Generalidades sobre tripanossomíases

As tripanossomíases (T) são doenças provocadas por tripanossomas, protozoários flagelados com corpo fusiforme alongado, parasitas do sangue de grande número de animais e do Homem, fáceis de identificar por terem diâmetro maior do que dos elementos constituintes do sangue.

São descritos dois grandes grupos de tripanossomíase (T):

  1. T. africana (doença do sono) causada pelas espécies: – Trypanosoma brucei gambiense, explicando 98% das T. africanas, relacionada com a Gâmbia e estendendo-se na África Central e Ocidental; – Trypanosoma brucei rhodesiense, relacionada com a antiga Rodésia e estendendo-se na África do Sul e Oriental. A região do Uganda é a única zona africana onde coexistem as duas espécies. A T. Africana é transmitida pela picada da mosca tsé-tsé e evolui após um estado febril com lesões cutâneas (tripanides), adenopatias generalizadas, lesões viscerais e meningoencefalite difusa associada a sonolência permanente. Daí, o nome da doença;
  2. T. americana (doença de Chagas) causada pela espécie: – Tyipanosoma cruzi. Esta tripanossomíase tem como principais vectores os insectos da família Reduviidae, subfamília Triatominae, incluindo Triatoma infestans, Rhodinius prolixus e Panstronylus megistus – genericamente chamados triatominas.

Neste capítulo é dada ênfase à doença de Chagas.

Definição e importância do problema

A doença de Chagas ou tripanossomíase americana é uma antropozoonose causada, como foi referido, pelo parasita protozoário Trypanosoma cruzi (T. cruzi). A transmissão ocorre geralmente através de vector (insecto hematófago), ou por via transplacentar (partindo de mulheres grávidas com infecção crónica por T. cruzi); outras modalidades são adiante discriminadas.

Esta patologia afecta mais de 120 milhões de pessoas na América Latina (~ 25%).

A primeira descrição desta doença emergente (com três fases clínicas: aguda, indeterminada e crónica) foi feita por Carlos Chagas em 1909, o qual identificou o vector e o parasita (agente etiológico) como uma causa da doença febril aguda de trabalhadores brasileiros de caminhos-de-ferro. A OMS coloca-a no grupo das 17 doenças tropicais negligenciadas porque:

– afecta preferencialmente populações vulneráveis, com baixos rendimentos;

– constitui uma das principais causas de morbilidade crónica e mortalidade nos países afectados.

Embora historicamente não tenha sido considerada prioritária na atribuição de recursos por governos e organizações, para a investigação e prevenção, na última década foi uma das doenças emergentes mais estudadas. Na ausência de tratamento eficaz, a infecção persiste toda a vida.

Aspectos epidemiológicos

A doença de Chagas estende-se desde o Sul dos Estados Unidos ao Chile e Argentina; a par da maior prevalência no Brasil, Argentina, Bolívia e Venezuela, regista-se inexistência de casos nas Caraíbas, Belize, Suriname e Guiana.

Considerando globalmente a América Latina, em 2010 foi estimada uma prevalência da infecção por T. cruzi de 5,7 milhões, na sequência de valores anteriores de 18 milhões de doentes em 1991.

No entanto, apesar dos progressos ao longo dos anos, a doença de Chagas mantém-se como a doença parasitária ocidental mais importante, sendo responsável pela perda de anos de vida ajustados à incapacidade, 7 vezes superior à malária.

Em cerca de 20%-30% dos doentes infectados existe a probabilidade de desenvolvimento de doença crónica com risco de vida, a qual pode ser tipificada por casos de miocardiopatia e distúrbios gastrintestinais graves.

Para melhor compreensão dos modos de transmissão, importa uma referência ao ciclo de vida do agente Trypanosoma cruzi, implicando eventualmente repetição de conceitos.

Ciclo de vida

O ciclo de vida do parasita T. cruzi* compreende duas fases: de vector e humana. Importa salientar que o vector (insecto hematófago) pode parasitar diferentes animais domésticos e selvagens.

