Definição e importância do problema

Entende-se por comunicação interauricular (CIA) qualquer solução de continuidade no septo que separa as duas aurículas, com excepção do foramen ovale cuja permeabilidade é fundamental durante a vida fetal.

Após o nascimento, devido ao aumento de pressões na aurícula esquerda, dá-se o seu encerramento funcional e, durante o primeiro ano de vida, o encerramento anatómico. Em 25% a 30% dos casos, o encerramento anatómico não é completo; a situação remanescente corresponde ao chamado foramen ovale patente.

A comunicação interauricular aparece frequentemente isolada e classifica-se de acordo com a posição que ocupa no septo interauricular, a sua embriologia e o seu tamanho. (Figura 1)

  1. Comunicação interauricular tipo fossa ovalis – erradamente designada por CIA tipo ostium secundum, é a forma mais frequente representando 6% a 10% de todas as cardiopatias congénitas. Predominando no sexo masculino (2/1), ocorre de forma esporádica, embora estejam descritos casos de incidência familiar. Pela sua localização, deve fazer-se o diagnóstico diferencial com foramen ovale
  2. Comunicação interauricular tipo ostium primum – localiza-se numa posição caudal em relação à fossa ovalis. Embriologicamente, resulta de uma alteração do desenvolvimento do septo auriculoventricular, em particular do septum primum, devendo, por isso, ser classificada no grupo dos defeitos do septo aurículo-ventricular.
  3. Comunicação interauricular tipo sinus venosus – situa-se, posteriormente à fossa ovalis e acompanha-se geralmente de anomalias de conexão das veias pulmonares direitas.
  4. Comunicação interauricular tipo seio coronário – situa-se no local de abertura do seio coronário, que surge sem tecto (unroofed coronary sinus) e associa-se à persistência de veia cava superior esquerda que, em tal circunstância, drena no tecto da aurícula esquerda.

FIGURA 1. Tipos de CIA

Fisiopatologia  

As implicações fisiopatológicas e clínicas da presença de uma comunicação interauricular dependem do volume do shunt esquerdo-direito por ela condicionado. Nos casos com grande fluxo de sangue através da CIA, há dilatação da aurícula e do ventrículo direitos. As cavidades esquerdas, nos casos de comunicação interauricular isolada, têm dimensões normais ou ligeiramente diminuídas. O volume de shunt esquerdo-direito entre as aurículas é condicionado pela distensibilidade relativa dos dois ventrículos, e não pelas dimensões da lesão.

O ventrículo direito tem geralmente maior distensibilidade e pressões mais baixas, o que favorece fluxo da aurícula esquerda para a direita. Durante as primeiras semanas após o nascimento, a pressão no ventrículo direito ainda é elevada pelo que, na presença de uma comunicação interauricular, o shunt interauricular é pequeno. Este aumen ta gradualmente à medida que baixam as resistências pulmonares e aumenta a distensibilidade do ventrículo direito. O aumento da “carga volumétrica” é bem tolerado pelo ventrículo direito e não provoca insuficiência cardíaca. As resistências pulmonares são baixas porque as artérias pulmonares vão-se dilatando passivamente à medida que o fluxo sanguíneo aumenta, sendo que as alterações provocadas pela comunicação interauricular são, em geral, reversíveis com a correção do defeito. No entanto, podem desenvolver-se lesões vasculares secundárias ao aumento de débito pulmonar, as quais se podem tornar irreversíveis (doença vascular pulmonar).

A evolução destas lesões é lenta e varia de doente para doente, sendo rara a sua instalação antes da idade de 15 anos. Nos doentes em que se desenvolva doença vascular pulmonar, o volume do shunt esquerdo-direito diminui, podendo mesmo haver inversão com fluxo direito-esquerdo, o que se traduz pelo aparecimento de cianose. Contrariamente às comunicações interventriculares, o encerramento espontâneo das comunicações interauriculares é raro (cerca de 3% dos casos), sendo ainda mais raro após os dois anos de idade.

Manifestações clínicas

As comunicações interauriculares de pequena e média dimensão não originam sintomas durante a infância, sendo habitualmente diagnosticadas por auscultação de sopro cardíaco ou de desdobramento fixo do segundo ruído cardíaco. Nos defeitos de grandes dimensões, as manifestações clínicas podem ter início por volta das três a seis semanas de vida (quando baixam as resistências vasculares pulmonares); são consequência de insuficiência cardíaca ligeira, que se traduz por progressão lenta de peso, polipneia, taquicardia e hepatomegália.

O aumento do fluxo através do ventrículo direito provoca aumento da duração da sístole ventricular direita, responsável pelo desdobramento fixo do segundo ruído; isto é, deixa de haver a variação fisiológica dos dois componentes do segundo ruído durante a respiração uma vez que o débito sistólico do ventrículo direito não varia com os ciclos respiratórios, ao inverso do normal. Pode-se auscultar sopro de expulsão de grau 2 a 3/6 no segundo espaço intercostal esquerdo junto do bordo do esterno, como consequência do aumento do fluxo através da válvula pulmonar (estenose “relativa” – gradiente de débito).

