Definições e importância do problema

A gastrenterite aguda (GEA) é um quadro clínico resultante da inflamação aguda das mucosas do estômago e do intestino, o qual se traduz por vómito e diarreia.

A diarreia é um aumento da excreção fecal de água e electrólitos reflectindo, dum modo geral, alteração do transporte hidro-electrolítico no intestino delgado e cólon, de causa infecciosa (maioria das vezes), ou em relação com perturbações da motilidade intestinal, menos frequentemente. Trata-se duma patologia muito frequente em idade pediátrica, estimando-se que nos países industrializados ocorram em média 2 a 3 episódios por ano em cada criança com idade inferior a 5 anos. Nos países em vias de desenvolvimento a GEA é responsável anualmente por cerca de 5 milhões de óbitos em crianças com menos de 5 anos.

Fisiopatologia

O transporte de água é um fenómeno passivo e secundário a gradientes osmóticos através da parede intestinal; os referidos gradientes osmóticos podem ser gerados pelo transporte activo de electrólitos, ou pela presença de solutos sem electrólitos, como açúcares e aminoácidos.

Em circunstâncias de normalidade existe uma secreção activa que contribui para manter a fluidez do conteúdo intestinal facilitando, designadamente, a eliminação de subtâncias potencialmente citotóxicas.

Esta secreção ocorre simultaneamente com uma absorção hidro-electrolítica sendo que o balanço entre absorção e secreção depende de mecanismos hormonais “informando” o intestino sobre a necessidade do organismo em sal e água (aldosterona, VIP, HAD, etc.).

Normalmente predomina o processo de absorção; em situações de doença diarreica predomina a secreção.

Neste processo o electrólito mais importante é o sódio (Na+) o qual entra na célula intestinal a partir do lume intestinal como resultado dum gradiente condicionado, por sua vez, pela saída de Na+ da célula para o meio interno (plasma), processo comparticipado por uma bomba de sódio (Na-K-ATP-ase) que se encontra na membrana baso-lateral.

A saída activa de Na+ condiciona a electronegatividade necessária para a entrada de Na+ a partir do lume intestinal. Acompanhando a entrada de sódio, entram na célula a glucose, aminoácidos, di e tripéptidos, vitaminas hidrossolúveis e sais biliares utilizando, para tal, determinados transportadores que existem na membrana das células de “bordadura em escova”.

O Cl- e o K+ também são transportados, entrando para o interior da célula.

No processo de secreção tomam parte o hidrogénio, o bicarbonato e, também, o cloro.

Nos processos de transporte iónico (entrada na célula) participam mediadores intracelulares de regulação: por ex. AMPc, cálcio, etc..

Na prática, são descritos três grandes mecanismos fisiopatológicos da doença diarreica: osmótico, secretório, e alteração da motilidade intestinal, podendo haver associações dos mesmos em função do factor etiológico.

Na diarreia osmótica a lesão da mucosa intestinal provoca uma diminuição da capacidade digestiva de absorção, fazendo com que os nutrientes não absorvidos no intestino delgado e atingindo intactos o cólon, exerçam uma força osmótica induzindo a saída de água e, consequentemente, a diarreia. Esta é tanto mais grave quanto maior a concentração destes solutos. Como na maior parte dos casos o nutriente em questão é um hidrato de carbono, este, ao atingir o cólon, é digerido por microbiota normal produzindo partículas menores exercendo assim uma maior força osmótica, agravando a diarreia. A diarreia, em geral, não é abundante e melhora quando se suspende a ingestão do nutriente considerado agressor.

Exemplos clássicos de diarrreia osmótica são os resultantes de deficiência (congénita ou adquirida) de dissacaridases (lactase e sucrase – isomaltase), de má-absorção de glucose-galactose, da ingestão excessiva de líquidos carbonatados, e de ingestão excessiva de solutos não absorvíveis (sorbitol, lactulose, hidróxido de magnésio).

diarreia secretória é, em geral, provocada por bactéria que pode lesar a mucosa por diversas formas (adesão/invasão do epitélio, produção de enterotoxinas, citocinas), causando um aumento da secreção das células intestinais (por activação do AMP-C e GMP-C).

diarreia também pode ser motivada por alterações da motilidade do tracto gastrintestinal, as quais conduzem secundariamente a alteração no transporte hidro-electrolítico no intestino delgado e no cólon.

