Definições
De acordo com a definição histórica, a chamada hemoglobinúria paroxística nocturna (HPN), ou síndroma de Marchiafava-Micheli, é um tipo pouco comum de anemia hemolítica crónica na idade pediátrica (~5% dos casos de HPN), com início insidioso, caracterizada por episódios de eliminação de “urina escura” ou hemoglobinúria ocorrendo principalmente durante o sono, período em que diminui o pH sérico, independentemente de ser dia ou noite.
As primeiras descrições desta entidade clínica referiam, a par duma população de eritrócitos ditos “simile normais”, outra população de eritrócitos, “doentes”, com vida média muito encurtada, sofrendo hemólise precoce, logo na fase de saída da medula óssea, ou do órgão hematopoiético.
Admitiu-se então que se tratava de doença adquirida e que os eritrócitos pertencendo à população doente, com teor diminuído em acetilcolinesterase, eram portadores de anomalia da membrana eritrocitária tornando-os mais frágeis em meio ácido, e mais susceptíveis a factores hemolíticos presentes, quer no soro e plasma de indivíduos normais, quer de pacientes com a referida doença.
Tais factores incluem o complemento, a trombina e a properdina. Admitiu-se também que o mecanismo de acção dos factores descritos é complexo e que o sistema de coagulação parece estar envolvido na precipitação das crises hemolíticas.
Tendo também sido descrito nos primórdios que se verificava nos pacientes um quadro de falência da medula óssea, e que em cerca de 25% dos pacientes fora diagnosticada inicialmente anemia aplástica, concluiu-se que havia relação entre HPN e hipoplasia da medula óssea, e que a entidade HPN, mais do que uma anemia hemolítica peculiar, é uma doença global da medula óssea.
Relatados estes factos históricos, estamos em melhores condições para compreender a definição de HPN no século XXI, baseada nos francos progressos da Hematologia: distúrbio clonal adquirido das células estaminais hematopoiéticas, traduzido pela tríade anemia hemolítica intravascular, fenómenos trombóticos e falência medular.
Etiopatogénese
Existem classicamente duas classes de proteínas de membrana: proteínas transmembranares e proteínas ancoradas por cadeias de glicosilfosfatidilinositol (GPI).
Na HPN ocorre uma mutação somática no gene PIGA ao nível das células estaminais hematopoiéticas, do que resulta diminuição da síntese de GPI, com consequente deficiência parcial ou completa das proteínas de membrana ancoradas por GPI.
Os factores CD55 e CD59, encontrando-se ancorados à membrana dos glóbulos vermelhos por cadeias de GPI, regulam a activação do complemento na sua superfície. A deficiência dos referidos factores conduz a hemólise intravascular, mediada pelo complemento; é uma característica da HPN.
Há uma grande variabilidade inter e intra-indidividual na HPN quanto:
- À proporção de eritrócitos em circulação com as alterações descritas;
- À gravidade da deficiência dos factores CD55 e CD59 ao longo do tempo. Destas circunstâncias resulta grande variabilidade no grau de hemólise intravascular.
Está bem documentada a íntima relação entre a HPN e a aplasia medular e a síndroma mielodisplásica. De acordo com a hipótese predominante, pequenos clones de HPN estão presentes em indivíduos normais e, perante certas situações de destruição imunológica da medula óssea (como ocorre na aplasia medular idiopática), esses clones beneficiam de uma vantagem selectiva de crescimento, proliferam e tornam-se a fonte predominante de células estaminais hematopoiéticas. Esta vantagem de crescimento resulta provavelmente da deficiência de certas proteínas imunomoduladoras de membrana ancoradas por GPI.
O mecanismo responsável pelo estado de hipercoagulabilidade continua desconhecido. Vários mecanismos foram propostos, nomeadamente a activação plaquetária por componentes do complemento, a deficiência de proteínas membranares com actividade anticoagulante ou fibrinolítica, a actividade pró-coagulante de micropartículas libertadas dos glóbulos vermelhos HPN, e a vasoconstrição induzida por produtos de hemólise.
Manifestações clínicas
De acordo com a apresentação clínica, a HPN é classicamente dividida em 3 subgrupos:
- HPN clássica, associada a fenómenos hemolíticos e trombóticos;
- HPN secundária a síndroma de falência medular;
- HPN subclínica, caracterizada pela presença de pequenos clones de células HPN, sem evidência clínica ou laboratorial de hemólise ou trombose.
A classificação é difícil nalguns doentes porque todos os subgrupos podem apresentar algum grau de insuficiência medular.
A falência medular é a apresentação mais comum em crianças e adolescentes, podendo estar presente em mais de 80% dos doentes ao diagnóstico. Cerca de 20% dos casos de aplasia medular ou mielodisplasia são diagnosticados com HPN, pelo que se recomenda que todos os doentes com insuficiência medular sejam rastreados.