(*) No hospedeiro mamífero, o agente T. cruzi evidencia 3 fases morfogenéticas: amastigotas, tripomastigotas e epimastigotas. Os amastigotas são formas intracelulares encontradas nos tecidos dos mamíferos, esféricas com um curto flagelo, assumindo a forma oval dentro dos tecidos infectados. Os tripomastigotas são formas extracelulares, fusiformes, encontrando-se no sangue e sendo responsáveis pela transmissão da infecção ao insecto vector e pela disseminação da infecção de célula a célula. Os epimastigotas encontram-se no intestino do insecto vector, multiplicando-se no intestino médio e recto dos artrópodes, diferenciando-se em formas metacíclicas. Os tripomastigotas metacíclicos são as formas infecciosas para os humanos, sendo libertados sobre a sua pele ao serem defecados na proximidade da zona da picada, entrando através da pele lesada ou das membranas mucosas. Os tripomastigotas no interior das células do hospedeiro diferenciam-se em amastigotas e replicam-se, diferenciando-se depois em tripomastigotas que, após lise celular, se difundem de novo para a corrente sanguínea.

 

A fase de vector inicia-se quando o vector ingere tripomastigotas no sangue de um hospedeiro mamífero infectado. Os tripomastigotas diferenciam-se em epimastigotas (estádio replicativo nos invertebrados) no intestino médio e migram para o intestino posterior, onde se diferenciam em tripomastigotas infecciosos metacíclicos para serem excretados nas fezes.

A fase humana ocorre quando os tripomastigotas entram através de um local de inoculação ou membrana mucosa intacta e invadem células nucleadas. No citoplasma diferenciam-se em amastigotas intracelulares e replicam-se (tempo de duplicação de 12 horas num período de quatro a cinco dias) até:

  • se transformarem em tripomastigotas e;
  • a lise celular provocar a sua libertação para a circulação sanguínea.

Os tripomastigotas circulantes, não só perpetuam o ciclo de invasão e replicação celular, como podem infectar vectores.

Modos de transmissão

Na fase aguda o parasita transmite-se de diversos modos.

  • Transmissão por vector (mais frequente)
    Trata-se de insectos hematófagos ingerindo tripomastigotas presentes no sangue de mamíferos infectados. De acordo com o ciclo de vida antes descrito, passando aqueles a tripomastigotas metacíclicos, são excretados com as fezes e urina, entrando ulteriormente no corpo humano através da pele, lesada com picada ou abrasão, ou mucosa.
    A transmissão por vector, limitada ao continente americano, é tipicamente rural. Os triatomídeos alimentam-se no período nocturno e podem viver numa variedade de ambientes próximos das habitações, incluindo fendas e buracos nas paredes, tectos e andares de estruturas habitacionais precárias.
    Sabe-se que a transmissão por fezes de um vector infectado não é muito eficaz; contudo, em contexto endémico, a transmissão contínua resulta num aumento significativo da prevalência ao longo do tempo. Tal facto, associado à persistência da infecção para toda a vida, explica que nalgumas regiões da América Central e do Sul, consideradas livres dos vectores domésticos, a seroprevalência de T. cruzi permaneça elevada em adultos.
  • Transmissão congénita/transplacentar (vertical)
    Este modo de transmissão, seguindo-se em frequência ao anterior, ocorre nos países da América Latina onde a doença de Chagas é prevalente em mulheres em idade reprodutiva. Apontam-se percentagens oscilando entre menos de 1% no Brasil e 7% ou mais na Bolívia, Chile e Paraguai.

A maioria das mulheres com infecção por T. cruzi não evidencia sintomas, sendo grande parte das infecções congénitas não diagnosticada com base na apresentação clínica.
O principal determinante biológico do risco de transmissão é a parasitémia materna; quanto maior a carga parasitária em circulação, maior o risco de transmissão materno-fetal. A idade jovem materna tem sido apontada como factor de alto risco segundo alguns estudos (embora outros não corroborem tal), assim como a proveniência de meio rural.
Existem dados limitados que sugerem uma taxa de transmissão superior em mulheres coinfectadas com VIH, o que pode estar relacionado com parasitémia mais elevada (habitual em doentes coinfectados), imunossupressão materna ou ambos. Também as crianças coinfectadas com VIH e T. cruzi têm maior probabilidade de apresentar sintomas, principalmente neurológicos.
Portanto, a determinação da verdadeira taxa de transmissão só é possível através de estudos prospectivos de grávidas infectadas. Em cerca de 20 estudos de coorte desde 1980, a prevalência de infecção por T. cruzi entre mulheres grávidas varia entre 0,7% e 54%. O risco global estimado de infecção por T. cruzi em crianças nascidas de mães infectadas ronda os 5%. A Organização de Saúde Pan-Americana estima mais de 15.000 casos de infecção congénita por ano na América Latina.

