Sistematização
Em clínica pediátrica os problemas hematológicos mais frequentes dizem respeito, essencialmente, a alterações dos elementos figurados (anemia, policitémia, neutropénia, trombocitopénia) e a alterações da coagulação (coagulopatia e fenómenos trombóticos).
Cabe igualmente uma referência às anomalias da função das plaquetas, abordadas em capítulo especial.
O Quadro 1, cujo conteúdo releva a importância da anamnese e do exame objectivo, sintetiza as manifestações clínicas que determinarão os exames complementares a realizar para se obter o diagnóstico definitivo. Nesta perspectiva, torna-se fundamental ter em consideração os principais valores de referência hematológicos do recém-nascido, criança e adolescente.
QUADRO 1 – Síndromas hematológicas
Síndroma | Manifestações Clínicas | Entidades |
Anemia | Palidez, Icterícia, astenia, insuficiência cardíaca | Carência em ferro, ácido fólico, vitamina B12, anemia hemolítica |
Policitémia | Cianose, irritabilidade, convulsões, cefaleia, icterícia, acidente vascular cerebral | Cardiopatia cianótica, mucoviscidose, RNMD |
Neutropénia | Febre, estomatite, faringite, linfadenopatia, bacteriémia | Neutropénia congénita ou adquirida (por fármacos), leucémia |
Trombocitopénia | Equimoses, petéquias, epistaxe, HGI | PTI, leucémia |
Pancitopénia | Infecção, hemorragias, anemia | Aplasia medular, LHH |
Coagulopatia e Trombose | Trombose venosa, embolia pulmonar, hematoma, hemorragias das mucosas, hemartrose | Lúpus, défice de factores de coagulação (antitrombina III, proteínas C,S), factores anómalos (V Leiden, protrombina 20210), hemofilia, doença de Von Willebrand, CID, doença hemorrágica do RN |
Abreviaturas: RNMD: recém-nascido de mãe diabética; HGI: hemorragia gastrintestinal; PTI: púrpura trombocitopénica idiopática; CID: coagulação intravascular disseminada; LHH: linfohistiocitose hemofagocitária (primária/genética ou secundária/adquirida). |
Valores de referência e parâmetros hematimétricos
Os Quadros 2 e 3 sintetizam alguns valores de referência dizendo respeito à série vermelha, parâmetros hematimétricos relacionados, e à série branca. Os aspectos referentes a plaquetas e factores de coagulação são abordados no âmbito dos respectivos capítulos.
QUADRO 2 – Valores de referência da série vermelha e hematimetria
Hb (g/dL) | Ht (%) | VGM (fL) | CHGM (% ou g/dL) | Rt (%) | |||
Criança | Média | Limites | Média | Limites | Mínimo | Média | |
Cordão umbilical | 16,8 | 13,7-20,1 | 55 | 45-65 | 110 | 31-37 | 5,0 |
2 semanas | 16,5 | 13,0-20,0 | 50 | 42-66 | 1,0 | ||
3 meses | 12,0 | 9,5-14,5 | 36 | 31-41 | 25-35 | 1,0 | |
6 meses – 6 anos | 12,0 | 10,5-14,0 | 37 | 33-42 | 70-74 | 25-30 | 1,0 |
7 – 12 anos | 13,0 | 11,0-16,0 | 38 | 34-40 | 76-80 | 25-33 | 1,0 |
Adulto | |||||||
Sexo feminino | 14,0 | 12,0-16,0 | 42 | 37-47 | 80 | 26-34 | 1,6 |
Sexo masculino | 16,0 | 14,0-18,0 | 47 | 42-52 | 80 | 26-34 | 1,6 |
Valores de referência de hemoglobina (Hb), hematócrito (Ht), volume globular médio (VGM) em fentolitros (fL), concentração média de hemoglobina globular (CHGM) em % ou g/dL, e reticulócitos (Rt) em diferentes idades. (Adaptado de Rudolph CD et al, 2011) |
QUADRO 3 – Valores de referência de leucócitos em diferentes idades
Leucócitos/mm3 | Neutrófilos (%) | Linfócitos (%) | Eosinófilos (%) | Monócitos (%) | |||
Criança | Média | Limites | Média | Limites | Média | Média | Média |
Cordão umbilical | 18000 | 9000-30000 | 61 | 40-80 | 31 | 2 | 6 |
2 semanas | 12000 | 5000-21000 | 40 | 48 | 3 | 9 | |
3 meses | 12000 | 6000-18000 | 30 | 63 | 2 | 5 | |
6 meses – 6 anos | 10000 | 6000-15000 | 45 | 48 | 2 | 5 | |
7 – 12 anos | 8000 | 4500-13500 | 55 | 38 | 2 | 5 | |
Adulto | |||||||
Sexo feminino | 7500 | 5000-10000 | 55 | 35-70 | 35 | 3 | 7 |
Sexo masculino | 16,0 | 5000-10000 | 55 | 35-70 | 35 | 3 | 7 |
A presença de linfócitos indiferenciados (grandes, espiculados, polimorfos, hiperbasófilos) no sangue periférico na proporção de > 4% dos leucócitos totais sugere estimulação por processo infeccioso por vírus (LUC ou Lymphocyte Undifferentiated Cells). Adaptado de IM Hann et al, e de A Galdó et al (bibliografia). |
Seguidamente é estabelecida a definição de determinados parâmetros hematimétricos que permitem classificar as anemias, (abordadas no próximo capítulo):
- O volume globular médio (VGM) medido em fentolitros (1 fL= 1ì3) obtém-se pelo quociente:
Ht (volume ocupado pelos eritrócitos ou hematócrito) x 10 / nº de eritrócitos em milhões por mm3.
