INFECÇÕES POR STREPTOCOCCUS PYOGENES

Definição e importância do problema

As infecções devidas ao microrganismo Streptococcus beta hemolítico do grupo A de Lancefield (SGA), também denominado Streptococcus pyogenes, integrando o conceito de doença estreptocócica, são dum modo geral benignas e de curta duração; no entanto, salienta-se a possibilidade, quer de formas clínicas muito graves, potencialmente letais, quer de complicações e sequelas não supuradas, tais como a febre reumática e a glomerulonefrite pós-estreptocócica.

Citam-se como exemplos de formas clínicas de doença estreptocócica (em > 90% dos casos provocadas pela espécie S. pyogenes): faringoamigdalite, escarlatina, impétigo, erisipela, bacteriémia, vaginite, dermatite perianal, pneumonia, e doença invasiva grave (como celulite e bacteriémia, fascite necrosante e síndroma de choque tóxico, etc.).

Neste capítulo, abordando aspectos globais da epidemiologia, etiopatogénese, prevenção e tratamento, é dada ênfase à entidade clínica Escarlatina tipificando historicamente uma forma clássica de infecção por Streptococcus pyogenes.

Por outro lado, faz-se referência sucinta aos critérios de diagnóstico da Síndroma de choque tóxico estreptocócico como modelo de doença invasiva; este tópico é abordado na Parte sobre Urgências e Emergências.

Outros tipos de infecções pelo agente infeccioso em causa SGA (por ex. fascite necrosante erisipela, etc.) são descritos no capítulo dedicado às infecções da pele e dos tecidos moles.

Aspectos epidemiológicos

A doença estreptocócica é uma doença endémica nas grandes cidades, sendo o ser humano, de qualquer idade, o reservatório natural de SGA, germe bacteriano muito transmissível. É mais comum nos meses de inverno e início da primavera, em crianças acima dos 3 anos de idade, particularmente entre os 5 e os 15 anos. A doença é rara em lactentes devido à transmissão de anticorpos maternos, embora possa ocorrer em situações de epidemia, nomeadamente em infantários.

O modo de transmissão da infecção faz-se principalmente através de gotículas de saliva ou secreções nasais por contacto directo com um doente, pelo que é mais frequente em meios de maior densidade populacional, como escolas, grupos de desportos de contacto e instituições militares. Durante os meses de inverno, cerca de 15% a 25% das crianças são portadores assintomáticas de SGA na faringe, mas o risco de transmissão é baixo porque a bactéria perde virulência na faringe do portador. As razões imunológicas para a persistência da bactéria nas vias respiratórias superiores ainda não estão completamente explicadas.

A transmissão pode também fazer-se indirectamente por objectos ou alimentos contaminados pelas mãos de doentes. Foram descritas epidemias de amigdalofaringite provocada por ingestão de alimentos contaminados preparados, ou refrigerados, em más condições de higiene.

O epitélio estratificado da orofaringe e a pele são as principais barreiras contra a doença invasiva por SGA, mas a faringe é o ponto de partida mais frequente em situações de bacteriémia. Por vezes a porta de entrada pode ser uma ferida, uma queimadura ou outra lesão cutânea.

Etiopatogénese

O género Streptococcus constitui um grupo heterogéneo de bactérias responsáveis por quadros clínicos diferentes dependendo de vários factores: 1 – características próprias do tipo de Streptococcus responsável; 2 – porta de entrada; 3 – características do hospedeiro, como a sua idade e situação imunitária.

Estão descritos três esquemas de classificação deste microrganismo (coco gram-positivo que se apresenta em cadeias ou pares) de acordo com:

I – propriedades serológicas – consoante o grupo de polissacáridos da parede celular, com propriedades antigénicas específicas, a bactéria classifica-se em grupos de Lancefield, discriminados de A a V.

II – características hemolíticas – de acordo com o tipo de hemólise produzida por colónias da bactéria a crescer em placas de agar. O SGA, beta-hemolítico, produz uma hemólise completa no meio de cultura.

III – propriedades bioquímicas e fisiológicas – responsáveis pela virulência da bactéria.

Na parede celular encontram-se os factores responsáveis pela gravidade do quadro clínico.

A estrutura antigénica do Streptococcus pyogenes (SGA) baseia-se na camada de peptidoglicano da parede celular. A cápsula propriamente dita não é imunogénica, mas protege a bactéria da fagocitose pelo hospedeiro. Este agente pode ser subdividido em mais do que 220 serótipos com base no antigénio designado por proteína M localizada na superfície celular e nas fímbrias que se projectam da superfície externa da parede celular da bactéria; tal proteína promove a adesão da bactéria às células epiteliais do hospedeiro, contribuindo para a resistência da bactéria à fagocitose. É a proteína associada à maior virulência do agente SGA: estirpes ricas em proteína M resistem à fagocitose e fixam-se mais facilmente às células epiteliais faríngeas e à pele, ao contrário de estirpes sem a referida proteína.

A serotipagem M – com base em técnicas moleculares através de PCR, sequenciação ADN, etc. – tem grande valor em estudos epidemiológicos; com efeito, certas doenças específicas causadas por SGA estão associadas a certos tipos de proteína M. Os tipos 1, 12, 28, 4, 3 e 2 (por esta ordem) são causa frequente de faringite não complicada e raramente associados a infecções cutâneas. Algumas estirpes infectando a faringe (por ex. M tipo 12), estão associadas a glomerulonefrite, enquanto maior número de estirpes infectando a pele (por ex, M tipos 49, 55, 57, e 60) são consideradas nefritogénicas. Vários serótipos associados a infecção da faringe, mas não da pele (por ex. M tipos 1, 3, 5, 18, 29) estão associados a febre reumática aguda.

