A criança passou pela História quase até ao séc. XX sem nunca ter visto ser reconhecida a sua natureza e as suas necessidades irredutíveis, designadamente a de ter direito a direitos fundamentais.

A conquista de uma certa visibilidade para a infância, foi uma penosa caminhada da existência humana.

A história do destino humano é, uma história de interesses que não, de facto, os da criança.

No séc. II A. C. a primeira infância mereceu de Varrão (escritor latino) uma classificação especial na hierarquização das sucessivas idades do ser humano.

Nunca houve vocábulo latino para designar o bebé e a designação de lactente (alumnus) – focalizada, tão só, na propriedade de ser alimentado – determinou até há cerca de 40 anos a nomenclatura científica em vigor.

Já na nossa década de 70 em concurso de provas públicas da carreira hospitalar fui «aconselhado» por membros de um júri de provas públicas a não usar a designação de bebé porque só era «cientificamente» tida como correcta a referida nomenclatura de lactente.

O termo mais antigo, usado para designar a criança, foi de «puer» significando indistintamente quer a cria animal quer a cria humana.

A língua latina consagrou, durante muito tempo, o termo «infans» significando, etimologicamente, aquele que não fala.

Tanto a designação central de «puer» como a designação complementar de «infirmitas» (imaturidade moral e intelectual) acentuavam o estatuto deficitário da criança entendida, designadamente, como escrava na ordem social.

Pais Monteiro refere, a este propósito, a associação que S. Paulo faz da criança na sua epístola aos Gálatas: «Enquanto o herdeiro é menor, se bem que seja o senhor de tudo, em nada se diferencia de um escravo».

A civilização grega que tanto inspirou e inspira, ainda, a cultura da dita civilização ocidental ignorou, quase por completo, a criança.

Sempre numa perspectiva reducionista, ao tratar da infância, Galeno tentou a conciliação entre o corpo e o espírito, porém sempre numa representação etimológica do mal que proviria quer do «interior natural», quer do contexto exterior que hoje identificamos à circunstância ou envolvimento de cada criança.

A teologia cristã, nomeadamente em todo o Antigo Testamento, estigmatiza a criança identificando-a inequivocamente ao mal.

O Novo Testamento explica muito do mal que a criança integra em função do pecado materno projectado à concepção. Em termos educacionais o pecado original determina todo o mal que a criança necessariamente vai vivenciar.

Santo Agostinho congrega, a este propósito o pensamento de então referido à criança – «se a deixássemos fazer o que lhe apetece, não há crime que não a víssemos cometer».

Na História da Humanidade o interesse pela criança radicou-se, tão só, na simbologia do mal. A criança foi, século a século, sem grandes variações conceptuais, esse símbolo do mal, da imperfeição, do pecado original, da culpa materna, do lugar do erro, tal como definido na filosofia cartesiana.

O eventual «amor» pela criança na era romana concentrava-se no interesse que os filhos representavam como potencial força militar necessária à máquina da guerra.

Apesar da representação da criança presente nos sarcófagos dos séc. III e IV, revelada na vida familiar porventura valorizadora da criança, não há qualquer prova, designadamente através da arte, de amor dos pais pelos filhos, representado esse amor como sentimento de empatia, ternura, respeito ou tão só, interesse providenciado face à criança. Badinter sintetiza sumariamente o sentimento social face à criança – «erro ou pecado, a infância é um mal».

A morte de um filho é sentida como um acidente banal que nem merece a presença dos pais no respectivo enterro. Montaigne, mais tarde e a este propósito, confessava assim o seu sentir – «perdi dois ou três filhos na ama, não sem pesar mas sem drama».

Toda a Idade Média ignora a criança e é desse testemunho a sua ausência ou porventura, a sua representação, na arte. O culto da Virgem Maria, porém, representando, então, Nossa Senhora e o Menino, projecta, sobretudo, a imagem triunfante da mulher criadora em oposição a Eva, a pecadora. As crianças na proximidade da díade divina reforçam o significado do culto já projectado na criança.

