunodeficiência, etc.); em geral, estas afecções estão associadas ao aparecimento de anticorpos IgG (“anticorpos quentes”) por terem a máxima actividade, sem necessidade do complemento, entre 37-40°C;
  • Hemoglobinúria paroxística desencadeada pela exposição ao frio (ou a frigore) resultante de episódios de hemólise intravascular mediada pela hemolisina de Donath-Landsteiner ou autoanticorpo IgM reactivo ao frio, fixando complemento a temperatura abaixo de 37ºC, provocando aglutinação e hemólise quando a temperatura se eleva); em geral, o processo está associado a infecções víricas e a sífilis congénita ou adquirida. Esta situação explica cerca de 30% das anemias hemolíticas imunes na idade pediátrica;
  • Fármacos formando um hapteno ao nível da membrana (por ex. penicilina) ou complexos imunes (por ex. quinidina); consequentemente a activação do complemento induz hemólise. Outros fármacos administrados durante longo tempo como a alfa-metildopa provocam alteração da membrana do eritrócito, do que resulta a formação de neoantigénios a que atrás se aludiu, com consequente formação de anticorpos.

Manifestações clínicas

O quadro clínico mais frequente (cerca de 80% dos casos) surge em crianças entre os 2 e 12 anos na sequência de infecção, na maioria respiratória. Os sinais e sintomas, de início agudo, duram cerca de 3 a 6 meses: prostração, palidez progressiva, icterícia, febre, hemoglobinúria e esplenomegália.

Outra forma clínica, mais insidiosa e de maior duração (meses a anos), manifesta-se sobretudo em adolescentes e jovens adultos.

No caso de a anemia autoimune constituir um epifenómeno de doença subjacente, manifestar-se–ão também os respectivos sintomas e sinais.

O quadro de hemoglobinúria paroxística desencadeada pela exposição ao frio (temperaturas inferiores a 37ºC) é autolimitado, explicando cerca de 30% dos episódios de hemólise de causa imune. (ver capítulo seguinte)

Exames complementares

O hemograma e o estudo do sangue periférico evidenciam: anemia normocítica e normocrómica, moderada a grave (por vezes são atingidos níveis de hemoglobina da ordem de 4 a 6 g/dL), esferocitose, células nucleadas e reticulócitos, assim como leucocitose.

O número de plaquetas em geral é normal; no entanto, poderá verificar-se púrpura trombocitopénica concomitante, associação que corresponde à chamada síndroma de Evans.

O exame da medula óssea revela hiperplasia eritróide marcada.

As provas de Coombs directa e indirecta são positivas. A bilirrubinémia não conjugada está elevada assim como o urobilinogénio nas fezes e urina.

No caso da hemoglobinúria paroxística desencadeada pelo frio, a prova de Coombs é positiva no decurso do episódio, e negativa na fase assintomática.

Tratamento

Na fase aguda pode estar indicada transfusão sanguínea, eventualmente como medida urgente; salientam-se as dificuldades que por vezes surgem para a determinação do grupo sanguíneo, tendo em conta a existência de autoaglutininas. Nos casos de hemoglobinúria paroxística desencadeada pelo frio, a transfusão comporta riscos (adição de complemento e probabilidade de hemólise).

Outras medidas incluem a administração de ácido fólico, corticosteróide (prednisolona em doses entre 2 a 6 mg/kg/dia em função da intensidade da hemólise, e com duração dependente da mesma, – podendo atingir 1 a 3 meses) e de imunoglobulina intravenosa (nos casos em que a corticoterapia não é eficaz), como meio de bloquear os receptores Fc dos macrófagos e de depurar os eritrócitos sensibilizados.

Nos casos refractários está indicado o anticorpo monoclonal (rituximab) actuando ao nível dos linfócitos B como frenador da produção de anticorpos.

Se as medidas anteriores não tiverem sido eficazes, deverá ser ponderada a esplenectomia, obtendo-se melhores resultados nos casos devidos a IgG. A mesma, que comporta risco elevado de infecções por germes capsulados, sobretudo nas crianças de idade inferior a 2 anos, obrigará a medidas profilácticas, designadamente imunização anti-pneumocócica, meningocócica e Haemophilus influenzae.

Por fim, perante situações, designadamente as associadas ao frio e aos fármacos, há que evitar o frio e suprimir os fármacos ou outros factores eventualmente desencadeantes, assim como proceder ao tratamento de infecções que forem documentadas.

