O conceito de Investigação em Saúde

Investigação científica no sentido lato pode definir-se como o processo racional que procura comprender e desvendar o mundo, contribuindo para ampliar os nossos conhecimentos. No sentido estrito, a definição integra duas modalidades:

  1. a chamada investigação básica (fundamental ou experimental) debruçando-se sobre os problemas biológicos e levada a efeito em laboratórios com características diversas;
  2. a investigação clínica ou aplicada, com um espectro alargado de valências:
    1. orientada para doentes ou para indivíduos saudáveis de modo interactivo, designadamente estudando amostras de fluidos, tecidos ou fenómenos cognitivos, intervenções terapêuticas, ou realizando ensaios clínicos ou ainda, avaliando novas tecnologias, etc.;
    2. sobre estudos epidemiológicos e comportamentais; c) sobre serviços de saúde e resultados obtidos.

Valerá a pena, para a compreensão do âmbito de tal conceito, uma referência a Claude Bernard, enquadrando a sua citação no tempo em que viveu – o século XIX: O importante é mudar as ideias à medida que a ciência progride”.

Das atribuições gerais das instituições de saúde e, designadamente dos hospitais ligados ou não às universidades, em função do grau de diferenciação, fazem parte, para além da valência prioritária do serviço assistencial à comunidade, as do ensino e da investigação.

Como corolário, caberá dizer que o desenvolvimento devidamente estruturado da vertente de investigação numa instituição de saúde, traz seus dividendos a curto, médio e longo prazo pelo impacte muito positivo daquela na assistência e na qualidade de serviços a prestar à comunidade. De facto, na sua essência, investigar, consiste em verificar prospectivamente uma hipótese, em “resolver problemas“ procurando soluções face a questões que são previamente formuladas, na previsão de mudança de atitudes aplicáveis no futuro a pessoas sãs ou doentes.

Reportando-nos a 1979, será pertinente recordar James Wyngaarden que chamou a atenção para a importância da transposição das descobertas biomédicas para a “cabeceira do doente”, o que originou o conceito de investigação de translação (translational research), consubstanciando a aplicação dos avanços de cariz fundamental na prática médica.

Neste contexto, será de admitir o interesse em as referidas instituições de saúde criarem, manterem e desenvolverem elos fortes de ligação com outras instituições de saúde e com centros ou institutos de investigação de créditos formados.

Ou seja, intensificando tal ligação, criam-se condições de parceria e sinergias tendo em conta, por um lado, o potencial da “base de dados clínicos ou de material humano de doentes”, das instituições de saúde e, por outro, as potencialidades dos institutos universitários ou laboratórios de investigação experimental relacionados com as ciências básicas (biostatística, epidemiologia, etc.).

O impacte da investigação na clínica

Analisado o âmbito da investigação clínica, pode deduzir-se que a dinâmica de crescimento de tal vertente, como resultado de parcerias, facilita o intercâmbio científico com instituições congéneres nacionais e internacionais aplicando diversas estratégias; estas passam necessariamente pela criação de “redes de investigação” viabilizando, nomeadamente, a concretização de estudos cooperativos e prospectivos, divulgação e partilha de resultados em eventos científicos, e em publicações nacionais e internacionais.

Por outro lado, tal dinâmica facilita o estímulo duma nova geração de médicos e de investigadores com interesse pela saúde infantil, e a descoberta de vocações para as diversas vertentes da investigação, no pressuposto de as medidas a levar a cabo serem acompanhadas de incentivos e de estratégias de acompanhamento dos mesmos pela instituição de que dependem.

Diversos argumentos justificam o interesse da investigação aplicada nas práticas assistenciais; eis alguns: a) a investigação clínica é um processo de resolução de problemas com uma aplicação em vista (por exemplo, estudo da melhor relação custo-efectividade de determinada terapêutica ou de determinado exame complementar de diagnóstico); b) a investigação clínica contribui para a formação do espírito crítico com implicações na prática clínica; c) a investigação clínica promove o treino na recolha e valorização das informações conducentes à decisão clínica; d) a investigação clínica promove o desenvolvimento do espírito de sistematização do conhecimento.