Até fins da Idade Média, as crianças vestiam como os adultos, sendo, portanto, manifesta a ausência do estatuto infantil que hoje identificamos, entre outras expressões, com o vestuário infantil. Ainda em termos de Arte, poderá ser importante a dúvida sobre o significado da representação do putto (criança nua na pintura italiana do séc. XVI), tão bem simbolizada por Ticiano, num retábulo pintado em 1526. O gosto do putto terá representado um dos primeiros sinais de interesse pela criança que a Arte prodigaliza na sua missão de sempre antecipar, na esfera do sensível, o que só mais tarde o social ou político se encarrega de representar?

A cultura religiosa passou, todavia, a configurar, aparentemente, algum do respeito pela infância identificado com a figura do Menino Jesus cujo modelo os artistas do séc. XVI iam buscar a crianças diferentes, designadamente com trissomia 21 ou outras situações que hoje identificamos como síndromas malformativas. Objectos que o Menino manipula, designadamente colheres, são, inequivocamente, alguns sinais de interesse pelo comportamento infantil. Porventura inexplicado é o posicionamento da criança ao colo da Virgem Maria.

O designado instinto maternal faz posicionar a criança do lado esquerdo do colo da mãe e é essa a forma de colo que mães ou raparigas já púberes favorecem ao invés de homens ou raparigas pré-púberes quando solicitados a colocarem um bebé ao seu colo.

Do séc. X ao séc. XVII, apesar da manutenção de uma mortalidade infantil elevadíssima, a convicção da imortalidade da alma da criança passou a ser uma verdade cada vez mais sedimentada, influenciada que foi por uma cristianização progressiva dos costumes.

O grande debate teológico da Idade Média, na revisitação de Aristóteles, dizia respeito ao momento em que o feto seria insuflado pelo espírito de Deus, recebendo então uma alma. Até ao sec. XV o Menino é predominantemente posicionado no colo direito da Virgem.

O gótico tardio consolida, então, a figura do Menino Jesus do lado esquerdo do colo, configurando, porventura, o instinto materno como marca indelével desse sentimento maternal mais puro representado por uma Virgem Maria cada vez mais envolvida com o seu Menino.

A representação de um eventual interesse pela criança trazido pela Arte terá preanunciado uma viragem na história dos sentimentos face à criança. Velasquez retrata a criança filha da nobreza enquanto Goya é mais retratista da infância proletária.

A arte da Renascença traz-nos, como novidade, as crianças (putti) na sua plena vitalidade encarnando, porventura, a felicidade na sua identificação com o Paraíso.

É notório o contraste desta representação artística face aos quadros medievais de Brughel em que a criança é um epifenómeno das festas exteriores, posicionada num canto das telas, brincando no chão isolada do contexto social.

A negligência face à criança na coerência do que temos expressado, faz parte da História da Humanidade. A expressão mais constante desta negligência foi o abandono.

De Mause citado por Reis Monteiro escreveu que «a forma de abandono mais extrema e mais antiga é a venda directa de crianças». Esta venda era legal no império babilónico e era, igualmente, uma constante em muitas culturas da Antiguidade.

Expressão extrema do abandono era o infanticídio, representado pelo deixar as crianças à mercê da natureza e dos predadores, nos caminhos do mundo. Porventura uma expressão menos drástica do abandono foi representada pela roda em que a criança era entregue, anonimamente, a instituições ditas de caridade ou de assistência.

Outra forma de abandono que ocupou durante mais tempo a história foi representado pela entrega de crianças a amas. Fala-se de amas na Bíblia, no código de Hamurabi, nos papiros egípcios, na literatura grega e romana, na tradição burguesa da Europa renascentista. No séc. XVII a procura era excedentária face à oferta. Mal nasciam, as crianças eram levadas para amas, muitas vezes localizadas longe das residências familiares.

Mais de 10% das crianças emigradas em função de uma oferta mercenária, morria pelo caminho. De uma forma mais discreta, o abandono com infanticídio continuava, porém, a ser a regra.

Não era socialmente dignificada, na aristocracia, a evidência do amor maternal e daí a razoabilidade da tese de que era o clima cultural que ofuscava o instinto em oposição ao conceito de Badinter de não ser o amor materno, ele próprio, um instinto humano.

O abandono infantil, sobretudo nas classes sociais mais elevadas era expresso, também, pela entrega das crianças a governantas, a preceptoras e a colégios internos.

