Definições e importância do problema
O conjunto das anomalias congénitas, rim e tracto urinário, (internacionalmente conhecidas pela sigla CAKUT– congenital anomalies of kidney and urinary tract) resultam de defeitos na embriogénese desde a 5ª semana gestacional, até ao final da nefrogénese, e sua maturação (36ª semana).
As CAKUT compreendem um largo espectro de defeitos estruturais e funcionais ocorrendo ao nível do rim (por ex. hipoplasia e displasia), sistema colector (por ex. hidronefrose e megauréter), bexiga (por ex. ureterocele e refluxo vésico-ureteral/RVU), ou uretra (por ex. válvulas da uretra posterior).
Correspondendo a cerca de 20-30% do total das anomalias congénitas, atingem cerca de 10% da população e conduzem a insuficiência renal crónica terminal em 41,3% dos casos na idade pediátrica, e em 2,2% nos adultos.
Por sua vez, todas as situações de insuficiência renal em estádio avançado obrigam a terapia de substituição renal e 70% das mesmas cursam com hipertensão arterial e elevada morbilidade cardiovascular associadas. Este tipo de patologia comporta uma taxa de sobrevivência cerca de 30 vezes menor em comparação com a de crianças saudáveis.
O diagnóstico é geralmente evocado por ultrassonografia fetal na proporção de 3-6/1.000 nados-vivos. Na sua maioria trata-se de situações esporádicas, identificando-se em 10% dos casos antecedentes familiares. Podem surgir isoladas, associadas entre si ou constituindo associações multiorgânicas, sindromáticas ou não.
Sob a égide do consórcio internacional multidisciplinar designado EUCAKUT, a investigação tem investido no sistema de registo, no estudo genético, na identificação e mecanismo de acção dos factores etiológicos correlacionados com aspectos funcionais e com o prognóstico.
Neste capítulo, procedendo-se à classificação das CAKUT, é dada ênfase às situações mais frequentes, sendo que o refluxo vésico-ureteral, as uropatias obstrutivas, assim como o diagnóstico pré-natal das uropatias malformativas, as alterações da bexiga e da uretra fazem parte de capítulos próprios que integram esta Parte do livro (Nefro-Urologia).
Etiopatogénese
A etiopatogénese da maioria das anomalias congénitas rim e tracto urinário, complexa, continua desconhecida (designadamente no que respeita às formas não sindrómicas), sendo consensual, no entanto, que a maioria dos casos tem origem na interacção complexa de dezenas de genes disfuncionais identificados na última década entre centenas com potencial no desenvolvimento estrutural e funcional do aparelho urinário.
Têm sido identificados, ainda, diversos factores: ambientais, epigenéticos, de crescimento e de transcrição de genes, os quais se comportam como coadjuvantes do risco.
No que se refere aos factores genéticos, importa salientar que a patogénese monogénica se pode apresentar sob a forma autossómica dominante, autossómica recessiva, ligada ao X.
Um aspecto interessante relacionado com a patogénese manogénica decorreu da investigação experimental em ratos: mutações simples de determinados genes (designados genes do desenvolvimento renal/GDR) podem afectar o desenvolvimento do tracto urinário em diversas fases, causando um alargado espectro fenotípico, desde RVU a agenesia renal.
Outro aspecto que pode testemunhar a complexidade da etiopatogénese das CAKUT tem a ver com os chamados modificadores genéticos: a mutação de simples gene pode levar a CAKUT ou alterar o fenótipo somente em presença de alteração genética de outro gene (interacções epistáticas de gene).
Identificaram-se genes (mutações e microdeleções de HNF1B) relacionados com alterações, geralmente de novo, causadoras de cerca de 15% das CAKUT associadas sobretudo a formas isoladas de hipo-displasia, refluxo vésico-ureteral, ou a formas sindromáticas.
Anomalias cromossómicas grosseiras como deleções genómicas e duplicações podem originar fenótipos CAKUT complexos associados a alterações cognitivas e a defeitos extrarrenais.
Pressupondo definido o conceito de epigenética, importa relevar, a propósito da patogénese das KACUT, o papel da epigenética na regulação da expressão dos genes.
