Definição

É definida como a elevação persistente da pressão venosa portal > 10-12 mmHg (normal entre 5-10 mmHg). Efectivamente, as complicações de hipertensão portal não ocorrem até que o gradiente de pressão portal (gradiente entre a veia porta e a veia cava inferior) exceda os 12 mmHg. O aumento da resistência ao débito do sangue portal – a anomalia hemodinâmica primária – origina esplenomegália e desenvolvimento de vasos colaterais porta-sistémicos em vários locais (varizes no esófago distal, gástricas, anorrectais, umbilicais e da parede abdominal).

Etiopatogénese

O sistema portal começa e acaba em capilares, tendo origem no mesentério, intestino e baço. O retorno venoso ao baço dá-se pela veia esplénica, onde desembocam as veias gástricas e, posteriormente, se unem as veias mesentéricas inferior, superior e coronárias, formando a veia porta. No hilo hepático, a veia porta divide-se em dois ramos e depois ramifica-se de modo a penetrar nos sinusóides hepáticos. O retorno venoso faz-se para as veias hepáticas que confluem, formando três veias supra-hepáticas que desembocam na veia cava inferior e na aurícula direita. O sistema portal é de baixa pressão, sendo responsável por 75% do fluxo hepático, fornecendo oxigénio, nutrientes e hormonas.

A hipertensão portal inicia-se a partir do aumento da resistência ao fluxo sanguíneo hepático. Há um aumento da resistência vascular sinusoidal resultante de factores mecânicos (deposição de fibrose) e dinâmicos (disfunção endotelial, produção ineficaz de óxido nítrico, aumento dos vasoconstritores e aumento da contractilidade das células estreladas). Esta interacção constante impede que a formação de vasos colaterais seja suficiente para aliviar a pressão portal.

As causas de hipertensão portal podem ser classificadas de acordo com a localização da obstrução ao fluxo sanguíneo portal em:

  • Extra-hepáticas
  • Intra-hepáticas. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Causas de hipertensão portal

Hipertensão portal extra-hepática
    • Trombose, ou transformação cavernosa da veia porta
    • Agenésia, atresia ou estenose da veia porta
    • Trombose da veia esplénica
    • Fluxo venoso portal aumentado
Hipertensão portal intra-hepática
    • Esquistossomíase
    • Fibrose hepática congénita
    • Neoplasias
    • Quistos hepáticos
    • Cirrose/doença hepática crónica
    • Doença venoclusiva / síndroma de obstrução sinusoidal
    • Atrésia das vias biliares extra-hepáticas
    • Quisto do colédoco
    • Hipoplasia ductular intra-hepática
    • Doença de Wilson
    • Défice de alfa-1 antitripsina
    • Fibrose quística
    • Glicogenose tipo IV
    • Colangite esclerosante
    • Síndroma de Budd-Chiari
    • Obstrução pós-sinusoidal
    • Metrotexato
    • Nutrição parentérica
    • Idiopática

A causa mais frequente de hipertensão portal é a intra-hepática, nomeadamente a cirrose, sendo a cirrose pós-necrótica e a cirrose biliar as mais comuns em idade pediátrica.

Relativamente às causas extra-hepáticas, que abrangem as pré e as pós-hepáticas, a trombose da veia porta é a mais prevalente, podendo ser secundária a cateterismo da veia umbilical (30% dos casos) mas também a onfalite, anomalias congénitas, trauma local, peritonite, pancreatite ou a sépsis.

A doença venoclusiva é relativamente rara e ocorre após transplante medular ou em doentes com imunodeficiência. Quando existe uma obstrução extra-hepática da veia porta, dá-se uma vasodilatação arterial compensatória, ocorrendo em poucos dias, a formação de vasos colaterais que ultrapassam a obstrução. Após um período de 4 a 5 semanas forma-se um cavernoma (característica ecográfica deste distúrbio).

A síndroma de Budd-Chiari (trombos desenvolvidos na veia hepática e na veia cava inferior) surge geralmente em adultos jovens e ocorre quando os trombos desenvolvidos na veia hepática entram na veia cava inferior. Está relacionada com síndromas mieloproliferativas ou estados tromboembólicos, nomeadamente na deficiência de antitrombina III, proteína C ou S ou Factor V Leiden, síndroma de anticorpos antifosfolípidos ou mutações no gene da protrombina.

Muitas das complicações da hipertensão portal podem ser explicadas pelo desenvolvimento de circulação colateral relevante em áreas em que o epitélio da absorção se junta ao epitélio estratificado (sobretudo esófago e região anorrectal).

A nível do estômago verifica-se ectasia vascular que origina o quadro designado por gastropatia congestiva.

Manifestações clínicas

Inicialmente, a hipertensão portal é assintomática.

Numa fase mais avançada surgem quatro manifestações clínicas, consideradas principais:

  • Hemorragia gastrintestinal
  • Esplenomegália
  • Ascite
  • Encefalopatia porta-cava.