 

  • Transfusão de hemoderivados
    Nesta modalidade, o risco de transmissão é ~ 25%. Nesta perspectiva, a migração de pessoas infectadas para países onde não existe a patologia em análise, é uma ameaça. De acordo com a literatura, referem-se as seguintes seroprevalências avaliadas em dadores de sangue (anos de 2001 e 2002), quanto a positividade para T cruzi: Bolívia- 99/1000; Equador- 1,5/1000; USA- 0,01% a 0,20%.
  •  Ingestão de alimentos e bebidas contaminados (por ex. leite)
    De referir que existe a possibilidade (rara) de transmissão através do leite materno em lactantes infectadas. Na fase aguda da infecção materna, o aleitamento está contra-indicado até se verificar a cura pós-tratamento.

Na fase crónica, a interrupção do aleitamento materno não é recomendada na generalidade em mães; deverá, sim, ser ponderada perante parasitémia elevada (fase aguda ou reactivação) ou a presença de fissuras mamilares.

Nalguns casos, pode ser considerado o tratamento térmico do leite materno extraído antes da sua administração. A localização geográfica (e, consequentemente, a estirpe do parasita) foi apontada como factor de risco, dada a variação das taxas de transmissão. No entanto, os resultados de estudos ainda não demonstraram diferenças entre estirpes infectando mães que transmitem, ou não, a infecção.

 

  • Outras formas de transmissão
    Incluem: por transplantação de órgãos sólidos ou de medula óssea, e manipulação de animais infectados ou de material de laboratório, no contexto de doentes previamente infectados por VIH ou de imunossupressão.

Patogénese

No momento da infecção por T. cruzi, existe um período de parasitémia que, com oscilações, pode durar até 2 anos. Após este período, o parasita localiza-se nos tecidos, onde permanece toda a vida.

Existem períodos de parasitémia transitória coincidentes com situações de imunodepressão (por ex. alterações hormonais ao nível do eixo hipotálamo-suprarrenal, tratamentos com imunossupressores, gravidez, etc.).

Tal como foi referido anteriormente, quanto à história natural da doença, podemos distinguir três fases ou estádios evolutivos, os quais têm correspondência com a clínica: aguda, indeterminada e crónica.

Como resultado da resposta imunitária da fase aguda da infecção por T. cruzi, verifica-se o controlo da replicação parasitária, a resolução sintomática espontânea e o desaparecimento da parasitémia.

A sobrevivência na fase aguda depende, pois, da resposta inflamatória, a qual envolve as células imunes inatas e os macrófagos activados pelo interferão-gama e factor de necrose tumoral α.

Na fase crónica, existindo uma falha na contrarregulação da resposta inflamatória, influenciada por factores do parasita e do hospedeiro, a imunidade mediada por células T mantém a replicação parasitária.

Os resultados de estudos sugerem que a resposta imunitária inflamatória do hospedeiro constitui o maior determinante da progressão de doença, sendo a virulência de T. cruzi e o tropismo tecidual possíveis factores contribuintes.

O papel da resposta imunitária materna e neonatal também tem sido investigado, admitindo-se que a activação imune neonatal possa conferir protecção parcial de infecção congénita.

Assim, a patogénese da doença de Chagas, complexa e não totalmente compreendida, parece resultar da combinação de:

    • Lesão celular e neuronal, mediada directamente pelo parasita vivo e;
    • Lesão indirecta, causada pela resposta imunitária contra o parasita e antigénios do hospedeiro.