Por fim, importa realçar que o ambiente intrauterino tem sido ligado à génese das CAKUT. Por exemplo, um regime alimentar da grávida com défice em proteínas no início da gestação poderá alterar a expressão dos atrás definidos GDR, levando a que se reduza o número de nefrónios e surja hipoplasia renal. Igualmente, o suprimento de sódio durante a gravidez, quer excessivo, quer deficitário, pode interferir nos GDR, reduzindo o número de glomérulos do feto, predispondo a hipertensão arterial mais tarde.
De acordo com dados obtidos através do EUCAKUT, verificou-se que em 75% das KACUT foram identificados os seguintes antecedentes pré-natais e ou pré-concepcionais: depressão materna, diabetes mellitus pré-gestacional e/ou gestacional até às 20 semanas, obesidade materna, exposição fetal a hipóxia, ingestão de álcool, etc..
Manifestações clínicas
Pré-natais
Como foi referido antes, as CAKUT são habitualmente detectadas no âmbito do rastreio pré-natal através de ecografia, pelas 18-20 semanas de gestação. As manifestações das anomalias em tal fase do desenvolvimento incluem fundamentalmente oligo-hidrâmnio, ou alterações morfológicas do rim, uréter, ou bexiga.
Pós-natais
De modo genérico, sem especificar nosologias a abordar ulteriormente, as manifestações pós-natais podem incluir: presença de massa palpável ou artéria umbilical única, dificuldade alimentar, oligúria, musculatura da parede abdominal frágil, testículos não descidos, ou defeitos multiorgânicos.
Na sua maioria, as CAKUT são não sindromáticas. A vizinhança anatómica e a íntima relação entre os mecanismos morfogénicos do sistema urinário e os do sistema digestivo distal, e os do sistema genital e os do esqueleto lombossagrado explicam a coincidência frequente de anomalias de cada um deles com as anomalias do sistema urinário.
Classificação, análise genéticas e biomarcadores
O conjunto das CAKUT formam um espectro de alterações estruturais e funcionais muito semelhantes entre si, pois têm etiopatogénese comum, a qual resulta de alterações na embriogénese derivadas da interacção da ampola uretérica com o blastema metanéfrico.
De facto, os avanços da genética molecular têm revelado uma variedade crescente de anomalias renais associadas a síndromas complexas correspondentes às chamadas ciliopatias decorrentes de alterações na composição molecular e nas funções sensitivas e de motilidade dos cilia primordiais existentes nas células tubulares renais e de outros órgãos. Estas disfunções evidenciam uma relação causal entre doenças renais císticas, manifestações extrarrenais associadas (nomeadamente do SNC) e as anomalias do rim e tracto urinário, até agora consideradas entidades não relacionáveis. As ciliopatias revelaram-se determinantes no entendimento e classificação integrada de CAKUT e doenças renais císticas.
Independentemente dos exames complementares citados a propósito de anomalias renais e do tracto urinário, descritas com mais pormenor, importa de modo genérico uma referência a determinados biomarcadores e análises genética, com importância na prática clínica.
- Biomarcadores urinários: TGF-beta 1<> factor de transformação do crescimento-beta 1; UMCP-1<> proteína-1 de quimiotaxia de monócito urinário; NGAL <> lipocalina associada a gelatinase de neutrófilo urinário; e Beta 2-M <> Beta 2-microglobulina.
O TGF-beta 1 está associado a displasia renal, lesão renal adquirida e a obstrução; contudo, não se correlaciona com situações de grau elevado de hidronefrose.
O UMCP-1 tem sido avaliado como potencial marcador de obstrução na junção ureteropélvica; contudo, parece constituir um parâmetro com limitação para avaliar lesão renal.