O agente SGA/S. pyogenes produz uma variedade de enzimas, incluindo as toxinas eritrogénicas (hoje conhecidas por exotoxinas pirogénicas estreptocócicas, – no total em número de 12); as designadas pelas letras A, B e C são responsáveis pelo exantema da escarlatina. Estas últimas 3 exotoxinas estimulam a formação de anticorpos/antitoxinas que conferem imunidade contra o exantema escarlatiniforme, mas não contra outras infecções estreptocócicas. Como os anticorpos formados são específicos da toxina, um doente poderá ter mais de um episódio de exantema.

Determinadas exotoxinas estão relacionadas com a patogénese da síndroma de choque tóxico estreptocócico.

Seguidamente são descritos outros dos componentes da bactéria, dando ênfase a certas funções específicas dos mesmos.

  • proteínas simile M, e outras proteínas da superfície celular, responsáveis pela inibição da protease.
  • proteínas F, responsáveis pela adesão da bactéria às células epiteliais do hospedeiro.
  • estreptolisina S, uma hemolisina que contribui para a lise dos leucócitos, plaquetas e eritrócitos.
  • estreptolisina O, estimulando a libertação de enzimas hidrolíticas pelos lisossomas e contribuindo para a lise dos leucócitos.
  • estreptoquinase, facilitando a invasão tecidual da bactéria.
  • hialuronidase.
  • DNAases – desoxirribonucleases despolimerizando o ADN livre no pus, reduzindo a viscosidade do material abcedado e facilitando a disseminação da bactéria.
  • C5a peptidase, componente do complemento mediando a inflamação e activando as células fagocitárias.
  • exotoxinas piogénicas (SPE) – A, C, e F, funcionando como superantigénios provocando síndroma de choque tóxico.

Formas clínicas

Nesta alínea é dada ênfase a amigdalofaringite, escarlatina (mais pormenorizadamente como paradigma por razões históricas e didácticas) e síndroma de choque tóxico estreptocócico tendo em conta que outras formas clínicas como a erisipela, o impétigo a celulite e a fascite necrosante integram o capítulo seguinte. (Infecções da pele e dos tecidos moles)

Amigdalofaringite

Em complemento do que foi referido na Parte sobre Otorrinolaringologia, cabe salientar que a colonização da faringe por S. pyogenes pode produzir estado de portador assintomático ou infecção aguda. A proteína M é responsável pela virulência, já que condiciona a resistência do microrganismo à fagocitose pelos polimorfonucleares.

Como dados clínicos sugestivos de faringite estreptocócica citam-se: odinofagia de início súbito, febre, cefaleia, vómitos, eritema faríngeo acompanhado ou não de exsudado e adenopatias cervicais. Ocasionalmente pode surgir tumefacção da úvula, petéquias no palato mole e exantema escarlatiniforme.

Escarlatina

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Na sequência do que foi descrito na alínea Etiopatogénese, para que uma infecção estreptocócica se expresse clinicamente como escarlatina há que atender aos seguintes critérios: – Streptococcus infectante (dos tipos A- mais frequentemente, B ou C) produtor de exotoxina pirogénica; – ocorrência em indivíduos sem imunidade humoral antitoxina e antibacteriana.

Uma vez que a exposição a cada tipo de exotoxina somente gera imunidade específica, tal pressupõe que um paciente possa apresentar escarlatina em três ocasiões diferentes/até três vezes.

A escarlatina é actualmente menos frequente e, sobretudo com manifestações mais ligeiras do que no passado, mas tem uma incidência cíclica, dependente da prevalência das estirpes produtoras de toxina e do estado imunitário da população. A porta de entrada do Streptococcus pyogenes pode ser uma ferida na pele.

Após período de incubação de 2-4 dias, nos casos típicos a doença manifesta-se de forma aguda pela tríade: 1 – febre; 2 – faringite ou amigdalite eritemato-pultácea aguda; e 3 – exantema máculo-papular ou punctiforme, muito fino de aspecto granitado e áspero (tipo lixa) confluente, diminuindo de intensidade quando se faz pressão com o dedo.

A febre alta, máxima pelo 2º dia, persiste durante 3 a 5 dias, acompanhada de cefaleias, vómitos, odinofagia, dor abdominal e taquicardia desproporcionada em relação com a temperatura. Nos casos graves, a temperatura elevada pode ser mais prolongada e, nalguns casos, é baixa e poderá mesmo não se verificar.

Cerca de 24 a 48 horas depois do início da febre, surgindo o exantema descrito, o mesmo progride rapidamente a partir do pescoço para o tronco e extremidades (Figuras 1 e 2). É mais acentuado (por vezes associado a petéquias e hiperpigmentação) nas pregas de flexão, como as axilas, pregas do cotovelo e região inguinal (sinal de Pastia) (Figura 3). Na face, a região malar pode apresentar-se eritematosa, mas verifica-se ausência de rubor ou “palidez” relativa (sinal designado por “triângulo perioral de Pilatov”). A prova de Rumpel-Leed é positiva.

Em 4 a 8 dias, a erupção regride, surgindo descamação da pele atingida, a qual pode durar entre 1-3 semanas (intensidade e duração proporcionais à intensidade do exantema). Começa pela face em flocos finos, estendendo-se depois para o tronco e, finalmente, para as extremidades, tornando-se generalizada pela 3ª semana. No tronco faz-se em grandes lâminas, sendo visível nas mãos e pés, em geral pela 2ª-3ª semana. Os topos dos dedos mostram uma descamação característica na margem livre das unhas; a mesma descamação atinge a palma das mãos e plantas dos pés.

Na boca, observa-se um enantema com petéquias na úvula, véu do paladar e pilares anteriores das amígdalas. Para além do aspecto inflamado da faringe e amígdalas, verifica-se um exsudado amigdalino branco nacarado, mucopurulento desde o 2º dia de doença (amigdalite eritemato-pultácea). A língua tem inicialmente um aspecto saburroso, adquirindo posteriormente o aspecto típico de “língua de framboesa branca” devido à cor (inicialmente rósea e depois vermelha) e ao ingurgitamento das papilas (Figura 4). É habitual a coexistência de gânglios cervicais anteriores aumentados de volume e dolorosos, assim como de vómitos.

