Importância do problema

Os traumatismos, ferimentos e lesões acidentais (TFLA) constituem, em quase todos os países do Mundo, nos grupos etários da infância e da adolescência, a maior causa de morte, anos de vida, potenciais perdidos, doença, internamento, recurso aos serviços de urgência, incapacidades temporárias e definitivas. Consequentemente, constituem um dos problemas com custos socioeconómicos mais elevados.

Infelizmente, no nosso País o problema revela-se de uma agudeza extrema, com taxas de mortalidade, por exemplo, quatro vezes superiores às da Suécia. Encarar os acidentes como um grave problema nacional e assumir a sua resolução como uma tarefa de toda a sociedade é um passo fundamental e indispensável.

A impessoalidade das cifras pode fazer-nos esquecer o drama humano, ao qual só damos a necessária atenção quando somos confrontados com ele nas nossas casas ou no nosso círculo pessoal de amigos.

Os acidentes manifestam-se por “doenças” – os traumatismos, ferimentos e lesões deles decorrentes (TFLA). Para aceitar esta definição basta ter presente que os TFLA:

  • Têm uma causa (um agente, a energia resultante dos impactes, do calor, do movimento de objectos, etc.);
  • Provocam sintomas e sinais bem definidos;
  • Têm um processo de diagnóstico;
  • Têm um processo de terapêutica;
  • São passíveis de prevenção primária, secundária e terciária, tal como a maioria das doenças.

O que talvez diferencie os TFLA de outras doenças é a rapidez da acção da causa e o pequeníssimo lapso de tempo entre a acção do agente e os sintomas e sinais, o que também contribui para a dificuldade da prevenção, se analisarmos esta numa perspectiva médica estrita.

Podemos também considerar os TFLA numa perspectiva ecológica, tal como por exemplo as doenças infecciosas: o acidente resulta da interacção entre o agente, o meio humano e o meio material, envolvendo o indivíduo. A aceitação desta tríade (ou tétrada) traz consequências imediatas: qualquer acção preventiva que deixe de lado um dos elementos será votada ao insucesso; por outro lado, a compreensão do problema na sua plena extensão passará obrigatoriamente por uma análise aprofundada das circunstâncias e da história destas várias vertentes.

O planeamento urbano e a construção, o design, a arquitectura, etc., constituem uma tarefa complexa na qual é necessário ter em conta as diversas, e por vezes contraditórias, necessidades dos diversos grupos de cidadãos. Quando o desenvolvimento urbano – para citar um dos exemplos actualmente mais preocupantes –, se baseia em interesses pouco claros ou unilaterais, remetendo para segundo lugar os interesses dos cidadãos, designadamente a sua saúde, o resultado é frequentemente um ambiente de má qualidade no qual as gerações presentes e vindouras terão de viver. Acresce que os erros estruturais se traduzem geralmente por consequências a longo prazo, sendo a sua inversão extremamente dispendiosa e difícil, se não mesmo impossível.

A origem dos acidentes que envolvem crianças e jovens não reside assim, como veremos mais desenvolvidamente, no “mau” comportamento daquelas ou destes mas, pelo contrário, na agressividade e desadaptação do ambiente às suas características físicas, mentais e psicológicas. Por outras palavras, não são as crianças e os adolescentes que estão errados – o mundo que os rodeia e onde são forçados a viver é que se torna, dia a dia, mais e mais agressivo, e cada vez mais recheado de armadilhas.

As principais vítimas de um ambiente insalubre e perigoso são sempre os grupos psicológica ou fisicamente mais vulneráveis, ou com menores capacidades adaptativas, seja decorrentes da sua própria vulnerabilidade e das suas características bio-psico-sociais (designadamente do seu grau de resiliência), seja dos seus estilos de vida próprios. As crianças, os idosos e os cidadãos com deficiência estão no epicentro deste problema e é nestes grupos que se tornam mais evidentes e mais graves as consequências da desadequação entre o “continente” e o “conteúdo”, ou seja, entre o mundo onde os seres humanos têm que viver e as capacidades e necessidades desses mesmos seres humanos.

O ambiente constitui, pois, actualmente, a maior ameaça à vida e à saúde das crianças e dos jovens. Culpar a criança dos acidentes será, afinal, culpar a vítima e desculpar o “criminoso”.

Aspectos epidemiológicos

Na abordagem dos TFLA, revela-se indispensável um conhecimento epidemiológico aprofundado, pois será certamente muito difícil delinear uma estratégia pertinente e adequada para controlo de um problema quando se desconhece a sua verdadeira dimensão e, ainda mais importante, os pormenores e as circunstâncias que rodeiam o acontecimento. Este facto é tanto mais gravoso quanto é verdade estarmos na presença de um conjunto de situações de origens várias, em que causas distintas podem gerar o mesmo efeito ou, ao invés, causas semelhantes efeitos diferentes: uma queda pode ter etiologias díspares e gerar diversos traumatismos ou lesões; por outro lado, a mesma lesão – uma fractura de um membro, por exemplo – pode ser causada por agentes diferentes, como um choque de automóveis, um coice de cavalo ou uma queda de uma árvore.

A diversidade de local para local, relacionada com distintas identidades culturais, constitui outro factor de importância inegável, não podendo ser subvalorizado.

