Definição

A eritrocitose (também designada policitemia ou poliglobulia), definindo-se como aumento da massa total de glóbulos vermelhos no sangue periférico, é quantificada pela verificação de valores de hemoglobina superiores aos do percentil 99 segundo as distribuições de referência em função da idade e género em, pelo menos, duas determinações temporalmente distintas (Figura 1). A eritrocitose neonatal é discutida separadamente, na Parte referente à Neonatologia.

A eritrocitose (absoluta ou verdadeira) deve ser distinguida da eritrocitose relativa (esta última, mais correctamente designada por hemoconcentração), em que a elevação do valor de hemoglobina e do hematócrito se deve a uma redução do volume plasmático, e não a um aumento da massa total de glóbulos vermelhos.

ETIOPATOGÉNESE E CLASSIFICAÇÃO

A eritrocitose é habitualmente classificada em primária ou secundária, podendo em ambos os casos, ser congénita ou adquirida.

A eritrocitose primária deve-se a mutações que condicionam proliferação independente ou excessiva dos progenitores eritróides. Devido a mecanismo retroactivo fisiológico negativo, a expansão da massa eritrocitária cursa com diminuição dos níveis de eritropoietina (eritropoietina normal ou baixa).

A única eritrocitose primária congénita caracterizada molecularmente até à data, a eritrocitose familiar tipo 1, resulta de mutações na linhagem germinativa com transmissão autossómica dominante que condicionam aumento da sensibilidade do receptor da eritropoietina (EPOR).

FIGURA 1 – Curvas de percentis para os valores de hemoglobina e volume globular médio (VGM), de acordo com o género e a idade. (Em Dallman PR, Silmes MA. Percentile curves for hemoglobin and red cell volume in infancy and childhood. J Pediatr 1979; 94:28)

Conhecem-se, pelo menos, 14 mutações que resultam em ganho de função do EPOR. A única eritrocitose primária adquirida conhecida é a policitemia vera, um distúrbio clonal das células estaminais pluripotenciais hematopoiéticas, o qual resulta de mutações somáticas da JAK2 (sendo a V617F e as mutações da exão 12 as mais frequentes).

A eritrocitose secundária é causada pelo excesso de citocinas circulantes que estimulam a expansão de precursores eritróides cuja sensibilidade à eritropoietina é normal. Embora se deva habitualmente à elevação dos níveis de eritropoietina, outros factores que estimulam a eritropoiese podem estar implicados na patogénese (angiotensina II, androgénios e IGF-1). O aumento da eritropoietina pode representar uma resposta adequada à hipoxemia tecidual, um aumento de secreção, autónomo e anómalo, ou uma desregulação da modulação dependente do oxigénio (grupos III.A, III.B e III.C do Quadro 1, respectivamente).

QUADRO 1 – Classificação das policitemias

I. Policitemia relativa

Hemoconcentração (diarreia grave, uso crónico de diuréticos, queimaduras)

II. Policitemia primária (eritropoietina normal/baixa)

A. Congénita: eritrocitose familiar tipo 1 ou policitemia congénita familiar primária (mutações na linhagem germinativa com ganho de função do receptor da eritropoietina, EPOR) – transmissão autossómica dominante

B. Adquirida: policitemia vera (mutação somática)

III. Policitemia secundária (eritropoietina ou outros estimuladores da eritropoiese elevados)

A. Hipoxemia tecidual (também designada policitemia apropriada, uma vez que resulta de uma resposta fisiológica da eritropoieitina à hipóxia)

1. Fisiológica

1.1 Vida fetal
1.2 Ambiente rarefeito em oxigénio (altitude elevada)

2. Patológica

2.1 Defeitos da ventilação: doença cardiopulmonar, obesidade
2.2 Fístula arteriovenosa pulmonar
2.3 Cardiopatia congénita com shunt esquerdo-direito (exemplo: tetralogia de Fallot, síndroma de Eisenmenger)
2.4 Variantes anómalas da hemoglobina