Outros factores, tais como os genéticos do hospedeiro e do parasita, a carga parasitária, o modo de transmissão, o número de reinfecções e a resposta imunitária inicial e tardia do hospedeiro, poderão influenciar o início, a gravidade e o espectro de manifestações clínicas.

Manifestações clínicas

A doença de Chagas integra diversas formas clínicas dependendo da fase evolutiva de tal patologia (aguda, indeterminada e crónica) e do modo de transmissão. Efectivamente, para um correcto planeamento diagnóstico e terapêutico, importa uma correcta classificação clínica de cada caso.

São esboçadas a seguir as particularidades de cada fase:

    • Fase aguda: pós-infecção, parasita no sangue, duração de 4-8 semanas, assintomática, geralmente evoluindo em 90%-95% dos casos para a fase seguinte, indeterminada e, em 5%-10% dos casos, para a fase crónica;
    • Fase indeterminada: entre 2 e 4 meses após a infecção, parasita quiescente nos tecidos, com parasitémias transitórias, duração de 10-30 anos, assintomática (excepto nos períodos de parasitémia), evoluindo em 30%-40% dos casos para a fase crónica, ou permanecendo nesta fase toda a vida, em 60%-70% dos casos;
    • Fase crónica: entre 4 meses e 30 anos pós-infecção, sintomatologia relacionada com a replicação tecidual crónica, salientando-se tipicamente sintomatologia cardíaca, esofágica e intestinal.

Transpondo os conceitos básicos da epidemiologia e patogénese para a clínica, distinguem-se dois grandes grupos fisiopatológicos de Doença de Chagas:

  • Forma aguda (vectorial, congénita, oral, transfusão e transplante, reactivação no caso de infecção prévia por VIH ou de imunossupressão); e
  • Forma crónica, traduzindo fundamentalmente as repercussões da infecção ao nível tecidual cardíacas, gastrintestinais e indeterminadas).

Pela importância epidemiológica e de saúde pública da modalidade aguda congénita, a mesma é individualizada, resultando, assim, três entidades:

Doença de Chagas Aguda

Após o período de incubação de uma a duas semanas (também referido na literatura entre 5 e 40 dias), inicia-se a fase aguda com a duração de quatro a oito semanas. A maioria dos doentes infectados apresenta sintomas e sinais moderados e inespecíficos, como febre, dor abdominal, anorexia, mal-estar geral, linfadenopatia, hepatoesplenomegália e linfocitose atípica. Contudo, poderá verificar-se ausência de sintomatologia, razão pela qual muitos infectados não são diagnosticados.

Nalguns doentes, poderá verificar-se exantema morbiliforme e ser visível o local de inoculação: uma lesão edematosa, pouco dolorosa, eritematoviolácea, de consistência elástica com adenomegália satélite, designada chagoma. Surge habitualmente na face e extremidades; por vezes, podem ser observados parasitas na lesão.

A inoculação na conjuntiva origina o chamado sinal de Romana (constituído por constelação de achados: edema indolor unilateral característico das pálpebras superior e inferior de coloração violácea, com hiperemia conjuntival e frequentemente associado a linfadenopatia pré-auricular).

O coração, SNC, gânglios periféricos e SRE poderão ser parasitados, determinando gravidade do quadro clínico; o coração é o órgão afectado em primeiro lugar, com inflamação e dilatação das quatro câmaras traduzindo miocardite difusa, a que se associa alteração na condução e sequela de fibrose. Tal pode acontecer em 30% dos casos nesta fase aguda. Pode igualmente verificar-se anemia, linfocitose e trombocitopénia.

Em menos de 1% dos infectados poderá ocorrer derrame pericárdico ou meningoencefalite. A taxa de mortalidade é de 5%-10% na fase aguda, particularmente em crianças pequenas.

Doença de Chagas Congénita

A transmissão de T. cruzi materno-fetal transplacentar pode ocorrer em 0,7%-10% dos casos de grávidas infectadas em qualquer fase da gestação, mais provavelmente no terceiro trimestre.