A hemorragia gastrintestinal, sob a forma de hematemeses e melenas, é a forma de apresentação mais comum (50-90% dos casos). Na maioria dos episódios surge por ruptura de varizes esofágicas, mas o sangramento pode ter origem noutros locais do tubo digestivo; tal implica a necessidade emergente de identificar o local de lesão. As hematemeses são abundantes ou moderadas, surgindo geralmente após um episódio de dor abdominal associada a palidez cutânea. As melenas surgem simultaneamente ou depois. Por vezes constituem a manifestação isolada da hemorragia intestinal.

O risco de hemorragia por ruptura de varizes esofágicas ou gástricas é de cerca de 50%, sendo que é significativamente superior (80%) quando existe obstrução extra-hepática da veia porta.

A esplenomegalia, o sinal físico mais frequente (~90%) e a forma de apresentação em 25% dos casos, é característica da hipertensão portal pré-hepática. O baço tem consistência firme ou dura, dependendo da duração da hipertensão portal. O hiperesplenismo está associado a anemia, trombocitopénia e ou leucopénia.

A ascite, associada em geral à hipertensão de causa sinusoidal ou pós-sinusoidal, é rara na forma pré-sinusoidal.

A encefalopatia porta-cava é rara na idade pediátrica. Os sinais e sintomas são mal definidos e incaracterísticos: perda de capacidades intelectuais; alterações de consciência e sinais neuromusculares como ataxia e tremor. Esta situação ocorre nos doentes com doença hepática grave com derivações porta-sistémicas.

Outra manifestação frequente é a vascularização abdominal proeminente devida ao desenvolvimento de colaterais; denomina-se “cabeça de medusa” quando estes vasos irradiam do umbigo.

Diagnóstico

Na maioria dos casos o diagnóstico é efectuado através da anamnese e exame físico; podem, no entanto, ser realizados vários exames complementares. Sendo a esplenomegália o achado mais comum verificado no exame objectivo, tal facto não dispensa a pesquisa sistemática doutros sinais, nomeadamente hemorragia gastrintestinal, ascite, vascularização colateral, alterações neurológicas e “aranhas vasculares”.

Pode existir anemia, leucopénia ou trombocitopénia, bem como alterações da função hepática e da coagulação.

A ecografia abdominal permite confirmar e caracterizar a esplenomegália, a existência de colaterais vasculares e o seu diâmetro.

A utilização de ecografia doppler dá informação quanto a velocidade e direcção do fluxo sanguíneo na veia porta, veias hepáticas e veia cava.

A endoscopia digestiva é utilizada como meio de diagnóstico e terapêutica de varizes gastresofágicas e anorrectais. É o exame complementar “padrão de ouro” para avaliação de lesões gastrointestinais resultantes de hipertensão portal. Não está bem estabelecida a altura ideal da sua realização em idade pediátrica.

A angiorressonância tem sido utilizada como alternativa não invasiva à angiografia convencional. A angiografia é importante antes da realização da derivação cirúrgica porta-sistémica e de transplante hepático de modo a averiguar sobre a permeabilidade da veia mesentérica superior. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Diagnóstico de hipertensão portal

Exame físico
    • Esplenomegália
    • Vasos na parede abdominal proeminentes
    • Ascite
    • Hemorróidas
    • Sinais de doença hepática crónica
Exames laboratoriais
    • Hemograma
    • Bilirrubina total e fraccionada
    • Fosfatase alcalina
    • Gama-glutamiltranspeptidase
    • Aminotransferases
    • Desidrogenase láctica
    • Albumina
    • Tempo de protombina
    • Ionograma sérico
Outros exames
    • Ecografia e eco doppler abdominal
    • Endoscopia gastrointestinal
    • Angiografia

Complicações

As quatro complicações major, classicamente descritas e indissociáveis das manifestações clínicas, são:

  • Varizes com hemorragia
  • Ascite
  • Encefalopatia
  • Esplenomegália

Tratamento

A actuação terapêutica na hipertensão portal, sintetizada no Quadro 3 (o qual relaciona os procedimentos com as complicações descritas), pode ser dividida em: – tratamento de emergência da hemorragia aguda com risco vital; e em – prevenção de hemorragia inicial ou subsequente.

Nos casos de hemorragia aguda por ruptura de varizes está indicada fluidoterapia (inicialmente cristalóides IV, seguindo-se transfusão de concentrado eritrocitário até valores de hemoglobina de 9g/dL). Igualmente, deve ser corrigida a coagulopatia com administração de vitamina K, transfusão de concentrado de plaquetas e plasma fresco. Em doentes com hemorragia significativa, deve ser colocada uma sonda nasogástrica (ou orogástrica, menos frequentemente) e fazer uma lavagem com água ou soro fisiológico (à temperatura ambiente) para documentar hemorragia activa e remover detritos e coágulos, o que facilitará a visualização durante a endoscopia, diminuindo também o risco de aspiração.

A terapêutica farmacológica inclui supressores da produção de ácido e somastatina (ou análogos).

Em doentes hemodinamicamente instáveis, está recomendado o uso de um inibidor da bomba de protões (IBP) endovenoso (omeprazol 0,5 -2mg/kg) ou de um antagonista do receptor 2 da histamina (ranitidina 2-4mg/kg). Em crianças estáveis, a administração de um inibidor da bomba de protões pode ser feita por via oral (omeprazol ou esomeprazol). O uso de IBP diminui a recidiva, o tempo de internamento e a necessidade de transfusões.

