Introdução

O controle dos esfíncteres completa-se por volta dos 5 anos, de modo sequencial: anal diurno → anal nocturno → vesical diurno → vesical nocturno. No caso do esfíncter anal, na maioria das crianças o respectivo controle verifica-se entre os 2 anos e 2 anos e meio. Não ocorrendo a sequência descrita, dum modo genérico fala-se em perturbações da eliminação. Tal noção tem implicações práticas no que respeita à actuação prática.

1. ENURESE NOCTURNA

Definição, manifestações clínicas e aspectos epidemiológicos

Antes de abordar esta entidade clínica, será importante recordar algumas noções básicas sobre terminologia relacionada com o fenómeno da micção.

A enurese, no sentido genérico do termo, define-se como a micção involuntária (incontinência urinária) mais do que duas vezes por semana durante três meses consecutivos em crianças com mais de 5 anos (idade em que, dum modo geral e como foi anteriormente referido, o controle dos esfíncteres deve estar estabelecido).

Considera-se primária (ou funcional) se a criança teve sempre este tipo de comportamento, excluindo-se patologia de base de tipo médico, neurológico, urológico ou mental. A enurese primária representa cerca de 90% de todos os casos.

Considera-se secundária (ou orgânica) se na criança for demonstrada patologia de base, e um período mínimo anterior de 6 meses sem tal sintomatologia, com recorrência ulterior de micções involuntárias; em geral associa-se a situações de sono fragmentado como a síndroma de apneia obstrutiva do sono, sendo mais frequente nas crianças com perturbações do neurodesenvolvimento, incluindo a perturbação de hiperactividade/défice de atenção. A enurese secundária ocorre mais frequentemente entre os 5 e 8 anos de idade.

A enurese nocturna (ou do sono) – mais frequente – ocorre em tal circunstância; a enurese diurna ocorre durante o dia. De referir que a enurese diurna e nocturna podem coexistir.

A enurese do sono, mais frequente na primeira parte do sono e no sexo masculino (relação 3/2), ocorre em cerca de 30% de crianças aos 4 anos, 10% aos 6 anos, 5% aos 10 anos e 3% aos 12 anos. Admite-se hereditariedade de tipo autossómico recessivo, ou dominante com 90% de penetrância; outros estudos identificaram anomalias nos cromossomas 13 e 14.

Estima-se que em cerca de 97% das situações de enurese do sono não existe causa orgânica. Em mais de 50% das situações de enurese nocturna primária existem antecedentes familiares.

Etiopatogénese

A etiopatogénese da enurese do sono não é bem conhecida; admite-se que possa estar em causa atraso na maturação neurofisiológica, bexiga de capacidade limitada e/ou aumento da contractilidade, discrepância entre a secreção de hormona antidiurética (HAD) nocturna e capacidade da bexiga, alteração do ritmo circadiano da HAD, etc.. Frequentemente existe associação com problemas de ordem psicoemocional e social.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da enurese do sono faz-se com situações de enurese secundária (doenças orgânicas, infecção urinária, diabetes mellitus ou insípida, bexiga neurogénica, anomalias do tracto urinário tais como uréter ectópico, obstipação crónica, estresse emocional, etc.). De salientar que em todos os casos de enurese verificada durante o sono importa proceder, como sempre, a um exame clínico completo da criança. A este respeito, importa referir a importância da avaliação psicológica, assim como da detecção de anomalias do foro neurológico e espinhal.

No âmbito da clínica geral ou da pediatria geral será importante a realização dum conjunto de exames complementares mínimos, como determinação da glicémia, creatininémia, análise sumária de urina com especial atenção para detecção de glicosúria, pH e densidade, eventual urinocultura, etc..

Tratamento

Tendo em conta a fisiologia da aprendizagem do controle dos esfíncteres, o tratamento propriamente dito não deverá ter início antes dos 5 anos de idade, sendo importante determinar, caso a caso, o momento a partir do qual a criança tem suficiente maturidade para colaborar no referido tratamento.

