Definição e importância do problema

A hérnia define-se como procidência ou saída de uma víscera (ou de uma parte de víscera) para fora dos seus limites normais, através das paredes enfraquecidas da cavidade que a contém, ou por um orifício (natural, acidental ou patológico). Este conceito abrange as hérnias externas (de que as mais frequentes são as verificadas através da parede abdominal, traduzindo-se em tumefacções redutíveis nas regiões: abdominal, abdominal-inguinal e escrotal), e as hérnias internas (de que é exemplo a hérnia diafragmática).

Neste capítulo é feita referência às hérnias da parede abdominal.

HÉRNIA INGUINAL

Importância do problema

A hérnia inguinal é uma das condições mais frequentemente observadas na idade pediátrica (ver alínea seguinte). Quando não devidamente diagnosticada e tratada, pode pôr em risco a vida ou resultar na perda de um órgão (como o ovário ou o testículo em caso de estrangulamento). Na população pediátrica ocorre em cerca de 3-5% dos indivíduos, sendo a proporção superior (10-30%) em crianças com antecedentes de prematuridade. É ~6-10 vezes mais frequente no sexo masculino, e 2 vezes mais frequente do lado direito, devido à descida testicular mais tardia deste lado. Cerca de metade dos casos surge no primeiro ano de vida, na sua maioria antes dos 6 meses.

A incidência de hérnias bilaterais é mais elevada no sexo feminino (~20-30%). Em cerca de 10% dos casos há antecedentes familiares.

Aspectos embriológicos e etiopatogénese

O testículo, no seu trajecto de descida do abdómen para a bolsa escrotal, através do canal inguinal, “empurra“ à sua frente um divertículo peritoneal – o canal peritoneovaginal (CPV) ou processus vaginalis – que se transformará na camada ou túnica vaginal do testículo. Na fase em que o testículo atinge o fundo da bolsa (por volta do 7º a 8º mês de gestação), o referido canal sofre involução (isto é, fica obliterado), deixando de haver comunicação entre o escroto e a cavidade abdominal. Quando se verifica anomalia desta involução, o CPV persiste (fica patente), criando-se condições para a constituição de hérnia inguinal.

  1. → Surge hérnia inguinal quando conteúdo intrabdominal se “escapa” da cavidade abdominal “entrando” na região inguinal através do CPV patente (sendo que nem em todos os doentes com CPV patente se desenvolve hérnia inguinal). Dependendo da extensão ou comprimento do CPV patente, assim a hérnia poderá ficar confinada à região inguinal, ou continuar a descer até atingir o escroto:
      • A obliteração distal do CPV (em torno do testículo), mantendo-se patente a porção proximal do mesmo, resulta em hérnia inguinal indirecta clássica (ou funicular), com protusão no canal inguinal (Figura 1-A);
      • A falência completa da obliteração do CPV, mantendo-se patente o CPV em toda a sua extensão (proximal+ distal), predispõe à formação da chamada hérnia inguinal completa, caracterizada por protusão do conteúdo intrabdominal no canal inguinal, podendo atingir o escroto (Figura 1-B).

As situações tipificadas nas Figuras 1-A e 1-B correspondem à maioria dos casos de hérnias inguinais (indirectas) no lactente e criança (~99%). Outros tipos de tumefacções redutíveis visíveis exteriormente ao nível da região inguinal incluem:

      • As hérnias inguinais directas (~0,5-1%), fazendo procidência ao nível, ou um pouco para baixo e para dentro do orifício superficial do canal inguinal, parecendo de localização superior à prega inguinal; resultam de defeito muscular ou de fraqueza do pavimento do canal inguinal; são geralmente consideradas adquiridas, podendo surgir como sequela de anterior correcção de hérnia inguinal indirecta;
      • As hérnias femorais ou crurais (< 0,5%) correspondendo a procidência ao nível da extremidade superior e interna do triângulo de Scarpa, mais lateralmente que as hérnias inguinais (consultar Glossário), e parecendo de localização inferior à prega inguinal; são mais frequentes no sexo feminino.
  1. → Se no CPV existir fluido seroso, gera-se o hidrocelo (ou a hidrocele), definido como acumulação de líquido seroso na túnica vaginal dos testículos ou no tecido que envolve o cordão espermático; se a tumefacção existir somente no escroto, constitui-se o hidrocelo escrotal; se ao longo do cordão espermático, a tumefacção verifica-se no próprio cordão espermático, constitui-se o hidrocelo do cordão espermático (também chamado quisto do cordão, correspondendo à situação de reabsorção incompleta do CPV); se se estender do escroto, através do canal inguinal até ao abdómen, constitui- se o hidrocelo abdominal-escrotal.
    O hidrocelo designa-se comunicante se o saco contendo fluido variar de dimensões (“enchendo-se ou esvaziando-se” no sentido cavidade peritoneal-escroto ou vice-versa). (Figuras 2-A, 2-B e 2-C)
    Em crianças mais velhas, determinadas condições como traumatismos, inflamação ou tumores do testículo podem originar hidrocelos secundários (adquiridos).

