Sistematização

Neste capítulo são abordados dois tópicos fundamentais:

  1. Fenda labial e fenda alvéolo-palatina; e
  2. Anomalias da boca.

As anomalias das orelhas constam do capítulo seguinte.

1. FENDA LABIAL E FENDA ALVÉOLO-PALATINA

Aspectos epidemiológicos 

Estes defeitos, considerados entidades distintas, têm afinidades embriológicas, funcionais e genéticas. Por vezes usa-se o termo de “lábio leporino” (ou semelhante ao do coelho) como sinónimo de fenda labial.

Podem surgir isoladamente ou associados. A incidência de fenda labial, com ou sem fenda alvéolo-palatina, é cerca de 1/800 RN caucasianos, com predomínio no sexo masculino; quanto à fenda palatina, surgindo isoladamente, a incidência é cerca de 1/2.500 RN caucasianos. Estudos epidemiológicos apontam para incidências mais elevadas na Ásia, e menos em África.

São descritos os seguintes padrões:

  1. Fenda isolada ao nível do palato mole (podendo manifestar-se apenas por úvula bífida);
  2. Fenda labial com ou sem fenda do palato duro, podendo envolver, ou não, a arcada alveolar do maxilar superior.

As anomalias descritas podem ser unilaterais ou bilaterais, e completas ou incompletas. A fenda palatina isolada está mais frequentemente associada a outras anomalias congénitas, designadamente dentes deformados, supranumerários ou ausentes. A combinação de fenda palatina e de fenda labial predomina no sexo masculino.

Etiopatogénese

Estão descritas diversas teorias sobre o processo embriológico que origina tais defeitos. Relativamente à fenda labial admite-se, como explicação mais provável, hipoplasia do folheto mesenquimatoso, com falência de fusão dos processos maxilar e nasal mediais. A fenda palatina parece resultar de não aproximação ou fusão das placas palatinas direita e esquerda, no sentido lateral       medial.

A testemunhar a forte componente genética desta anomalia é a demonstração de risco elevado de recorrência (que pode ser da ordem de 50%), havendo antecedentes em familiares do primeiro grau afectados. Há, com efeito, casos descritos dos referidos defeitos, herdados de modo dominante (síndroma de van der Woude).

Por outro lado, a demonstrar o papel possível do factor ambiente, tem sido verificado o efeito teratogénico de determinadas substâncias, tais como fenitoína, ácido valpróico, talidomida, álcool, tabaco, dioxinas, certos herbicidas, etc..

Os referidos defeitos podem também estar associados a determinadas síndromas com ou sem anomalias cromossómicas (Parte III).

Manifestações clínicas

A existência de fenda labial e de fenda alvéolo-palatina pode repercutir-se em diversas funções e no processo de erupção dentária, o que pode ser agravado pela associação a outros defeitos.

Assim, pode verificar-se:

  • Interferência na função de sucção – deglutição, determinando dificuldade de alimentação, sobretudo nos primeiros meses (o que implica frequentemente o uso de tetinas especiais e, inclusivamente, o recurso a gastrostomia nos casos mais complexos);
  • Nos casos de fenda palatina, sobretudo do palato duro, havendo comunicação entre as cavidades oral e nasal, interferência na fonação e audição.

São considerados factores agravantes, a bilateralidade, a existência de defeitos associados, tais como deformação e assimetria do maxilar superior e hipoplasia muscular e óssea regionais.

Nota importante: a verificação dos defeitos em análise não constitui contra-indicação para alimentação ao peito, embora tal acto implique vigilância e cuidados especiais, assim como aprendizagem por parte da mãe lactante, designadamente quanto a riscos existentes (por ex. aspiração de leite para a via respiratória, hipóxia, etc.). Assim, na fase inicial deste processo está indicada a vigilância da oxigenação tecidual através da oximetria de pulso (% de saturação em oxigénio, transcutânea).

Tratamento

Para além dos cuidados gerais inerentes aos vários tipos de disfunção descritos antes, no que respeita à correcção cirúrgica, obviamente indicada, a mesma deverá ser efectuada em centro especializado de cirurgia pediátrica.

