Definição, etiopatogénese e importância do problema
A miocardite é uma doença inflamatória do músculo cardíaco caracterizada por infiltrado leucocitário associado a degenerescência e/ou necrose não isquémica dos miócitos.
Sendo a miocardite uma causa importante de morte súbita, regista-se uma diferença significativa entre a sua incidência em estudos clínicos (0,01 a 0,3%) e necrópsicos (1 a 4%).
Sob o ponto de vista etiológico, as miocardites consideram-se de causa infecciosa (representam mais de 2/3 dos casos), autoimune, tóxica, e de causa desconhecida. Os agentes infecciosos incluem bactérias, riquétsias, parasitas, fungos e vírus Cocksackie B, adenovírus, citomegalovírus e herpes vírus. Nas causas autoimunes incluem-se febre reumática, lúpus e artrite reumatóide, entre outras. Alguns fármacos (como penicilina, adriamicina e anfotericina B) e substâncias tóxicas (como álcool e metais pesados), podem ser responsáveis por miocardite. Descrevem-se ainda miocardites secundárias no contexto de esclerodermia e de sarcoidose.
Manifestações clínicas
A apresentação clínica da miocardite tem um espectro variável, secundário ao grau de lesão miocárdica e resposta autoimune subsequente. A doença inicia-se por um pródromo “simile gripal” incaracterístico que antecede os sintomas e sinais por um período de dias a semanas.
Nos casos mais ligeiros, a sintomatologia inclui principalmente precordialgia, a qual se intensifica com o esforço físico; nos casos mais graves, a apresentação clínica inclui queixas gástricas (secundárias a baixo débito intestinal) e cansaço fácil ou de instalação súbita, associados a outros sintomas e sinais de insuficiência cardíaca (má perfusão, pulso alternante, polipneia, edema, taquicardia, ritmo de galope ou choque cardiogénico). A miocardite pode apresentar-se ainda como arritmia ou morte súbita.
Exames complementares
Existem várias técnicas laboratoriais de identificação vírica (no sangue, secreções ou músculo cardíaco) sendo o diagnóstico definitivo de miocardite obtido por análise histopatológica de fragmentos miocárdicos. Se a biópsia for feita nos dois meses após o início do quadro clínico, a percentagem de doentes com alterações histológicas que cumprem os chamados critérios de Dallas pode atingir 40%.
A radiografia do tórax mostra sinais de congestão pulmonar e cardiomegália (que pode estar ausente nos casos de evolução aguda). O electrocardiograma está alterado em quase todos os doentes; os achados mais típicos são alterações da repolarização, baixa voltagem dos complexos QRS, podendo estar presentes hipertrofia ventricular, extrassistolia ventricular, arritmias, bloqueios de condução auriculoventriculares e padrões sugestivos de enfarte.
O ecocardiograma mostra sinais de dilatação ventricular esquerda com má função global ou alterações da mobilidade segmentar, insuficiência mitral e, por vezes, derrame pericárdico.
A ressonância magnética (RM) tem-se revelado recentemente um importante instrumento diagnóstico não invasivo, com as sequências de realce tardio a mostrarem áreas de inflamação miocárdica. A sensibilidade e especificidade da RM para o diagnóstico da miocardite são 100% e 90%, respectivamente.
Tratamento e prognóstico
O tratamento sintomático consiste em suporte inotrópico endovenoso, redução da pós-carga (com vasodilatadores), diuréticos e anticoagulação. Recentemente, têm sido propostas várias modalidades que interferindo nos mecanismos fisiopatológicos da doença, em particular na modulação da resposta autoimunitária do doente. Entre estas abordagens, que continuam controversas, destacam-se a administração endovenosa de gamaglobulina na fase aguda, na dose de 2 g/kg, e a terapêutica imunossupressora na fase aguda da doença (corticóides, ciclosporina). De salientar que se considera prudente a não utilização desta última na fase aguda da doença, por risco de agravamento da disseminação vírica.
A utilidade da terapêutica imunossupressora, passada a fase aguda, é apoiada em vários ensaios clínicos não controlados. A terapêutica específica antivírica tem sido aplicada nalguns centros (aciclovir para o VEB e pleconaril para os enterovírus). O desenvolvimento de uma vacina anti-enterovírus e adenovírus poderá contribuir decisivamente para o combate à miocardite vírica.
A sobrevida dos doentes com miocardite, hospitalizados, pode atingir 89%, graças à utilização de dispositivos externos de assistência ventricular, ou transplante. A idade mais jovem e a gravidade do quadro clínico são factores de mau prognóstico. Estima-se que um terço dos sobreviventes venha a necessitar de transplante cardíaco.
GLOSSÁRIO
Pulso alternante > Pulso em que há alternadamente uma sístole com onda de pulso de amplitude normal, e outra sístole com diminuição da referida amplitude.
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