Importância do problema
As anomalias congénitas do sistema respiratório, implicando em geral resolução cirúrgica, são situações raras de expressão clínica muito variável.
Com a evolução da tecnologia de imagem aplicada no período pré-natal é hoje possível o diagnóstico antecipado de muitas destas situações, o que contribui para a melhoria do prognóstico.
Etiopatogénese
A morfogénese das estruturas da árvore respiratória (tracto respiratório inferior) que derivam primordialmente do intestino primitivo do embrião, é classicamente dividida em cinco períodos: estes são contados a partir da separação do divertículo “em dedo de luva” ou saccuilus pulmonalis que emerge da face ventral do tubo digestivo primitivo pelos 24 dias de gestação, bifurcando-se pelos 26-28 dias (esboços dos brônquios principais):
- Período embrionário (4ª -7ª semana)
Neste período inicia-se a separação do primórdio respiratório a partir da face ventral do intestino anterior como resultado da formação do septo tráqueoesofágico; estão então constituídos dois “tubos” independentes: o esófago e o tubo laringotraqueal. - Período pseudoglandular (7ª-16ª semana)
Neste período ocorrem determinados eventos em simultâneo: ramificação da árvore respiratória até aos bronquíolos terminais, migração das estruturas vasculares, e desenvolvimento da cartilagem, glândulas mucosas e musculatura lisa nos brônquios a partir do mesênquima. - Período canalicular (16ª-26ª semana)
Neste período formam-se os bronquíolos respiratórios, os ductos alveolares e os alvéolos a partir dos bronquíolos terminais. - Período sacular (26ª-36ª semana)
Os eventos importantes deste período são o crescimento das unidades para as trocas gasosas e a produção de surfactante alveolar. - Período alveolar (a partir da 36ª semana)
Neste período completa- se a formação das estruturas envolvidas na função respiratória continuando o crescimento da superfície de trocas gasosas.
A perturbação deste processo em diversas datas e por efeito de diversos factores dá origem a diversas anomalias congénitas; neste capítulo é feita menção especial a quatro situações deste foro, de possível solução cirúrgica: enfisema lobar congénito, quisto broncogénico, malformação adenomatóide quística e sequestração broncopulmonar.
1. ENFISEMA LOBAR CONGÉNITO
Definição e importância do problema
O enfisema lobar congénito consiste na insuflação anormal de um pulmão anatomicamente normal resultando provavelmente de um defeito intrínseco da cartilagem bronquiolar favorecendo broncomalácia.
Poderá verificar-se compressão extrínseca por anomalias vasculares intratorácicas. Como consequência verifica-se colapso do brônquio afectado durante a expiração levando a retenção progressiva de ar no pulmão por dificuldade de saída daquele. O lobo mais frequentemente afectado é o superior esquerdo (LSE), seguindo-se em frequência o lobo médio direito e o superior direito.
Existem descritos casos raros de compromisso multilobar. Em 50% dos casos não é possível identificar a etiopatogénese. A prevalência do enfisema lobar congénito é ~1/20.000.
Manifestações clínicas
O enfisema lobar congénito pode ser assintomático durante algum tempo (dias), sendo habitual um quadro de dificuldade respiratória, de instalação mais ou menos rápida, nos primeiros dias de vida; é possível que o mesmo seja desencadeado pelo choro. Por vezes a instalação do quadro é aguda.
As manifestações poderão surgir mais tarde, na idade pré-escolar. Podem ocorrer pneumonias recorrentes.
O quadro clínico é explicável pela compressão exercida pelo lobo afectado sobre o pulmão normal.
Exames complementares e diagnóstico diferencial
Esta situação pode ser diagnosticada por ecografia no período pré-natal.
Através da radiografia do tórax realizada perante manifestações de dificuldade respiratória torna-se evidente o sinal de hipertransparência na área do lobo afectado (em geral LSE) com herniação e desvio do mediastino para o lado oposto; a hemicúpula diafragmática homolateral está aplanada (Figura 1).
O diagnóstico diferencial faz-se com pneumotórax e com anomalia adenomatóide quística na sua forma de apresentação de quisto gigante.
A tomografia axial computadorizada ajuda nesta destrinça, bem como esclarece a possível confusão com compressão extrínseca do brônquio por estruturas mediastínicas. Nestes casos a broncoscopia pré-operatória pode tornar-se indispensável.