O processo de emancipação da mulher nos séc. XVII e XVIII inspirava, de facto, muitos dos comportamentos familiares impondo o interesse dos progenitores a qualquer interesse da criança ainda sem direitos, sem privilégios, sem amor.

No séc. XVII, a infância não suscitava, ainda, nenhum interesse particular e poderá ter sido causa parcial desta evidência a alta mortalidade infantil que fazia poupar sentimentos vinculadores dentro da família.

Com Rousseau opera-se uma revolução do modelo. Ele afirmava: «É preciso deixar amadurecer a infância dentro de cada criança». É assim que, no séc. XVIII passaram as famílias a dar largas à sua euforia sentimental, passando as alegrias e as virtudes familiares a invadir a Arte e a Literatura. Da realidade social passou-se à realidade sentimental, passando a arte a representar o idílico da família em todo o seu esplendor.

Rousseau influencia, de facto, decisivamente, muita da cultura parental, representada nas relações sociais. Da mãe deslavada de amor à «mãe-pelicano» há todo um caminho que, progressivamente, faz nascer o reino da «criança-rainha» conforme expressão de Badinter. O nascimento da Puericultura em 1866 com Caron representa o início do caminho para a escola de virtudes em que são decisivos o médico e a professora.

Surgem então na Europa, e especialmente em França, os dispensários de saúde infantil centrados na confiança entre os profissionais e a mãe. Nesses dispensários e nos consultórios eram afixados quadros relatando a atenção pública e privada devotada à díade mãe-bebé. De qualquer modo, não era ainda consistente a mudança em pleno séc. XIX. No popular «livre de famille» em França, a criança era cruel e egoísta e «só era anjo quando estava a dormir».

Por outro lado, a criança passa a ser alvo de outro interesse por parte dos artistas do Realismo e do Naturalismo nas Artes Plásticas do séc. XIX. A iconografia da Sagrada Família, até então dominante, desaparece no início do séc. XIX. Aumentam, entretanto, e a ritmo crescente, as encomendas de quadros de representação das famílias burguesas.

Chegamos aos primórdios do séc. XX irrompendo, então, as primeiras expressões do denominado interesse pela criança. Esta nova modernidade inspira os artistas do simbolismo, designadamente António Carneiro, que intitula uma sua tela temática de «A vida – Esperança, Amor, Saudade». A criança surge valorizada em si mesma, nomeadamente através do direito a um novo significado do seu bem-estar.

É extraordinária a mudança de conceito expresso, por exemplo, no pensamento, direi pediátrico, de Winnicott – «a criança está de boa saúde quando pode brincar ao pé da sua mãe ou de um adulto que valorize a sua criatividade». Em termos sociológicos, poder-se-á dizer que é a partir do séc. XIX e, consolidadamente, a partir do séc. XX, que os poderes públicos passam a considerar alguns dos interesses das crianças, principalmente reportados às suas necessidades especiais, garantidas quando da evidência de qualquer vulnerabilidade e desamparo.

Como escreveu Reis Monteiro, «a descoberta da criança, vítima da família e da sociedade, tornou-a objecto de protecção pública e privada». É curioso, porém, constatar que, na segunda metade do séc. XIX, surgem, pela primeira vez, Sociedades Protectoras da Infância, porém depois de criadas as Sociedades Protectoras dos Animais. A expressão «Direitos da Criança» encontra-se, pela primeira vez, num artigo publicado em 1852 nos EUA intitulado «The Rights of the children».

Provavelmente, em 1872 é utilizada pela primeira vez a designação «Pediatria» mas é em 1900 que Ellen Kay, citada por Monteiro escreve «O Século da Criança» onde a autora proclama, porventura também pela primeira vez, que «as crianças têm deveres e direitos tão firmemente estabelecidos como os dos seus pais». Na coerência desta evolução fantástica é adoptada em 1924 pela Assembleia da Sociedade das Nações, a Declaração dos Direitos da Criança elaborada por Eglantine Jebb que cinco anos antes (em 1919) tinha, por sua vez, fundado o movimento internacional «Save the Children», criador de símbolos (entre os quais gravatas promotoras do interesse pelas crianças).