Torna-se evidente que as questões cruciais que decorrem destas noções são justamente a definição dos problemas a investigar (a resolver) implicando cooperação entre clínicos e gestores institucionais, motivando estes últimos para tal questão.

O panorama actual da investigação no País

Dados do Observatoire des Sciences et des Technologies em Paris, comparando as contribuições científicas relativas a diferentes países europeus concluem que a União Europeia contribui com cerca de 30% da produção científica no mundo. Para esta parcela, Portugal contribuía até 1990 com 0,1% em comparação com a Grécia, (0,4%), com a Espanha (1,9%) e com a Bélgica (0,8%).

Em 1990, Portugal publicava o equivalente apenas a um terço da produção científica irlandesa e 1/10 da espanhola. A distância para a Espanha reduziu-se para 1/5, devendo contudo ter-se em conta que a população é quatro vezes maior. Entre 1990 e 2006, as Ciências (Química, Física, Medicina, Biologia, Engenharias, entre outras) produziram 55.573 publicações.

De acordo com dados do INE (2008) registaram-se progressos assinaláveis no nosso país entre 2000 e 2007. Sem ser especificada a fracção que cabe às ciência básicas biomédicas versus medicina clínica em geral, e pediatria em especial, no referido período (8 anos) o crescimento da produção científica foi 91,5%.

Os artigos e outros escritos dos portugueses, referidos pelo Science Citation Index (SCI), colocaram, pela primeira vez o nosso país à frente da Irlanda.

Portugal (seria injusto não o afirmar) congrega alguns centros de investigação de excelência reconhecidos internacionalmente, embora com nítido predomínio na área das ciências básicas. Alguns atribuem este panorama à ausência de uma cultura para investigar, quer nas universidades, quer nos hospitais. Para tal contribuirá, seguramente, a falta de incentivos em termos de progressão de carreira hospitalar – profissional, quer para os médicos diferenciados que ascendem na carreira, quer para os jovens médicos na pós-graduação para obtenção do título de pediatra. Bastará, para demonstrar tal afirmação, citar a desvalorização das actividades de investigação nos concursos da carreira hospitalar (para consultor ou para chefe de serviço) em que a publicação de estudos é muito fracamente cotada. E qual o futuro, se as carreiras estão em vias de extinção?

Outros factores, que podem explicar o panorama descrito, têm sido apontados: falta de tempo devido à pressão das funções assistenciais, falta de meios logísticos de apoio, falta de plano cooperativo para a resolução dos problemas assistenciais, indefinição de objectivos das Administrações hospitalares na vertente de investigação, havendo apenas preocupação com os objectivos quanto à prestação de cuidados mensuráveis, défice de formação desde o curso universitário, etc..

Surge, assim, certa desmotivação por se admitir – de acordo com o espírito da legislação – que “investigar não é importante para o desempenho profissional”.

O contexto actual é, pois, o de perda de oportunidades por quem é subalterno, tem interesse, mas não tem incentivos nem condições para ser estimulado. Esta questão tem a ver, aliás, com a importância do fomento de tal “cultura para a investigação” por parte de quem é orientador de formação de médicos em fase de pós-graduação.

Goldstein e Brown (investigadores galardoados com prémio Nobel em 1997) traduziram este panorama de dificuldade ou de desmotivação para a investigação apelidando-o de “síndroma”- PAIDS ou “Paralyzed Academic Investigator´s Disease Syndrome”.

Embora o programa de formação do internato de formação específica de pediatria contemple (modestamente) uma valência de investigação, o resultado final será muito precário, na medida em que a valência não é obrigatória. Para reverter a situação, torna-se fundamental estimular os jovens internos, – eles são o nosso futuro – criando uma valência obrigatória (de três meses no mínimo) durante o internato, fomentando a participação daqueles em actividades concretas em centros idóneos de investigação.

Infelizmente, no quadro das administrações de instituições específicas, hospitalares ou não, não está previsto que os responsáveis pelos serviços integrem nos respectivos planos de actividades um programa anual de investigação, nem está previsto, pela legislação actual, qualquer financiamento para esta valência.