O octreótido (análogo da somatostatina) é eficaz na redução e controlo da hemorragia em casos seleccionados, como terapêutica adjuvante antes da endoscopia, ou quando esta está contraindicada. Actua diminuindo o fluxo venoso portal e a pressão nas varizes, reduzindo a recidiva da hemorragia. É comum a administração de um bolus inicial de 1-2mcg/kg (máximo 100mcg), seguido de uma infusão ev contínua na dose de 1-2mcg/kg/hora.

A duração desta terapêutica não está bem estabelecida, sendo necessário reajustamento da dose de acordo com a resposta. Cessando a hemorragia, as doses são gradualmente reduzidas num período de 24 horas.

Como alternativa, pode utilizar-se vasopressina (análogo do octreótido), fármaco que aumenta o tono vascular esplâncnico e, consequentemente, o débito sanguíneo portal: bolus de 0,33U/Kg em 20 minutos, seguido por administração IV contínua (0,2U/1,73m2/minuto).

A endoscopia digestiva deverá ser realizada assim que o doente estiver estabilizado, idealmente num período de 24-48 horas, de modo a identificar a origem da hemorragia e corrigi-la. A laqueação elástica de varizes é actualmente preferível à escleroterapia; esta última técnica, utilizada de preferência em crianças mais pequenas (peso<10kg), está contudo associada a maior número de complicações que a laqueação elástica (pneumonia, estenose esofágica, dismotilidade, úlceras, mediastinite e perfuração). Excepcionalmente, é necessário proceder à colocação de um tubo com balão para tamponamento (tubo de Sengstaken-Blakemore) para realizar compressão gástrica e esofágica.

Deve ser assegurado o suprimento proteico, limitar a ingestão de sódio e iniciar espirolactona. Na descompensação aguda está indicada a perfusão de albumina (1-2g/kg) juntamente com furosemida (1-2mg/kg). Casos graves associados a hiponatrémia podem beneficiar de terlipressina (20 mcg/kg a cada 4-6h). Crianças que desenvolvam síndroma hepatorrenal, com oligúria/anúria necessitam de diálise ou hemofiltração.

Na ascite refractária sintomática deve ser realizada como medida urgente, paracentese com infusão de albumina. Contudo, verificando-se ascite, a única terapêutica realmente eficaz será o transplante hepático.

A prevenção de complicações da hipertensão portal faz-se com a realização anual de endoscopia digestiva, aplicação de medidas gerais para impedir o aumento da pressão portal (evitar exercício intenso, tratamento sintomático da tosse) e factores lesivos da mucosa (anti-inflamatórios não esteróides). Deve ainda ser iniciada a ranitidina e um beta-bloqueante como um propranolol.

A imunização contra microrganismos capsulados é recomendada em crianças com asplenia funcional resultante da hipertensão portal.

Nos doentes com descompensação, hemorragia, ou ascite refractária, a realização de técnica de derivação porta-sistémica intra-hepática pode ser importante como ponte de ligação para o transplante hepático. Tal procedimento deve ser realizado apenas em crianças com mais de 2 anos, e sempre tendo em atenção que em 60% dos casos se verifica oclusão num período de 6 a 12 meses, o que aumenta para o dobro probabilidade de surgir encefalopatia.

O transplante está indicado em doentes com ascite refractária ao tratamento em nos casos de cirrose progressiva ou com episódios frequentes de descompensação refractária às medidas descritas.

QUADRO 3 – Complicações de hipertensão portal

Complicação

Actuação prática

Hemorragia de varizes esofágicas

      • Fluidoterapia, correcção de coagulopatia.
      • Sonda nasogátrica.
      • Inibidor bomba de protões/Antagonista do receptor 2 da histamina
      • Octreótido ou Vasopressina
      • Endoscopia digestiva alta

Ascite

      • Aumentar o suprimento de Albumina (1-2 g/kg)
      • Limitar ingesta de Na(1-2 mEq/kg/dia)
      • Diuréticos: furosemida (1-2 mg/kg), espironolactona (2-6 mg/kg/dia)
      • Hemodiálise/Hemofiltração
      • Paracentese
      • Derivação porta-sistémica
      • Transplante hepático

Encefalopatia hepática

      • Restrição proteica
      • Lactulose/Neomicina
      • Transplante hepático

Hiperesplenismo

      • Derivação porta-sistémica
      • Transplante hepático

Prognóstico

A hipertensão portal causada por trombose da veia porta ou da veia esplénica cursa com mortalidade mais baixa e tratamento conservador. Em caso de hemorragia recorrente, a medida mais correcta será a técnica de derivação, o uso de beta-bloqueantes e a escleroterapia.

O prognóstico é mais reservado nas situações provocadas por doença intra-hepática, designadamente cirrose. Na maioria dos doentes com atrésia das vias biliares, desenvolve-se ascite e hemorragia antes dos dois anos de idade.

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