Como se pode depreender, a prestação de cuidados implica a colaboração de uma vasta equipa multidisciplinar de enfermeiros, médicos (no âmbito da Pediatria Geral, Medicina Familiar, Cirurgia Pediátrica, Estomatologia, Ortodôncia, Cirurgia Maxilofacial, Otorrinolaringologia, Fisiatria, Genética, etc.), psicólogos, terapeutas da fala, etc..

O seguimento em ambulatório pode ser levado a cabo em instituições com menor nível de diferenciação, a cargo do médico assistente, sendo desejável uma interligação harmoniosa, sem esquecer o papel cooperante e imprescindível da família.

A idade para intervenção cirúrgica é abordada adiante, noutro capítulo, em comparação com a indicada para outros problemas do foro cirúrgico pediátrico.

Complicações

As complicações mais frequentes relacionam-se, sobretudo, com cicatrizes inestéticas, má-oclusão dentária, rinolália, défice auditivo, dificuldades da fala (implicando, por vezes terapia específica), e maior probabilidade de otite média recorrente.

2. ANOMALIAS BUCAIS

Sistematização

O exame objectivo da cavidade bucal (pela inspecção e palpação) permite, na maior parte das vezes, o diagnóstico, não só de alterações congénitas, como adquiridas.

Na perspectiva do cirurgião pediátrico, as principais situações clínicas (algumas correspondendo a variantes fenotípicas) identificadas pelo pediatra ou médico de família que poderão requerer consultadoria ou, eventualmente, intervenção cruenta, são discriminadas a seguir. Dum modo geral, ao encaminhar o caso ao cirurgião, não será necessário proceder a exames complementares.

Rânula

A rânula (do latim Rana = rã) é uma tumefacção esferóide de cor rósea-azulada, que corresponde a quisto de localização sublingual, de dimensões variáveis (tamanho de pequena ervilha ou maior); pode estar em relação com obstrução de canal excretor da glândula sublingual ou de glândula mucosa.

O tratamento é cirúrgico electivo.

Mucocele

A mucocele é uma bolsa quística das glândulas salivares, resultante de obliteração do orifício excretor do canal de Wharton. Pode igualmente tratar-se de quisto com muco acumulado por dificuldade de drenagem de glândula mucosa.

Não tem indicação cirúrgica por ser auto-limitado. (Figura 3)

FIGURA 1. Lábio leporino bilateral.

FIGURA 2. Fenda palatina.

FIGURA 3. Mucocele do lábio inferior.

Anquiloglóssia

Esta variante fenotípica consiste no encurtamento exagerado do freio do lábio inferior impedindo a protusão da língua para além do bordo labial. Sob o aspecto estritamente médico não constitui um verdadeiro problema; contudo, origina certo grau de ansiedade na família pelo facto de “poder dificultar a fala”, o que é controverso. Há casos descritos em que foi demonstrada certa dificuldade na amamentação. Nos casos em que o esforço de protusão origina aspecto de bifidez intermitente da extremidade da língua (desaparecendo quando a mesma se recolhe dentro da boca), nalguns centros, por razões de psicoterapia anti-ansiedade da criança e família, procede-se à incisão do referido freio.

Inserção baixa do freio labial superior

Nesta variante fenotípica, o freio do lábio superior pode ter base de inserção atingindo o bordo gengival superior, o que leva ao afastamento dos incisivos superiores (diastema). Em geral a situação corrige-se até à erupção da dentição definitiva.

No caso de tal não acontecer, nalguns centros procede-se à incisão do freio, o que contribuirá para diminuir ou corrigir completamente o diastema.

Nota importante: poderá verificar-se tumefacção ou dilatação global da glândula sublingual (a glândula que mais directamente está em relação com a cavidade bucal) resultante de obstrução (recorrente) do canal excretor por cálculo. Esta situação, que é mais frequente na submaxilar e parótida (não em relação directa com a mucosa bucal), poderá estabelecer a indicação de sialografia. Como medida simples, está indicado que a criança chupe pastilhas e faça exercícios de mastigação (obviamente em idades apropriadas) no sentido de estimular o débito da secreção salivar; pode proceder-se a massagem/compressão da glândula e, em caso de infecção, a antibioticoterapia.

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