FIGURA 1. Representação esquemática de: A – Hérnia inguinal indirecta clássica (tipo funicular); B – Hérnia inguinal indirecta completa.

FIGURA 2. A – Situação normal: obliteração completa do CPV; B – Hidrocele devido a CPV patente; C – Hidrocele do cordão (ou quisto do cordão).

A incidência de hérnias é mais elevada em presença de determinados factores predisponentes como os sintetizados no Quadro 1. Nas situações de fibrose quística e de problemas urogenitais estão em causa alterações da embriogénese de estruturas vizinhas do abdómen e canal inguinal, como as derivadas dos canais de Wolff, entre outras.

QUADRO 1 – Factores predisponentes de hérnia.

Doença respiratória crónica
(fibrose quística)
Fluido intraperitoneal aumentado
(ascite, derivação ventriculoperitoneal, cateter de diálise peritoneal)
Pressão intrabdominal aumentada
(pós-correcção cirúrgica de defeitos da parede abdominal, ascite grave, peritonite meconial)
Doenças do tecido conectivo
(síndromas de Ehlers-Danlos, de Marfan, de Hunter- Hurler, etc.)
Prematuridade
Factores urogenitais
(hipospadia, epispadia, extrofia da bexiga, ambiguidade genital, criptorquidia)

Manifestações clínicas e diagnóstico

A hérnia inguinal traduz-se por aumento de volume intermitente na região inguinal, aumento que se pode estender ao escroto ou grande lábio em relação com o choro, tosse ou esforço correspondendo a aumento transitório da pressão intrabdominal. (Figura 2)

O diagnóstico de certeza somente pode ser obtido quando se palpa e se tenta reduzir a referida tumefacção. A criança deve ser examinada de pé, se necessário a encher um balão (o que tipifica a chamada manobra de Valsalva), ou a saltar. O exame deve também ser feito com a criança em decúbito dorsal com os membros superiores estendidos sobre a cabeça, e fazendo pressão sobre a zona púbica. No rapaz, as regiões inguinais devem ser palpadas após se verificar que os testículos estão nas bolsas. Nos recém-nascidos e lactentes o diagnóstico é mais difícil.

No âmbito do exame clínico de qualquer tumefacção redutível da região inguinoscrotal importa recordar algumas manobras semiológicas simples na perspectiva do diagnóstico diferencial: palpação do cordão espermático e palpação da região inguinal combinada com a do escroto.

Palpação do cordão espermático

Realiza-se apertando a raiz do escroto entre o indicador e polegar, o que torna fácil de apreciar o cordão espermático pela sua dureza relativa; nos casos de torção do testículo, a pressão exercida sobre o mesmo torna-se muito dolorosa. No caso de hérnia inguinal, uma vez reduzida, deve proceder-se à palpação cuidadosa e comparativa do cordão espermático de ambos os lados, o que permite comprovar o seu aumento de espessura no lado afectado pela presença do saco herniário; e igualmente, quando se tem experiência, uma sensação conhecida como sinal da ”luva de seda”, ou das várias camadas do saco herniário. Se a alteração for bilateral, pode ser mais duvidosa a interpretação dos achados.

Palpação da região inguinal e escroto

Palpando a região inguinal e o escroto, podem ser identificadas a hérnia escrotal e o quisto do cordão. A primeira pode reduzir-se e produzir ruídos hidroaéreos característicos (gorgolejo) na tentativa da mesma redução; o segundo é de consistência dura, mais que o hidrocelo, de superfície lisa, de forma invariável e não redutível. Quanto à palpação do anel inguinal externo, com importância para possíveis hérnias inguinais latentes, a mesma tem pouco valor no lactente pela abundância do panículo adiposo.

Na criança maior utiliza-se a seguinte técnica: o dedo indicador ou o mínimo, invaginando por empurramento o escroto no sentido escroto → anel inguinal, atinge e atravessa o referido anel inguinal na ausência de hérnia; havendo hérnia que, entretanto, foi reduzida, a manobra de esforço do doente permite que a extremidade do dedo sinta o fundo de saco da hérnia em movimento no sentido anel inguinal → escroto.

Perante tumefacção redutível na região inguinal, esta manobra também permite distinguir hérnia inguinal de hérnia femoral; se o canal inguinal estiver “vazio”, tratar-se-á de hérnia femoral e não de inguinal; por outro lado, a hérnia femoral localiza-se mais externamente (mais lateral) que as hérnias inguinais indirecta e directa (mais mediais). (ver atrás)

Para distinguir hérnia inguinoscrotal (caso em que o intestino chega ao escroto) de hidrocelo ou de quisto do cordão, faz-se a expressão da bolsa aumentada de volume; se a mesma se esvaziar tratar-se-á de hérnia. Caso tal não suceda o diagnóstico será hidrocelo ou quisto do cordão, desde que não haja encarceramento herniário (ver adiante). A transiluminação contribui também para esta diferenciação (difusão positiva em caso de hidrocelo). A ecografia poderá ser esclarecedora nos casos duvidosos.