Em 1948 é proclamada a Declaração Universal dos Direitos do Homem onde se assume que a Maternidade e a Infância têm direito a uma ajuda e a uma assistência especiais (Artº. 25º. 2). A UNICEF, designação que sucede à de ICEF, nasce a 6 de Outubro de 1953, mas é a 20 de Novembro de 1959 que, definitivamente, é aprovada, por unanimidade (por 78 Estados-Membros da ONU), a Declaração dos Direitos da Criança. A Declaração proclama dez Princípios Fundamentais que consagram o que se poderá entender como os interesses superiores da criança, designadamente face à sua protecção e desenvolvimento.

Pela primeira vez a impressão «Interesse superior da criança» aparece num texto internacional tão significativo como é a Declaração. No seu Princípio 2 pode ler-se. «A Criança deve beneficiar de uma protecção especial… Na adopção de leis com esse fim, o interesse superior da criança deve ser o factor determinante».

Mas é a 20 de Novembro de 1987 que a Assembleia Geral das Nações Unidas adapta e aprova a Convenção dos Direitos da Criança que, direi, é uma efectiva proclamação dos Interesses Superiores da Criança que fazem parte do seu texto em muitos dos seus 54 artigos, definitivamente consagrados em 1989. Como uma autêntica revolução, toda uma literatura científica irrompe numa valorização incessante das competências infantis.

Na mesma data da publicação da Convenção, publicámos com a Fundação Gulbenkian uma expressão significativa da evidência científica de então: «Biopsychology of early parent-infant communication». Tal como em relação a todas as Declarações, Convenções ou Proclamações, surgem críticas tendo essencialmente como alvo o exagerado «pedocentrismo» que situava a criança como um objecto jurídico.

A este propósito Reis Monteiro comenta ser a criança uma criança, não podendo tudo ser Direito tal como o Direito não pode ser tudo. De qualquer modo, o Direito de Família tornou-se progressivamente pedocêntrico e, a este propósito, reza assim um texto publicado pelo Conselho da Europa em 1989:

«As responsabilidades parentais são o conjunto dos poderes e deveres destinados a assegurar o bem-estar moral e material da criança, nomeadamente cuidando da personalidade da criança, mantendo relações pessoais com ela, assegurando a sua educação, o seu sustento, a sua representação legal e a administração dos seus bens.»

A interpretação dos vários Estados confere à Convenção a extensão das suas prioridades. A Santa Sé, por exemplo, interpreta os Artigos da Convenção de modo a salvaguardar os direitos primários e inalienáveis dos pais.

O poder parental era, assim, reportado ao interesse superior da criança tal como expresso no Código Napoleónico que integra pela primeira vez a expressão «interesse da criança» como norma jurídica aplicável. O interesse superior passou a ser afirmação usada no Direito Internacional a partir de múltiplas menções dos estatutos jurídicos internos de muitos países.

No Princípio 7 da Convenção é proclamado que «o interesse superior da criança deve ser o guia daqueles que têm a responsabilidade pela sua educação e orientação; esta responsabilidade cabe, prioritariamente, aos pais». O interesse superior da criança passou a ser uma «consideração primordial» que fez transcender os próprios direitos parentais e, porventura, até os valores culturais de cada sociedade em função do primado da protecção e do desenvolvimento da criança.

O interesse superior da criança terá sido, assim, uma consagração ética que coloca a criança não como objecto mas como sujeito de Direito. Jacqueline Rubellin-Devichi entende que as soluções para a criança nunca são só jurídicas sem prejuízo do valor do direito que assegura os direitos de cidadania à criança desde o seu nascimento. Para Martin Stettler não existe uma definição para o «interesse da criança». Trata-se de uma noção com impacte afectivo e emocional que «convém deixar à apreciação dos pais ou à autoridade competente quando não há acordo» sendo este um pressuposto básico para a mediação.

Na Reunião de Lisboa de 1988, os Ministros da Justiça tinham já adoptado uma Resolução tratando da sequência dos direitos da criança no domínio do direito privado.

Neste sentido, a Convenção dos Direitos da Criança deverá ser entendida como uma Nova Carta da Revolução dos Direitos do Homem projectando na criança a consagração fundamental da Declaração dos Direitos do Homem. A Convenção dos Direitos da Criança é a grande proclamação ética centrada na criança.