Da infecção congénita poderá resultar abortamento espontâneo, morte fetal e parto prematuro. No RN vivo com este tipo de infecção congénita, poderá verificar-se anemia, hepatoesplenomegália, púrpura petequial, diátese hemorrágica, icterícia, cardiomegália associada a diminuição da espessura da parede ventricular e mionecrose, e convulsões relacionadas com menigoencefalite. O prognóstico deste quadro é altamente reservado, com sequelas neurológicas diversas, com sobrevivência que raramente ultrapassa a puberdade. O esófago e o cólon, também frequentemente afectados, evidenciam sinais de dilatação e disfunção na motilidade em relação com destruição das células gangliónicas do músculo. Não existe indicação para parto por cesariana nas grávidas com infecção por T. cruzi.

Doença de Chagas Crónica

A manifestação mais frequente de doença de Chagas crónica é a cardiomiopatia crónica, ocorrendo em 30%-40% dos doentes, sobretudo após a puberdade. Os respectivos sinais e sintomas são secundários a insuficiência cardíaca, arritmia, alterações endomiocárdicas e complicações embólicas por arteriolite necrosante da microvasculatura. Os aneurismas apicais ventriculares esquerdos são patognomónicos da doença de Chagas.

As alterações ao nível do sistema gastrintestinal, ocorrendo com mais baixa frequência (8%-10%), envolvem, designadamente, lesão nos neurónios da cadeia parassimpática do plexo intramural da musculatura lisa. Na prática, verificam-se disfunções várias e, mais frequentemente, a existência de megaesófago e megacólon, disfagia, obstipação crónica, odinofagia, tosse, pneumonia de aspiração, entre outra sintomatologia do foro digestivo e respiratório.

Diagnóstico

Na fase aguda, o elevado nível de parasitémia permite a detecção de tripomastigotas móveis por exame microscópico de sangue fresco não coagulado ou em camada leucoplaquetária. Podem também ser visualizados em esfregaços de sangue corados com Giemsa e, em meios específicos, proceder-se a hemocultura.

O nível de parasitémia diminui após 90 dias, mesmo na ausência de tratamento. A reacção em cadeia da polimerase (PCR), evidenciando elevada sensibilidade na fase aguda, é o melhor método para a detecção precoce de infecção num receptor de órgão transplantado de dador infectado, ou após exposição acidental. Os resultados positivos por PCR surgem dias a semanas antes da detecção de tripomastigotas por microscopia.

O diagnóstico da infecção crónica assenta nos testes serológicos IgG, por técnicas ELISA de imunofluorescência indirecta (IFA). Nenhum teste isolado na fase crónica tem sensibilidade e especificidade suficientes; assim, a confirmação diagnóstica exige resultados positivos em dois testes distintos, de preferência de antigénios diferentes (lisado de parasita completo e antigénio recombinante).

A PCR tem sido usada em investigação e monitorização. A sua sensibilidade é muito variável, dependendo designadamente da carga parasitária, do processamento da amostra, das características da população, dos primers e dos métodos de PCR. Por outro lado, um resultado negativo não exclui a infecção.

Os testes quantitativos são úteis na monitorização da reactivação, uma vez que o aumento da carga parasitária ao longo do tempo é o indicador mais precoce e sensível.

No contexto de infecção congénita, o diagnóstico assume aspectos particulares, conforme ocorra antes ou após os nove meses de vida. Nos primeiros seis a nove meses de vida, a demonstração dos parasitas em sangue venoso periférico ou do cordão umbilical por microscopia directa tem elevada especificidade.

Por outro lado, os métodos de concentração revelam maior sensibilidade; entre eles, situa-se o método de micro-hematócrito, amplamente usado na América Latina. Embora tais métodos requeiram uma pequena quantidade de sangue (0,5 mL) e menor processamento, são, no entanto, necessárias amostras repetidas para obter melhoria da sensibilidade (limiar de detecção de 40 parasitas/mL). Esta limitação, em parte explicada pelo aumento progressivo dos níveis de parasitémia nos doentes infectados após o nascimento, com um pico máximo aos 30-60 dias de vida, nem sempre é aceite pelos pais e dificulta um rastreio em larga escala.