FIGURA 1. Escarlatina: exantema notório na face e tronco, sendo menos acentuado na região peribucal (sinal de Pilatov). (NIHDE)

FIGURA 2. Escarlatina: exantema na face e tronco. (NIHDE)

FIGURA 3. Escarlatina: sinal de Pastia. (NIHDE)

FIGURA 4. Escarlatina: língua de framboesa. (NIHDE)

Depois de um intervalo livre de 10 ou 15 dias, podem surgir como complicações, respectivamente, uma glomerulonefrite aguda ou febre reumática. A terapêutica correcta não anula o risco de complicações, mas diminui-o de forma significativa. O risco de contrair febre reumática após uma infecção estreptocócica é inferior a 1%, enquanto o risco de contrair glomerulonefrite é de cerca de 10% se a estirpe for nefritogénica.

 Complicações

As complicações supurativas, ocorrem geralmente no final da primeira semana de doença e são: adenite cervical supurada, abcessos retrofaríngeo e/ou periamigdalino. Estas complicações, resultantes da extensão da infecção a estruturas vizinhas, são actualmente raras devido ao diagnóstico atempado e ao uso correcto de terapêutica antibiótica. As complicações não supurativas, detectadas após um intervalo livre de 2 a 3 semanas, são a glomerulonefrite aguda (GNA) e a febre reumática (FR). Salienta-se que a GNA pode ocorrer após infecção por SGA das vias respiratórias ou da pele, enquanto a FR ocorre somente após infecção das vias respiratórias superiores.

Duas outras entidades nosológicas foram descritas como possível complicação de infecção por SGA:

  • Artrite reactiva pós-estreptocócica – Cerca de 10 dias após infecção aguda por SGA podem ocorrer manifestações de artrite sem critérios clínicos ou laboratoriais que preencham os critérios de Jones para o diagnóstico de FR. A artrite, tipicamente não migratória, ao contrário da FR, envolve geralmente as grandes articulações, mas também as pequenas articulações. Também, ao invés do que acontece na FR, a resposta aos AINE não é boa. A relação entre esta artrite reactiva e a FR não é clara. Todavia, como um número muito reduzido destes doentes desenvolveu mais tarde doença valvular cardíaca, recomenda-se o seu seguimento durante um a dois anos para exclusão de cardite. Alguns investigadores recomendam a profilaxia secundária de FR nestes doentes.
  • PANDAS (Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated with Streptococcus pyogenes) – Esta situação clínica, conhecida pela sigla, integra um conjunto de perturbações do foro neuropsiquiátrico (particularmente alterações obsessivas-compulsivas, tiques e síndroma de Tourette). Tais sintomas podem também surgir em doentes com coreia de Sydenham no contexto de FR. Tem sido admitida uma relação entre infecção prévia por SGA e manifestações de PANDAS por produção de autoanticorpos que atravessam a barreira hematoencefálica, mas ainda não foi provada qualquer relação causal.
Diagnóstico

No âmbito da anamnese deve ser inquirido eventual contacto com um caso bem documentado, embora a tríade atrás descrita (febre, amigdalofaringite exsudativa e exantema) sugira o diagnóstico.

Admitindo a hipótese clínica de escarlatina, a confirmação do diagnóstico por exame cultural do exsudado faríngeo, após colheita apropriada, mantém-se como prova-padrão, embora tenha a desvantagem de demorar, pelo menos, 48 horas. As provas de detecção de antigénios, igualmente realizadas por zaragatoa, constituem uma alternativa rápida e adequada. Estes testes, se a técnica de execução for correcta, têm uma especificidade superior a 95%, pelo que resultados falsos positivos são raros; a sua sensibilidade é de cerca de 80% a 90%, variando com os reagentes utilizados pelos diversos fabricantes.

A infecção estreptocócica também pode ser diagnosticada de forma retrospectiva pela determinação do título de antiestreptolisina O (TASO), ou pelo título anti-DNAase. O TASO não é específico da infecção pelo SGA, podendo ser negativo nas infecções cutâneas. O título anti-DNAase é positivo tanto nas infecções respiratórias como nas infecções da pele. Os títulos de anticorpos anti-estreptocócicos começam a aumentar 7 a 24 dias após o início da infecção, atingindo o pico sérico às 3 a 6 semanas, pelo que o seu interesse resume-se a confirmar uma infecção passada.

Diagnóstico diferencial

O exantema da escarlatina pode ser confundido com infecção estafilocócica, (escarlatina estafilocócica), toxidermias, doença de Kawasaki ou exantemas de causa vírica. Na síndroma de choque tóxico por estafilococo, verifica-se exantema semelhante ao da escarlatina estreptocócica, com a particularidade de ser mais grave nas palmas das mãos e plantas dos pés, para além de se detectar o foco de infecção estafilocócica.

Nos casos raros em que não há amigdalofaringite, uma ferida cutânea infectada, ou a coexistência de impétigo, e o exantema característico sugerem o diagnóstico, o qual deve ser confirmado por exame bacteriológico.

Nota importante: O agente Staphylococcus aureus dos grupos C e G, produzindo toxinas eritrogénicas e epidermolíticas, pode originar um quadro clínico, do qual faz parte exantema semelhante ao provocado por S. pyogenes; é a chamada “escarlatina estafilocócica”.

Prognóstico

O prognóstico da escarlatina e das infecções estreptocócicas agudas em geral, correcta e atempadamente tratadas, é excelente. Se o tratamento for levado a cabo dentro de 9 dias após o início da doença, a FR é quase sempre prevenida. Contudo, não está provado que a GNA possa ser prevenida, designadamente no contexto de infecção por estirpe de SGA nefritogénica.

Em situações especiais de síndromas de imunodeficiência de etiopatogénese diversa, ou de infecção por estirpes de grande virulência, poderá verificar-se evolução para doença invasiva, nomeadamente síndroma de choque tóxico.

