Definição e importância do problema
A cetoacidose diabética (CAD), frequentemente, a forma de apresentação inicial da diabetes tipo 1 na criança, é a sua complicação aguda mais grave. Constitui igualmente uma urgência terapêutica e a principal causa de internamento e de mortalidade da criança diabética, com um risco estimado de morte de 0,2 a 1%, essencialmente por edema cerebral.
Tal situação surge como consequência das alterações metabólicas e hidroelectrolíticas secundárias a diminuição da insulina circulante eficaz e, como consequência, à elevação das hormonas de contrarregulação (glucagom, catecolaminas, cortisol e hormona do crescimento) que, para além de contribuírem para a hiperglicémia, estimulam a cetogénese.
Os critérios bioquímicos para o diagnóstico de CAD são: hiperglicémia, (> 200 mg/dL), acidose metabólica (pH < 7,25 e/ou bicarbonato < 15 mEq/L), cetonúria e cetonémia. Considerando o parâmetro “hiato aniónico” [Na–(Cl+HCO3)], indicador indirecto dos níveis de corpos cetónicos, o valor deste > 12 mEq/L é compatível com CAD.
A gravidade da CAD pode ser ordenada pelo grau de acidose, variando de grave (pH < 7,1 e bicarbonato < 5 mEq/L) a moderada (pH 7,2 a 7,1 e bicarbonato 5 a 10) e ligeira (pH 7,2 a 7,1 e bicarbonato > 10).
A terapêutica consiste na correcção das alterações hidroelectrolíticas (desidratação/choque), do equilíbrio ácido-base e da hiperglicémia, através da reposição hídrica e iónica, da correcção da acidose, e dos níveis de insulina (ver capítulo anterior).
De acordo com os peritos e investigadores no âmbito da CAD, no ano de 2019 ainda subsistem controvérsias. Baseando-se as normas de orientação clínica e as recomendações fundamentalmente em considerações teóricas, existe grande variabilidade dos protocolos adoptados, de instituição para instituição, sem diferenças significativas quanto aos resultados. As grandes questões investigadas têm sido as relacionadas com a velocidade de perfusão de solutos e o respectivo conteúdo em sódio (designadamente, utilização de NaCl a 0,9% ou a 0,45%).
Constituindo uma emergência terapêutica e a principal causa de internamento e de mortalidade na criança diabética, o risco estimado de morte (0,2 a 1%) relaciona-se essencialmente com o surgimento de edema cerebral, o qual pode originar hipertensão intracraniana e lesão do sistema nervoso central.+
+A patologia de base “diabetes mellitus” é um continuum. Por razões didácticas a CAD foi considerada separadamente como complicação da primeira; por sua vez, o edema cerebral foi considerado uma das complicações da CAD. |
ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS
A diabetes mellitus constitui uma das doenças crónicas mais comuns a nível mundial.
Referindo-nos aos EUA, um país com a publicação de estudos epidemiológicos em larga escala, foram apurados os seguintes dados:
- 192.000 crianças com diagnóstico de diabetes e uma incidência de hospitalizações por CAD em 2014 de 188.965 (correspondendo 11% das admissões por CAD em doentes com menos de 17 anos);
- cerca de 30% de crianças com novo/recente, anteriormente desconhecido diagnóstico de DM 1 têm como forma de apresentação a CAD;
- cerca de 10% de crianças com novo/recente diagnóstico de DM 2 têm como forma de apresentação a CAD;
- em crianças com o diagnóstico conhecido de DM 1, o risco de CAD oscila entre 1% e 10% de CAD/paciente/ano.
- de acordo com estatísticas hospitalares, com progressos ao longo dos anos, estima-se uma letalidade actual de 0,33%.
ETIOPATOGÉNESE
Como foi referido no capítulo anterior, a insulina é uma hormona polipeptídica segregada pelas células beta do pâncreas sob acção de estímulos beta-adrenérgicos e parassimpáticos. Tendo uma acção anabolizante, leva a um aumento da captação tecidual de glucose, sua entrada no meio intracelular, e a um estímulo da síntese do glicogénio hepático e muscular.