Embora sejam descritos separadamente estes diferentes mecanismos, na maioria dos casos eles coexistem; o rotavírus constitui, com efeito, um bom exemplo pois provoca lesão da mucosa, com alteração da absorção e formação de diarreia osmótica; mas, simultaneamente determinada proteína que faz da composição do rotavírus, que actua como enterotoxina, induz aumento de secreção das células intestinais.

Nota: A diarreia por alteração da motilidade sem repercussão no transporte hidro-electrolítico enquadra-se, de facto, em situações agudas, mas recorrrentes: frequentes entre os 6 meses e 3 anos, cessando espontaneamente pelos 2-4 anos (episódios de diarrreia aguda com períodos de normalidade) integrando a entidade designada por “diarreia crónica não específica”, abordada no capítulo 111.

Factores etiológicos

Nos países industrializados a causa mais frequente de GEA é a infecção por rotavírus explicando cerca de 50% dos casos em crianças com menos de 2 anos, sobretudo no Inverno.

Outros vírus como adenovírus, coronavírus, calicivírus e astrovírus têm sido igualmente implicados, embora menos frequentemente.

Os agentes bacterianos são menos frequentes nos países industrializados. Campylobacter jejunii, a causa mais frequente das infecções bacterianas nos países industrializados, está muitas vezes associado a dores abdominais e a fezes com sangue. Yersinia origina quadro semelhante. Shigella e algumas espécies de Salmonella produzem síndroma de tipo disentérico caracterizada por diarreia profusa com sangue, pus, dores abdominais e tenesmo. Pode igualmente existir febre alta e convulsões.

Vibrião colérico e E. coli com produção de enterotoxinas podem originar diarreia abundante e desidratação grave surgidas de modo agudo.

A giardíase provoca, na sua forma característica, diarreia intermitente e má absorção de gorduras.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica da GEA depende de vários factores, nomeadamente a idade, o estado imunitário e nutricional do hospedeiro, assim como as características do agente infeccioso (Quadro 1). Devem ser quantificados os vómitos e a diarreia, assim como as características e duração dos mesmos. No exame objectivo é necessário pesquisar sinais de desidratação: mucosas secas, diminuição do turgor cutâneo (prega cutânea), depressão da fontanela anterior, olhos encovados, ausência de lágrimas, letargia, taquicárdia, pulso fraco e hipotensão.

QUADRO 1 – GEA: Germes microbianos e clínica

GermeTransmissãoIncubaçãoDuraçãoClínicaPredisposiçãoÉpocaIdadeComplicações
RotavírusFecal-oral
Respiratória
2-4d3-8dVómitos, febre baixa, diarreia aquosaHospitalização, infantárioInverno<2ADesidratação; intolerância aos HC; excreção crónica
AdenovírusFecal-oral3-10d5-12dDiarreia  <4AInvaginação intestinal
Norwalk

Água
Crustáceos

1-2d2dVómitos, diarreia    
AstrovírusFecal-oral1-4d5-6dVómitos, febre, dor abdominalHospitalização, infantárioInverno<4A 
Calicivírus
(E. coli)
Fecal-oral; água
Respiratória possível
12-72h4-8dVómitos, dor, febre baixaInfantário <4A 
EHEC
(E. coli)
Carne mal cozida; água1-8d3-6dDor, febre (30%), diarreia sanguinolenta   SHU; colite hemorrágica; convulsões
ETEC
(E. coli)
Água10h-6d1-5dVómitos, dor, febre baixa, diarreia aquosaViagens   
EIEC
(E. coli)
Fecal-oral; água; alimentos10h-6d Febre, diarreia com leucócitos    
EPEC
(E. coli)
IgualIgual Diarreia aquosa gravePaíses em desenvolvimento <2ADesidratação
EAEC
(E. coli)
IgualIgual>14d Idem   
SalmonellaOvos, carne; lacticínios; água6-48h2-7dVómitos, febre, dor, diarreia sanguinolentaAcloridria; má nutrição; anemia de células falciformes <4ABacteriémia; meningite; osteomielite
ShigellaFecal-oral; alimentos1-7d48-72hDor, febre alta, diarreia com muco e sangueInfantário; viagens; piscinasVerão
Outono
<5ABacteriémia; convulsão; SHU; perfuração; síndroma de Reiter
YersiniaFecal-oral; carne porco; água; leite4-6d1-46dVómitos, febre, dor, diarreia com sangue, muco e leucócitos Inverno<1APseudo-apendicite; perfuração; invaginação; exantema; bacteriémia
CampylobacterAves; água; leite1-7d5-7dFebre, dor, diarreia com sangueInfantárioVerão Bacteriémia; meningite; colecistite; pancreatite
Giardia lambliaFecal-oral; água; alimentos1-4sem>1semDor, flatulênciaAgamaglobulinémia; acloridria; piscinas; infantário; pancreatite  Má absorção de gorduras; diarreia crónica ou intermitente
Clostridium
dificille
 variávelvariávelDiarreia com sangue e muco, febre (raro)Hospitalização; antibioticoterapia;  Diarreia crónica; portador crónico
CriptosporidiumFecal-oral; piscinas; água2-14d1-20dVómitos, dor, diarreia aquosaInfantário; piscinas; imunossupressãoVerão
Outono
 