2.4.1 Meta-hemoglobina
2.4.2 Carboxi-hemoglobina
2.4.3 Sulfa-hemoglobina
2.4.4 Hemoglobinopatias com elevada afinidade para o oxigénio (hemoglobina de Chesapeake, Ranier, Yakima, Osler, Tsurumai, Kempsey e Ypsilanti)
2.4.5 Défice de 2,3-bifosfoglicerato (enzima 2,3-bifosfoglicerato mutase)

B. Aumento da eritropoietina ou de outros estimuladores da eritropoiese (também designada policitemia inapropriada, uma vez que resulta da produção aberrante de eritropoietina ou outros factores de crescimento)

1. Endógena

1.1 Renal: tumor de Wilms, isquémia renal, doenças vasculares renais, doença renal poliquística, lesões renais benignas (hidronefrose), carcinoma de células renais e eritrocitose pós-transplante renal (ocorre em 10-12% dos casos)
1.2 Endocrinológica: feocromocitoma, síndroma de Cushing, hiperplasia congénita da suprarrenal, adenoma da suprarrenal com hiperaldosteronismo primário
1.3 Hepática: hepatoblastoma, carcinoma hepatocelular, hemangioma hepático, síndroma de Budd-Chiari (alguns destes doentes podem ter doença mieloproliferativa)
1.4 Cerebelosa: hemangioblastoma, hemangioma, meningioma
1.5 Uterina: leiomioma, leiomiossarcoma
1.6 Ovárica: quistos dermóides

2. Exógena

2.1 Administração de testosterona e esteróides relacionados
2.2 Administração de hormona de crescimento

C. Policitemias que reunem características das primárias e secundárias (resultam de alterações na sensibilidade ao oxigénio)

1. Policitemia de Chuvash ou eritrocitose familiar tipo 2 (mutação do gene von Hippel-Lindau, VHL) – transmissão autossómica recessiva
2. Policitemias não Chuvash: eritrocitose familiar tipo 3 (mutação do gene EGLN1 que codifica a prolil-hidroxilase 2 dos factores induzidos pela hipóxia, PHD2); eritrocitose familiar tipo 4 (mutação do gene EPAS1 que codifica o factor induzido pela hipóxia 2α, HIF2α) – transmissão autossómica dominante

IV. Policitemia neonatal (na Parte dedicada à Neonatologia)

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da eritrocitose estão directamente relacionadas com a hiperviscosidade resultante da expansão da massa de eritrócitos, podendo incluir: cefaleias, tonturas, acufenos, vertigens, alterações visuais, prurido (sobretudo após exposição a água quente), dispneia, desconforto epigástrico, saciedade precoce e obstipação. Embora mais raros, podem estar presentes sintomas contitucionais como perda ponderal, astenia e diaforese. O exame objectivo pode evidenciar hipertensão arterial sitólica e eritromelalgia (extremidades quentes, ruborizadas e dolorosas). Na policitemia vera é também frequente a presença de esplenomegália e hepatomegália.

Na eritrocitose secundária, para além das manifestações clínicas acima descritas, podem coexistir achados sugestivos de patologia cardíaca, respiratória (incluindo apneia obstrutiva do sono), endocrinológica, hepática ou renal subjacente.

Diagnóstico etiológico

Os algoritmos referentes ao diagnóstico etiológico da eritrocitose em adultos não são directamente aplicáveis na idade pediátrica, sobretudo no que concerne à sequência dos exames complementares de diagnóstico. Tal prende-se com diferenças significativas na epidemiologia da eritrocitose, de acordo com a faixa etária e com a possibilidade de se inverter a sequência da investigação (sobretudo a antecipação dos testes genéticos), quando existe diagnóstico etiológico firmado num familiar próximo com eritrocitose. Actualmente, o diagnóstico etiológico só é possível em cerca de 30% dos casos. Na Figura 2, apresenta-se uma proposta de abordagem da eritrocitose em crianças e adolescentes.

Segundo as recomendações actuais, a abordagem inicial deve incluir: anamnese e exame físico completos, hemograma dos familiares, oximetria de pulso, ecografia abdominal e renal com doppler, provas de função respiratória e/ou polissonografia; doseamento da eritropoietina sérica, gasometria, provas de função renal, provas hepáticas, ferritina e saturação da transferrina (a ordem dos exames a pedir deverá ter em conta a história clínica).