No fígado promove inibição da neoglicógenese e da glicogenólise; no músculo, estimula a síntese proteica e inibe a proteólise; e, no tecido gordo, promove a captação de glucose e lipoproteínas, estimula a lipogénese, e inibe a lipólise.
A CAD ocorre quando as concentrações de insulina sérica são inadequadas face a:
- deficiência absoluta (tendo como base a falência progressiva das células beta pancreáticas por destruição autoimune na DM 1 não diagnosticada), ou
- deficiência relativa (por estresse, infecção, administração inadequada de insulina) em relação com níveis elevados de hormonas de contrarregulação (catecolaminas, cortisol, glucagom e hormona de crescimento).
A combinação de:
- deficiência de insulina e de
- aumento dos níveis de hormonas de contrarregulação, levam a gluconeogénese e a glicogenólise, com aumento da produção de glucose e à diminuição de utilização periférica da mesma glucose.
Como consequência, verifica-se hiperglicémia, hiperosmolalidade, hiperlipólise e cetogénese. Ou seja, a diminuição, ou ausência persistente de insulina condiciona a passagem de um estado anabólico a um estado catabólico, com neoglicogénese, glicogenólise, cetogénese e proteólise.
Quando o limiar de excreção renal para a glicose exceder ~9,1-11,1 mmol/L, a glicosúria e a hipercetonémia causam diurese osmótica, poliúria, desidratação, e perda de electrólitos (incluindo sódio, potássio, magnésio, cálcio e fosfato).
Consequentemente surge a estimulação da produção das hormonas de estresse e, no caso de não se verificar resposição de fluidos, electrólitos e insulina, a desidratação/hipovolémia e hipoperfusão agravam-se, originando acidose metabólica e láctica, podendo seguir-se desfecho fatal. (Figura 1 )
A patogénese do edema cerebral, a complicação mais grave da CAD, (sendo mais frequente na criança do que no adulto), não é totalmente compreendida. Têm sido sugeridos múltiplos mecanismos, persistindo ainda controvérsia sobre se terá maior importância a velocidade de administração dos fluidos ou a composição dos mesmos. Os primeiros estudos apontavam para o papel da administração de fluidos hipotónicos determinando desvio dos fluidos pelas diferenças da osmolalidade entre os compartimentos extravascular e intravascular intracraniano (desvio espaço vascularà parênquima cerebral.)
As novas teorias, apoiadas em imagiologia funcional, sugerem que o edema resulta de um fenómeno lesivo explicado por hipoperfusão seguida de reperfusão, neuroinflamação (edema vasogénico associado a aumento da permeabilidadede barreira hematoencefálica).
Com efeito, estudos imagiológicos recentes através de ressonância magnética, espectroscopia próxima dos infravermelhos e de ultrassonografia Doppler transcraniana demonstraram que o edema cerebral é de tipo vasogénico.
FIGURA 1. Fisiopatologia da CAD
Manifestações clínicas
Globalmente, o factor etiológico mais comum de CAD é a diabetes mellitus do tipo 1 (DM 1) de início recente. Tal patologia pode igualmente ser observada em crianças com DM 1 e infecção, DM 1 e outra doença intercorrente, ou administração inadequada de insulina. De referir que a CAD poderá também surgir em crianças com DM 2).
Determinadas situações – com o significado de factores de risco – tais como, administração de corticóides em altas doses, fármacos antipsicóticos, diazóxido e medicações com efeito imunossupressor, poderão precipitar CAD em pacientes na ausência de conhecimento prévio do diagnóstico de DM 1.
As manifestações clínicas mais frequentes de CAD são:
- polidipsia e poliúria por diurese osmótica devida à desidratação hiperosmolar por hiperglicémia;
- náuseas, vómitos e hálito cetónico (pela cetose);
- perda de peso e confusão mental/coma (a avaliar pela escala de Glasgow), existindo uma boa relação entre as manifestações neurológicas e o grau de hiperosmolaridade sérica.
Hiperpneia, taquipneia e dor abdominal são frequentes, podendo levar a dificuldades de diagnóstico diferencial com episódios de doença respiratória ou com situações de abodómen agudo.