Os fenómenos trombóticos, menos frequentes do que nos adultos, atingem territórios pouco comuns como o abdominal e o cerebral.
Contrariamente ao que o nome indica, a hemoglobinúria isolada é excepcionalmente rara.
A dor, em particular a dor abdominal, é também um sintoma comum em idades pediátricas.
A hemólise crónica leva a uma diminuição do óxido nítrico, o qual se liga à hemoglobina livre em circulação; de tal resulta a ocorrência de fadiga, hipertensão pulmonar, doença renal crónica e disfagia ou espasmo esofágico. Estas complicações debilitantes podem reduzir de forma marcada a qualidade de vida dos doentes.
Diagnóstico
Dado que o atraso no diagnóstico é comum, torna-se essencial uma atitude de elevado nível de suspeição. Contudo, dada a raridade da doença, a pesquisa de clones de células surgindo no contexto de HPN em todos os doentes com anemia ou trombose não está indicada. No entanto, algumas situações clínicas associando-se a um risco elevado de HPN, merecem um estudo dirigido.
A inexistência de história de hemólise precipitada pelo frio, exclui o quadro de hemoglobinúria paroxística a frigore.
Assim, deve suspeitar-se de HPN nas seguintes circunstâncias: (Quadro 1)
QUADRO 1 – Indicações clínicas para o estudo de HPN
Hemólise associada a deficiência de ferro ou dor abdominal/espasmo esofágico |
Anemia hemolítica com prova de Coombs negativa sem alterações celulares características (esferócitos, esquizócitos, drepanócitos) |
Trombose em locais atípicos (veias hepáticas, veia porta, veias mesentéricas, veia esplénica, seios venosos cerebrais, veias dérmicas) |
Anemia aplásica, anemia hipocelular ou síndroma mielodisplásica (suspeita ou confirmação) |
Combinação de ≥ 2 das seguintes situações: anemia hemolítica; trombocitopénia e/ou leucopénia; trombose |
A detecção de populações celulares deficientes em proteínas ancoradas por GPI através de técnicas de citometria de fluxo constitui o método diagnóstico de eleição.
As recomendações internacionais preconizam o estudo de granulócitos e glóbulos vermelhos no sangue periférico e, no mínimo, de duas proteínas de membrana (CD55 e CD59 são as habitualmente pesquisadas, embora possam ser utilizadas outras proteínas).
Recentemente, surgiram técnicas de citometria de fluxo mais sensíveis (limite de sensibilidade < 0,01%), as quais podem ser úteis na detecção de pequenos clones em doentes com insuficiência medular; contudo, sendo tecnicamente mais complexas, ainda não se encontram padronizadas. Além do limite de sensibilidade utilizado, é importante documentar a proporção da população clonal em cada linhagem celular para ulterior avaliação. O estudo da população de leucócitos fornece a melhor estimativa do tamanho do clone por ser menos sensível à hemólise e/ou a transfusões prévias.
Tratamento
Os doentes assintomáticos ou com sintomas ligeiros não necessitam de qualquer tratamento, sendo a vigilância regular apropriada. A suplementação com ácido fólico (à semelhança de outras anemias hemolíticas crónicas) e com ferro, em caso de carência em ferro, está indicada.
O tratamento de suporte está indicado na HPN clássica, podendo a corticoterapia contribuir para controlar o grau de hemólise.
O eculizumab é um anticorpo monoclonal anti-C5 que bloqueia a porção terminal do complemento. Reduzindo significativamente o grau de hemólise, está indicado no tratamento de crianças com manifestações graves, secundárias a hemólise, tais como fadiga incapacitante, dependência transfusional e crises dolorosas frequentes. Tem também sido utilizado em doentes com fenómenos trombóticos recorrentes e falência medular, com bons resultados em termos de eficácia e segurança. A principal complicação do bloqueio do sistema do complemento é a susceptibilidade a infecções por Neisseria, pelo que todos os candidatos a eculizumab devem ser previamente vacinados.
Os doentes com fenómenos trombóticos devem ser submetidos permanentemente a anticoagulantes, salvo contraindicação; de referir, no entanto, que a anticoagulação profiláctica é questionável em idade pediátrica.
A contracepção oral deve ser evitada pelo risco particularmente aumentado de trombose. A imunossupressão é útil nos doentes com aplasia medular/síndroma mielodisplásica, embora não elimine o clone HPN.
O transplante alogénico de células estaminais, o único tratamento disponível, deve ser ponderado em doentes jovens com:
- Anemia hemolítica dependente de transfusão e refractária a eculizumab;
- Complicações trombóticas graves e recorrentes; e
- Anemia aplásica/síndroma mielodisplásica.
Prognóstico
A sobrevivência dos doentes aos 10 anos é de cerca de 80%. Neutropénia (neutrófilos < 500/mm3) e infecções de repetição são factores de mau prognóstico. Complicações infecciosas e fenómenos trombóticos são as principais causas de morte.
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