Poderá estar indicada a cintigrafia de perfusão/ ventilação nos casos de enfisema lobar que se admite tenha sido adquirido após ventilação com pressão positiva de longa duração.
Também está indicada a observação por cardiologista pediátrico que procede a ecografia cardíaca pela elevada probabilidade de associação a anomalia cardiovascular.
FIGURA 1. Padrão radiográfico convencional do tórax (Enfisema lobar à esquerda). TAC torácica (imagem bolhosa) (NIHDE)
Tratamento
Uma vez comprovado o diagnóstico, o tratamento é cirúrgico.
Se o quadro for de instalação aguda, pode ser necessária uma toracotomia de urgência.
Se se demonstrar que a causa da insuflação é broncomalácia, procede- se a lobectomia. Se existir compressão extrínseca, a intervenção tem como objectivo retirar a causa: com a remoção da causa o lobo afectado retomará a sua função normal.
Se no pré-operatório se tornar indispensável apoio ventilatório, deve ser utilizada ventilação oscilatória de alta frequência.
2. QUISTO BRONCOGÉNICO
Definição
O quisto broncogénico gera-se a partir do divertículo respiratório, em que um grupo de células, que se desenvolve independentemente do tracto respiratório, se separa deste.
Pode ter várias localizações sendo a mais frequente no mediastino posterior ou médio, por de trás ou junto à árvore traqueo-brônquica “mãe” (carina, hilo pulmonar); está frequentemente ligado a esta por um pedículo obliterado ou permeável.
Em geral é central e único.
Pode, raramente, localizar-se no esófago, pericárdio ou no próprio parênquima pulmonar, assumindo nesta última localização a forma multilocular.
No que respeita a características morfológicas, os quistos broncogénicos têm 2 a 10 cm de diâmetro, parede bem individualizada e contêm muco, pus ou sangue.
Manifestações clínicas
Mais frequentemente as manifestações têm início na idade pré-escolar traduzindo- se por sinais de broncospasmo, sinais de compressão, ou por infecções respiratórias de repetição, nalguns casos relacionadas com infecção do próprio quisto quando este comunica com a árvore tráqueo-brônquica.
Os quistos de localização intercarinal podem manifestar-se muito mais precocemente, já no recém-nascido, com insuficiência respiratória, o que implica correcção precoce; podem ser causa de morte súbita.
Noutros casos são assintomáticos, sendo então identificados como achados no âmbito da realização de exame radiográfico do tórax por motivos diversos.
Exames complementares
A radiografia do tórax poderá evidenciar massa paratraqueal ou imagem esferóide com parede fina (semelhante a “balão” ou grande “bolha” correspondente a área de distensão gasosa).
A TAC e a RMN, com maior discriminação imagiológica, possibilitarão a identificação de pequenos quistos intercarinais.
Diagnóstico diferencial
As manifestações clínicas e o padrão radiográfico do tórax convencional evidenciando imagem de distensão gasosa ou “bolhosa” única poderão levar a admitir a presença doutra situação – o quisto pulmonar – com patogénese semelhante ao quisto broncogénico, mas derivando das células do bronquíolo respiratório. O referido quisto pulmonar é, no entanto, periférico (e único) com um padrão radiográfico que evidencia parede melhor definida do que no caso do quisto broncogénico.
Por sua vez, o quisto pulmonar pode confundir-se com pneumatocele o qual apresenta parede menos espessa. O quisto pulmonar, quando infectado, pode confundir-se com abcesso pulmonar.
Tratamento
O tratamento, quer do quisto broncogénico, quer do quisto pulmonar, é a excisão cirúrgica.
3. MALFORMAÇÃO ADENOMATÓIDE QUÍSTICA
Definição e importância do problema
Esta anomalia é caracterizada por crescimento desordenado (histologia de tipo hamartoma ou displasia) dos bronquíolos terminais impedindo quase completamente o crescimento e desenvolvimento alveolar no lobo de um pulmão; como consequência há formação de múltiplos quistos desorganizados alternando com zonas de parênquima não afectado, sendo que os referidos quistos não comunicam com a árvore tráqueo-brônquica e podem comprimir as estruturas vizinhas.