A cetoacidose, evidenciada pelo hálito cetónico, estimulando os quimiorreceptores centrais e periféricos que regulam a respiração, leva ao tipo de respiração de Kussmaul (excursões respiratórias “rápidas e profundas”).
A dor abdominal e o quadro de íleo paralítico que se pode estabelecer resultam da deplecção de potássio, da acidose e da hipoperfusão esplânquica.
A desidratação é uma constante da CAD, mas a sua característica de hiperosmolaridade e predomínio intracelular, com possível ausência de prega cutânea nas fases iniciais, pode levar à subvalorização do diagnóstico.
Segundo a experiência de alguns centros, foram verificados aumentos dos teores de amilase e triglicéridos, assim como leucocitose.
Apesar da desidratação grave, numa fase inicial os pacientes evidenciam geralmente pressão arterial normal, admitindo-se que tal facto seja explicável pela acção do teor aumentado de catecolaminas e pela libertação de hormona antidiurética estimulada pela elevada osmolalidade sérica.
Assim, no contexto de CAD, a avaliação da pressão arterial não constitui um indicador suficientemente confiável na avaliação do estado cardiovascular. De acordo com diversos estudos, são mais confiáveis a frequência cardíaca e o tempo de recoloração capilar, correspondente ao grau de perfusão periférica.
Por fim, com a falência dos mecanismos compensatórios, surge hipotensão, choque e alteração do estado mental.
EXAMES COMPLEMENTARES
Os valores laboratoriais que permitem o diagnóstico de CAD foram referidos anteriormente.
Em todos os doentes deve proceder-se à monitorização de diversos parâmetros:
- electrónica contínua → dos parâmetros vitais clássicos (FC, FR, PA, SpO2, ECG, etc.);
- bioquímica → da glicémia (hora/ hora); do pH e gasometria capilar (2/2 horas enquanto pH<7,2 e, de 4/4 horas, ulteriormente); da ureia e creatinina, ionograma (Na, K, Cl, Ca, P e Mg) glicosúria, cetonémia e cetonúria (de 4/4 horas); e, em função do contexto clínico de cada caso: s osmolalidades sérica e urinária, amilasémia, perfil lipídico e beta-hidroxibutirato.
Como avaliação geral, citam-se também o hemograma completo e o doseamento da proteína C reactiva (PCR) ou de outros marcadores de inflamação como a procalcitonina.
Nos casos em que a CAD constitui a forma de apresentação de um novo caso de DM (diagnóstico de DM até então desconhecido) estão indicados determinados exames laboratoriais adicionais para avaliação da fisiopatologia de base: HbA1c, anticorpos antiperoxidase, TSH, tiroxina livre, transglutaminases teciduais, imunoglobulina A, anticorpos anti-células dos ilhéus, anticorpos anti-insulina, e anticorpo anti descarboxilase do ácido glutâmico.
Sem prejuízo da prioridade estabelecida para a vigilância electrónica contínua e para os exames laboratoriais descritos, citam-se os exames de imagem TAC-CE e RM, com interesse na identificação de edema cerebral.
O ECG deve ser realizado na data de admissão e, depois, em monitorização contínua para detecção de sinais de discaliémia, arritmias, etc., como foi referido.
Interpretação de alguns resultados laboratoriais
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ACTUAÇÃO PRÁTICA
Objectivos gerais
Os objectivos gerais do tratamento são:
- corrigir a desidratação e a acidose, restaurando a perfusão tecidual e a filtração glomerular;
- interromper a cetogénese, a proteólise e a lipólise (por acção da insulina), contribuindo para a normal captação de glucose ao nível tecidual, revertendo hiperglicémia e a hiperosmolalidade;
- repor as perdas em electrólitos;
- estar alerta para eventuais complicações do tratamento,
- a fluidoterapia inicial com soro fisiológico deve preceder sempre (não < 1-2 horas) a terapia com insulina.