A nova cultura que deverá inspirar as nossas sociedades e os nossos estados terá de ser construída nesta abordagem de uma ética centrada na criança que, por sua vez, determinará todos as outras disposições legais e políticas, do Ambiente à Educação, da Saúde à Justiça, da Segurança Social à Intervenção Familiar.

A criança não será mais, assim, o ser dependente, o menor cívico, o sujeito de vulnerabilidade. Os governos dispõem, hoje, através da Convenção de uma Carta de Princípios que os obriga a privilegiar a criança no seu existir pleno prevenindo as provações, as negligências, a violência. A garantia de oportunidades de afecto, de vínculos, de harmonia familiar, de concentração de interesses decorre da vivência do que é o interesse superior da criança a mobilizar políticas e regulamentações sociais.

O Direito não poderá ser uma regulamentação dos direitos sobre a criança mas outrossim, uma afirmação dos direitos à criança. Toda a circunstância da criança, designadamente a familiar, tem de ser inspirada por este direito à criança que pressupõe o primado da sua dignidade e o interesse superior de a respeitar. A projecção deste interesse em todas as expressões das Ciências Humanas está contida num dos componentes do Preâmbulo da Convenção – … «a criança para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão…».

Foi em todo este contexto que um conjunto extremamente significativo de universitários e investigadores consagrados elaboraram em Lisboa, em 1995, a Declaração de Lisboa de que cito, tão só, a primeira conclusão:

«As famílias devem ser ajudadas a reconhecer que constituem a fonte primária de amor e apoio e que são também responsáveis pela criação das forças interiores de que a criança necessita para se tornar resiliente face ao stress».

Porém, quando todos os ideólogos falam dos novos direitos da criança, é preciso assimilar que existem equívocos que ficaram por resolver. O direito da criança em ter pai e mãe confronta-se com a frustração deste «interesse superior» por via de uma disfunção familiar cada vez mais prevalente. Mais claramente ainda, a menção interesse superior significará que o interesse da criança deverá prevalecer sobre os interesses dos adultos ou da sociedade e sobre os interesses económicos e culturais.

Será, ainda, interesse superior da criança, tal como afirma Almiro Simões Rodrigues, o «direito ao desenvolvimento», isto é, o interesse da criança tem de ser entendido em função da dinâmica do seu desenvolvimento, ao longo do ciclo de vida da sua infância e da sua juventude. As referências da Convenção à «capacidade» e ao «discernimento», terão de ser entendidas na perspectiva que a filosofia dos «Touchpoints» consagra e que julgo ser paradigmática e indispensável para o cumprimento das novas disposições legais.

A Nova Lei de Protecção a Menores de 1999, na leitura de Maria Amélia Jardim, integra, inequivocamente, os valores do «interesse superior da criança» no respeito inalienável dos significados e das fases de toda a dinâmica do desenvolvimento infantil e juvenil. Estamos longe, porém, desta Revolução Ética a inspirar todas as intervenções decorrentes desta prioridade do Direito que reconhece, declaradamente, o interesse superior da criança.

Reconheço esta distância quase infinita no que respeita às práticas da nossa Saúde e da nossa Educação. Se a Sociedade actual, na nossa cultura, reconhecesse que a prioridade social era a criança tendo em conta os seus interesses superiores e se neste contexto estivesse garantido o pressuposto de que o interesse superior da criança é o de ser respeitada e amada, fundamentalmente dentro da sua família, então todo o pensamento político inspirador da actividade dos governos seria o de viabilizar uma cultura familiocêntrica com inequívocos investimentos na construção familiar e na relação vinculadora desde os primeiros tempos de vida.

Ao nível dos direitos, o advogado mediador quando do divórcio, representará os pais nessa mediação mas o seu exercício terá que estar centrado no superior interesse da criança e é essa advocacia que tem de prevalecer. Não chegam os padrinhos dos ritos de passagem de que é paradigma o baptismo, nem os educadores das creches e dos jardins de infância que cabem por destino a cada criança para fazer vingar um apoio tutorial complementar ou, às vezes, supletivo da intervenção familiar.