Num capítulo de um livro como este, não é possível desenvolver exaustivamente a questão dos indicadores epidemiológicos. Entendemos, no entanto, justificar-se encarar os TFLA nas suas diversas vertentes: mortalidade, morbilidade, anos de vida, potenciais perdidos, idas ao serviço de urgência, internamentos, dados do Sistema ADELIA (Acidentes Domésticos e de Lazer – Informação Adequada), e também de outras fontes menos ligadas à Saúde (Instituto de Socorros a Náufragos, Companhias de Seguros, Ministério da Educação, Serviço de Bombeiros, etc.).

QUADRO 1 – Colheita de dados epidemiológicos sobre TFLA

Sistemas nacionais de colheita de dados

Mortalidade (Instituto Nacional de Estatística)

Viação (Observatório Rodoviário e IMTT)

ADELIA (Observatório Nacional de Saúde)

Inquéritos complementares (Instituto do Consumidor)

Inquérito Nacional de Saúde (Observatório Nacional de Saúde)

Fontes complementares

Instituto de Medicina Legal de Lisboa

Centro de Reabilitação do Alcoitão

Dados colhidos a nível nacional e de forma contínua

Acidentes escolares (Ministério da Educação)

Acidentes desportivos (Ministério da Educação)

Intoxicações (Centro de Informação Anti-Venenos)

Dados recolhidos a nível nacional ou regional de fontes relacionadas com os serviços de saúde ou de emergência

Projecto “médicos-sentinela” (Observatório Nacional de Saúde)

Cruz Vermelha Portuguesa

Serviço Nacional de Bombeiros/Protecção Civil

Instituto Nacional de Emergência Médica

Polícia de Segurança Pública

Polícias Municipais

Instituto de Socorros a Náufragos

Inquéritos ad-hoc locais ou regionais (vários)

Outras fontes

Acidentes pessoais/trabalho (Companhias de Seguros e Segurança Social), etc..

Além do escasso âmbito ou representatividade de alguns dos dados, a metodologia adoptada por cada uma, designadamente em parâmetros tão básicos como os grupos etários, as definições de caso, etc., não é frequentemente a mesma, impedindo muitas vezes a junção ou a comparação1. Falta, assim, fazer um trabalho de recolha dos indicadores existentes e sua análise crítica, identificação de eventuais áreas com lacunas e propostas metodológicas consensuais para que, sem um esforço acrescido, se possam obter informações mais amplas e fiáveis, portanto mais úteis. Este problema não é, contudo, exclusivamente português.

No que respeita ao impacte económico do problema em Portugal, designadamente, foi estimado que os acidentes de viação, por exemplo, somando todos os tipos de custos, custaram ao País, quase 4% do PIB, ou seja, cerca de 25.000 milhões € por ano, algo como cinco mil euros por minuto. Admitindo um gasto equivalente nos acidentes domésticos de lazer (ADL) – mais frequentes mas globalmente menos graves –, os acidentes custariam, em Portugal, mais de uma vez e meia o orçamento do Ministério da Saúde, sendo a maior parcela equivalente a gastos com TFLA.

Prevenção

1. Obrigação da sociedade

A opção por medidas modificadoras do ambiente são geralmente caras, mais radicais e de maiores custos políticos, em comparação com a fácil, barata e tradicional (mas muitas vezes ineficiente) “educação para a saúde”. Há, muito claramente, uma relação inversamente proporcional entre o dinheiro atribuído às várias medidas e a sua eficiência.

Praticamente em todas as culturas, à semelhança do que acontece na maioria das espécies animais, é considerado natural proteger a vida e a saúde das crias. No chamado “Mundo Ocidental”, este conceito desenvolveu-se não apenas em termos de disponibilidade e adequação de cuidados – saúde, educação, segurança social, entre outras – como também em termos ambientais – provimento de ar puro, água potável, nutrição correcta, etc..

Paralelamente, depois do reconhecimento gradual e sequencial dos direitos dos homens, dos trabalhadores e das mulheres, registou-se neste século um movimento crescente a favor dos direitos das crianças e dos adolescentes, tão bem resumidos na Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada na Assembleia Geral da ONU a 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal.

A Convenção reconhece que as crianças têm o direito de crescer e de se desenvolver normalmente, sem limitações desnecessárias, e o direito à protecção, os quais devem ser garantidos pelo Estado através de medidas de vária ordem. Portugal, tendo ratificado a Convenção em 1990, está comprometido com a sua população infantil e juvenil, e não poderá ignorar as suas responsabilidades. A sociedade portuguesa, de onde emana o Estado, tem igualmente de assumir de forma global a protecção da sua população infantil e juvenil.

2. Perspectiva dinâmica e inovadora

Os acidentes sempre acompanharam a vida dos homens; e, se por um lado esse facto permitiu acumular conhecimentos e experiências milenárias, conduziu, por outro, à aceitação dos acidentes como parte da própria existência e à interiorização do problema como algo de insondável e superior à força humana. Por outro lado, as tentativas para os evitar, pecando talvez por timidez mas condicionadas pelo ritmo humano, foram rapidamente ultrapassadas pela extraordinária rapidez da evolução tecnológica e pelo aparecimento de forças que, se bem que concebidas pela mente do Homem, se afastam da sua própria escala – tenha-se em consideração a velocidade dos automóveis, as alturas dos prédios, a energia da electricidade e tantos outros exemplos de como nos deslocamos, vivemos e utilizamos dimensões e forças totalmente estranhas às nossas características biológicas e mesmo psicológicas, com o consequente desfasamento entre as necessidades e capacidades, por um lado, e a realidade, por outro.