As CAD moderadas e graves necessitam, pois, sempre de insulinoterapia e reidratação endovenosas (em vias diferentes). Nos casos de CAD grave, depressão do estado de consciência (Glasgow ≤ 12), vómitos persistentes e idade < 5 anos, está indicado internamento em cuidados intensivos ou em enfermaria pediátrica especializada. Crianças sem sinais de desidratação significativa (< 3%) e sem cetoacidose toleram bem terapêutica com insulina subcutânea e reidratação oral. |
Aspectos gerais da fluidoterapia intravenosa (IV)
a) Protocolo clássico
Verificando-se estado de choque, procede-se a expansão vascular com soro fisiológico (sf) ou lactato de Ringer: 10-20 mL/Kg em 30-60 minutos, a repetir se necessário.
Após correcção do choque, programa-se o cálculo da reposição hídrica para 48 horas, de forma a não gerar gradientes osmóticos intra-extracelulares potenciadores de edema cerebral (não ultrapassar 4 L/m2/dia ou 10-12 mL/kg/hora na primeira hora e 6 mL/kg/hora nas horas seguintes).
O cálculo das necessidades de fluidos pode ser feito pela soma do défice de fluidos (% da perda de peso corporal em kg) + manutenção (idades: < 1 ano, 1-5, 6-9, 10-14 e > 15 anos, necessitam de volumes de manutenção: 80, 70, 60, 50 e 35 mL/kg/dia, respectivamente).
Nos cálculos não devem ser considerados os volumes administrados na fase de expansão vascular, mas deve ter-se em atenção a contabilização de todas as perdas, com especial atenção para as perdas urinárias que poderão corresponder a 30-50% dos fluidos para a manutenção.
Tipo de solutos
Nas primeiras seis horas:
- utilizar soro fisiológico (NaCl a 0,9%);
- passar para glucose a 5% e soro fisiológico (2 vias com conexão em Y) quando se iniciar a perfusão de insulina;*
- poderá ser necessário administrar solutos com maiores concentrações de glucose (7,5%, 10% glucose) para evitar a hipoglicémia.
Após as seis horas:
- passar para NaCl a 0,45% com glucose a 5% (soluto a 1/2).
A insulina em perfusão é iniciada 1-2 horas após o início da reidratação IV.
Não se administra insulina em bolus inicial. Deve usar-se acesso IV exclusivo (conexão em Y) para perfusão de insulina de acção rápida, na dose inicial de 0,1 U/kg/hora (diluir 50 U de insulina em 500 cc de SF, sendo então 1cc <> 0,1 Unidades).**
Eis algumas particularidades:
- nas crianças < 5 anos ou glicémia inicial > 1000 mg/dL (> 55 mmol/L) é prudente iniciar com 0,05 U/kg/h (0,5 mL/kg/h);
- manter a perfusão até à melhoria da CAD (pH > 7,3 e bicarbonato > 15 mmol/L);
- quando glicémia < 250 mg/dL (14 mmol/L), ou antes, se houver descida > 90 mg/dL/h (5 mmol/L/h), ajustar a concentração de glucose, mas não diminuir o ritmo de administração de insulina.
Se ao fim de 4 horas os parâmetros bioquímicos de CAD não melhorarem:
- reavaliar o doente;
- rever a insulinoterapia;
- considerar outras causas de má resposta à terapêutica (infecção!).
Após estabilização*** é habitualmente possível iniciar insulina de acção rápida ou de acção ultra-rápida subcutânea (sc) de acordo com o esquema do Quadro 1.
Após as primeiras 24 horas pode ser possível:
- interromper soluto IV;
- iniciar insulina de acção intermédia sc; dose: 0,3 U/kg/dia em 2 injecções: antes do pequeno almoço – 2/3 do total; antes do jantar – 1/3 do total;
- manter a insulina rápida/ultra rápida sc de 2 em 2 horas durante as 4 horas seguintes de acordo com os critérios do Quadro 1;
- após 4 horas, e se não houver cetonúria, passar a insulina rápida antes das três refeições principais (pequeno almoço, almoço, jantar);
- se houver cetonúria, manter a administração de insulina rápida/ultra rápida sc de 2 em 2 horas até ao seu desaparecimento, passando, depois, para antes das 3 principais refeições.
