Definições e importância do problema
No capítulo sobre pneumonia adquirida na comunidade foi definido o conceito de pneumonia aguda: início agudo de sintomas (tosse, taquipneia, dispneia) e sinais (diminuição do murmúrio, fervores, macicez, aumento das vibrações vocais), acompanhados por hipotransparência na radiografia do tórax.
Num primeiro episódio de pneumonia, se a criança evidenciar bom estado geral, por vezes não é feita radiografia do tórax. Contudo, se a situação não evoluir para a normalidade, ou se os episódios se repetirem, a radiografia do tórax torna-se fundamental.
Define-se pneumonia recorrente como 2 episódios de pneumonia em 1 ano ou 3 episódios em qualquer período de tempo. Neste caso há uma resolução clínica e radiológica entre os episódios de infecção.
Geralmente os sintomas melhoram em alguns dias, mas o tempo de resolução radiológica duma pneumonia é muito variável. Na maior parte dos casos há desaparecimento dos sintomas e melhoria ou cura das alterações radiológicas em 2-4 semanas. Mas uma pneumonia pneumocócica não complicada pode demorar 4-8 semanas a curar, enquanto uma pneumonia por adenovírus pode levar 6 meses ou mais. Por outro lado, com grande frequência desconhece-se a etiologia, o que dificulta o problema.
Fala-se de pneumonia persistente quando a clínica e radiologia persistem para além de 1 mês. Muitas vezes não é possível distinguir claramente entre recorrência e persistência por não se dispor de radiografias comprovando a resolução dos episódios.
As pneumonias recorrentes constituem um problema comum. A maioria das crianças tem 5-10 infecções respiratórias por ano, com uma frequência maior depois dos 6 meses e predominando no segundo ano de vida. Geralmente estas infecções afectam o aparelho respiratório superior, e só em 10-30% dos casos é envolvido o aparelho respiratório inferior.
Factores de risco
Vários factores influenciam a eclosão de infecções respiratórias (Quadro 1).
QUADRO 1 – Factores de risco de pneumonia recorrente
1 – Idade 2 – Sexo masculino 3 – Prematuridade 4 – Exposição aos agentes infecciosos 5 – Tabagismo/Poluição do ar ambiente 6 – Factores socioeconómicos |
A idade é um factor importante. É habitual a diminuição progressiva da frequência das infecções respiratórias com o incremento dos anos, reflectindo o desenvolvimento da imunidade. Por razões desconhecidas as infecções das vias respiratórias inferiores são mais frequentes nos rapazes. Os lactentes nascidos pré-termo, sobretudo aqueles com doença pulmonar crónica, têm maior número de internamentos por pneumonia e mortalidade mais elevada que os nascidos de termo. A exposição aos agentes infecciosos nas creches e infantários, em amas com várias crianças ou famílias numerosas, aumenta a frequência de infecções respiratórias. O tabagismo, sobretudo materno, seja pré ou pós-natal, a exposição a lareiras e a poluição em geral, aumentam o risco de infecções respiratórias particularmente pneumonia. As condições de vida e outros factores socioeconómicos também influenciam a frequência das infecções respiratórias.
Avaliação clínica
A avaliação começa pela anamnese e exame objectivo. É importante inquirir sobre os seguintes tópicos: antecedentes familiares nomeadamente doenças graves, mortes infantis, alergias; se a gravidez foi vigiada, se há toxicodependência ou se a mãe teve múltiplos parceiros aumentando o risco de infecção por VIH e outras infecções congénitas; se a criança nasceu pré-termo e como nasceu, se teve necessidade de ventilação e oxigénio, se teve infecções nos primeiros tempos de vida ou se tem anomalias congénitas; o ambiente em que vive, particularmente se contacta com fumo de tabaco ou outros poluentes, se há animais domésticos, plantas ou aves; com quantos irmãos convive, se está numa creche durante o dia ou se fica numa ama com outras crianças.
Relativamente às infecções respiratórias: valorizar cada episódio de infecção; quando ocorreu, qual a localização da pneumonia e sua duração, se foi grave exigindo internamento ou se teve complicações; a frequência dos episódios e se os sintomas respiratórios persistem no intervalo entre infecções; como foi diagnosticada a pneumonia, se houve isolamento do agente etiológico; rever os exames radiológicos; que tratamentos fez, qual a sua duração e que resposta clínica obteve; valorizar a existência de outras infecções nomeadamente gastrintestinais, da pele ou do aparelho respiratório superior (otite, sinusite).