Os próprios estilos de vida, geradores de estresse e de uma vida “acelerada”, contribuíram para o aumento dos riscos e para uma maior incapacidade de lidar com eles “a tempo e horas”, não havendo para muitos destes riscos, o verdadeiro conhecimento da sua existência. Assim, embora não se possa dizer que as crianças e os jovens de sociedades anteriores à nossa estivessem livres de sofrer TFLA – basta recordar os ataques das feras na idade das cavernas ou o trabalho infantil em condições precárias nos tempos da revolução industrial – pode contudo afirmar-se que as crianças e os adolescentes de hoje estão mais expostos aos riscos, sendo também provavelmente detentores de uma resiliência menor.

O estresse representa, assim, um factor fundamental para a compreensão do problema dos TFLA. Felizmente, nos últimos anos, muitos autores têm dedicado tempo e reflexão ao estresse e, principalmente, à gestão do estresse. Este elemento tão importante, tão presente e tão condicionante das opções de vida, ocupou durante muito tempo um lugar quase ridículo na construção fisiopatológica dos TFLA, bem como de muitas outras situações de doença ou de falta de saúde. Importa analisar e sistematizar o estresse e traçar os princípios mestres da sua boa gestão e aproveitamento enquanto energia positiva e mobilizadora, transformando-o em factor de resiliência em vez de factor de risco.

Com a evolução tecnológica e as consequentes mudanças nos estilos de vida – designadamente a entrada das crianças em massa no mundo dos adultos desde idades muito precoces (inclusivamente no mundo laboral) e a ausência de um espaço próprio infantil para crescerem –, os riscos aumentaram ou pelo menos tornaram-se mais “acessíveis” à maioria das crianças e dos adolescentes. Os acidentes passaram assim a fazer de tal modo parte da nossa vida quotidiana que, por impregnação e habituação, deixaram de nos tocar no plano colectivo – só somos verdadeiramente afectados se nos atingem directamente ou pelo menos a quem nos está próximo.

Por outro lado, a própria palavra “acidente” desencadeia mecanismos psicológicos adaptativos tendentes a integrar o conceito como associado a fatalismo, determinismo, um acontecimento que existe devido a um acto incontrolável e incontornável do destino, ou seja, que aconteceu “por acidente”. Quantas pessoas vacinam os filhos, dão-lhes vitaminas e, afinal, olham para a prevenção dos TFLA como algo desnecessário ou pouco importante, considerando até as consequências do acidente como uma punição inevitável e “normal” para um erro que se cometeu?

Actualmente as pessoas, ao serem questionadas sobre o que significa a palavra “acidente”, responderão provavelmente: “serviço de urgência”. A esta resposta não será estranho o facto de as consequências imediatas de um acidente grave serem médicas. Contudo, o que fica subvalorizado nesta atitude é a vertente preventiva (ambiental), ignorada pela maioria, ao contrário do que acontece com outros grandes problemas de saúde pública como a hipertensão, a diabetes, a obesidade (em que os termos evocarão ao cidadão comum outros como “açúcar”, “sal”, “exercício físico”, “gorduras” – afinal elementos inerentes à actividade preventiva). A utilização da palavra “acidente” para definir os eventos de que estamos a falar é parcialmente responsável por esta atitude.

Não foi por acaso que os autores de língua anglo-saxónica optaram pela palavra injury em vez de accident, pois esta escolha não só permite fugir à noção fatalista da palavra “acidente”, como também concentrar as atenções sobre o principal aspecto da questão e que importa enfatizar – as lesões, os ferimentos e os traumatismos que decorrem dos referidos acidentes.

Por outras palavras, se por absurdo (como nos filmes de desenhos animados ou de super-heróis), um indivíduo não fosse minimamente afectado quando caísse do alto de um prédio ou quando fosse atropelado por um camião, o acontecimento em si – o “acidente” afinal –, deixaria de nos interessar em termos de problema de saúde. As suas consequências, ou seja, os traumatismos, ferimentos e lesões resultantes da queda do prédio ou do atropelamento é que representam a fonte de preocupação e de interesse.

Infelizmente, a língua portuguesa não tem uma palavra que expresse totalmente o que se pretende. A palavra “ferimento”, por exemplo, exprime mal as consequências de um afogamento. “Traumatismo” não descreve bem o que se passa no decurso de uma intoxicação. A palavra “lesão” será pouco adequada para o que resulta da introdução de um corpo estranho. Porém, o que encontramos nos serviços de urgência, nas consultas, nos cuidados intensivos, em casa, são traumatismos, ferimentos e lesões causados por um agente ambiental.

Deveremos, pois, fazer um esforço para começar a usar, tanto quanto possível, uma terminologia mais correcta, com vista a reforçarmos e simplificarmos a compreensão do cerne do problema. A expressão “traumatismos, ferimentos e lesões acidentais” parece a mais adequada aos objectivos subjacentes às acções preventivas; e poderá chegar o dia em que as pessoas, interrogadas sobre o significado da palavra “acidente”, respondam “cintos de segurança”, “leis anti-álcool”, “protectores de tomadas”, etc..

A maioria das definições enferma um erro substancial: o carácter “não premeditado” ou “inesperado” da situação, e a consequente falência da “vontade humana” em a evitar. Isto seria admitir, à partida, a impossibilidade de qualquer acção preventiva, o que não corresponde à verdade: é falso que os acidentes sejam imprevisíveis, já que os comportamentos das crianças e dos jovens fazem parte integrante do seu desenvolvimento físico, emocional e cognitivo normal. Na realidade, 90% dos TFLA são ao mesmo tempo previsíveis e evitáveis.