Sem estabelecer barreiras temporais estanques, parece ser consensual entre os especialistas em neurodesenvolvimento que até aos 5 anos os “treinos” em modificações de certos hábitos de conduta e certas medidas gerais são de grande utilidade e que o tratamento propriamente dito só deverá ter lugar a partir dos 5 anos:

Sistematizando:

a) Antes dos 5 anos

  • explicar a situação e transmitir confiança;
  • não criticar nem punir a criança, mantendo atitude de ambiente calmo;
  • apoio psicológico para criar auto-estima e tentar lutar contra o medo de ir à casa de banho;
  • nunca dormir com luz uma vez que esta diminui a secreção da hormona antidiurética
  • treino de consciencialização de “bexiga cheia” medindo a quantidade de urina que corresponde a tal sensação;
  • promover o esvaziamento regular da bexiga de 2-2 ou 3-3 horas, aumentando o suprimento em líquidos durante o dia (bebendo líquidos 6-7 vezes por dia), reduzindo-o a partir das 19 horas;
  • evitar bebidas estimulantes da diurese (chá, café, chocolate, bebidas de cola, refrigerantes gaseificados);
  • responsabilizar a criança/jovem pela sua higiene, incumbindo-a/o do registo dos chamados calendários (incluindo o miccional).

b) Depois dos 5 anos

  • continuar a execução das medidas anteriores;
  • retirar as fraldas e, acima dos 8 anos, retirar também o resguardo;
  • incutir a rotina de esvaziamento da bexiga antes de ir para a cama à noite;
  • entre os 5-7 anos preconiza-se, para além das medidas gerais anteriormente descritas, a utilização de alarmes e fármacos como desmopressina (DDAVP), em geral sob a forma de spray nasal (10-40 mcg/dia), liofilizado por via oral (0,06-012 mg/dia), ou imipramina (para aumentar a capacidade da bexiga) na dose máxima de 2,5 mg/kg ao deitar;
  • estratégia de incentivo psicológico que poderá ser ”premiada” em função dos resultados; por exemplo, utilização de calendários para registo de certas tarefas ou de objectivos a alcançar, um de cada vez – registo de noites secas, ou de acordar espontaneamente para urinar, ou menor quantidade de perda urinária ou aumento de ingestão de líquidos durante o dia, etc.).

Nos casos de insucesso destas medidas, consultando a lista do diagnóstico diferencial, a criança deverá ser encaminhada para consulta de subespecialidade (neurologia pediátrica, nefro-urologia pediátrica, etc.), em função do contexto clínico para ulteriores exames complementares, nomeadamente imagiológicos.

2. ENCOPRESE

Definição

A encoprese define-se pela expulsão de fezes (voluntária ou involuntária) em local não apropriado, a partir dos 4 anos de idade (normalmente após a aquisição dos mecanismos de controle esfincteriano). À perda involuntária e repetida de fezes, habitualmente pastosas ou semiformadas, sujando continuada ou frequentemente a roupa interior, dá-se também o nome de “soiling” ou encoprese no sentido estrito.

Tal problema merece atenção especial quando ocorrer, pelo menos, uma vez por mês durante 3 meses seguidos.

Etiopatogénese

Na génese e na evolução da encoprese intervêm não só factores fisiológicos (distensão rectal, perda do tono muscular do esfíncter anal e compromisso sensorial), mas também psicológicos (obstipação associada a hábitos “anárquicos” e inadequados no acto da defecação, experiências desagradáveis associadas ao acto de defecar, insucesso nas tentativas aquisição de rotinas “saudáveis” no mesmo acto, entre outros). No que se refere aos factores de estresse citam-se como importantes os relacionados com o ambiente familiar (separação dos pais, ausência prolongada dos mesmos, nascimento de um irmão mais novo ou início das aulas após férias).

Aspectos epidemiológicos

Trata-se duma manifestação clínica frequente nas consultas de pediatria. Surgindo com prevalência em ambos os sexos da ordem de 1-2%, é mais elevada no sexo masculino (relação M/F~8/1).

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico baseia-se na história clínica (anamnese e exame objectivo, com especial realce para a palpação abdominal, toque rectal e exame neurológico). Se a encoprese estiver associada a obstipação designa-se por “de retenção”; caso tal não aconteça, chama-se “de não retenção”.

Comorbilidade

Relativamente à patologia associada é importante relevar as seguintes situações: estresse, alterações do neurodesenvolvimento, perturbação obsessiva-compulsiva, perturbação de hiperactividade e défice de atenção, síndromas depressivas, ansiedade, enurese, etc..

Tratamento

Salientando-se que não está indicado o tratamento com psicofármacos, a abordagem é essencialmente de ordem biopsicossocial.

Antes de iniciar o tratamento (o qual implica muita paciência por parte da família e do paciente) importa desmistificar o problema informando os pais/família sobre o funcionamento do tubo digestivo, as consequências da retenção de fezes, e sobre o facto de as manifestações da criança não serem intencionais.

O tratamento psicológico é necessário em contexto de crianças com desequilíbrios emocionais, e de alterações de aprendizagem ou de socialização com outras crianças.

Determinados centros utilizam uma estratégia que combina aprendizagem de técnicas de conduta com tratamentos médicos englobando laxantes e enemas

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