É preciso criar condições para que haja paixão na espera por cada nascer, na descoberta do “quem é quem” logo que cada bebé nasce, no apoio dinâmico à explosão de cada temperamento projectado no modo de comer, de dormir ou de brincar. Usamos hoje, ainda, a expressão “bem-estar” porventura para designar que nos referimos aos interesses superiores da criança que, de facto, se expressam nesse bem-estar.

A linguagem jurídica abstracta que refere o interesse superior da criança não se esclarece, todavia, com a nossa mera menção de bem-estar. O «interesse superior da criança» é, hoje, um conceito que apela à interdisciplinidade e representará este facto a grande esperança de progresso para o que resta deste século. Foi numa dimensão pluridisciplinar que fizemos (Conselho Técnico-Científico da Casa Pia de Lisboa) «Um Projecto de Esperança» confrontados com a pedofilia – extremo de agressão que pode ser feita à criança, pressuposta a revisitação de toda uma história de desrespeito pela criança.

Para que haja coerência do nosso pensar à nossa prática é preciso que a organização social e política centre os seus investimentos na criança, sobretudo quando ela é bebé.

A Saúde, a Educação, o Ambiente e a Justiça têm de estar unidos através de uma só estratégia em função da criança. O interesse superior da criança não se compadece com a imagem de receptor de direito, de cuidados ou de protecção; os interesses da criança exigem que consideremos que ela «contribui para a formação tanto da própria infância como da sociedade» e, por isso, as suas opiniões terão de ser sempre ouvidas e consideradas.

Só a título de exemplo e na coerência deste primado, teríamos que ver garantida nos Cuidados Primários a consulta pré-natal de contexto pediátrico, teríamos de ver favorecida, ao nascer, uma intervenção personalizada, junto de cada pai e de cada mãe, consolidada com a oportunidade de uma descoberta individualizada do bebé no favorecimento dos seus instintos tão ferido de riscos nas nossas Maternidades, teríamos de investir em mais tempo de guarda materna, no favorecimento de melhores horários para os pais nos primeiros dois anos de vida do bebé, teríamos de ter mais e melhores Serviços de Educação para os primeiros tempos de vida da criança, teríamos de garantir mais jardins e parques para as nossas crianças, teríamos de favorecer apoios fiscais, subsídios de habitação, de aleitamento, apoios à aquisição de fraldas e de brinquedos, mas sobretudo, teríamos de investir mais na formação profissional para que cada acto de consulta ou de intervenção educacional seja o fervilhar de uma paixão continuadamente dilatada pela magia de cada bebé em cada novo dia de uma vida preenchida de paz, em cada família.

A partir da década de 70, numa era inequivocamente “bebológica”, a contribuição da Pediatria para fazer vingar os interesses superiores do bebé tem sido uma constante.

Em 1984, a investigação que corporizou o nosso Doutoramento foi baseada no estudo sobre a influência do contacto precoce mãe-bebé no comportamento da díade. As influências antropológicas marcaram um posicionamento de maior proximidade na relação mãe-filho.

A nossa estadia em África (Guiné) representou um tempo ganho marcado pela aquisição de uma nova cultura centrada na dignidade do respeito e da tolerância. Fizémos, nestas últimas três décadas, o «Nascer e Depois», fizémos o «Olá Bebé», fizémos o «Bebé XXI», fizemos o «Stress e Violência» e fizémos o «Mais Criança». Acreditamos hoje, sobretudo, que é preciso coerência para podermos corresponder aos superiores interesses da criança.

Vinte anos depois, todavia, a Convenção dos Direitos da Criança ainda não chegou à Cultura do nosso tempo social e moral. No respeito pelo superior interesse da criança (artº. 3º.), o direito à participação (artº. 12º.) tem de fazer garantir que têm sempre de ser devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança.

Assim, o interesse superior da criança não pode ser, tão só, uma sentença que a Convenção dos Direitos da Criança proporcionou, como receita, aos tribunais. O interesse superior da criança é uma declaração do amor pela criança e é este conceito que deverá inspirar o mundo e os cidadãos deste mundo.

Precisamos, mais do que nunca, de uma revolução de praxis para que os interesses superiores da criança não se inquinem com a rotina, com as abstracções e com as sentenças.

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