Os próprios dados epidemiológicos mostram que a tipologia dos acidentes corresponde a um padrão estreitamente relacionado com os consecutivos estádios de desenvolvimento e com as actividades do dia-a-dia da criança e do adolescente. Assim, sendo este padrão previsível, existem bases para intervenção e para acções preventivas, quer através de meios abstractos como a informação e educação no sentido de melhorar comportamentos individuais e padrões de comportamento colectivos (nos quais se incluem as modas e a pressão social e de grupo), quer sobretudo activamente, através da construção de um ambiente seguro onde o desenvolvimento normal possa ter lugar sem riscos inaceitáveis.

3. Compreensão do desenvolvimento e comportamento humanos

O ser humano, ao contrário de outros mamíferos, nasce razoavelmente “inacabado” do ponto de vista de maturação neuro-sensorial sendo portanto muito dependente do meio que o rodeia e da protecção da sociedade. O desenvolvimento do sistema nervoso central, até atingir a soma extraordinária de um bilião de sinapses, prolonga-se após o nascimento, fundamentalmente no primeiro quinquénio da vida.

Por outro lado, para além da estrutura neurológica há a construção da personalidade, a qual vai depender muito do ambiente nos seus diversos níveis, numa estreita relação, quer com o meio, quer interpares. Os óptimos resultados da utilização das próprias crianças como orientadoras do tráfego à saída de uma escola demonstram bem o efeito estruturalizante positivo sobre os colegas, em contraponto ao efeito negativo, por exemplo, dos desafios lançados também por colegas: “aposto que não és capaz de fazer isto ou aquilo!”.

É o ambiente que se deve adaptar à criança e ao jovem e não o contrário.

Qualquer programa de prevenção dos TFLA terá, assim, de tomar em consideração algumas características básicas do desenvolvimento infantil, componentes indispensáveis para a compreensão das várias etapas “acidentais” da criança e para, em termos de cuidados em antecipação, promover as indispensáveis modificações ambientais para que os riscos possam ser minorados, designadamente:

  • A descoberta progressiva de si próprio, dos outros, do espaço e dos objectos que estão no primeiro círculo, ou seja, ao alcance da mão e da visão; depois dos que estão mais longe; a seguir dos que estão escondidos para além de outros objectos até ao mundo na sua totalidade; esta evolução é acompanhada por uma correspondente capacidade motora e de locomoção (sentar, gatinhar, pôr-se de pé, andar, trepar, correr, juntar uma cadeira e um banco, etc);
  • A curiosidade progressiva;
  • O uso dos cinco sentidos para conhecer o mundo, incluindo a necessidade imperiosa de mexer nos objectos e de levar tudo à boca;
  • As características associadas às outras idades – escolar, adolescência –, associadas ao crescimento e à maturação, quer orgânica, quer psicológica, emocional e da personalidade.

As limitações fisiológicas das capacidades da criança, decorrentes dos estádios do seu desenvolvimento neuro-psíquico-sensório-comportamental, devem ser tidas muito em conta, como se pode demonstrar através de alguns exemplos:

  • Uma criança de três anos que se debruça numa varanda não tem a sensação da distância até ao solo e atirar-se-á para os braços de alguém que, lá de baixo, esteja a chamá-la;
  • Uma criança de dois anos não tem a sensação da profundidade: verá uma escada na continuação directa e plana do corredor de onde vem a correr;
  • Uma criança com menos de dez anos de idade poderá não ter ainda capacidade para atravessar uma rua sozinha pois frequentemente não entende de onde vem o som, não consegue calcular a velocidade dos automóveis nem a distância a que se encontram; dificilmente será capaz de integrar a informação recebida quando olhar para a esquerda e a que seguidamente recebe quando olhar para a direita sem esquecer a primeira; demorará mais tempo a efectuar qualquer tipo de análise da situação em termos espaciais e sensoriais, designadamente a exclusão de estímulos inúteis para o objectivo em causa; e, finalmente, distrair-se-à com estímulos que para ela são mais atractivos, como um amigo, uma bola ou qualquer outra coisa.

Incorporar na mentalidade dos pais e profissionais estes conceitos, cientificamente demonstrados e afinal tão óbvios, não é tarefa fácil. Acresce que os comportamentos associados às diversas características e etapas do desenvolvimento infantil não são passíveis de “correcção” substancial, nem o devem ser, pois que, sem eles, a criança ver-se-ia privada de elementos estimulantes da sua criatividade, inteligência, capacidade de resolver situações, de experimentar, numa palavra, de crescer. Por outro lado, ver-se-ia também privada de um dos seus mais elementares direitos – o de “ser criança”, no que isso implica de exploração do mundo, de actividades lúdicas, de ausência de responsabilidades não adequadas à idade.

É assim entre estes dois objectivos aparentemente contraditórios – a necessidade de aprender experimentalmente e a necessidade de ser protegido – que teremos de desenvolver os programas de prevenção de acidentes, com a noção de que uma criança não é um adulto em miniatura.

Há que dar ao conceito de “exposição ao risco” um lugar fundamental, embora se tenha de admitir que o mesmo risco se pode expressar de modo diferente conforme os casos. Só assim se poderá explicar – através de um modelo comportamental – a maior frequência de acidentes nesta ou naquela situação. Nos acidentes desportivos, por exemplo, há maior envolvimento de rapazes, à excepção dos TFLA sofridos na prática de equitação, justamente porque este desporto é mais praticado por raparigas.