As técnicas de biologia molecular apresentam maior sensibilidade, permitindo o diagnóstico de infecções congénitas mais precocemente.

Admite-se que a PCR (reacção em cadeia da polimerase) venha a ser o método padrão para o diagnóstico da doença congénita, logo que a técnica esteja mais disponível, nomeadamente, com o desenvolvimento de kits comerciais.

Nos recém-nascidos sintomáticos, outros exames complementares de diagnóstico recomendados são: hemograma completo, parâmetros de bioquímica, análise sumária de urina, radiografia de tórax, electrocardiograma, ecocardiograma, ecografias abdominal e transfontanelar, fundoscopia e potenciais evocados.

Na ausência de diagnóstico na data do nascimento, recomenda-se o diagnóstico por serologia IgG após os seis a nove meses de idade, período em que se verifica o desaparecimento dos anticorpos maternos em circulação e a passagem à fase crónica.

Segundo as recomendações espanholas, após o primeiro ano de vida, deve pesquisar-se doença de Chagas em qualquer criança proveniente de área endémica ou recém-nascido de mãe com doença de Chagas, em que não se verificou seguimento no período neonatal.

Tratamento

Os únicos fármacos aprovados com eficácia comprovada na doença de Chagas são o benznidazol e o nifurtimox. (Quadro 1)

Na fase aguda e nos casos de infecção congénita diagnosticada precocemente, ambos reduzem a gravidade dos sintomas, diminuem o curso clínico da doença e reduzem a duração da parasitémia detectável.

Na referida fase aguda, estima-se uma taxa de cura de 80% a 90% (e de 90% a 100% nos casos de infecção congénita), antes do primeiro ano de vida. Após o primeiro ano, e até aos 15 anos, a eficácia ronda os 60%. Quanto mais precoce for a instituição de terapêutica na criança, maior será a taxa de seroconversão.

Na fase crónica sintomática, a taxa de sucesso é de 10%-20%; contudo, continua por esclarecer se existe benefício no tratamento para a forma indeterminada.

Os estudos observacionais confirmaram que nas mulheres infectadas, tratadas antes da gravidez, existe um risco significativamente menor de transmitir a infecção por T. cruzi à descendência do que nas mulheres não tratadas. O paradigma actual assenta essencialmente no diagnóstico precoce e no tratamento de crianças, assim como no tratamento de adolescentes e mulheres em idade reprodutiva.

Os referidos fármacos estão contraindicados na gravidez, com base em estudos de animais que apontam para teratogenicidade. Contudo, a exposição acidental não constitui critério para interrupção da gravidez.

Em relação ao aleitamento materno, os dados são limitados para ambos os fármacos (discutido adiante). Habitualmente, o tratamento de mulheres em fase crónica é protelado até ao final da lactação.

QUADRO 1 – Esquema posológico para o tratamento da Doença de Chagas em crianças e adolescentes.

Benznidazol (2x dia, per os, 60 dias)
Idade < 12 anos5-7,5 mg/kg/dia
Idade 12 anos ou >5-7 mg/kg/dia
Nifurtimox (3 a 4 tomas, per os, 90 dias)
Idade < 12 anos15-20 mg/kg/dia
Idade 12 – 17 anos12,5-15 mg/kg por dia
Idade > 17 anos8-10 mg/kg por dia

 

Benznidazol

Derivado nitroimidazol, constitui o tratamento de primeira linha pelas suas propriedades tripanossomicidas superiores ao nifurtimox e pelo perfil de efeitos secundários.

A dosagem recomendada para crianças encontra-se descrita no Quadro 1. Em relação ao tratamento da infecção congénita, num ensaio aleatorizado de tratamento de curta duração com benznidazol (7,5 mg/kg em dose única, durante 30 dias, versus a posologia padrão) confirmou-se a eficácia de ambas as estratégias terapêuticas.

Benznidazol encontra-se disponível apenas sob a forma de comprimidos de 50 ou 100 mg. A sua fraca solubilidade impede a obtenção de formulação de solução oral; assim, para uso na população pediátrica, habitualmente os comprimidos são divididos, esmagados e dispensados em pacotes para dispersão em sumo de fruta ou leite; contudo estes procedimentos podem condicionar erros de dosagem, dissolução incompleta e risco de efeitos adversos.