- A concentração de hemoglobina globular média (CHGM), em % ou g/dL, obtém-se pelo quociente: Hb (em g/dL) x 100 / Ht (em %).
- A hemoglobina globular média (HGM), expressa em picogramas (pg), corresponde ao peso médio de Hb contido em cada eritrócito; obtém-se pelo quociente: Hb (em g/dL) / nº de eritrócitos em milhões por mm3. Ao contrário da CHGM, varia não somente em função do conteúdo de Hb por unidade de volume, mas também em função do volume globular: quanto maior o eritrócito, maior o conteúdo de Hb em concentração igual.
- O valor da contagem de reticulócitos indica a presença de células da série vermelha formadas nas 48 horas anteriores à colheita de sangue; corresponde a cerca de 0,5-1,5% do total de eritrócitos (50.000-75.000/mm3) em situações de normalidade. O chamado índice de produção de reticulócitos (IPR) calcula-se através da fórmula: Nº de reticulócitos por mil eritrócitos x Hb (em g/dL) observada / Hb normal x 0,5. O valor de IPR > 3 sugere hemorragia ou hemólise. (Capítulo 137).
- Considerando a relação células nucleadas / 100 leucócitos, o valor é zero a partir dos 3 meses, variando entre 3 e 10 pelos 15 dias de vida, sendo ~7 no sangue do cordão.
- O índice RDW (range deviation width), o índice de dispersão das dimensões eritrocitárias, utilizado para detectar anisocitose (normal entre 11,5 e 14,5%). Deverá estabelecer-se a relação entre VGM e RDW. Este parâmetro, elevado tipicamente em contexto de anemia, constitui também um marcador de inflamação: valor elevado, por ex. nos casos de doenças autoimunes/febre mediterrânica, sépsis, cardite reumática, apendicite, insuficiência cardíaca, etc..
- O índice de Mentzer obtém-se através do quociente: VGM/eritrócitos (em milhões/mm3). O valor > 13,5 sugere anemia por carência de ferro; < 11,5 sugere traço talassémico; valor entre 11,5-13,5: inconclusivo.
- O estudo do esfregaço do sangue periférico permite avaliar a morfologia eritrocitária.
Hemostase
A hemostase* no sentido lato é um mecanismo fisiológico complexo destinado a garantir a fluidez do sangue e a impedir a sua saída do leito vascular em caso de lesão vascular.
Este processo dinâmico implica a interacção das plaquetas, da parede vascular, de determinadas proteínas plasmáticas (factores de coagulação e inibidores, de produção hepática ou endotelial) e um sistema fibrinolítico.
As células endoteliais intactas inibem a adesão das plaquetas através da produção de NO e prostaglandina I, que também tem efeito vasodilatador.
As referidas células produzem igualmente factores teciduais (FT), inibidor de FT(TFPI), activador do plasminogénio tecidual(t-PA), antitrombina (AT), trombomodulina, prostaciclina, assim como a proteína de superfície para a activação da proteína C(PC).
Em condições de normalidade é mantida a fluidez sanguínea mediante equilíbrio acção-inibição do sistema hemostático.
No caso de formação de coágulo na sequência de alteração da superfície vascular, existem acções destinadas a evitar a propagação do trombo e a possibilitar o seu desaparecimento uma vez restabelecida a continuidade do endotélio vascular.