A opção individual face aos diferentes riscos é igualmente um elemento a considerar: sabe-se, por exemplo, que para a mesma viagem o risco de mortalidade ao ir de automóvel é 20 vezes superior ao de ir de avião, e 600 vezes superior ao da viagem de comboio. Obviamente que uma escolha criteriosa e informada obrigará ao conhecimento prévio dos diversos riscos e seus graus.

Ainda no que respeita aos comportamentos, na adolescência, por exemplo, vigoram em maior ou menor grau comportamentos experimentais ou condutas de ensaio naturais e normais, desejáveis e importantes em termos de integração no grupo e de avaliação das próprias capacidades num corpo que se transforma e num espírito que se auto-propõe desafios constantes.

Outro aspecto a ter em linha de conta nos jovens são os comportamentos para-suicidários, ou seja, aqueles em que, por diversas razões de ordem psicológica, numa idade em que podem com maior frequência ocorrer momentos frágeis ou de maior vulnerabilidade, mormente com dificuldade na gestão do estresse, o risco é assumido de uma forma excessiva, através de comportamentos em que um dos resultados possíveis, quiçá até o mais provável, é a morte ou pelo menos um traumatismo, ferimento ou lesão grave. Para compreender a génese dos acidentes juvenis, designadamente os que ocorrem com veículos de duas rodas, é necessário compreender estes comportamentos.

Todavia, convém não esquecer que os riscos são úteis e têm mesmo uma função individual e social – a abolição total das actividades de risco significaria o fim de diversos desportos profissionais, da aviação civil, da profissão de bombeiro, polícia e (porque não), talvez mesmo, a de médico.

De qualquer forma, cada indivíduo vê-se a si próprio como tendo comportamentos menos arriscados (ou por outras palavras, mais “ajuizados”) do que a maioria das pessoas o que, a ser verdade, levaria a um problema matemático complicado, do todo ser superior à soma das partes – se perguntarmos a cada um de nós como classificamos o trânsito diremos que é caótico e que as pessoas não respeitam as regras. Mas diremos também que se isso acontece é porque “nós” respeitamos as regras e os “outros” não. Os outros responderão da mesma forma, o que levará decerto o investigador a não sair da “estaca zero”.

Ao pretendermos estudar e equacionar o comportamento das crianças, urge também tomar em consideração os comportamentos dos adultos, designadamente:

  • Incumprimento de regras;
  • Estar-se convencido de que se cumpre mesmo quando não se cumpre;
  • Má gestão do estresse;
  • Incapacidade de lidar simultaneamente com todos os desafios para os quais se requer atenção e acção;
  • Alterações comportamentais motivadas pelo cansaço, pela frustração, pela ansiedade, etc..

Só assim se explica, por exemplo, a falência de medidas que à primeira vista poderiam ser consideradas fáceis e ideais, como por exemplo dos sinais avisadores da proximidade de uma escola, de redução de velocidade ou as passadeiras e os semáforos junto aos portões das escolas. Se as determinações subjacentes fossem inteiramente cumpridas, o problema dos atropelamentos estaria praticamente resolvido; mas a prática demonstra que assim não é. Ignorar este aspecto é perder uma parte essencial para a compreensão global do problema.

Por outro lado, não se pode exigir de seres imperfeitos, como os seres humanos, análises de situações, atitudes e comportamentos perfeitos: um condutor, por exemplo, é confrontado em cada milha (1,6 km) com 200 observações e 20 decisões.

Admitindo uma incidência perfeitamente razoável de um erro em cada quarenta decisões (2,5%), tal corresponderia a um risco de um erro por cada três quilómetros percorridos (cerca de 100 erros em cada viagem de cerca de 35 km. Com o cansaço ou sob o efeito do álcool, a relação erro/decisão aumenta. Este tipo de análise é de grande interesse, não apenas porque demonstra a incerteza da confiabilidade humana, repudiando a teoria de que os “maus condutores” são “loucos”, “assassinos” ou ambas as coisas, mas também porque, correlacionando este indicador com a velocidade, pode calcular-se por exemplo que a 60 km/h ocorrerá um erro em cada 5-6 minutos e que a 80 km/h ocorrerá um erro cada 3-4 minutos. Se adicionarmos a isto o facto de o erro se manifestar sobre uma máquina de várias centenas de quilos, que desloca uma massa de muitas toneladas, não sentida por quem está confortavelmente sentado, ouvindo música e à temperatura desejada, sem ruído e com excelentes amortecedores, é facilmente compreensível o enorme risco que um condutor tem de sofrer um acidente. Diríamos mesmo que quase se torna estranho não haver mais acidentes.

Mais: quantos condutores saberão, por exemplo, que a 90 km/h a distância média de travagem é de, pelo menos, 45 metros? E que, em caso de piso molhado, esta distância sobe para praticamente o dobro? E quantos saberão que, desde que se tem a noção do perigo até se travar (“distância de reacção”), decorrem 12, 19 ou 25 segundos, conforme a velocidade é 60, 90 ou 120 km/h e que, portanto, é verdadeira a afirmação de que “se não se conseguiu travar a tempo é porque se circulava a velocidade excessiva para as circunstâncias da altura”?