A hipoxemia é a causa mais comum de elevação persistente da hemoglobina. Saturações arteriais da Hb em oxigénio (SpO2) inferiores a 92%, objectivadas na oximetria de pulso, devem motivar a investigação de patologia cardiorrespiratória. Salienta-se que reduções intermitentes da SpO2, como na apneia obstrutiva do sono, podem conduzir a um aumento fisiológico da eritropoietina com consequente eritrocitose.

Na criança e adolescente com eritrocitose primária (eritropoietina < 5 UI/L) em que se excluiu a hipoxemia como factor causal (SpO2 > 92%), as etiologias congénitas devem ser consideradas em primeira linha (mutações do EPOR). Tal prende-se com a raridade da policitemia vera (PV) em idade pediátrica (na população com idade inferior a vinte anos, a incidência de PV é de 0,00-0,02 por 105 pessoas-ano).

No entanto, na presença de esplenomegália, leucocitose ou trombocitose, sugere-se investigar esta hipótese em primeiro lugar (actualmente preconiza-se o rastreio inicial de mutações da JAK2 – V617F e mutações na exão 12).

A distinção das causas de eritrocitose secundária (eritropoietina > 5 UI/L ou normal mas desproporcionalmente elevada para o valor de hemoglobina) baseia-se na determinação da P50 da hemoglobina (pressão parcial de oxigénio no sangue para a qual 50% da hemoglobina se encontra saturada com oxigénio). Não dispondo de um analisador automático, a P50 pode ser calculada a partir dos dados da gasometria venosa aplicando a fórmula: log PO2 (7.4) = log PO2observado – [0.5(7.4 – pHobservado)].

Se a P50 for baixa (< 20 mmHg), deve suspeitar-se da presença de variantes da hemoglobina com afinidade aumentada para o oxigénio ou de défice de 2,3-bifosfoglicerato (que também resulta num aumento da afinidade da hemoglobina, embora seja mais raro). Note-se que nas meta-hemoglobinémias, o doente pode apresentar-se cianótico com SpO2 baixa, mas com PaO2 normal objectivada por gasometria; assim, o doseamento da meta-hemoglobina, frequentemente disponível quando se procede a gasometria, pode ser muito útil.

Na presença de P50 normal, há que considerar: – causas endógenas e exógenas de aumento da eritropoietina; e – policitemias que se devem a alteração da sensibilidade à hipóxia.

Neste último subgrupo inclui-se a policitemia de Chuvash (mutação do gene von Hippel-Lindau, VHL) e policitemias não Chuvah. A perda de função do VHL atrasa a degradação dos factores de transcrição induzidos pela hipóxia 1 e 2 (HIF1 e 2), resultando num aumento da transcrição do gene da eritropoietina. Mutações no HIF2α, ou no domínio prolil-hidroxilase 2 (PHD2) de enzimas que hidroxilam o HIF2α, têm tradução clínica semelhante. Salienta-se que este subgrupo de patologias cursa simultaneamente: – com elevação da eritropoietina, uma característica da eritrocitose secundária; e – com hipersensibilidade do receptor da eritropoietina, o que é característico da eritrocitose primária.

FIGURA 2 – Proposta de algoritmo para o diagnóstico de eritrocitose absoluta em crianças e adolescentes (adoptado dos consensos do “Congenital erythrocitosis working group”).

SpO2 = saturação periférica em oxigénio medida por oximetria de pulso; Epo = eritropoietina; P50 = pressão parcial de oxigénio no sangue para a qual 50% da hemoglobina se encontra saturada com oxigénio; Hb = hemoglobina; 2,3-BPG = 2,3-bisfosfoglicerato; VHL = von Hippel-Lindau; HIF2α = hypoxia-induced factor 2α; PHD2 = prolyl hydroxylase domain 2; JAK2 = Janus kinase 2

Tratamento

Os principais objectivos do tratamento são o aumento da sobrevivência e a redução das complicações associadas à hiperviscosidade. O tratamento das policitemias primárias exige apoio diferenciado, podendo incluir flebotomias e quimioterapia. Na eritrocitose secundária, sempre que possível, o tratamento deve ser dirigido ao factor etiológico subjacente, estando as flebotomias reservadas para o controlo da hiperviscosidade sintomática.

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