Síndroma de choque tóxico estreptocócico

Definição

Um quadro clínico grave compatível com choque e exantema máculo-papular ou punctiforme de tipo escarlatiniforme, no contexto de provável etiologia infecciosa, levará a admitir a possibilidade de síndroma de choque tóxico por S. pyogenes ou por S. aureus.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

A síndroma de choque tóxico estreptocócico é um quadro clínico grave e raro em idade pediátrica. Define-se como doença aguda gerando resposta inflamatória sistémica toxinas do microrganismo por estimulação dos linfócitos T. Em mais de metade dos casos surge em crianças com menos de 5 anos, embora ultimamente tenham sido descritos casos em idades mais baixas. De acordo com dados da literatura, a percentagem de hemoculturas positivas pode atingir 60%. A mortalidade situa-se entre 30% e 70%

O Quadro 1 resume os critérios de diagnóstico da síndroma em epígrafe.

QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico da síndroma de choque tóxico por Streptococcus do Grupo A (SGA).

    1. Isolamento do SGA de local estéril (sangue, LCR, líquido peritoneal, tecido de biópsia)
    2.  Isolamento do SGA de local não estéril (faringe, expectoração, vagina, ferida cirúrgica, ou lesão superficial da pele)
    3. Hipotensão sistólica (< percentil 5 para a idade)
    4. Dois ou mais dos seguintes parâmetros:
      • Disfunção renal (valor da creatinina 2 vezes maior que o limite superior considerado normal para idade)
      • Coagulopatia: nº de plaquetas < 100.000/mmc ou CID
      • Disfunção hepática (valor de ALT, AST ou bilirrubinémia total 2 vezes maior que o limite superior considerado normal para a idade)
      • SDR tipo adulto/ARDS
      • Exantema eritemato-macular generalizado com possível ulterior descamação
      • Miosite, fascite necrosante, gangrena, ou outros tipos de lesão necrótica dos tecidos moles

Diagnóstico definitivo: parâmetros 1+3+4 presentes
Diagnóstico provável: parâmetros 2+3+4 se não for identificada outra causa de doença

Diagnóstico diferencial

O Quadro 2 sintetiza os critérios de diagnóstico da síndroma de choque tóxico por S. aureus, o qual permite comparação com os critérios para a síndroma de choque tóxico por S. pyogenes (Quadro 1), para diagnóstico diferencial.

QUADRO 2 – Critérios de diagnóstico da síndroma de choque tóxico por S. aureus.

Critérios clínicos

    1. Febre > 38,9ºC
    2. Exantema máculo-papular punctiforme
    3. Descamação
    4. Hipotensão (Quadro 1)
    5. Disfunção multiorgânica: 3 ou mais dos sistemas – gastrintestinal, SNC, hematológico, hepático, renal, muscular, mucosas (hiperémia conjuntival, orofaríngea, ou vaginal)
    6. Resultados negativos dos seguintes exames:
      • cultural da faringe, LCR, ou sangue; excepção: hemocultura positiva para S. aureus
      • prova serológica para febre das Montanhas Rochosas, leptospirose ou sarampo

Diagnóstico provável: 5 de 6 critérios clínicos
Diagnóstico confirmado: totalidade dos 6 critérios clínicos; em caso de óbito e na ausência de descamação são suficientes 5 critérios

Tratamento das infecções por Streptococcus pyogenes

A comprovação da etiologia estreptocócica no contexto da tríade clássica referida a propósito das manifestações clínicas da escarlatina constitui indicação formal para início imediato de terapêutica antibiótica.

O agente Streptococcus pyogenes é muito sensível à penicilina, não estando descritas estirpes resistentes. Uma dose única via IM de penicilina benzatínica é adequada. Nas crianças com peso até 27 kg devem ser administradas 600.000 Unidades e nas crianças com 27 kg, ou mais, a dose apropriada é 1.200.000 Unidades. Este é o esquema posológico internacionalmente recomendado.

Todavia, há quem prefira ajustar a dose ao peso e prescrever 50.000 U/kg, até à dose máxima de 1.200.000 U.

Esta forma de tratamento tem a vantagem de evitar insucessos terapêuticos por incumprimento da medicação, embora com a desvantagem de ser doloroso. A dor desta administração pode ser minorada se a penicilina não estiver a baixa temperatura.

Se se optar por prescrever antibiótico por via oral, e uma vez que em Portugal não existe penicilina oral, a amoxicilina é a terapêutica preconizada na dose de 50 mg/kg/dia (máximo 1 g/dia) administrada de 12 em 12 horas durante 10 dias. Em caso de alergia à penicilina por reacção de hipersensibilidade tipo 1, deve-se prescrever um macrólido nas doses habituais: claritromicina – 15 mg/kg/dia (máximo 500 mg/dia) de 12/12 horas durante 10 dias; azitromicina 12 mg/kg/dia (máximo 500 mg/dia) de 24 em 24 horas durante 5 dias. Refira-se que em Portugal a resistência do Streptococcus do grupo A aos macrólidos diminuiu de 10% em 2007 para 1% em 2013. Em caso de alergia à penicilina por reacção de hipersensibilidade não tipo 1 pode prescrever-se uma cefalosporina de 1ª ou 2ª geração nas doses habituais e durante 10 dias.

No tratamento das infecções invasivas graves utiliza-se a clindamicina associada à penicilina porque numa pequena proporção se verifica resitência de S. pyogenes àquele antibiótico: associação de penicilina e clindamicina por via IV (penicilina G aquosa em perfusão lenta /20 minutos, 6 a 8 vezes/dia: 25.000-500.000U/kg/dia; clindamicina em perfusão rápida, 4 vezes/dia: 30-40 mg/kg/dia) com a duração de 10 ou mais dias, em função do contexto clínico e evolução.