*Para prevenir o declínio rápido da glicémia e a hipoglicémia deve acrescentar-se glucose ao fluido IV (NaCl a 0,9%). Este objectivo pode ser conseguido na prática (respeitando os cálculos feitos quanto aos fluidos a administrar), utilizando conexão em Y com dois sistemas: um com dextrose e outro sem dextrose. Torna-se fundamental o acerto quanto ao ritmo de administração. **A solução de insulina só é estável durante 6 horas, pelo que terá de ser novamente preparada se a perfusão se mantiver mais que este tempo. ***pH > 7,3; bicarbonato ≥ 18; hiato iónico 8-11; alimentação oral possível. |
QUADRO 1 – Cálculo da dose de insulina na fase de estabilização
Introduzir os líquidos per os após a melhoria franca da CAD e quando o doente manifestar o desejo de comer. | |||
Se houver boa tolerância oral, diminuir os soros IV (subtrair o volume ingerido ao volume calculado para administração IV) e tentar uma pequena refeição com hidratos de carbono de absorção lenta (leite, iogurte, bolachas, pão…). | |||
Programar a passagem para insulina SC (subcutânea) quando a acidose tiver regredido (pH > 7,3 e bicarbonato ≥ 18 mEq/L) e os alimentos forem bem tolerados. | |||
O melhor momento para iniciar insulina SC é antes de uma refeição. | |||
Administrar a 1ª dose sc de insulina de acção rápida/ultra rápida de acordo com o peso, glicémia e alimentação:
*1 equivalente de HC: 1/2 pão, 3 bolachas Maria, 3 bolachas água e sal, 2 iogurtes | |||
Parar a perfusão de insulina 15 minutos depois de administrar a 1ª dose de insulina SC. | |||
Manter insulina de acção rápida/ultra rápida SC de 2 em 2 horas de modo a manter glicémia ∼ 150 mg/dL. |
b) Protocolo FLUID (Fluid Therapies Under Investigation in DKA)
Este esquema de fluidoterapia integra, de facto, 4 protocolos (designados respectivamente A1, A2, B1, B2 – Quadro 2) aplicáveis: – a duas situações de défice ponderal (5 e 10%); e – a duas outras situações utilizando concentração de NaCl 0,9% (soro fisiológico) e 0,45%.
QUADRO 2 – Diferentes protocolos para fluidooterapia na CAD
Componentes | Protocolo A1 | Protocolo A2 | Protocolo B1 | Protocolo B2 |
Bolus de fluido inicial | 10 cc/kg de NaCl 0,9% | 10 cc/kg de NaCl 0,9% | 10 cc/kg de NaCl 0,9% | 10 cc/kg de NaCl 0,9% |
Bolus adicional IV | 10 cc/kg de NaCl 0,9% | 10 cc/kg de NaCl 0,9% | Não bolus adicional | Não bolus adicional |
Défice ponderal estimado | 10% | 10% | 5% | 5% |
Reposição do défice | Reposição de ½ do défice + fluidos de manutenção 12 h iniciais, restante défice + fluidos de manutenção nas subsequentes 24 h
| Reposição de ½ do défice + fluidos de manutenção 12 h iniciais, restante défice + fluidos de manutenção nas subsequentes 24 h
| Reposição do défice + fluidos de manutenção durante 48 h | Reposição do défice + fluidos de manutenção durante 48 h |
Fluidos usados para reposição do défice | NaCl 0,45% | NaCl 0,9% | NaCl 0,45% | NaCl 0,9% |
Notas importantes:
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Correcção da acidose
A correcção da desidratação e da hiperglicémia é habitualmente suficiente para a correcção da acidose. A administração de bicarbonato é cada vez mais contestada, não tendo sido demonstrado efeito benéfico na sua utilização; pelo contrário, pode levar a um agravamento da hiperosmolaridade e potenciar a acidose do SNC e o edema cerebral. Considera-se a administração de bicarbonato apenas quando pH < 7,0 e bicarbonato < 5, ou quando há necessidade de utilização de aminas vasoactivas, e só até pH de 7,1 (1 a 2 mEq/kg em perfusão de 2 horas).