Quer a NGAL, quer a Beta 2-M, têm sido avaliadas como marcadores de obstrução pré-operatória e de sucesso pós-operatório (valores elevados associados a obstrução – designadamente obstrução na junção ureteropélvica – , e valores que diminuem após correcção cirúrgica daquela). Considerando isoladamente a NGAL, os estudos demonstraram que tal biomarcador é útil, quer na avaliação da obstrução, quer na avaliação do compromisso renal (valores mais elevados em situações de menor grau de lesão renal). - Análises genéticas: estudo para pesquisa de PAX2 (gene associado a hipoplasia, RVU e coloboma óptico); – de HNF1B/TCF2 (genes associados a hiperecogenecidade bilateral, gota e diabetes); – de GDNF/RET (genes associados agenesia uni ou bilateral, e hipoplasia renal); – de PKHD1 (gene associado a doença poliquística renal autossómica recessiva); – de PKD1 e PKD2 genes associados a doença poliquística renal autossómica dominante); – de WNT4/ DSTYK/ TRAP1/ TNXB (outros genes candidatos).
Com o desenvolvimento da investigação em genética molecular tem sido possível uma mais rigorosa caracterização da variabilidade fenotípica, com implicações positivas no diagnóstico e prognóstico dos pacientes e familiares.
Considerando o rim, as anomalias verificadas no processo dinâmico de multiplicação e diferenciação celulares podem conduzir fundamentalmente a três situações; 1) não formação do rim (agenésia); 2) diferenciação anormal (disgenésia); 3) formação de quistos.
Na prática considera-se que disgenésia inclui aplasia ou agenésia, displasia, hipoplasia, e doença quística.
A agenésia renal é distinta de aplasia, situação esta em que uma parcela de tecido não funcionante recobre um uréter normal ou anormal. Clinicamente a distinção poderá ser difícil.
Disgenésia define-se como defeito de desenvolvimento do rim que pode estar alterado em forma, tamanho ou estrutura.
O termo displasia corresponde a um diagnóstico histológico; caracteriza-se pela presença de estruturas primitivas ductais agrupadas de vários modos (focal, segmentar, difuso) como resultado de diferenciação metanéfrica anormal. A causa é multifactorial.
No Quadro 1 resumem-se as CAKUT mais frequentes.
QUADRO 1 – Classificação simplificada das CAKUT
(*)Anomalias abordadas em capítulos próprios |
RIM →
|
TRACTO URINÁRIO(*) →
|
Agenésia renal unilateral
Surge com uma frequência aproximada de 1/450-1/1.000 recém-nascidos. Podendo estar associada a anomalias doutros sistemas, é um dos componentes da associação VACTERL (anomalias vertebrais, atrésia anal, defeitos cardíacos, fístula tráqueo-esofágica ou atrésia do esófago, agenésia ou displasia renal, defeitos dos membros/limbs). (Capítulo Anomalias Congénitas)
Numa das formas da síndroma de Rokitansky-Kuster-Hauser- tipo II (1/4.000-1/10.000 nascimentos do sexo feminino) verifica-se conjunto de anomalias (aplasia vaginal, hipodesenvolvimento uterino e agenésia renal unilateral ou rim em ferradura).
Agenésia renal bilateral
Ocorrendo com uma incidência de cerca de 1/3.000 recém-nascidos, constitui um dos componentes da síndroma de Potter (fácies e nariz achatados, pés botos e hipoplasia pulmonar como consequência de oligoâmnio com compressão do feto pelo útero), incompatível com a vida extrauterina. A morte ocorre após o nascimento por hipoplasia pulmonar, antes de se manifestar falência renal.
O termo adisplasia renal familiar refere-se a famílias em que se verifica agenésia renal, displasia renal, rim multiquístico (displasia), ou combinação, numa só família.
Hipoplasia renal
Definido anteriormente o conceito de disgenésia, importa salientar que existem 3 tipos principais de disgenésia: displásica, hipoplásica e quística. Embora a displasia seja sempre acompanhada por diminuição do número de nefrónios (hipoplasia), o inverso não é verdadeiro. A hipoplasia pode ocorrer isolada; quando as duas situações estão presentes, é preferível o termo de hipodisplasia.
Se o rim for displásico na totalidade, com preponderância de quistos, considera-se que se trata de rim displásico multiquístico (MCDK).