Para além da antibioticoterapia, estão indicadas todas as medidas de reanimação e suporte hemodinâmico descritas no âmbito da sépsis e choque. A este respeito, sugere-se a consulta do capítulo sobre sépsis e choque (Parte XXVIII).

Prevenção

Não existe actualmente prevenção primária da infecção por Streptococcus do grupo A, nomeadamente vacina ou método de erradicar a bactéria do hospedeiro. Algumas vacinas recombinantes utilizando 30 serótipos de proteína M estão em estado inicial de desenvolvimento. Contudo, dada a existência de número superior a 130 de tipos M e respectivos serótipos, com larga distribuição geográfica, existe o risco de produção de anticorpos com reacção cruzada frente aos tecidos humanos, o que comporta o risco de doenças autoimunes.

O período de evicção escolar das crianças doentes é de apenas 24 horas após o início da terapêutica antibiótica, desde que a criança esteja apirética.

De salientar que:

  1. não está indicada a pesquisa de Streptococcus aos coabitantes assintomáticos de crianças doentes, excepto se os familiares tiverem risco elevado de patologia na sequência de infecção por SGA, como GNA ou FR.
  2. não está indicada a pesquisa de Streptococcus em qualquer contacto escolar assintomático da criança doente. O risco de transmissão da infecção por um portador é mínimo, bem como é mínimo o risco de um portador desenvolver complicações, pelo que estes portadores não devem ser tratados com antibiótico.

A erradicação do SGA da orofaringe de portadores assintomáticos, apenas está indicada nas situações seguintes:

  1. pessoas com diagnóstico de FR ou GNA
  2. doentes com história familiar de FR
  3. surtos epidémicos de FR ou GNA
  4. surtos epidémicos de faringite a SGA numa comunidade fechada ou semi-fechada
  5. episódios múltiplos intrafamiliares de faringite sintomática por SGA, apesar de antibioticoterapia apropriada.

O agente SGA pode ser dificil de erradicar da orofaringe de alguns portadores. A clindamicina na dose de 30 mg/kg dia (máximo 900mg) de 8 em 8 horas durante 10 dias é a terapêutica mais eficaz.

Nota: A escarlatina não é uma doença de notificação obrigatória.

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DOENÇA PNEUMOCÓCICA

Definições e importância do problema

O agente Streptococcus pneumoniae ou pneumococo é uma bactéria Gram-positiva (diplococo) que tem uma estrutura e um comportamento biológico muito complexos, uma vez que na sua cápsula, fortemente antigénica, existem 93 polissacáridos química e imunologicamente diferentes, com patogenicidade e virulência variáveis. A patogenicidade e virulência traduzem-se designadamente no impedimento da fagocitose pelos polimorfonucleares do hospedeiro. Segundo a classificação actual, existem 40 serogrupos e 93 serótipos.

Os anticorpos protectores são dirigidos contra os polissacáridos capsulares e são específicos de tipo; ou seja, a imunização contra determinado serótipo não protege das infecções provocadas por outros serótipos, o que explica a possibilidade de ocorrência de múltiplas infecções por este agente.

Colonizando o tracto respiratório superior, é a causa mais frequente de infecções do tracto respiratório superior (otite média, rino-sinusite) e inferior (pneumonia), doença invasiva (pneumonia, bacteriémia, meningite) e bacteriémia no período pós-neonatal. Pode ainda causar osteomielite, artrite séptica, pericardite e peritonite. Em regra, emprega-se o termo de doença pneumocócica para designar o conjunto de infecções provocadas por este agente. Esta entidade tem forte impacte em saúde pública pelo aumento crescente de estirpes resistentes à penicilina e a outros antibióticos em todo o mundo.

Calcula-se que anualmente este micorganismo seja responsável por 1 milhão de mortes em crianças com < 5 anos de idade, sobretudo em países em vias de desenvolvimento. A imunização universal com vacinas conjugadas tem vindo a modificar a epidemiologia da infecção penumocócica, reduzindo o número de portadores na nasofaringe e a prevalência dos serótipos mais virulentos. Tal facto tem tido repercussões na redução da incidência de doença pneumocócica, não só em crianças vacinadas, como também em crianças e adultos não vacinados pelo efeito de imunidade de grupo conferida pela vacina. Nos EUA, os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) reportam que a doença pneumocócica invasiva (DIP) diminuiu de 100/100.000 casos em 1998 para 9/100.000 em 2015. Se avaliarmos apenas a doença invasiva causada pelos 13 serótipos cobertos pela vacina pneumocócica conjugada 13-valente (PVC13), então esta entidade diminuiu, entre 1998 e 2015, de 91/100.000 para 2/100.000 casos.

Em Portugal, a vacina conjugada para 7 serótipos – heptavalente (PVC7) passou a ser comercializada, extra-Programa Nacional de Vacinação/PNV em 2001 e, em 2010, subtituída pela PVC13. Neste período, em que as taxas de vacinação variaram entre 60-80%, a incidência da DIP diminui de 52/100.000 para 33/100.000 casos em crianças com menos de 12 meses de idade, com uma diminuição global da incidência em todos os grupos etários.

A PVC13 foi introduzida no PNV em Julho de 2015 no nosso País, passando a DIP a ser considerada doença de declaração obrigatória.

Aspectos epidemiológicos

Os pneumococos são ubíquos. A bactéria coloniza a nasofaringe de indivíduos saudáveis (~50% de crianças e ~8% de adultos), ocorrendo a transmissão através de gotículas de saliva. O período de contágio é desconhecido, salientando-se que se mantém enquanto a bactéria estiver presente nas secreções respiratórias. O período de incubação varia de acordo com o tipo de infecção, entre 1 a 3 dias.

A incidência da doença pneumocócica varia com grupo etário, sexo, raça e origem geográfica. A DIP é mais frequente em crianças com menos de 2 anos, em adultos com mais de 65 anos de idade, no sexo masculino, em africanos, indianos e nativos do Alasca. A incidência também é mais elevada em países em vias de desenvolvimento. Estas diferenças quanto a frequência da afecção relacionam-se com factores socioeconómicos e possivelmente também com factores genéticos.