Diarreia crónica no imunossuprimido

Vibrio choleraeMarisco; água0-5d5-7dDiarreia profusaViagensVerão Desidratação rápida
S. aureusAlimentos30m-8h1-2dVómitos, dor   Desidratação

Se a criança apresentar avidez pela água apesar de desidratação aparentemente ligeira, há que considerar a hipótese de se tratar de desidratação hipernatrémica. Esta ocorre quando a diarreia é profusa e a correcção tiver sido feita à custa de soluções hipertónicas. Frequentemente existe dor abdominal do tipo cólica. Quando as fezes são ácidas, pela presença de hidratos de carbono, ou por dejecções muito frequentes, pode surgir eritema perianal. O estado nutricional deverá ser avaliado estando o respectivo compromisso em relação com má absorção de proteínas, gordura ou hidratos de carbono.

Diagnóstico diferencial

No que respeita à destrinça entre GEA de causa vírica e de causa bacteriana apresentam-se as seguintes características como orientação; 1) na GEA de causa vírica: vómitos mais frequentes; sangue, muco e leucócitos nas fezes ausentes; febre mais raramente; 2) na GEA de causa bacteriana: vómitos menos frequentes; sangue, muco e leucócitos nas fezes; febre mais frequente.

Relativamente à destrinça entre diarreia secretória e diarreira osmótica, o Quadro 2 é elucidativo.

QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial entre diarreia osmótica e secretória

Diarreia secretória Diarreia osmótica

*A sucrose não é agente redutor. Antes de realizar a pesquisa com o Clinitest® deve juntar-se à amostra de fezes, 5 gotas de HCl 0,1n.

Substâncias redutoras* (-) (+)
Na+ fecal >70 mEq/L <70 mEq/L
pH fecal >6 <5
Volume fecal >200 ml/dia <200 ml/dia
Resposta ao jejum não melhoria melhoria

Tratamento

A identificação do agente etiológico na maioria das vezes não é necessária porque a doença é autolimitada e o tratamento é idêntico independentemente da causa.

As medidas de suporte consistem em:

  1. Usar soro de hidratação oral para compensar a desidratação estimada (em 3 a 4 horas);
  2. Usar solução hipo-osmolar (Na à 60 mEq/L) ou de osmolaridade reduzida (Na à 75 mEq/L) com glucose (20 a 30 g/L); a glucose promove a reabsorção de sódio e água no intestino delgado. Bebidas com excesso de hidratos de carbono (cuja concentração exceda a de sódio em 2/1) agravam a diarreia pelo efeito osmótico que terão no intestino.
    O chá também não é ideal, pois tem uma baixa concentração de sódio e potássio.
    Sempre que possível deve tentar-se a hidratação oral com um soluto de reidratação oral (SRO), mesmo na criança que não aparente sinais de desidratação. Deve oferecer-se pequenas doses de soluto (5 ml) em cada 5 minutos; e se houver tolerância, pode aumentar-se para 15-30 ml em cada 5-10 minutos. Posteriormente, quando a criança se tornar mais cooperante, deverá ingerir doses crescentes durante cerca de 4 horas;
  3. Não interromper o aleitamento materno oferecendo suplementos com soluto SRO enquanto existir diarreia. O uso de fórmulas especiais ou diluídas não se justifica;
  4. Retomar o regime alimentar habitual após as 4 horas de reidratação.
    Nas crianças com diarreia moderada a grave deve reduzir-se ou eliminar-se a lactose da dieta para minorar os efeitos da deficiência transitória de dissacaridases por lesão das células intestinais, o que por vezes ocorre durante 2 a 4 semanas após a diarreia. A intolerância à lactose pode ser confirmada pela presença de substâncias redutoras nas fezes;
  5. Prevenir nova desidratação com suplementos de soluto enquanto existir diarreia (oferecer 10 ml/kg por cada dejecção) e vómitos (2 ml/kg por episódio);
  6. Evitar medicação desnecessária. Os antimuscarínicos (ex: loperamida) alteram a motilidade intestinal, diminuindo a diarreia e a distensão abdominal; no entanto, na infecção por bactérias invasivas ou produtoras de citotoxinas é favorecido o contacto da bactéria com a mucosa intestinal com agravamento do quadro clínico. Por consequência, não estão recomendados em crianças. Nalgumas instituições, perante quadros de vómitos acentuados, tem sido utilizado o antiemético ondansetrona em dose única com base em estudos que relatam, com esta estratégia, menor necessidade de fluidoterapia endovenosa.