Nos casos com doença vascular pulmonar poderá haver inversão do shunt interauricular com cianose e insuficiência cardíaca – reacção de Eisenmenger. Além disso, nos doentes que cheguem à vida adulta sem terem sido tratados, existe o risco de aparecimento de arritmias auriculares nomeadamente flutter ou fibrilhação e consequente dilatação da aurícula esquerda.

EXAMES COMPLEMENTARES

Radiografia do tórax

Nos casos em que exista grande shunt interauricular poderá haver dilatação do ventrículo direito e do tronco da artéria pulmonar. A dilatação da aurícula direita não é, em geral, visível na radiografia em posição póstero-anterior. A ausência da imagem da veia cava superior é um sinal pouco descrito, mas frequente nos defeitos grandes. Existe aumento da vascularização até à periferia dos campos pulmonares (plétora). ( Figura 2)

FIGURA 2. Radiografia do tórax de uma criança com CIA, mostrando o ingurgitamento hilar e dilatação da artéria pulmonar típicos, sem cardiomegália

Electrocardiograma

A maioria dos doentes evidencia ritmo sinusal. Nalguns casos, pode haver aumento do intervalo P-R, traduzindo atraso de condução aurículo-ventricular (bloqueio aurículo-ventricular de primeiro grau). Nas comunicações interauriculares grandes com shunt significativo não se verifica a arritmia respiratória fisiológica; tal facto tem tradução no ECG: perda da variabilidade respiratória da frequência cardíaca. O eixo do QRS no plano frontal é normal e em quase todos os casos existe padrão rSR’ (com R’>r) nas derivações pré-cordiais direitas, traduzindo dilatação do ventrículo direito. De notar que o padrão rSr’ existe numa percentagem importante de crianças (dizemos que este padrão é “normal” na criança). Não representando qualquer tipo de “bloqueio”, deve evitar-se a designação de “padrão de bloqueio incompleto de ramo direito”. Para se diagnosticar dilatação ventricular direita, a amplitude da onda R’ no complexo rSR’ deverá ser superior a 15 mm nas crianças com menos de um ano de idade, e superior a 10 mm nas crianças mais velhas.

Ecocardiograma

É o exame que permite fazer o diagnóstico. O ecocardiograma modo M permite medir as dimensões das cavidades do coração e as características do movimento do septo interventricular que, na presença de dilatação do ventrículo direito por sobrecarga de volume, apresenta movimento paradoxal ou aplanado. O ecocardiograma (modo bidimensional) fornece dados relativos ao número, localização e dimensões das lesões; e o Döppler codificado em cor permite avaliar as características do fluxo interauricular e a relação entre os débitos pulmonar e sistémico. (Figura 3)

Nos doentes com “má janela” (por deformação torácica, obesidade, doentes adultos e outros) pode ser necessário recorrer ao ecocardiograma transesofágico, o qual permite melhor definição da morfologia e dimensões dos defeitos e sua relação com estruturas adjacentes.

Cateterismo cardíaco

Não está indicado o cateterismo cardíaco diagnóstico por rotina nesta patologia, uma vez que a ecocardiografia permite a demonstração de todos os aspectos fundamentais para o diagnóstico e orientação terapêutica. Esta técnica reserva-se para o tratamento por cateterismo de intervenção.

FIGURA 3. Imagens de ecocardiografia num plano quatro câmaras, mostrando CIA tipo fossa oval, central e shunt esquerdo-direito por Döppler codificado em cor (a vermelho)

Tratamento

O tratamento destina-se, em geral, à prevenção da evolução para doença vascular pulmonar e ao aparecimento de arritmias na idade adulta. Está também indicado em todos os casos em que possa existir risco de acidentes vasculares cerebrais por embolização através da comunicação interauricular. Os defeitos de grandes dimensões, quando responsáveis por sintomas e sinais de insuficiência cardíaca, podem necessitar de tratamento médico com diuréticos e digitálicos.

O encerramento (percutâneo ou cirúrgico) está indicado em todos os doentes com mais de dois anos de idade nos quais a relação entre débitos pulmonar e sistémico (Qp/Qs) seja superior a 1,5.

  1. Tratamento percutâneo – É actualmente a técnica de escolha para o encerramento da comunicação interauricular tipo fossa oval, em doentes bem seleccionados, através da colocação de dispositivos por via percutânea. É um procedimento seguro, eficaz, e com taxa de complicações baixa. O mesmo, implicando ser orientado por ecocardiografia transesofágica ou intravascular, exige tempo de internamento mais curto do que a cirurgia e não necessita de circulação extracorporal nem de toracotomia (pelo que não deixa cicatriz). Não está indicado nos restantes tipos de comunicação interauricular.
  2. Tratamento cirúrgico – tem indicação para os casos em que esteja contraindicado o cateterismo terapêutico pela idade e peso da criança, ou por anatomia desfavorável. Apresenta bons resultados e baixa taxa de complicações. A mais frequente é o derrame pericárdico pós-pericardiectomia, ocorrendo em cerca de 5% dos doentes e obrigando ao prolongamento do internamento e a terapêutica médica anti-inflamatória e diurética. O risco de mortalidade e morbilidade cirúrgicas é mínimo. Ao contrário do indicado para a maioria das lesões cardíacas, segundo a American Heart Association, a profilaxia da endocardite bacteriana não é necessária nas comunicações interauriculares isoladas (excepto nos defeitos de septo aurículo-ventricular incompletos – ostium primum).

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