Sistematização e importância do problema

Os agentes Mycoplasma, um género de bactérias sem parede celular, são os mais pequenos procariotas conhecidos que causam doença na espécie humana. Pelas dimensões (50-250 nm), aproximam-se mais dos vírus do que das bactérias. Trata-se de Gram-negativos com forma muito variável, dependentes da ligação a células do hospedeiro para obtenção de precursores essenciais como nucleótidos, ácidos gordos, esteróis e aminoácidos. Possuem um único genoma e ADN circular, de dupla cadeia (5×108 daltons). A ausência de parede celular rígida reflecte-se no aparecimento de morfologia variável ou pleiomorfismo (cocobacilar, filamentosa ramificada, etc.). Possuem, contudo, uma membrana citoplásmica trilaminar.

Das 16 espécies de Mycoplasma isoladas da espécie humana, M. pneumoniae é o principal agente de infecções respiratórias em crianças de idade escolar, adolescentes e jovens adultos.

Ureaplasma constitui outro género que se integra nos Mycoplasmas genitais.

1. INFECÇÕES POR Mycoplasma pneumoniae

Aspectos epidemiológicos

As infecções por este microrganismo são endémicas nas grandes comunidades, podendo ocorrer surtos epidémicos em ciclos cada 3-7 anos. Esporádicas nas pequenas comunidades, podem ocorrer surtos epidémicos irregularmente no tempo.

Trata-se de patologia pouco frequente antes dos 3 anos, de expressão clínica tanto mais ligeira quanto mais baixa a idade, e pico de incidência na idade escolar. De acordo com diversos estudos epidemiológicos, explica entre 7%-40% das pneumonias adquiridas na comunidade dos 3-15 anos.

Com um período de incubação ~ 1-3 semanas, ocorre através da contaminação por gotículas respiratórias, sobretudo em comunidades ou instituições de grande concentração de pessoas, em ambiente fechado.

Etiopatogénese

As células do epitélio respiratório ciliado são o alvo dos microrganismos às quais estes se ligam através de junção de glicoproteína ou glicolípido sulfatado, penetrando nelas depois, e em cujo citoplasma sobrevivem; como consequência verifica-se citólise (em parte explicável por toxina ou pela produção de peróxido de hidrogénio), disfunção ciliar e, ulteriormente, destacamento ou “descamação” celular.

Acrescenta-se que o agente pode actuar sobre células de outros aparelhos e sistemas, determinando também sintomatologia decorrente de tal acção, cujo mecanismo não está completamente esclarecido.

Como efeito da acção (complexa) do microrganismo verifica-se activação policlonal dos linfócitos B e de células T CD4+, o que por sua vez amplifica a resposta imune com libertação de várias citocinas pró-inflamatórias e anti-inflamatórias, interferões vários, TNF-alfa e outras citocinas. Como resposta do hospedeiro agredido surgem diversas reacções de imunidade celular e anticorpos que o protegem ou contribuem para a cura.

De salientar que situações crónicas de hipogamaglobulinémia, drepanocitose ou síndromas de imunodeficiência primária predispõem a infecções respiratórias de maior gravidade. Todavia, M. pneumoniae não se comporta como agente oportunista em doentes com síndroma de imunodeficiência adquirida.

M. pneumoniae pode ser detectado por reacção da polimerase em cadeia (PCR) em diversos locais extra tracto respiratório, tais como sangue, líquido pleural, LCR e líquido sinovial. Este facto aponta para a possibilidade de o efeito ao nível de diversos territórios se relacionar, mais com acção directa da invasão do agente, do que com mecanismo imunológico.

Manifestações clínicas

No que respeita às manifestações do tracto respiratório, este tópico foi abordado na Parte XIV, capítulo sobre Pneumonia, cuja Figura 1 mostra o respectivo padrão de pneumonia.

Quanto às manifestações extrapulmonares (que podem surgir antes, durante, ou depois das manifestações respiratórias e, inclusivamente, em doentes sem manifestações respiratórias, e outrora consideradas complicações), pode proceder-se à seguinte sistematização:

  • gastrintestinais (gastrenterite, hepatite colestática, pancreatite, gastropatia hipertrófica com perda de proteínas, elevação das transaminases, etc.);
  • génito-urinárias (nefropatia por IgA, glomerulonefrite aguda, nefropatia tubulointersticial, insuficiênca renal, etc.);
  • dermatológicas (eritema nodoso, exantema maculopapuloso, urticária, síndroma de Stevens Johnson, eritema multiforme, etc.);
  • músculo-esqueléticas (artromialgias, miosite aguda, síndroma símile febre reumática “sem cardite”, etc.);
  • cardiovasculares (pericardite, miocardite, endocardite, etc.);
  • oculares (conjuntivite, uveíte, retinite, iridociclite, etc.);
  • neurológicas (meningite asséptica, meningoencefalite, paralisia de pares cranianos, ataxia cerebelosa, síndroma de Guillain-Barré, etc.); quanto à encefalite ocorrendo dentro de 5 dias após início dos sintomas prodrómicos, a mesma poderá ser devida a invasão directa do SNC; se ocorrer para além de 7 dias após início daqueles, tratar-se-á provavelmente de encefalite por mecanismo autoimune;
  • hematológicas (crioaglutininas IgM, trombocitopénia, púrpura trombocitopénica trombótica, CIVD, anemia aplástica, anemia hemolítica com prova de Coombs positiva e reticulocitose cerca de 2-3 semanas após início da doença – a hemólise grave, rara, pode ser documentada por determinação do título de hemaglutininas frias (> 1/512).

Diagnóstico

  1. Na forma clássica de infecção do tracto respiratório, o diagnóstico etiológico pode fazer-se através do exame cultural de secreções da faringe ou expectoração, método que não permite resposta rápida (~ 1 semana). A sensibilidade desta prova é baixa, estando em desuso.
  2. Considerando a infecção por M. pneumoniae na perspectiva global (formas respiratórias e extrarrespiratórias), cumpre salientar as seguintes provas:
    • provas serológicas, sendo que a mais popular e exequível é a da fixação do complemento; título (elevado) de anticorpos IgG anti- M. pneumoniae com subida 4 vezes no período entre 10 dias e 3 semanas é sugestivo da respectiva infecção; a detecção de IgM específicas por imunofluorescência não distingue entre infecção aguda e infecção recente anterior;
    • determinação de anticorpos IgM/crioaglutininas dirigidos contra antigénio I dos eritrócitos, em desuso, por sensibilidade e especificidade baixas;
    • técnicas de PCR a partir de exsudado da naso ou orofaringe e doutros produtos biológicos (ver atrás) é a prova de eleição, rápida, com sensibilidade e especificidade entre 80% e 100% sempre que se necessita de confirmação microbiológica.

Tratamento

Para além de medidas gerais descritas antes relativamente às formas clínicas do tracto respiratório, cabe referir que a medida mais efectiva para a erradicação de M. pneumoniae é a antibioticoterapia com claritromicina ou azitromicina. Verificando-se surtos em instituições, é recomendada a profilaxia dos contactos com azitromicina, designadamente nas situações predisponentes atrás descritas (hipogamaglobulinémia, drepanocitose, etc.).

Contudo, nas formas extrarrespiratórias, apenas parece ser consensual entre especialistas antibioticoterapia nos casos de artrite, doentes imunodeprimidos, compromisso cardíaco ou hemólise. Nas formas neurológicas, tendo em conta a importância do mecanismo imunológico, a antibioticoterapia é controversa, embora se admita o papel do macrólido como imunomodulador; nalguns centros propõe-se a utilização de antibioticoterapia com levofloxacina, corticóides e de imunoglobulina intravenosa.

 Complicações

As complicações neurológicas (que surgem, em média 10 dias após doença respiratória) incluem meningoencefalite, mielite transversa, meningite asséptica, ataxia cerebelosa, paralisia de Bell, surdez, encefalite desmielinizante aguda e síndroma de Guillain-Barré; contudo, podem surgir sem doença respiratória prévia em cerca de 20% dos casos.

Prognóstico

As infecções fatais são raras. Com o desenvolvimento da tecnologia da imagem (TAC de alta resolução) demonstrou-se numa baixa percentagem de crianças pequenas com antecedentes de doença pulmonar por M. pneumoniae: espessamento da parede brônquica, alterações da perfusão pulmonar e bronquiectasias. Em geral há recuperação completa com excepção no respeitante às sequelas de encefalite.

2. INFECÇÕES por OUTRAS ESPÉCIES de Mycoplasma

As três espécies M. hominis, M. genitalium e Ureaplasma urealyticum são patogénios humanos urogenitais; colonizam o tracto genital feminino, podendo originar corioamnionite, colonização dos RN e infecção perinatal. Estão muitas vezes associadas a infecções sexualmente transmitidas, tais como uretrite não gonocócica.

Duas outras espécies de Mycoplasma genitais (M. fermentans e M. penetrans) podem ser isoladas de secreções, quer do tracto respiratório, quer do tracto genital, com maior frequência em doentes com infecção por VIH.

Os restantes membros são provavelmente saprófitas, excepto em circunstâncias invulgares, como é o caso de M. salivarium, associado a artrite na hipogamaglobulinémia.

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