Recentemente foi desenvolvida uma suspensão líquida oral, com 1% de benznidazol, a partir dos comprimidos, com excipientes seguros e passível de ser preparada em farmácia hospitalar: trata-se, pois, duma alternativa que garante a eficácia, segurança e confiança do tratamento.

Os efeitos secundários mais frequentes são os dermatológicos, em especial a erupção cutânea que regride com administração de anti-histamínico. No entanto, pode progredir para dermatite grave, ou esfoliativa, ou associada a febre e linfadenopatia.

A neuropatia periférica é dose-dependente e ocorre após tratamento prolongado, enquanto a supressão de medula óssea é rara.

Todos os efeitos graves descritos devem motivar a suspensão da terapêutica. Dados recentes sugerem que o benznidazol poderá ser compatível com o aleitamento devido à limitada transferência para o leite materno.

Nifurtimox

Este fármaco é um nitrofurano que inibe a síntese de ácido pirúvico e interrompe o metabolismo glucídico de T. cruzi. A dosagem varia com a idade, conforme foi referido no Quadro 1. Por vezes, são utilizadas doses mais elevadas nas crianças mais pequenas; a tolerância na idade pediátrica é superior à que se verifica nos adultos.

Os efeitos secundários são sobretudo gastrintestinais e neurológicos (sobretudo, anorexia, perda ponderal, tremores, irritabilidade e insónia). Poderão também ocorrer reacções graves, como neuropatia periférica, psicose e anemia hemolítica associada a deficiência de glicose 6-fosfato desidrogenase; tais reacções são dose-dependentes, surgem na fase final do tratamento; habitualmente há reversão interrompendo o fármaco.

Num estudo incidindo sobre série de casos de crianças com infecção congénita, os efeitos adversos foram comuns, na sua maioria, moderados (recusa alimentar em 24%, irritabilidade em 14,5% e vómitos em 6,5% dos casos); em cerca de 5% verificou-se leucopénia e trombocitopénia reversíveis.

A exposição da criança ao nifurtimox parece ser baixa durante o aleitamento materno, embora o risco não esteja bem estabelecido na espécie humana.

Avaliação do tratamento

Durante o tratamento, e quatro semanas após a interrupção terapêutica, a criança deverá ser monitorizada clínica e laboratorialmente, apresentando-se o Quadro 2.

QUADRO 2 – Monitorização clínica e analítica durante a terapêutica.*

*Adaptado de MI González-Tomé et al. Enferm Infecc Microbiol Clin 2013;31(8):535-542
Dias de tratamento15 3045607590
Clínica
Geral: peso, adenopatias, mialgias, artralgias, cansaçoXXXX  
Gastrintestinais: vómitos, anorexia, dor abdominal, diarreiaXXX   
SNC: cefaleia, insónia, alucinações, parestesias, polineuropatiaXXXXXX
Dermatológicas: dermatite, vesículas, erupção cutânea, púrpura, edemaXX    
Análises
Hemograma: anemia, leucopénia, trombocitopéniaXXXXXX
Bioquímica: hipoglicémia, perfil hepático e renalXXXXX 

 

A resposta à terapêutica traduz-se na diminuição dos títulos de anticorpos específicos, a qual se deverá manter após o tratamento. Para demonstração de seroconversão negativa devem ser realizados dois testes com antigénios diferentes. Quer se trate de recém-nascidos tratados, quer de lactentes com início de terapêutica após os nove meses, a seroconversão negativa deve manter-se em, pelo menos, dois resultados negativos, com intervalos de 6 a 12 meses.

Em paralelo, deve ser realizada a detecção de parasitémia por exame parasitológico ou por micro-hematócrito, assim como por testes moleculares. Habitualmente, na primeira semana após o tratamento, desaparece a parasitémia; um resultado positivo indica a persistência do parasita, o que implica o prolongamento ou substituição da terapêutica.

Um mês após o final do tratamento, a obtenção de resultado positivo (testes parasitológicos ou PCR positivos) relaciona-se com falência terapêutica.