Poder-se-á perguntar: como é possível autorizar-se a condução a indivíduos que desconhecem a máquina que conduzem, os elementos que circulam e tantos outros indicadores que eliminariam à partida a sua capacidade de manobrar outras máquinas industriais? Poderá jogar xadrez quem não conhece os nomes das peças, os seus movimentos e os objectivos e regras do jogo? Ou ser cirurgião quem nunca estudou anatomia ou utilizou um bisturi?

Só será possível gizar e aplicar efectivamente medidas de prevenção dos acidentes e consequentemente dos TFLA, se houver uma profunda compreensão das características do comportamento humano, quer em termos de “laboratório”, quer na vida real, perante os estímulos de ordem vária e perante o estresse.

4. O ambiente como factor fundamental

Não nos podemos esquecer de que os agentes envolvidos na prevenção dos TFLA – dos legisladores aos médicos, dos pais aos políticos, dos educadores aos arquitectos, etc. – pertencem à espécie humana, são de “carne e osso” e, como tal, comportam-se humanamente, quer no que toca à riqueza da sua criatividade, quer na fraqueza das suas falhas e lacunas. Assim, sem eliminar completamente a responsabilidade individual – quer das crianças e jovens, quer sobretudo das famílias – deve atribuir-se o maior peso a outros factores.

Hugh DeHaven, um piloto de aviões da I Guerra Mundial e sobrevivente de uma queda do avião que tripulava, dedicou-se a estudar a razão pela qual algumas pessoas, vítimas do mesmo tipo de acidente (neste caso a queda), não sofriam praticamente qualquer lesão, enquanto outras faleciam. Os seus estudos levaram à conclusão de que não era a força da queda, per se, que infligia as lesões, mas sim o ambiente estrutural que controlava a desaceleração da força e a sua distribuição pelo corpo.

DeHaven concluiu então que “se não fosse possível evitar a queda, pelo menos poderiam ser tomadas medidas para reduzir o impacte e distribuir as pressões de modo a aumentar as hipóteses de sobrevida e modificar o tipo de lesões, quer ao nível da aviação, quer do transporte em terra”.

Hugh DeHaven foi, assim, o primeiro investigador a compreender a importância dos limiares traumáticos e a possibilidade de redistribuir e redimensionar a energia dos impactes por forma a torná-los menos agressivos para o corpo humano. Este princípio serviu de base ao uso do cinto de segurança, aos air-bags e às mudanças estruturais nas carrocerias e habitáculos dos automóveis.

Ou seja, o problema dos TFLA passou assim a pertencer também ao domínio da biomecânica. Gibson, um psicólogo experimental da Universidade de Cornell, referiu que o homem interage com os diversos fluxos de energia que o rodeiam – gravitacionais e mecânicos, radiantes, térmicos, eléctricos e químicos. As trocas de energia, quando não equilibradas, podem causar traumatismos, ferimentos e lesões.

Assim, a melhor forma de classificar os acidentes seria de acordo com o tipo de energia envolvida. O problema de classificação de alguns tipos de acidentes que não se encaixavam em nenhum destes tipos de energia – como os afogamentos, a asfixia ou as lesões pelo frio – foi resolvido por Haddon ao incluir o conceito de “agentes negativos”, os quais se explicariam pelo défice de elementos energéticos essenciais como o oxigénio ou o calor, nestes tipos de TFLA.

Os estudos de Haddon constituem marcos essenciais para a compreensão inovadora dos acidentes. A sua matriz, cruzando horizontalmente três fases (antes, durante e depois do acidente) com quatro elementos verticais (hospedeiro, vector, ambiente físico e ambiente sócio-económico) permite explicar os vários condicionalismos e factores que tornam cada acidente um caso diferente, com resultados diferentes:

  • Na fase “antes” encontram-se os diversos factores que fazem com que o acidente vá ocorrer – por exemplo, segundo os quatro elementos verticais mencionados, o hospedeiro que está ébrio, os travões do carro que funcionam mal, a estrada que tem uma curva mal desenhada e a atitude permissiva da sociedade perante o álcool e a condução;
  • Na segunda fase, “durante”, estão os elementos que determinam se o acidente (que entretanto ocorreu) dá ou não origem a um traumatismo, ferimento ou lesão – no exemplo vertente, e ainda segundo os quatro parâmetros verticais: os ocupantes da viatura usam cinto de segurança?, o carro é pequeno ou é grande?, o carro bate numa árvore ou num monte de feno? existe ou não uma lei que reforce o uso de cintos?;
  • A terceira fase (“depois”) contém elementos que determinam se a gravidade das consequências pode ser minorada: a hemorragia é importante? Os primeiros socorros chegaram rapidamente? Os cuidados intensivos são eficientes? A sociedade investiu num sistema de emergência médica?

Para Haddon, modificando um ou alguns destes parâmetros teria implicações nas consequências de um acidente.

Através da legislação, da sua fiscalização, da utilização das tecnologias para alterar a concepção e o fabrico dos produtos, os técnicos de diversas áreas têm como objectivo evitar o contacto do ser humano com quantidades de energia que lhe possam causar lesões e até a morte. Reside aí a chave da prevenção dos TFLA.