Prognóstico

A forma aguda anteriormente descrita, independentemente da gravidade do quadro, é autolimitada.

Na globalidade, em cerca de 20% dos casos há tendência para hemólise crónica.

Nos casos de síndroma de Evans o prognóstico é reservado com tendência para a cronicidade. A mortalidade nas formas crónicas depende da doença de base.

3. ANEMIA HEMOLÍTICA ADQUIRIDA NÃO AUTOIMUNE

A hemólise pode também ser provocada por mecanismos extra-eritrocitários vários, não mediados por anticorpos. Seguidamente são referidos alguns dos mecanismos de lesão da membrana eritrocitária, relacionando-os com determinadas entidades clínicas.

Etiopatogénese

1. Microangiopatia trombótica

A membrana dos eritrócitos pode ser lesada mecanicamente sempre que se verifique um processo obstrutivo de microangiopatia trombótica. Tal pode surgir na coagulação intravascular disseminada (CIVD), púrpura trombocitopénica trombótica (PTT), síndroma hemolítica urémica (SHU), reacção de hospedeiro contra-enxerto, hipertensão maligna, etc..

2. Dislipoproteinémias

As dislipoproteinémias, sobretudo a hipercolesterolémia, provocam alterações da membrana eritrocitária (aumento do conteúdo em colesterol e alteração da relação colesterol/fosfolípidos) diminuindo a sua deformabilidade, o que predispõe à hemólise.

No sangue periférico são identificados eritrócitos “com esporões”, também observados na abetalipoproteinémia e em certas hepatopatias acompanhadas de dislipoproteinémia.

3. Toxinas e fármacos

Determinadas toxinas (como as produzidas por répteis venenosos) e certos metais pesados (cobre e arsénico), provocam hemólise através da respectiva ligação ao grupo sulfidrilo da membrana.

No sangue periférico podem ser observados eritrócitos com “espículas” irregulares, tal como acontece em doentes com insuficiência renal crónica.

4. Carência de vitamina E

Nestas situações de carência verifica-se sensibilidade anormal dos lípidos da membrana ao estresse oxidante; como exemplos desta carência citam-se: a que surge em recém-nascidos com antecedentes de prematuridade não suplementados com a referida vitamina, sendo que tal carência pode ser agravada pela administração de ferro (agente oxidante); má-nutrição; síndromas de má-absorção (incluindo a fibrose quística); regime transfusional intensivo traduzindo-se por suprimento elevado em ferro.

5. Infecções sistémicas e parasitoses

Numerosas infecções bacterianas sistémicas (por ex. por Clostridium perfrigens e Haemophilus influenzae do tipo b) originam hemólise por libertação de hemolisinas eritrocitárias, do que resulta hemoglobinémia e hemoglobinúria.

Nos casos de anemias por protozoários (por ex. malária) verifica-se destruição directa dos eritrócitos pelos plasmódios que os parasitam.

6. Agentes físicos

Sendo discutível a acção das radiações ionizantes, é aceite a acção da hipertermia ou das queimaduras; com efeito, temperaturas da ordem dos 50ºC originam eritrócitos esferocíticos e fragmentados, com diminuição da resistência osmótica.

7. Outros exemplos

Importa uma referência a: hiperseplenismo de diversas causas provocando sequestração de eritrócitos; próteses valvulares pós-cirurgia cardíaca em que os eritrócitos contactam com superfície não endotelial; e a fluxo sanguíneo elevado no contexto de hemangiomas gigantes (síndroma de Kasabach-Merritt).

O estudo morfológico do sangue periférico evidencia eritrócitos fragmentados, microsferócitos, policromasia e eritrócitos em forma de lágrima.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Cada um dos quadros clínicos sucintamente descritos poderá apresentar variações quanto a manifestações clínicas. Contudo, em todos existe de comum sintomatologia de anemia hemolítica: anemia, icterícia e reticulocitose.

Tratamento

O tratamento deve ser o da causa desencadeante (por ex. CIVD ou SHU), associado a transfusões de concentrado eritrocitário, combatendo a anemia.

Tratando-se de tóxicos como factores desencadeantes, importa removê-los.

Nas situações associadas a microangiopatia, está indicada a utilização de anticorpo monoclonal anti-C5, como o eculizumab.

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