No exame objectivo há que avaliar a repercussão das infecções na evolução ponderal: se a criança tem aspecto doente ou se tem dismorfismo; notar a presença de rinorreia serosa, prega nasal transversal ou “olheiras” indiciando atopia, ou se tem obstrução respiratória superior com respiração ruidosa bucal; na boca verificar a presença de gengivite, ulcerações, perda de dentes ou doença periodontal que são próprias de imunodeficiência; se tem deformação torácica ou hipocratismo digital sugerindo doença pulmonar crónica; valorizar alterações na pele: petéquias (síndroma de Wiskott-Aldrich), seborreia generalizada (histiocitose), erupção eczematiforme (S. Hiper-IgE, S. Wiskott-Aldrich), telangiectasias na pele e conjuntivas (S. ataxia-telangiectasia). É importante avaliar a presença de tecido linfóide palpável, pois a sua ausência sugere deficiência de linfócitos T; se há aumento do tamanho do fígado ou baço. Na auscultação: valorizar a presença de sopros cardíacos ou de fervores, e se são localizados ou não.
Sistematização
Geralmente a história clínica fornece elementos suficientes para classificar o doente com pneumonias recorrentes numa de 4 categorias: crianças provavelmente normais, crianças com alergia, crianças com doença crónica não imunológica e crianças com imunodeficiência (Quadro 2).
QUADRO 2 – Contexto de pneumonias recorrentes
• Crianças provavelmente normais (50%) • Crianças com doença alérgica (30%) • Crianças com doença crónica não imunológica (10%) • Crianças com imunodeficiência (10%) |
Agrupar os doentes desta forma tem inconvenientes na medida em que compartimenta doenças que frequentemente têm alguns aspectos comuns. Por exemplo, a drepanocitose é uma doença crónica e não uma imunodeficiência primária; contudo, acompanha-se de alterações importantes dos mecanismos de defesa que levam a infecções respiratórias recorrentes. Contudo, tal forma de agrupar estes doentes tem grandes vantagens não só por facilitar o estudo, mas também para o tratamento e vigilância.
1. Crianças provavelmente normais
As infecções respiratórias são muito frequentes nos primeiros anos de vida, particularmente até aos 2 anos. Tal deve à maturação gradual da imunidade. Até cerca dos 6 meses a criança está protegida por anticorpos maternos adquiridos por via transplacentar, mas a partir dessa idade a protecção passiva começa a desaparecer. Se este fenómeno coincidir com a fase em que a criança entra para o infantário em Setembro, no início dos meses frios do ano a possibilidade de ter infecções recorrentes é grande. As crianças deste grupo constituem cerca de 50% dos doentes com pneumonias recorrentes. Apresentam algumas características comuns: geralmente não têm história familiar de imunodeficiência, o seu crescimento é normal, mantendo-se com bom estado geral entre os episódios infecciosos, geralmente não complicados, e não evidenciando alteração no exame objectivo. Além disso, não é habitual que tenham infecções graves noutros locais (infecções cutâneas, gastrintestinais ou outras). Estas particularidades ajudam a separar este grupo dos restantes.
Nestes casos é importante esclarecer os pais reforçando-lhes a confiança e propondo uma vigilância atenta da evolução. Por vezes são úteis alguns exames complementares simples como hemograma, proteína C reactiva (PCR), radiografia do tórax e eventuais exames culturais.
2. Crianças com doença alérgica
Este grupo também apresenta algumas características distintivas constituindo cerca de 30% dos casos de infecções respiratórias recorrentes. Frequentemente há história familiar de alergia e pieira em cada episódio de infecção respiratória. Muitos episódios decorrem em apirexia respondendo mal aos antibióticos. A tosse é muito frequente, por vezes nocturna ou surgindo com o riso ou o esforço. Por vezes há infecções das vias respiratórias superiores que desencadeiam tosse importante e grande produção de muco, podendo levar a atelectasias ou infiltrados, sobretudo no lobo médio. O crescimento é normal verificando-se frequentemente obstrução nasal com rinorreia, prega nasal transversal e eczema.
Nestes casos são úteis hemograma, PCR, doseamento de imunoglobulinas, IgE, específicas, radiografia do tórax e testes cutâneos. A espirometria deve obter-se quando possível, (ver Parte XII).
Os lactentes com pieira e pneumonias recorrentes colocam alguns problemas diagnósticos, sobretudo quando respondem mal aos broncodilatadores e anti-inflamatórios. Nestes casos será necessário excluir alguns diagnósticos, nomeadamente fibrose quística, aspiração de corpo estranho, refluxo gastresofágico, bronquiolite obliterante, anomalias congénitas do aparelho respiratório ou imunodeficiência.
3. Crianças com doença crónica não imunológica
Correspondem a cerca de 10% das crianças com infecções respiratórias recorrentes. Ao contrário dos anteriores, este grupo tem infecções que são contínuas, por vezes graves, levando ao internamento, muitas vezes sem isolamento dos agentes etiológicos. É frequente a repercussão no peso e estatura e o exame pode evidenciar fervores, deformação torácica e hipocratismo. As infecções surgem de forma semelhante e, por vezes, com a mesma localização. Nestes casos são geralmente causadas por obstrução brônquica (corpo estranho), por compressão extrínseca geralmente de origem ganglionar (tuberculose ou outras infecções, tumores) ou por anomalias estruturais (estenose brônquica, bronquiectasias, quisto broncogénico, sequestro).