A morbilidade e mortalidade da doença invasiva também é mais elevada em crianças com síndromas de imunodeficiência humoral (infecção por VIH, agamaglobulinémia, deficiência selectiva de subclasses de IgG), deficiência de complemento (sobretudo C1, C2, C3 e C4), disfunção dos neutrófilos ou neutropenia, deficiente ou ausente função esplénica (asplenia congénita ou cirúrgica, doença de células falciformes, outras hemoglobinopatias), síndroma nefrótica, insuficiência renal crónica, status pós-transplantação de órgão, doença oncológica, diabetes mellitus, condições associadas à diminuição do processo de depuração respiratória (asma, doença pulmonar obstrutiva crónica, bronquite crónica) e insuficiência cardíaca. Os doentes com defeitos congénitos e fístula de comunicação exterior e eliminação de LCR, fractura craniana ou submetidos a intervenção neurocirúrgica, comportam também risco mais elevado de doença invasiva pneumocócica.

A permanência em locais com aglomerados de pessoas aumenta o risco de infecção pneumocócica por haver uma maior exposição e possibilidade de transmissão do agente. As crianças que frequentam infantários, onde se combinam vários factores de risco de disseminação do pneumococo, têm também risco mais elevado de otite e doença invasiva. As infecções víricas do tracto respiratório superior são outro factor predisponente de infecções pneumocócicas, o que poderá explicar a sua maior frequência nos meses de Inverno.

Os portadores de Streptococus pneumoniae, ou seja, pessoas assintomáticas, sem doença, transmitem a bactéria a outras pessoas. As crianças, sobretudo em idade pré-escolar, constituem um importante reservatório e potencial disseminador da infecção (salientando-se, a propósito, que nos adultos as taxas de colonização são mais elevadas quando convivem com crianças).

A prevalência do estado de portador depende ainda da interacção bactéria/hospedeiro, da idade, da situação imunológica e da relação entre pneumococo e outros microrganismos da nasofaringe. Vários outros factores potenciam o estado de portador: a frequência de infantário, exposição a fumo de tabaco e uso recente e abusivo de antibióticos.

O Quadro 1 sintetiza os principais factores de risco de doença pneumocócica invasiva.

QUADRO 1 – Factores de risco de doença pneumocócica invasiva.

Alto risco (> 150 casos/100.000/ano)  
    • doença de células falciformes, asplenia congénita ou adquirida, ou disfunção esplénica
    • infecção por VIH
    • implantes cocleares
Alto risco provável
    • síndroma de imunodeficiência congénita
    • cardiopatia crónica (particularmente se cianótica)
    • doença pulmonar crónica
    • fractura do crânio, procedimento neurológico, ou fuga de LCR através de trajecto fistuloso
    • insuficiência renal crónica, síndroma nefrótica
    • doenças associadas a tratamento com imunossupressores ou radioterapia
    • diabetes
mellitus
Risco moderado (~20-150 casos/100.000/ano)
    • crianças com idades de 24-35 meses
    • crianças com idades de 36-59 meses em infantários
    • idem se etnia africana ou índia- americana/descendentes de nativos do Alasca

Etiopatogénese

Nas crianças, principalmente nas mais pequenas, ao ser adquirido um novo serótipo do pneumococo, surge doença clínica em 15% dos casos, cerca de um mês depois. A progressão do estado de colonização para o estado de doença depende habitualmente da aquisição de um serótipo para o qual o hospedeiro não está imune (ver atrás), e da existência de factores predisponentes.

Quando o pneumococo atinge a nasofaringe, a respectiva cápsula (de cuja espessura poderá depender a virulência) limita a fagocitose. Por outro lado, desencadeiam-se mecanismos locais de depuração que tentam remover o agente, ao mesmo tempo que ocorre resposta imune que inclui produção de anticorpos específicos para a cápsula do serótipo em causa, os quais influem na opsonização e fagocitose, na produção de IL-6, TNF, IL-1 e no influxo de neutrófilos para o local de infecção.

Estudos in vitro demonstraram o papel importante duma proteína A ligada à colina (CbpA) na superfície capsular que facilita a entrada do pneumococo nas células do epitélio, o que é facilitado se tiver havido uma infecção vírica prévia.

O agente infeccioso pode progredir para o ouvido médio, tracto respiratório inferior, ou corrente sanguínea e atingir órgãos e tecidos vários (por ex. articulações), espaço subaracnoideu e meninges (podendo estas últimas ser invadidas por extensão directa através do ouvido médio ou seios perinasais).

Por outro lado, foi demonstrado o papel duma toxina (pneumolisina -Ply) com acção lesiva na estrutura e função das células epiteliais brônquicas, designadamente na destruição dos cílios o que, comprometendo os mecanismos de depuração brônquica, facilita a disseminação do agente para as vias mais distais. Outra acção da Ply é a inibição da produção de citocinas pelos neutrófilos e a toxicidade para as células cocleares, o que explica a ocorrência de perda auditiva em crianças com antecedentes de doença pneumocócica.

Manifestações clínicas

Otite média aguda

Na criança a infecção mais frequente causada por Streptococcus pneumoniae é a otite média aguda (OMA). Por outro lado, o referido agente é também a causa mais frequente de otite na idade pediátrica, estimando-se que seja responsável por 40 a 60% de todos os episódios de OMA entre os 6 meses e os 2 anos de idade; a otalgia, a irritabilidade na criança mais pequena, a febre e o eritema da membrana timpânica são habitualmente mais marcados que nas otites de outra etiologia. Comparativamente a outros agentes, na otite pneumocócica a remissão espontânea na ausência de tratamento é mais rara e o aparecimento de complicações é mais frequente.