Obviamente que não deve ser retirada ao ser humano a sua quota parte da responsabilidade. Se a energia de um impacte de um automóvel com uma árvore, por exemplo, é independente do condutor e depende, sim, do cinto de segurança, da estrutura do automóvel, da velocidade, do peso, do tamanho da árvore, da travagem, de a coluna do volante ser colapsável ou não, etc., também não restam dúvidas de que a atitude de o condutor optar por conduzir sóbrio ou ébrio, ou de colocar ou não o cinto de segurança, pode ser decisiva para a sua ocorrência ou para as suas consequências. Só que, em vez de uma acção “educativa” que é apenas informativa e muitas vezes assustadora ou punitiva, as modificações no sentido de actuar “pensando segurança” fazem-se através de uma aprendizagem comportamental que se baseia no exemplo, no ensino, na moda, e que tem de se iniciar muito precocemente, tal como a higiene oral, o lavar das mãos, ou cumprimentar os pais e os amigos.

Daí a prioridade que deve ser dada às crianças e adolescentes, grupos etários estes que estão numa fase eminentemente formativa da sua vida. Só incorporando a segurança nos gestos banais e nos actos instintivos poderá haver uma certa garantia de êxito.

Não nos podemos esquecer de que a larga maioria dos acidentes ocorre, quer numa normalíssima situação do dia-a-dia, quer numa situação de estresse, e que, em ambas, o “catálogo” das recomendações de segurança não está presente na mente das pessoas.

A educação para a prevenção dos acidentes deverá, assim, privilegiar os meios mais adequados à interiorização das mensagens (e não apenas o “bombardeamento” do alvo com mensagens) para o que são indispensáveis a utilização das técnicas de comunicação e de marketing, o contacto pessoal e a demonstração das alterações ambientais a efectuar, de preferência nos locais onde elas devem ter lugar.

Daí a importância de, por exemplo, incrementar a visitação domiciliária para cuidados de antecipação nesta área da prevenção, desde que os agentes sejam preparados convenientemente.

Os meios de comunicação constituem, por outro lado, um poderosíssimo meio de transmissão de mensagens, de informação e de modelação de comportamentos (bem como de criação de necessidades), nomeadamente através de programas informativos, educativos, lúdicos ou de entretenimento.

5. Estratégias

A construção de um meio ambiente de qualidade que permita o desenvolvimento harmonioso da família e dos cidadãos é da responsabilidade de todos nós, requerendo um trabalho multi– e transdisciplinar.

A prevenção dos acidentes passa por um programa centrado na comunidade, de acção ambiental, no qual os médicos deverão, evidentemente, desempenhar um papel de relevo, sendo que os mesmos não deverão considerar-se os detentores exclusivos do protagonismo.

Alguns TFLA podem ser prevenidos através de uma acção global, nacional ou internacional, como certas intoxicações (se houver legislação e cumprimento desta no que se refere às embalagens de segurança), ou acidentes com a criança como passageiro do automóvel (por exemplo, se a lei referente ao transporte correcto for cumprida).

Outros, que têm a sua génese em inadequações urbanísticas e arquitectónicas, necessitam de uma abordagem local (é o caso dos atropelamentos à porta das escolas, dos TFLA sofridos em parques infantis, em quedas de varandas, afogamentos em piscinas ou rios), e exigem transformações ambientais de tipo estrutural.

Nalguns países, como a Suécia, foi possível (graças a uma acção sistemática integrada, iniciada ainda na década de 50 que reuniu as autoridades oficiais, organizações não governamentais, companhias de seguros e forças-vivas da sociedade) uma redução muito significativa no número de óbitos e na morbilidade por TFLA. Com efeito, a Suécia tornou-se o país com indicadores mais baixos de todo o mundo industrializado.

Reforça-se a ideia de que é indispensável, como já referimos, conhecer a situação com vista a identificar prioridades, utilizando, para tal, a abordagem da saúde pública, classificando os problemas segundo a sua prevalência/incidência, a sua transcendência (a vários níveis) e a vulnerabilidade às diversas acções e medidas.

Será também indispensável fazer uma ampla revisão da literatura e consultar peritos de várias instituições para identificar quais as medidas e acções que são verdadeiramente eficientes, separando-as das que, embora aparentemente eficazes, não se traduzem muitas vezes por uma melhoria da situação.

Outro aspecto fundamental é não desenvolver programas demasiado alargados. “Prevenir os acidentes” é um conceito demasiado vago para ser entendido em termos práticos e, novamente, podendo desencadear a noção de falsa-segurança. Em cada local haverá que identificar por ordem de prioridade quais os tipos de acidentes que estão a produzir mais TFLA e hierarquizá-los de forma a iniciar programas para os mais frequentes, mais graves, com maior vulnerabilidade às medidas e acções, com maior relação benefício/custo.

Será igualmente fundamental ampliar a informação sobre os acidentes e os TFLA, de modo a sensibilizar o público, designadamente sobre as prioridades e as medidas propostas, a fim de obter uma maior adesão dos cidadãos. O envolvimento destes na definição do problema, em toda a sua extensão, e a sua colaboração enquanto técnicos, mas também como seres humanos com experiência acumulada, não só é fundamental, como representa o reconhecimento de um direito legítimo.

Para além disso, no sentido de produzir as necessárias modificações ambientais:

  1. Há que fazer um levantamento dos recursos materiais e humanos;
  2. Analisar através da matriz de Haddon quais os pontos fracos da cadeia de cada TFLA, a fim de os “partir”;
  3. Redimensionar o contacto entre a energia (agente + situação) e a vítima.

