Definição
Os vómitos, que consistem na expulsão súbita pela boca do conteúdo do estômago, com esforço, são um sintoma muito frequente em idade pediátrica, com múltiplas etiologias. O vómito deve ser distinguido da regurgitação que consiste na expulsão, sem esforço, do conteúdo gástrico pela boca; esta última situação é frequente nos lactentes até aos três meses, não tendo geralmente repercussões importantes.
Fisiopatologia
O vómito resulta da resposta a diversos estímulos, coordenados pelo sistema nervoso central em sincronismo com os músculos abdominais e torácicos.
Durante o vómito há três fases: a primeira define-se como náusea, consistindo na sensação de vómito iminente, em geral associada a outros sinais e sintomas, nomeadamente palidez, sudação, sialorreia, taquicárdia e anorexia; a segunda consiste num movimento espasmódico respiratório contra a epiglote encerrada; e a terceira, (vómito propriamente dito) que consiste na expulsão retrógrada, súbita e com esforço, do conteúdo gástrico através da boca.
Embora seja nítida a existência destas três fases, cada uma delas pode surgir independentemente das outras. Nem sempre a sensação de náusea desencadeia o vómito; por outro lado a estimulação faríngea poderá desencadear o vómito sem ser precedida de náusea.
Durante o vómito o fundo gástrico relaxa-se e recebe o conteúdo intestinal sob a forma de um bolus após contracção do intestino delgado. A contracção do piloro e do antro gástrico mantém este conteúdo no interior do estômago e o esfíncter esofágico inferior relaxa-se, alargando o orifício de passagem. Concomitantemente as contracções sincronizadas dos músculos da parede abdominal, diafragma e intercostais aumentam a pressão intrabdominal e intratorácica com consequente expulsão do conteúdo gástrico contra a faringe e, depois, para o exterior, pela boca.
Manifestações clínicas e diagnóstico
A avaliação de uma criança que tem vómitos (Quadro 1) deve iniciar-se com a elaboração da anamnese, caracterizando os vómitos (alimentares, hemáticos, biliosos, com muco), a sua forma de apresentação (agudos, crónicos ou cíclicos), e a repercussão no estado geral (nutricional e na hidratação).
QUADRO 1 – Abordagem do doente com vómitos
É importante analisar a existência de outros sinais e sintomas (febre, tosse, dor abdominal, obstipação, diarreia) e a sua apresentação cronológica, considerando sempre as patologias específicas de cada idade e a existência de contexto epidemiológico. Na maioria das vezes estes dados permitem o diagnóstico. Os exames complementares são orientados de acordo com a suspeita clínica: exames laboratoriais (hemocultura, urinocultura, cultural do liquor) quando há suspeita de infecção; imagiológicos e/ou endoscópicos quando há suspeita de anomalia anatómica/gastrintestinal; e doseamentos específicos quando a suspeita é de doença metabólica ou endócrina.
Sendo o vómito um sintoma comum a muitas patologias, o diagnóstico diferencial varia com a idade do doente (Quadro 2). As anomalias congénitas, as doenças genéticas e metabólicas são mais frequentes no período neonatal; as causas pépticas, infecciosas e psicogénicas surgem com maior frequência na criança mais velha.
A estenose hipertrófica do piloro surge em cerca de 1-3/1.000 nascimentos e resulta de uma hipertrofia muscular das fibras circulares do piloro (oliva pilórica). É mais frequente no sexo masculino e manifesta-se nas primeiras semanas de vida.
No caso de estenose hipertrófica do piloro os vómitos surgem após um intervalo livre, em geral 2 a 4 semanas sob a forma de vómitos não biliosos, pós-prandiais, em jacto, sempre cada vez mais frequentes e abundantes. A criança fica agitada com fome, pode ter perda ponderal e ficar desidratada.
QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial dos vómitos de acordo com a idade de apresentação
Adaptado de Kliegman RM et al, 2019 | ||||
Causa | Recém-nascido | Lactente | Criança maior | Adolescente |
Infecciosa | Sépsis Meningite Infecção urinária | Gastrenterite Meningite Otite média aguda Infecção respiratória | Gastrenterite Otite média aguda Sinusite | Gastrenterite Sinusite Infecção respiratória |
Anatómica | Atrésias Duplicações Má-rotação/Volvo Doença de Hirschsprung Íleo meconial Estenose pilórica (<Cl–; <K+) | Estenose hipertrófica do piloro Hérnia inguinal Doença de Hirschsprung Invaginação intestinal | Invaginação intestinal Hérnia inguinal Bezoar | Hérnia inguinal Bezoar Síndroma de artéria mesentérica superior |
Gastrintestinal | Refluxo gastresofágico Erro alimentar Pseudobstrução intestinal | Refluxo gastresofágico Esofagite Alergia às proteínas do leite de vaca Gastrite Doença celíaca | Refluxo gastresofágico Gastrite Apendicite Pancreatite Hepatite | Refluxo gastresofágico Gastrite Apendicite Pancreatite Hepatite Discinésia biliar Acalásia |
Neurológica | Hidrocefalia Hematoma subdural | Hematoma subdural | Enxaqueca Tumor Síndroma de Reye | Enxaqueca Tumor |
Metabólica ou endócrina | Galactosémia Defeitos do ciclo da ureia Hipercalcémia | Intolorância à frutose Urémia Hiperplasia congénita da supra-renal (>K+) | Diabetes mellitus | Diabetes mellitus Gravidez Porfiria intermitente |
Outras | Medicamentos | Síndroma de vómitos ciclícos Ingestão de tóxicos Intoxicação alimentar | Psicogénicos Bulimia |
O abdómen fica distendido após as refeições podendo identificar-se pela inspecção do abdómen ondas peristálticas gástricas da esquerda para a direita. Se não existir distensão abdominal acentuada poderá palpar-se a oliva pilórica.