A hérnia inguinal pode sofrer processos de encarceração (hérnia encarcerada), e de estrangulamento (hérnia estrangulada). O conteúdo da hérnia pode ser intestino delgado, apêndice, epíploo, cólon, ou raramente, divertículo de Meckel; no sexo feminino tal conteúdo poderá incluir também ovário ou trompas.

A encarceração consiste na impossibilidade de redução da hérnia para a cavidade abdominal (12-17% dos casos, sendo que ~ 2/3 das mesmas surgem no primeiro ano de vida). No estrangulamento, para além da encarceração, existe forte constrição ao nível da passagem pelo anel inguinal, o que comporta risco elevado de isquémia e gangrena das estruturas herniadas (sendo o risco tanto maior quanto menor o diâmetro do anel). Esta complicação, causa frequente de obstrução intestinal no lactente, manifesta-se por irredutibilidade da massa ou tumefacção na virilha ou escroto, edema e eritema da pele suprajacente, febre, irritabilidade, e choro relacionável com cólica abdominal. Os vómitos podem ser sinal indiciador de obstrução intestinal.

O diagnóstico diferencial de hérnia com adenopatias inguinais é fácil (pela irredutibilidade destas e diferente consistência) na ausência de encarceração herniária.

Tratamento

O tratamento é sempre cirúrgico, pois não se verifica resolução espontânea. Idealmente, a intervenção deverá ser electiva nas hérnias redutíveis (hérnia diagnosticada = hérnia a operar). Exceptuam-se os casos de prematuridade com doença pulmonar crónica grave cuja data de intervenção será ponderada tendo em conta o risco de estrangulamento em confronto com o risco anestésico. Em casos especiais (quando o adiamento comporta riscos acrescidos), poderá estar indicada anestesia local, a ponderar em função do contexto clínico e idade. A intervenção é simples, consistindo na laqueação alta do CPV, por vezes com reforço da parede posterior do canal; poderá ser feita em regime ambulatório.

Actualmente, em cada vez maior número de centros cirúrgicos, é utilizada a técnica minimamente invasiva, por via laparoscópica.

Notas importantes:

    1. O hidrocelo poderá evoluir espontaneamente para a regressão até aos 6-12 meses. Quando tal não acontecer, deve suspeitar-se de comunicação com a cavidade abdominal – hidrocelo comunicante; a estratégia de terapêutica cirúrgica é igual à aplicável à hérnia inguinal. No que respeita à data da intervenção, sugere-se a consulta do último capítulo desta Parte do livro.
    2. Situações de hérnia irredutível acompanhadas das manifestações atrás descritas deverão ser encaminhadas de imediato para centro cirúrgico, dadas as possibilidades de encarceração ou estrangulamento. A hérnia estrangulada constitui uma emergência cirúrgica; a hérnia encarcerada deverá ser reduzida ou operada, no máximo, até 24 horas.

HÉRNIA UMBILICAL

Importância do problema

Esta modalidade de hérnia surge quando o anel umbilical não se encerra após a separação do cordão umbilical. Verifica-se maior proporção de casos em crianças com antecedentes de prematuridade e/ou baixo peso de nascimento, síndroma de Down, síndroma de Beckwith-Wiedemann e hipotiroidismo congénito.

Manifestações clínicas

A hérnia umbilical manifesta-se por procidência da região umbilical, coincidindo com aumento da pressão abdominal. Esta modalidade raramente encarcera, verificando-se evolução natural para o encerramento espontâneo até cerca dos três anos de idade.

Tratamento

O tratamento cirúrgico está indicado nos casos de persistência para além dos 4 anos, tendo em conta a tendência para encerramento espontâneo.

HÉRNIA DA LINHA BRANCA

As hérnias da linha branca correspondem a tumefacções redutíveis por protusão de gordura pré-peritoneal ou de saco peritoneal através de fibras de entrecruzamento da linha branca. Conforme a localização, consideram-se as modalidades epigástrica, justa-umbilical e sub-umbilical.

Como exemplo será abordada a hérnia epigástrica.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A hérnia epigástrica manifesta-se por uma ou mais tumefacções redutíveis (anteriormente descritas) na linha média em qualquer localização no trajecto entre o apêndice xifoideu e o umbigo, por vezes acompanhadas de dor. O estrangulamento é raro.

Este problema clínico não deve ser confundido com a chamada diastase dos rectos abdominais, situação considerada fisiológica nos lactentes (tumefacção rectilínea em toda a região da linha branca, mais notória quando a criança contrai o abdómen, com regressão espontânea com a idade).

Tratamento

O tratamento das hérnias epigástricas é cirúrgico electivo, sendo a idade de intervenção ponderada em função de eventuais queixas e da idade.

GLOSSÁRIO

Triângulo de Scarpa → Espaço da região inguinocrural, na face anterior e superior da coxa, limitado em cima pela arcada femoral, do lado externo pela saliência do músculo costureiro, e do lado interno pela saliência do músculo médio adutor da coxa. O triângulo de Scarpa é atravessado pelos vasos femorais, nervo crural e seus ramos.

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