No caso de imunodepressão, os resultados dos testes parasitológicos são os únicos relevantes para o seguimento após o tratamento.

Seguimento

Na forma congénita está recomendado um seguimento mínimo de 12 meses para o diagnóstico de transmissão de T. cruzi. Na maioria dos estudos em países endémicos realça-se:

  • Uma diminuição de seguimento da ordem de 80% após os seis meses;
  • Que em menos de 50% dos casos de infecção congénita o diagnóstico e tratamento são correctos.

O seguimento clínico após o tratamento depende da fase da doença, aquando do início da terapêutica. No caso de doença na forma indeterminada, recomenda-se a realização de electrocardiograma e radiografia de tórax, anualmente, até à cura. Quando existe lesão orgânica ou imunodepressão, o seguimento deverá ser individualizado.

Prognóstico

O prognóstico depende da fase clínica e das suas complicações. Na fase aguda, em crianças com menos de 2 anos, é mais reservado, e fatal perante quadro de meningoencefalite, cardiomiopatia e insuficiência cardíaca. A infecção simultânea com VIH agrava ambas as situações.

Os critérios de cura são a eliminação do parasita em circulação, o desaparecimento de anticorpos e a evolução clínica favorável. Em indivíduos com infecção em fase crónica recente (adolescentes) e em adultos, após tratamento, o critério de cura recai sobretudo sobre a seroconversão negativa, com diminuição de, pelo menos, três vezes o título de anticorpos.

Prevenção

Em 2010, a OMS recomendou a promoção do desenvolvimento de medidas de saúde pública em países endémicos e não-endémicos, com especial enfoque nas áreas endémicas, para a prevenção da transmissão por transfusão sanguínea e por transplantação de órgãos, e para a detecção precoce da transmissão congénita.

As medidas de saúde pública para controlo da doença de Chagas congénita assentam em três pilares: prevenção primária, secundária e terciária.

A prevenção primária incide na prevenção da infecção materna, pelo que os programas de controlo de vectores são essenciais. Além disso, o rastreio e tratamento de crianças do género feminino com infecção por T. cruzi pode diminuir o risco de transmissão congénita na idade adulta.

A prevenção secundária baseia-se no rastreio pré-natal para identificação de mulheres seropositivas e respectivo tratamento. De acordo com as recomendações espanholas (país não endémico), deve ser realizado o rastreio:

  • Às grávidas de origem latino-americana (à excepção das Caraíbas);
  • Às grávidas que residiram em zonas endémicas (sobretudo áreas rurais) durante um período prolongado; e
  • Às grávidas nascidas de mães da América do Sul, mesmo que o parto tenha ocorrido numa região não-endémica.

Caso a grávida seja seropositiva, deve ser realizado um exame completo para avaliação de envolvimento visceral (alguns exames poderão ter de ser protelados para o período pós-parto).

No caso de doença materna, o seguimento deverá ser efectuado em consulta de alto risco. Também deve ser realizado o rastreio aos restantes filhos da mãe infectada.

A prevenção terciária, mais promissora, é consubstanciada pelo diagnóstico e tratamento de recém-nascidos infectados, considerando as elevadas taxas de cura. Porém, a inexistência de um teste sensível, específico e prático de rastreio dos recém-nascidos constitui um obstáculo.

A abordagem actual para o rastreio baseia-se na identificação de grávidas seropositivas e no exame parasitológico directo dos recém-nascidos ou lactentes por técnica do micro-hematócrito no cordão umbilical; e, nos casos não diagnosticados, na serologia convencional após os nove meses de idade. Desta abordagem decorrem vários obstáculos, como a sensibilidade do método de micro-hematócrito e a perda de seguimento no primeiro ano de vida, o que dificulta o rastreio sistemático em países endémicos.

Torna-se necessário desenvolver:

    • Melhores testes diagnósticos para permitir o rastreio da infecção congénita;
    • Uma vacina eficaz;
    • Fármacos mais eficazes, seguros e com posologias mais adequadas para o tratamento, em especial na fase crónica.

BIBLIOGRAFIA

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