Correcção das alterações iónicas
Os suprimentos em sódio, cloro, fósforo e cálcio são os necessários ao metabolismo basal. A utilização de solutos com níveis de sódio ≥ a 50 mEq/litro (soluto a 1/3) é habitualmente suficiente para manter o sódio em níveis adequados.
Mesmo nas situações de CAD associada a Na+ sérico > 150 mEq/L, há que não utilizar soluções hipotónicas.
Em relação ao potássio há que considerar a sua administração logo nas 2 primeiras horas se potassémia inicial < 4,5 mEq/L (2 a 4 mEq/kg/dia, não excedendo concentrações de 40 mEq/L de soluto em veia periférica).
Salienta-se que no momento do diagnóstico de CAD, o potássio sérico pode estar normal ou elevado porque a acidose provoca saída de potássio do meio intracelular. Mesmo nesta eventualidade, há que referir que o potássio corporal total está diminuído.
O sódio sérico inicial, geralmente normal ou baixo, explica-se pelos efeitos de diluição osmolar da hiperglicémia e da fracção hipídica elevada não contendo sódio.
Assim, para o cálculo da correcção da natrémia nos casos de glicémia > 100 mg/dL (5,6 mmol/L) utiliza-se a seguinte fórmula, considerando a glicémia em mg/dL.
[Na+] + [glucose – 100] x 1,6 |
100 |
O sódio deverá aumentar cerca de 1,6 mmol/L por declínio de 100 mg/dL de glicémia em concomitância com a reposição lenta dos fluidos. Se, pelo contrário a natrémia diminuir à medida que se proceder à reidratação, tal poderá significar acumulação de água livre e risco de edema cerebral.
Quando o fósforo for < 2,5 mg/dL (< 0,8 mmol/L), deve substituir-se 50% do KCl por fosfato monopotássico, até às 12 horas de tratamento.
Para a correcção doutras alterações iónicas sugere-se a consulta dos capítulos sobre reidratação IV.
Reitera-se que o início da alimentação é feito logo que a tolerância oral o permita, com preferência por líquidos ricos em potássio (sumos), iogurte e pequenas refeições (Quadro 1).
Tratamento do edema cerebral
Embora raro (0,4 a 1% das CAD) o edema cerebral é responsável por cerca de 50 a 80% de todas as mortes por CAD; comporta mortalidade de 20 a 25% e morbilidade de 10 a 26% nos sobreviventes.
É mais frequente nas primeiras 4 a 12 horas de terapêutica. São considerados sinais de alarme: cefaleias, alterações do estado de consciência, sinais focais, convulsões, hipertensão arterial e bradicardia.
A sua terapêutica é emergente, exigindo recurso a cuidados intensivos e medidas específicas (elevação da cabeceira, cabeça na linha média, sedação/analgesia, ventilação) associados a perfusão de manitol (0,5 a 1 g/kg em 20 minutos) concomitantemente com redução do suprimento dos fluidos programados, a metade e ajuste da dose de insulina. Como alternativa pode utilizar-se na NaCl hipertónico a 3%: 5-10 mL/kg a cada 30 minutos com manutenção de natrémia entre 150 e 160 mEq/L.
Havendo indicação de suporte ventilatório a pCO2 deve ser mantida > 35 mmHg (não hiperventilar). Relativamente a esta norma de “não hiperventilar”, há que acautelar a verificação do pH, evitando valores baixos, de acidose, designadamente de 7 ou < 7.
Complicações
Sucintamente são referidas as seguintes complicações: rabdomiólise, mucormicose, pancreatite aguda, e outras ao nível do SNC (edema cerebral, hemorragia subaracnoideia, trombose arterial basilar, meningoencefalite, etc.).
Em 2019, no estado actual dos conhecimentos e da investigação sobre o tratamento da CAD, e no que respeita ao impacte dos diferentes protocolos de administração de fluidos sobre o prognóstico neurológico, parece não haver grandes diferenças, o que obrigará à continuação de estudos.
AGRADECIMENTOS
À Colega Drª Rosa Pina (da Unidade de Endocrinologia do HDE), pelas sugestões e revisão inicial do manuscrito em anteriores edições.
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