Os antibióticos devem ser usados em casos específicos para diminuir a duração da doença e a excreção do microrganismo, sendo necessária uma coprocultura com antibiograma antes de inciar a terapêutica.

Nas situações com isolamento de Salmonella, a antibioticoterapia pode prolongar o tempo de excreção fecal, gerar doença sistémica e ainda induzir o aparecimento de estirpes resistentes. Está indicada apenas na febre tifóide ou na gastrenterite acompanhada de sinais de doença sistémica, ou no doente em risco (idade inferior a três meses, situações com imunodeficiência, doença crónica, hemoglobinopatia). Nestes casos estão indicados os seguintes antimicrobianos: ampicilina, amoxicilina, TMP-SMX (trimetoprim-sulfametoxazol), cefotaxima ou ceftriaxona.

Situações com desidratação correspondendo a perda de peso superior a 5%, incapacidade para se proceder a reidratação no domicílio, não tolerância a reidratação oral, e agravamento da situação clínica (acentuação dos vómitos e da diarreia), têm indicação para internamento hospitalar, em geral de curta duração na ausência de complicações.

A reidratação e a manutenção da hidratação até que haja resolução da diarreia, assim como o suprimento nutricional adequado, são as pedras fundamentais do tratamento.

A reintrodução da alimentação deve fazer-se atempada e imediatamente uma vez conseguida a hidratação. Crianças alimentadas exclusivamente com leite materno devem manter o aleitamento. As que já tenham iniciado alimentos sólidos devem manter o seu regime habitual. Deve começar-se com alimentos de absorção rápida (arroz, trigo) e banana (suplemento de potássio). A reintrodução da alimentação deve ser fraccionada e em curtos intervalos para garantir melhor absorção.

Os alimentos com elevado teor de açúcar não são aconselhados porque podem causar diarreia osmótica.

Nos países em desenvolvimento, com elevada prevalência de síndromas de má-nutrição, está indicada a suplementação com zinco (20 mg/dia PO por período de 10-14 dias) em crianças com mais de 6 meses com diarreia; o período desta suplementação poderá eventualmente ser prolongado em função do contexto clínico.

Prevenção

Certas medidas gerais são importantes na prevenção da transmissão de infecções em infantários, escolas ou hospitais, nomeadamente, a avaliação periódica do estado de saúde e de imunização das crianças e dos prestadores de cuidados. São fundamentais os seguintes procedimentos: regras de limpeza e desinfecção de instalações sanitárias, lavagem das mãos frequentemente, regras de limpeza das cozinhas e cuidados na confecção dos alimentos, formação em serviço e vigilância do desempenho dos trabalhadores destes locais, lavagem e desinfecção diárias de todos os brinquedos, e comunicação dos surtos de infecção às autoridades de saúde.

A exclusão ou isolamento de crianças nestes locais, na maioria dos casos não é necessária uma vez que a transmissão já ocorreu antes do início dos sintomas. Existem, no entanto, alguns casos em que o isolamento é necessário, o que é determinado pela autoridade de saúde: diarreia com muco ou sangue, infecção por Shigella, E. coli produtora de toxina semelhante à Shigella (incluindo o tipo O157:H7), enquanto não se verificarem duas coproculturas negativas para cada caso.

Quanto a medidas gerais em relação à alimentação: evitar carne mal cozinhada, de leite não pasteurizado, de água não tratada; as pessoas que manuseiam carne crua deverão lavar bem as mãos antes de contactar com uma criança.

Em relação à criança viajante para áreas endémicas: beber água engarrafada, evitar gelo, saladas, alimentos mal cozinhados e fruta com casca. Os lactobacillus (probióticos) produzem ácidos gordos de cadeia curta e diminuem o pH intestinal, o que inibe o crescimento de bactérias das espécies Shigella e Salmonella; por isso têm utilidade no tratamento e prevenção da doença intestinal.

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