Surge com uma frequência aproximada de 1-4/100.000 nascimentos.
São descritos 3 tipos: 1 (50%), macroquístico, com um ou mais quistos de diâmetro superior a 2 cm; 2 (40%), microquístico com histologia semelhante à do tipo 1; 3 (10%) em que a lesão é sólida simile bronquíolos preenchidos por epitélio cubóide ciliado e não ciliado.
Manifestações clínicas e diagnóstico
As manifestações são precoces, no pós-parto traduzidas por síndroma de dificuldade respiratória conduzindo a insuficiência respiratória; a manifestação mais tardia inaugural pode ser infecção respiratória com recorrências.
A ecografia fetal permite o diagnóstico entre a 12ª e a 14ª semana de vida intra-uterina; por vezes verifica-se inexplicavelmente a sua regressão espontânea o que prova a complexidade de tal anomalia congénita. Em certas formas surge hydrops fetalis.
Após o nascimento a radiografia do tórax é essencial para o diagnóstico definitivo, chamando-se a atenção para o diagnóstico diferencial com a hérnia diafragmática de Bochdaleck (esta última abordada no capítulo 308).
Em casos especiais pode proceder-se à tomografia axial computadorizada.
Tratamento
O tratamento é a excisão cirúrgica – lobectomia – mesmo no doente assintomático, de preferência antes dos 12 meses de idade, face à possibilidade de evolução sarcomatosa ou carcinomatosa.
Quando as lesões são de grandes dimensões pode verificar-se hipoplasia do pulmão e hipertensão pulmonar implicando medidas de suporte respiratório em unidade de cuidados intensivos.
4. SEQUESTRAÇÃO PULMONAR
Definição e etiopatogénese
Esta anomalia é caracterizada pela presença de segmento de parênquima pulmonar não funcionante, sem comunicação evidente com a árvore tráqueo-brônquica; a sua vascularização é anómala, recebendo a totalidade ou a maior parte da sua irrigação arterial sanguínea por vasos oriundos directamente da circulação sistémica.
São descritos dois tipos:
- intralobar em que o tecido sequestrado está contido no lobo normal;
- extralobar, ocorrendo quando a lesão está separada do lobo pulmonar normal e também fora da pleura visceral; este tipo está mais frequentemente associado a outras anomalias congénitas
Manifestações clínicas e diagnóstico
O início das manifestações é muito variável, desde a idade pediátrica à idade adulta. Em geral traduzem-se, quer por sinais e sintomas de infecções respiratórias, quer relacionáveis com shunt de alto débito em relação com os vasos anómalos.
A sintomatologia é predominantemente respiratória, mas a presença de shunts de alto débito, por si só, ou pelas malformações cardíacas congénitas associadas, pode produzir manifestações cardiocirculatórias.
Com efeito, a infecção respiratória é habitual neste tecido pulmonar não funcionante, pelo que as crianças com infecções respiratórias de repetição de causa não evidente devem ser consideradas suspeitas de serem portadoras deste tipo de malformação e investigadas nesse sentido.
A radiografia do tórax convencional, nos casos de tipo intralobar, pode evidenciar sinais de opacidade ou de lesão quística com nível líquido.
A ecografia doppler é o exame de eleição, mas pode haver necessidade de se associar TAC com reconstrução a 3 dimensões, ou ângio-ressonância. (Figura 2)
Deve ser feito o estudo por ecografia e cintigrafia do fígado quando a lesão está localizada na base direita, pois há casos de hérnia diafragmática com fígado intratorácico que podem levar a erros de diagnóstico.
FIGURA 2. Sequestração pulmonar: A – Radiografia do tórax convencional evidenciando opacidade ovóide no terço inferior do hemitórax esquerdo; B – TAC torácica evidenciando opacidades arredondadas confluentes em “mapa geográfico” (NIHDE)
Tratamento
O tratamento da sequestração pulmonar intralobar é a lobectomia ou, caso possível, a segmentectomia, tendo sempre em atenção a necessidade de laquear o vaso anómalo face ao risco de hemorragia e morte intra-operatória.
Os casos de sequestração extralobar que, na sua maioria, são assintomáticos e descobertos por acidente, poderão ser seguidos sem intervenção cirúrgica a qual só estará indicada se se verificar infecção ou sintomatologia cardiocirculatória.
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