Mastoidite e sinusite

Streptococcus pneumoniae é responsável por cerca de 45% dos casos de mastoidite aguda, a complicação mais frequente da OMA; de salientar que um elevado número de casos se associa a uma incorrecta terapêutica desta última.

A verdadeira incidência da sinusite pneumocócica na criança é desconhecida, possivelmente por se tratar duma entidade clínica muitas vezes subdiagnosticada. Estima-se que o pneumococo cause 35 a 40% das sinusites bacterianas na criança.

Pneumonia

Streptococcus pneumoniae é a causa mais frequente de pneumonia adquirida na comunidade. Classicamente a febre é superior a 39ºC, com início súbito, acompanhada de tosse, prostração, vómitos, dor torácica ou abdominal, salientando-se que na criança mais pequena o quadro poderá ser menos exuberante.

Um padrão radiológico de infiltrados alveolares, com consolidação lobar em 50% dos casos, com ou sem derrame pleural, um valor de leucócitos > 15.000/mm3, de neutrófilos > 70% e de proteína C reactiva (PCR) > 6 mg/dL poderão contribuir para o diagnóstico etiológico. Se existir bacteriémia, as complicações são mais frequentes.

Bacteriémia

Streptococcus pneumoniae é responsável por cerca de 85-90% das bacteriémias na idade pediátrica. Bacteriémia oculta (BO), definida pela presença de bactérias no sangue detectada por hemocultura, em criança febril, sem foco identificado, com bom estado geral (por conseguinte, sem sinais clínicos sugestivos de sépsis), é a manifestação mais frequente de doença invasiva pneumocócica entre os 90 dias e os 3 anos de idade.

No exame objectivo não são evidenciadas alterações. Em cerca de 40% das crianças a febre tem uma duração inferior a 1 dia e em 82%, inferior a 2 dias. Valores de leucócitos > 15.000/mmc e de neutrófilos > 10.000/mmc são altamente preditivos de bacteriémia. Na maioria dos casos, a BO regride espontaneamente, conquanto ~10% desenvolvam complicações focais, e ~3-6% meningite.

Meningite

Streptococcus pneumoniae é a causa mais frequente de meningite bacteriana. As manifestações clínicas típicas de febre, vómitos, meningismo e irritabilidade têm um início súbito e evolução rápida. Em cerca de 25% dos casos ocorrem convulsões, e em cerca de 15%, alterações do estado de consciência, coma e choque séptico. A presença de febre prolongada por um período até 10 dias, ou febre recorrente após apirexia, associa-se habitualmente a complicações precoces tais como derrame subdural ou empiema. Deve considerar-se a repetição de punção lombar após 24-48 horas de terapêutica no caso de não se verificar melhoria clínica, ou de se identificar um pneumococo não susceptível à penicilina. Constitui factor de mau prognóstico valor de leucócitos no sangue periférico < 5.000/mmc.

Os achados característicos no LCR são: leucócitos > 100 a 10.000/mmc com predomínio de neutrófilos (excepto na circunstância de tratamento prévio), proteínas > 100-500 mg/dL e glicose < 40 mg/dL (ou < 50% do valor da glicémia).

O atraso do início da antibioticoterapia agrava o prognóstico. A mortalidade varia entre 10 a 20% e, a longo prazo, em cerca de 25 a 35% das crianças poderão surgir sequelas neurológicas graves como surdez, disfunção motora, epilepsia, atraso do desenvolvimento e problemas de aprendizagem ou de insucesso escolar.

Outros quadros clínicos

Streptococcus pneumoniae pode ainda (mais raramente) causar outros quadros clínicos como pneumococcemia fulminante, artrite séptica, osteomielite, celulite, peritonite, endocardite, SHU, CIVD e pericardite. Nestas situações existem habitualmente factores de risco (descritos no capítulo sobre Pneumonias).

Diagnóstico

Exames culturais

O diagnóstico definitivo baseia-se na identificação de Streptococcus pneumoniae no foco de infecção, LCR ou sangue, por exame cultural.

Embora os pneumococos possam ser detectados na nasofaringe de doentes com otite média, pneumonia, septicémia ou meningite, tal isolamento não deve ser interpretado como indicativo de infecção, uma vez que poderá tratar-se de colonização do tracto respiratório superior. Por este motivo as provas rápidas para detecção de antigénios não têm qualquer interesse e não devem ser realizadas.

O agente infeccioso pode ser identificado no LCR sem reacção celular significativa nas fases iniciais de meningite. Está indicado proceder a hemoculturas nos casos de pneumonia, meningite, artrite, osteomielite, peritonite, pericardite ou lesões gangrenosas da pele e sempre que se verifique mau estado geral ou leucocitose significativa. Actualmente os métodos laboratoriais permitem obter resposta em menos de 24 horas.

Em todos os exames culturais deve proceder-se a testes de susceptibilidade aos antimicrobianos (TSA) e determinar a concentração inibitória mínima (CIM) para a penicilina como orientação da terapêutica de cada caso e com objectivo epidemiológico.

Serotipagem

Pelas implicações clínicas, epidemiológicas e de saúde pública, torna-se fundamental proceder a esta técnica, designadamente para identificação ou exclusão de serótipos associados a doença invasiva.

Testes de biologia molecular

Na ausência de identificação do microrganismo em exames culturais, o diagnóstico etiológico deve ser realizado por técnicas de biologia molecular com pesquisa de sequências específicas de ARN ou de ADN em produtos no local da infecção.

Outros exames

Determinados achados laboratoriais, como valor de leucócitos >15.000/mm3, valor de proteína C reactiva > 6 mg/dL ou imagiológicos, como padrão radiográfico torácico de consolidação lobar ou segmentar poderão complementar os dados clínicos e orientar o diagnóstico. Salienta-se que nos casos graves de doença pneumocócica, como anteriormente referido, poderá verificar-se leucopénia com desvio à esquerda.