Ainda que os distintos mecanismos estejam perfeitamente ligados, sob o ponto de vista de compreensão didáctica é possível a subdivisão em hemostase primária, hemostase secundária/coagulação, e fibrinólise.
A chamada hemostase primária tem como função fundamental a formação do rolhão de plaquetas ou “tampão” hemostático que se gera rapidamente (em 3-5 minutos), especialmente eficaz em vasos de pequeno calibre. Especificando, são então verificados os eventos a seguir referidos.
Nota: *Homeostase (diferente de hemostase) significa tendência do organismo para manter constantes as condições fisiológicas. |
Após ruptura da superfície interna do vaso surge vasoconstrição para deter a saída de sangue do vaso; neste processo de vasoconstrição participam as plaquetas mediante a libertação de potentes vasoconstritores (designadamente serotonina e tromboxano A2). Por outro lado, as células endoteliais produzem factor de von Willebrand (FvW), necessário para a adesão das plaquetas à superfície vascular lesada. Após a adesão, as plaquetas são activadas continuando a libertar grânulos contendo ADP, tromboxano A2 e outras proteínas, o que leva à agregação das mesmas. Uma das proteínas da matriz subendotelial contendo colagénio, libertadas pela lesão vascular – o factor tecidual ou FT – liga-se às plaquetas e ao factor VII.
A partir desta fase é activada a chamada cascata da coagulação, a que corresponde a fase da hemostase secundária em que os factores de coagulação, designados em números romanos, são activados. As Figuras 1 e 2 descrevem de modo conciso o processo da hemostase (primária e secundária), o qual pode ser compreendido pela leitura deste texto. O Quadro 4 discrimina a designação dos factores de coagulação.
FIGURA 1 – Hemostase primária: participação fundamental das plaquetas em número e função, e dos microvasos
FIGURA 2 – Hemostase secundária (consultar texto e Quadro 2): participação fundamental dos factores de coagulação
QUADRO 4 – Factores de coagulação
I | Fibrinogénio |
Nota: os factores (F) activados são designados pela adição da letra (a), por ex. IIa. |
A coagulação é, pois, a transformação duma proteína solúvel (fibrinogénio) numa proteína insolúvel (fibrina), o que implica que a trombina – resultante da transformação da protrombina, activada pelo factor 3 plaquetário e pelo cálcio – actue sobre o fibrinogénio. Neste processo actuam os chamados factores intrínsecos (via intrínseca ou endógena), os factores extrínsecos (via extrínseca ou exógena) e factores comuns às duas vias. Virtualmente todas as proteínas procoagulantes estão em equilíbrio com uma proteína anticoagulante que regula ou inibe a função procoagulante. Há 4 anticoagulantes naturais principais que regulam a extensão do processo de coagulação: antitrombina III (AT-III), proteína C, proteína S, e o TFPI/tissue factor pathway inhibitor ou inibidor da via dos factores teciduais. A AT-III é um inibidor das proteases leucocitárias que regula predominantemente o factor Xa (X activado); em menor grau são igualmente inibidores os factores IXa, XIa e XIIa.
Quando a trombina no sangue circulante contacta com o endotélio intacto, liga-se à trombomodulina, o seu receptor endotelial. O complexo trombina-trombomodulina actua sobre a proteína C que passará à forma activada. Em presença do cofactor proteína S, a proteína C activada promove a proteólise e inactivação do factor Va e factor VIIIa. O factor Va, uma vez inactivado é, de facto, um anticoagulante funcional que inibe a coagulação. O inibidor final é o TFPI, que impede a activação do factor X pelo factor VII e factor tecidual (TF), e desvia o local de activação do TF e do factor VII para o factor IX.
Uma vez formado o coágulo fibrina/plaquetas, o sistema fibrinolítico limita a sua extensão e provoca a lise do mesmo (fibrinólise) restabelecendo a integridade vascular. A plasmina, gerada a partir do plasminogénio, degrada o coágulo de fibrina, do que resulta a formação de produtos de degradação da referida fibrina. A via fibrinolítica é regulada pelos inibidores do activador do plasminogénio e pela alfa-2 antiplasmina. No fígado os complexos de factores de coagulação activados são desmembrados e novas proteínas pró- e anticoagulantes são sintetizadas para manter o equilíbrio do processo descrito.