Na hipoplasia renal os rins são de menores dimensões, comprovando-se por exame anátomo-patológico, diminuição do número de nefrónios, de cálices e grau importante de fibrose com repercussão na função tubular renal, traduzida essencialmente pela perda de sódio e água. A forma familiar pode ser autossómica dominante e envolver o gene PAX2. Têm sido descritas formas bilaterais, com quistos e associados a gota e coloboma do nervo óptico.
Existe HTA poliúria, polidipsia e evolução para IR.
Uma variante desta entidade é a oligomeganefrónia, caracterizada por número de nefrónios reduzido com hipertrofia dos presentes.
A forma segmentar de hipoplasia renal, designada por rim de Ask Upmark, é detectada, em geral, após os 10 anos no contexto de HTA; na maioria dos casos está indicada a nefrectomia.
Rim multiquístico
Trata-se de uma displasia renal multiquística (em geral unilateral) com incidência semelhante à da agenésia renal bilateral. É caracterizada por anomalia de diferenciação estrutural conduzindo a ausência completa de função; por conseguinte, se a alteração for bilateral, há incompatibilidade com a vida.
É possível fazer o diagnóstico pré-natal por ecografia, a qual evidencia padrão imagiológico patognomónico.
A nefrectomia está indicada nos casos de hipertensão arterial grave ou infecções urinárias recorrentes.
Doença renal poliquística
Esta situação abrange um largo espectro de doenças genéticas, tendo como denominador comum a existência de quistos (doença renal poliquística), afectando ambos os rins e outros órgãos.
Existe controvérsia sobre a indicação do rastreio desta patologia em idade pediátrica.
Estão descritas duas formas de doença poliquística, diferindo em função da herança genética, morfologia dos quistos, manifestações clínicas, imagiológicas e laboratoriais:
1 – Doença renal poliquística autossómica recessiva (AR/tipo infantil) que ocorre com uma frequência estimada entre 1/10.000 e 1/50.000 na primeira ou segunda infância; como características são referidas: quistos localizados no córtex e na medula, dilatação dos tubos colectores, fibrose intersticial e atrofia progressiva tubular conduzindo a disfunção renal progressiva; nesta forma de doença renal existe fibrose hepática associada levando a hipertensão portal. Como consequência do aumento de volume dos rins exercendo efeito compressivo, poderá surgir in utero hipoplasia pulmonar fetal conduzindo a morte fetal.
As manifestações clínicas (mais precoces e mais graves – incluindo extrarrenais – do que na forma AD, e com maior tendência para doença renal crónica terminal) são: massas renais palpáveis, proteinúria, hematúria, hepatomegália e pneumotórax.
2 – Doença renal poliquística autossómica dominante (AD/tipo adulto) que ocorre classicamente na idade adulta (3ª ou 4ª décadas de vida, raramente antes dos 7 anos), embora possa também surgir na faixa etária descrita para a forma autossómica recessiva. Refira-se que surge com uma incidência muito mais elevada do que a forma infantil: 1/1000 recém-nascidos, ao ponto de ser considerada a doença hereditária renal mais frequente.
O quadro clínico é semelhante ao do tipo infantil. Como particularidades há a destacar: quistos glomerulares e tubulares, assim como associação a quistos hepáticos (em cerca de 30% dos casos), pancreáticos, esplénicos, ováricos e a aneurismas cerebrais.
Os estudos imagiológicos mais utilizados são a ecografia e o renograma isotópico.
Quanto ao tratamento, podem ser adoptadas medidas conservadoras, diálise ou transplantação renal em função do contexto clínico de cada caso.
Anomalias de forma e posição do rim
Durante o desenvolvimento renal fetal os rins em circunstância de normalidade mudam progressivamente de posição no sentido ascendente pelve → posição das locas renais.
Em circunstâncias anómalas o rim ou rins podem ficar em posição pélvica, ilíaca (“subida” insuficiente), ou torácica (“subida excessiva”); é o rim ectópico, que surge com uma frequência aproximada de 1/900 RN.
Pode existir igualmente fusão dos rins originando o chamado rim em “ferradura” ocorrendo em cerca de 1/500 RN, situação por sua vez associada frequentemente a síndroma de Turner e a tumor de Wilms.
A função renal é geralmente normal.
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