Tratamento

A escolha da antibioticoterapia deve basear-se no conhecimento epidemiológico e na susceptibilidade aos antimicrobianos, tendo em conta: – a localização da infecção; – o local e gravidade do quadro clínico; e – factores de risco do hospedeiro.

As resistências do pneumococo aos antibióticos constituem um problema crescente a nível mundial. As resistências à penicilina (entre 20 e 70%) e à ceftriaxona têm vindo a aumentar. Os serótipos 6B, 9A, 14, 19A, 19F e 23F, que mais frequentemente causam doença invasiva, evidenciam também resistências elevadas à penicilina.

No nosso País, o conhecimento epidemiológico das susceptibilidades (ou sensibilidades) aos antimicrobianos indica que a terapêutica de eleição das infecções pneumocócicas continua a ser a penicilina.

A este respeito convém reter algumas noções práticas:

  1. Os pneumococos são considerados como sendo susceptíveis, resistentes ou com resistência intermédia a vários antibacterianos, com base na verificação da concentração inibitória mínima (CIM), tendo como referência certos limites desta. Por exemplo, considerando-se a resistência à penicilina, na prática e em geral, a mesma é considerada intermédia se se verificar CIM entre 0,1-1µg/mL, e elevada se > 2 µg/mL.
  2. Mesmo na presença de pneumococos resistentes à penicilina (PnRP), em infecções localizadas no ouvido e aparelho respiratório, onde é possível obter concentrações mais elevadas que as CIM para o microrganismo, recomenda-se a penicilina ou a amoxicilina em doses elevadas, sendo de notar que a formulação pediátrica de penicilina por via oral não está disponível em Portugal.
  3. No LCR, cujas CIM bactericidas necessárias para a erradicação do agente são mais elevadas, na presença de PnRP deve optar-se por outros antibióticos.

A antibioticoterapia empírica deve realizar-se de acordo com as diferentes entidades clínicas da doença pneumocócica apresentadas nos Quadros 2 e 3, estando implícita a noção da necessidade de proceder à realização do TSA concomitantemente, a ponderar em função do contexto clínico.

QUADRO 2 – Antibioticoterapia nas infecções pneumocócicas.

Entidade AntibióticoDuraçãoComentário
Otite MédiaAmoxicilina5-7 diasTimpanocentese com colheita de pus para exame
cultural e TSA na otite média crónica ou refractária à terapêutica
Mastoidite Amoxicilina10 diasTimpanocentese com colheita de pus para exame
cultural e TSA
Sinusite Amoxicilina14 dias 
Pneumonia Penicilina G cristalina
ou Amoxicilina
10 diasO resultado do exame cultural das secreções pode
ser falso positivo por colonização da nasofaringe
Realizar 2 hemoculturas
Bacteriémia Amoxicilina;
Ceftriaxona (alternativa) se: Doentes de risco; Se CIM > 2 μg/mL;
Febre alta com aspecto geral de doença
7 a 10 diasRealizar 2 hemoculturas (cada colheita com 2 mL
de sangue no mínimo) com TSA/CIM
Meningite Iniciar com ceftriaxona e vancomicina até se conhecer TSA/CIMCeftriaxona+Vancomicina+ Rifampicina
Se CIM > 2 μg/mL
14 dias
21 dias se
complicações
Modificar a terapêutica de acordo com TSA/CIM
Solicitar CIM para Ceftriaxona
Abreviatura: PnPs = Pneumococo sensível à penicilina

QUADRO 3 – Doses e Intervalos de administração dos antibióticos.

Antibiótico Dose diária Dose máxima Nº de administrações
Amoxicilina 80-100 mg/Kg/dia 3 g 2-3
Penicilina 200.000-400.000 UI/Kg/dia 30.000.000 UI 4
Ceftriaxona 100 mg/Kg/dose 4 g 1-2
Vancomicina 60 mg/Kg/dia 2 g 3
Rifampicina 20 mg/Kg/dia 1,2 g 2

Prognóstico

A gravidade da doença depende de variáveis como o local da infecção, factores do hospedeiro, factores de virulência do agente e mecanismos de resistência aos antibióticos. O Quadro 1, sintetizando factores de risco de grau variável, permite compreender o resultado final.

Prevenção

Medidas não imunológicas

As medidas não imunológicas incluem a redução dos factores de risco da doença e do estado de portador, o uso criterioso de antibióticos em geral, e a modificação de alterações anatómicas predisponentes à infecção pneumocócica.

Medidas imunológicas

As vacinas conjugadas e as vacinas polissacarídicas polivalentes assumem um papel de primordial importância nas estratégias de prevenção da doença pneumocócica.

A vacina conjugada heptavalente, a primeira a ser comercializada, que conferia protecção para os serótipos 4, 6B, 9V, 14, 18C, 19F e 23F, contribuiu para a diminuição da incidência da DIP, da colonização da nasofaringe e da transmissão interpessoal em idades precoces. Actualmente a vacina conjugada para 13 serótipos inclui, para além dos anteriores, os seguintes serótipos 1, 5, 7F, 3, 6A e 19A.

Em Portugal, à semelhança de outros países em que esta vacina está incluída em PNV, espera-se diminuição significativa da doença invasiva na criança e, adicionalmente, efeito de imunidade de grupo, também no adulto.

A vacina polissacarídea confere protecção para 23 serótipos, mas a sua eficácia é bastante menor que a conferida pelas vacinas conjugadas e só pode ser admistrada a partir dos 2 anos de idade.

Crianças e adolescentes com risco aumentado de DIP devem receber a vacina VPC13 e também a vacina polissacarídea para 23 serótipos (intervalo de dois meses entre elas).

Quimioprofilaxia

Uma vez que as vacinas actuais não previnem a totalidade de infecções pneumocócicas invasivas, nas crianças com alto risco de DIP (Quadro 1), incluindo crianças com asplenia ou síndromas falciformes, é recomendada a profilaxia com penicilina G benzatínica até aos 5 anos.

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