Cabe salientar, no entanto, alguns sinais positivos de mudança dos últimos anos quanto a incentivos para a investigação clínica (bolsas de estudo para centros internacionais, prémios, etc.), por iniciativa, principalmente, da Sociedade Portuguesa de Pediatria e suas Secções, e das Universidades. Constitui sinal positivo nas instituições ligadas ao Ministério da Saúde a criação nos últimos anos de Centros de Investigação; o Hospital de Dona Estefânia, onde o autor deste capítulo sempre trabalhou, é um dos exemplos que se têm multiplicado.

No âmbito da clínica pediátrica hospitalar e da medicina familiar, aos orientadores de formação e directores cabe grande responsabilidade na génese da mudança e no estímulo dos internos no sentido de aproveitamento de oportunidades para candidaturas a bolsas para projectos de investigação, designadamente sob os auspícios de fundações com esta vocação (Gulbenkian, Champalimaud, FCT, etc.).

Modelos estratégicos para incentivar a investigação

Tendo em conta as ideias atrás explanadas, para incentivar a investigação no âmbito das instituições de saúde, torna-se fundamental estabelecer uma filosofia assente em determinadas linhas estruturais:

  1. A investigação aplicada é cada vez mais biomédica envolvendo, para além dos médicos, outros profissionais/investigadores como biólogos, farmacêuticos, bioquímicos, biofísicos, geneticistas, especialistas em epidemiologia e biostatística, matemáticos, etc.;
  2. A investigação biomédica deve ser centrada na interdisciplinaridade entre as chamadas disciplinas básicas e disciplinas clínicas, designações que hoje se podem considerar ultrapassadas pois a ”interpenetração mútua” é cada vez maior;
  3. A investigação clínica somente se torna rendível em termos de aquisição de “dimensão ou massa crítica” se forem criados grupos inter-instituições e um sistema funcional de “rede” interligada;
  4. Para além do aspecto quantitativo que decorre da associação de pequenos grupos inter-institucionais, é necessário que entre os mesmos existam afinidades, lealdade, capacidade de integração e projectos bem delineados;
  5. Necessidade de apoio oficial e de mobilização de fundos monetários nacionais e no estrangeiro para garantir o funcionamento do “sistema”;
  6. Ao nível de cada instituição ou grupo de instituições haverá que criar “centros” funcionais a regulamentar (com médicos/investigadores), com um coordenador responsável, que garantam a logística de promoção, dinamização e coordenação das actividades de investigação e o compromisso de “ligação à rede” de outros centros nacionais e internacionais.

Para a concretização dos princípios atrás referidos, ao nível das instituições de saúde é necessário o compromisso da tutela e de determinados organismos para a adopção de determinadas medidas:

  1. Informatização dos serviços clínicos com criação de “base de dados”;
  2. Possibilidade de consultadoria estatística e de “software”;
  3. Criação de prémios e de bolsas para jovens investigadores;
  4. Maior valorização das actividades de investigação na avaliação curricular dos concursos ou contratações;
  5. Maior envolvimento das sociedades científicas, nomeadamente na organização de redes, na mobilização de fundos e na definição de prioridades;
  6. Maior envolvimento das universidades, das administrações hospitalares, e das direcções dos serviços hospitalares na formação em investigação e no apoio à investigação clínica, estabelecendo parcerias com as empresas da indústria farmacêutica segundo princípios ético;
  7. Necessidade de maior parcela do Produto Interno Bruto (PIB) devotado à investigação;
  8. Necessidade de sistema de avaliação externa das actividades por peritos de idoneidade comprovada, nacionais e internacionais;
  9. Continuação da abertura de concursos orientados para a área clínica da investigação em Saúde.

Seria injusto não reconhecer o papel que a Sociedade Portuguesa de Pediatria e a Ordem dos Médicos têm tido na formação em investigação e na criação de bolsas e prémios para os médicos e médicos pediatras interessados em progredir na investigação. Reitera-se que a maior vulnerabilidade recai, de facto, nas próprias instituições de saúde, verificando-se défice de sensibilização para tal problemática: são definidos, em geral, objectivos em termos de resultados assistencias sem estabelecer objectivos no âmbito da investigação. A mudança é, pois, necessária.

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