O diagnóstico ecográfico permite a identificação do espessamento e alongamento do canal pilórico; outros exames complementares podem orientar como a radiografia esofagogastroduodenal que demonstra o estômago dilatado com atraso do esvaziamento, e o canal pilórico estreito.
Uma referência a um quadro clínico designado por síndroma dos vómitos cíclicos (Quadro 3). Os vómitos surgem de forma recorrente por períodos variáveis podendo eventualmente conduzir a desidratação e alterações do equílibrio hidroelectrolítico e ácido-base. Podem ser acompanhados de dores abdominais e de febre. Em geral desaparecem ou atenuam-se após período de sono e repouso. Estão em geral associados a história familiar da enxaqueca. Mantendo-se a situação até à 2ª infância, as crianças mais velhas conseguem descrever associação de cefaleias a antecedentes de quadro recorrente de vómitos. De acordo com diversos estudos epidemiológicos, cerca de 50% dos doentes necessita de reidratação endovenosa. O diagnóstico diferencial deve fazer-se com situações de obstrução intestinal intermitente (volvo, má-rotação) e com certas doenças metabólicas como acidémias orgânicas, galactosémia e alterações do ciclo da ureia.
Complicações
As complicações mais frequentes dos vómitos, mantidos são a perda de electrólitos e fluidos podendo levar a alcalose hipoclorémica, ruptura da pequena curvatura da junção gastroesofágica (ruptura de Mallory-Weiss), aspiração de conteúdo gástrico para a via respiratória com consequentemente pneumonia, exposição da mucosa esofágica ao conteúdo ácido do estômago com risco de esofagite, etc.. As principais complicações metabólicas são discriminadas no Quadro 3.
QUADRO 3 – Síndroma de vómitos cíclicos: critérios de diagnóstico*
*Verificação de TODOS os critérios |
· Pelo menos, 5 episódios com qualquer intervalo de tempo ou mínimo de 3 durante período de 6 meses; · Episódios de náuseas e vómitos durante período entre 1 hora e 10 dias, pelo menos com uma semana de intervalo; · Vómitos 4 ou mais vezes/hora durante > 1 hora; · Período assintomático entre os episódios; · Exclusão de causas específicas; · Padrão estereotipado para cada caso; |
Tratamento
A manutenção do estado de hidratação é fundamental. Quando é identificada a etiologia dos vómitos a terapêutica é específica. A utilização de fármacos anti-eméticos está contra-indicada na maioria dos lactentes e crianças com vómitos secundários a gastrenterite aguda, anomalias estruturais do tracto gastrintestinal, emergências cirúrgicas e lesões expansivas intracraninas.
QUADRO 4 – Complicações metabólicas dos vómitos
Perda de Na, K, e HCl pelos vómitos |
Hiponatrémia, hipopotassémia e alcalose hipoclorémica |
Consequências da alcalose |
[Na+] → entrada para as células [HCO3–] → perda pela urina (pH 7-8) [K+ e Na+] → perda pela urina (hipercaliúria e hipernatriúria) [Cl– urinário diminuído] <> conservação pelo rim |
Os anti-eméticos estão indicados em situações seleccionadas: pós-operatório, quimioterapia, alguns casos de síndroma de vómitos cíclicos e alterações da motilidade gastrintestinal, etc..
Os mais utilizados são: 1) a Metoclopramida (Primperam®) (antagonista de dopamina) → 0,1-0,2 mg/kg iv ou PO (até 3 vezes/dia); 2) Domperidona [Motilium®] → 0,2-0,6 mg/kg PO (até 3 vezes/dia); 3) Dimen Hidrinato [Dramamina®] → 1 mg/kg antes da viagem nos casos de vómitos com movimento ou em casos de alteração vestibular; 4) Eritromicina (procinétrico agonista da motilina) → 2 – 4 mg/kg iv ou PO até 3 vezes/dia; 5) Propranolol (bloqueante beta-adrenérgico → 0,5 mg – 2 mg/kg até 2-3 vezes/dia para os vómitos ácidos); 6) Cipro-heptadina [Periactin®] → 0,25 – 0,5 mg/kg/dia (para os vómitos cíclicos), etc.; 7) Ondansetrona (em situações especiais em maiores de 4 anos) PO → 4 mg 12-12 h até 5 dias, após 1ª dose IV de 5 mg/m2.
BIBLIOGRAFIA
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