Em algumas doenças deste grupo pode haver alteração dos mecanismos de defesa predispondo para a infecção como sucede em situações de má-nutrição ou na drepanocitose. (Quadro 3)
QUADRO 3 – Doença crónica não imunológica
• Síndromas de inalação (corpo estranho, refluxo gastroesofágico) • Bronquiectasias (fibrose quística, síndroma de cílios imóveis) • Anomalias congénitas do aparelho respiratório • Doenças pulmonares (displasia broncopulmonar, bronquiolite obliterante, hemossiderose pulmonar, pneumonias de hipersensibilidade) • Doenças neuromusculares • Doenças cardíacas congénitas • Doenças genéticas/metabólicas (síndroma de Down, Werdnig-Hoffmann) • Doenças hematológicas (asplenia, hemoglobinopatias, imunossupressão) • Doenças nutricionais (má-nutrição, enteropatias) • Doenças renais (síndroma nefrótica, insuficiência renal) • Diabetes mellitus • Doenças do colagénio vascular |
A pneumonia (recorrente) é a infecção mais comum mas pode haver diarreia crónica, tosse crónica, episódios repetidos de febre, entre outras.
Para esclarecimento etiológico, deve proceder-se nestes doentes a exames complementares como: hemograma, PCR, ureia e glicémia, urina, teste do suor, radiografia do tórax, imunoglobulinas e exames culturais. A broncofibroscopia e TAC torácica são geralmente necessárias. Poderá haver necessidade de outros testes diagnósticos mais específicos para confirmação das hipóteses diagnósticas colocadas.
4. Crianças com imunodeficiência
Perante uma criança com pneumonias recorrentes é muito frequente que se coloque a hipótese de imunodeficiência. Contudo, as imunodeficiências constituem apenas 10% das causas de infecções respiratórias recorrentes.
Neste grupo, as infecções frequentemente iniciam-se depois dos 6 meses de idade e são de vários tipos (sépsis, meningites, osteomielites), geralmente graves e predominando no aparelho respiratório, com localização variada. Apesar de ser comum a identificação do agente e a antibioticoterapia ser apropriada, a resposta ao tratamento é lenta. Muitas vezes a infecção é grave, controlada mas não erradicada, as complicações são frequentes e, no intervalo entre os episódios agudos, persistem sintomas crónicos. Habitualmente o crescimento é afectado, são comuns alterações cutâneas como eczema, piodermite, telangiectasia. A crianças poderão não ter gânglios linfáticos palpáveis nem amígdalas, ou, pelo contrário, ter linfadenopatia generalizada, hepatoesplenomegália sugerindo infecção por VIH, doença hematológica ou dos fagócitos.
As imunodeficiências primárias podem envolver os linfócitos B (50-70%), os linfócitos T (20-30%), ambos linfócitos B e T (10-15%), as células fagocíticas (15-20%) ou o complemento (2-5%). (Quadro 4)
QUADRO 4 – Imunodeficiências
Primárias |
Imunodeficiências humorais: Imunodeficiências celulares: Défices fagocitários e do complemento: |
Secundárias |
Doença vírica (VIH, CMV, VEB) |
A identificação dos microrganismos causadores das infecções pode sugerir algumas entidades específicas. As infecções recorrentes com microrganismos extracelulares, capsulados ou infecções crónicas sinopulmonares são comuns nos doentes com asplenia ou défice de anticorpos. As infecções por oportunistas víricos, protozoários, bactérias, micobactérias ou fungos sugerem défice das células T. Infecções fúngicas, abcessos hepáticos ou osteomielite sugerem doença das células fagocíticas, enquanto as infecções recorrentes acompanhadas de sintomas autoimunes ou infecções recorrentes por N. meningitidis sugerem deficiência do complemento.
Numa fase inicial alguns exames complementares são úteis: hemograma, proteína C reactiva (PCR), imunoglobulinas, culturas, VIH e exames radiológicos. Mesmo que os resultados destes exames sejam normais, os doentes com forte suspeita de imunodeficiência deverão completar o estudo com exames mais complexos, nomeadamente doseamento de anticorpos contra antigénios vacinais (tétano, difteria, rubéola), testes cutâneos de hipersensibilidade retardada (Candida, toxóide tetânico), populações linfocitárias, estudo da função fagocítica, e testes para a função do complemento (CH50).
São muitas as doenças específicas neste grupo e a sua caracterização é variável. Algumas são bem conhecidas e existem múltiplos doentes descritos; outras estão incompletamente caracterizadas ou são tão raras que ainda não estão bem compreendidas.
Por isso, na suspeita de imunodeficiência de difícil caracterização é prudente dirigir o doente a um centro com experiência, o mesmo sucedendo nas doenças mais raras cujo seguimento deve ser feito por especialistas.
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