Alterações da hemostase e semiologia clínica
A alteração de qualquer dos componentes deste complexo sistema pode ocasionar uma doença hemorrágica ou trombótica.
A doença hemorrágica pode resultar de afecção dos vasos, das plaquetas ou dos factores de coagulação. As doenças dos vasos e das plaquetas podem surgir associadas e, sob o ponto de vista semiológico, ambas se manifestam predominantemente ao nível dos pequenos vasos; sob o ponto de vista clínico-etiopatogénico integram, respectivamente, as chamadas púrpuras vasculares (vasculopatias) e púrpuras plaquetares. Ambas traduzem anomalias da hemostase primária. A designação de “púrpura” deriva da cor verificada ao nível da pele.
As púrpuras vásculo-plaquetárias manifestam-se por alterações na coloração da pele ou mucosas, secundárias ao extravasamento de eritrócitos nesses locais. Consideram-se petéquias as lesões hemorrágicas minúsculas, menores que 2 mm, ao nível da derme; e equimoses as maiores que 2 mm, ao nível da hipoderme.
Poderão surgir igualmente epistaxes, gengivorragias, hematúria, hematemeses, melenas, etc..
As púrpuras de causa vascular (não hematológica) traduzem-se por petéquias predominantemente nos membros inferiores, (muitas vezes agravadas pela posição ortostática) e/ou exantema eritemato-papuloso com sede preferente na superfície de extensão dos membros inferiores (mas sem poupar outras regiões), de distribuição simétrica nalgumas formas clínicas.
Como exemplos de púrpuras de causa vascular não hematológica citam-se a vasculite de causa imunoalérgica (por ex. púrpura de Schonlein-Henoch), a associada a lesões traumáticas (por exemplo síndroma da criança maltratada), a associada a síndroma de Ehlers-Danlos, e a telangiectasia, angiodisplasia, varizes, etc.. A abordagem destas situações é feita nas Partes sobre Reumatologia e Osteocondrodisplasias.
Como exemplos de púrpuras de causa hematológica citam-se as situações de trombocitopénia, primárias ou secundárias, abordadas em capítulo especial.
O défice congénito ou adquirido de determinada proteína procoagulante, originando também doença hemorrágica, integra as chamadas coagulopatias ou anomalias da coagulação, traduzindo alteração da hemostase secundária; manifestam-se predominantemente ao nível de grandes vasos. Como tradução clínica, surgem os chamados hematomas (derrames sanguíneos no tecido celular subcutâneo e massas musculares), sufusões (derrames sanguíneos em larga superfície do tecido celular subcutâneo), hemartroses (hemorragias na cavidade articular) e/ou hemorragias viscerais e intracavitárias.
Como exemplos citam-se as coagulopatias primárias (hemofilia, défice de função plaquetária e doença de von Willebrand) e as secundárias (coagulação intravascular disseminada, ingestão de fármacos anticoagulantes, anticonvulsantes maternos, insuficiência hepática, insuficiência renal, doença hemorrágica do recém-nascido por défice de vitamina K, etc.).
De salientar que nas doenças adquiridas da hemostase há frequentemente problemas múltiplos associados. No caso de infecção sistémica com choque e acidose concomitantes verifica-se activação da coagulação e da fibrinólise com impossibilidade de garantir a função hemostática normal. No caso de septicémia grave verifica-se consumo de factores procoagulantes e de anticoagulantes com consequente desequilíbrio da hemostase pendendo, ou para hemorragia excessiva, ou para coagulação excessiva.
O défice congénito ou adquirido de anticoagulante predispõe a trombose ou doença trombótica.
O Quadro 5 resume os exames complementares fundamentais para a avaliação do processo de hemostase com menção, respectivamente, das funções avaliadas e dos valores de referência. (consultar Figura 2)
QUADRO 5 – Avaliação laboratorial nas alterações da hemostase
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(#) O PT é a prova de coagulação utilizada para avaliar a anticoagulação com varfarina. De acordo com recomendações actuais, deve utilizar-se o chamado INR (International Normalized Ratio) que permite a comparação do PT utilizando larga variedade de reagentes ou instrumentos, e de determinações laboratoriais. No âmbito do tratamento padronizado da doença trombótica o valor a obter para o INR é 2,0-3,0; nos casos de forma homozigótica do défice de proteína C, ou de doentes com próteses valvulares, o valor a atingir para o INR é 3,0-4,0. (ver Capítulo Hipercoagulabilidade e doença trombótica). |
BIBLIOGRAFIA
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Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Interamericana, 2015
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