O ponto 3) poderá ser concretizado com certas medidas a saber:

  • Medidas com o objectivo de impedir a troca de energia entre um e outro:
    • evitar a situação ou abolir o agente (eliminar um pesticida perigoso);
    • separar o agente da criança (vedar uma piscina);
    • vigiar a criança para impedir o contacto, apesar de não haver separação (acompanhar uma criança de casa à escola);
    • informar a criança dos riscos (educação para a segurança).
  • Medidas que reduzem a troca de energia ou melhoram a recepção da energia
    • reduzir a quantidade ou a agressividade do agente (reduzir a temperatura máxima da água canalizada);
    • modificar a situação e o agente (embalagens de segurança);
    • aumentar a resistência da criança (usar cadeira de segurança no automóvel);
    • treinar a criança para melhor enfrentar o agente (aprender a nadar).

Para além destas, é essencial desencadear também as medidas que, uma vez ocorrido o TFLA, poderão permitir a prevenção secundária e terciária.

Notas importantes:

  • Algumas medidas devem ser tomadas “de uma vez”, como a compra, por exemplo, de um fogão no qual não haja aquecimento da porta – é relativamente fácil concretizar este grupo de medidas (consideradas evidentemente a acessibilidade, disponibilidade e outros factores);
  • Outras deverão ser repetidas todos os dias, como colocar o cinto de segurança – podendo, contudo, ser estabelecidas desde que se crie o hábito.

6. Legislação

A integração de Portugal na União Europeia reforçou o naipe legislativo português, pela transposição para o Direito Interno do nosso País, das directivas e normas europeias. Poder-se-á dizer que, globalmente, Portugal dispõe de um conjunto de leis que, se levadas à prática, poderiam contribuir para reduzir de forma muito evidente o número de acidentes e de TFLA. Há, no entanto, alguns problemas que subsistem – a segurança no transporte colectivo de crianças ou o uso do capacete de bicicleta.

O problema principal no processo legislativo reside no atraso registado na regulamentação das leis, (condição essencial para a sua aplicabilidade) dizendo respeito, por exemplo, ao espaço entre as grades de uma cama de bebé, à altura dos degraus de uma escada ou à altura das janelas. Refira-se, a propósito, que as Câmaras Municipais e os Serviços de Saúde, designadamente, não dispõem ainda de meios legais para controlar aspectos essenciais relacionados com a construção de edifícios e com o ambiente onde as crianças vão viver.

Na Suécia, apesar de a utilização de dispositivos para transporte de crianças ter tido início quando Olof Palme era Ministro dos Transportes, no final dos anos 60, por pressão dos pediatras encabeçados por Ragnar Berfenstam, e existindo programas de aluguer e outros que generalizaram o acesso a estes dispositivos (sendo o grau de utilização de praticamente 100%), a legislação só foi produzida em 1988, numa altura em que qualquer pai ou mãe suecos já não admitiriam a hipótese de transportar incorrectamente os filhos.

No Reino Unido, foi em 1959 que, pela primeira vez, se levantou no Parlamento a questão do uso de cinto de segurança; em 1973 foi elaborada a primeira proposta formal mas só em 1981 a lei foi aprovada. Passaram, pois, muitos anos. Se este lapso de tempo pode ser considerado grande e levar a uma perda inútil de vidas e a TFLA evitáveis, por outro lado permite que, desde que bem utilizado, o processo legislativo seja acompanhado pela população e o articulado legal entendido e aceite.

A existência de Provedorias da Criança, com tanto sucesso na Escandinávia, e a inclusão dos aspectos de segurança e prevenção dos TFLA no capítulo dos Direitos da Criança e dos Direitos do Cidadão (designadamente nos direitos do consumidor) permitiu também em muitos países (encabeçados pelos nórdicos mas também na Holanda, Reino Unido, Alemanha e outros) a definição de padrões sociais de exigência mesmo na ausência de legislação na perspectiva do bem-estar da população em idade pediátrica.

7. Consciencialização dos cidadãos

É imperioso aumentar o reconhecimento e a consciencialização da população e de todos os níveis dos sectores público e privado relativamente à necessidade do controlo de TFLA. A natural lentidão do processo de interiorização de conceitos novos não deverá ser impedimento à transmissão de mensagens que são consideradas correctas, pelo que as campanhas de educação para a saúde e de chamada de atenção para os problemas, deverão incluir os TFLA (nas suas vertentes de prevenção e, cuidados de saúde agudos e reabilitação).

Claro está que, dadas as reticências que actualmente são levantadas a estes processos, designadamente no que se refere à sua eficácia e eficiência, eles deverão ser bem elaborados, com extensa utilização das técnicas de comunicação existentes e com uma noção clara do que será importante transmitir.

Os profissionais estão frequentemente alheados do problema ou das formas de o resolver.

  • Quantos arquitectos e engenheiros não conhecem ou não utilizam a legislação existente relativa aos materiais de construção e à segurança da construção?
  • Quantos médicos ignoram os ditames da segurança no que toca aos medicamentos?
  • Quantos tóxicos são vendidos sem um alerta para as condições de utilização e armazenamento? etc..

O ensino/ aprendizagem da segurança deverá começar quando começa o de outras áreas; mas, dentro do percurso de formação profissional, importa investir mais e melhor, em quantidade e qualidade.

Em suma, os acidentes custam tantos ou mais anos de vida e tanto sofrimento e dinheiro como o conjunto das doenças cardiovasculares e do cancro. Levam a incapacidades permanentes. Contudo, um pouco à margem da preocupação dos cidadãos.

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