Definição

A anemia (não uma doença em si, mas manifestação de vários processos mórbidos) define-se (sob o ponto de vista quantitativo) como o valor de Hb inferior ao percentil 5 ou a 2 desvios-padrão (DP) em relação ao valor médio normal da população da mesma idade e do mesmo sexo.

Reportando-nos ao capítulo anterior e respectivo Quadro 2, cabe referir que o valor normal de Hb na data de nascimento é cerca de 17 g/dL, diminuindo depois até atingir o valor mínimo de 11 g/dL, aumentando depois até cerca da idade de 1 ano, atingindo ~12 g/dL; depois, o valor vai aumentando até à puberdade, sendo que na adolescência os valores de Hb são mais elevados no sexo masculino do que no feminino devido à acção dos androgénios.

Sob o ponto de vista funcional é importante referir que pode haver situações de anemia com valores de Hb dentro dos limites da normalidade: é o caso das cardiopatias cianóticas ou de doenças pulmonares crónicas em que a Hb tem elevada afinidade para o oxigénio, isto é, menor capacidade de libertação de oxigénio ao nível dos tecidos; de facto, a causa do défice de oxigenação tecidual (critério funcional) nos últimos exemplos citados, é diversa da que resulta das situações associadas a Hb deficitária (critério de definição quantitativa).

Na prática, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, e excluído o recém-nascido (ver Parte XXXI) são estabelecidos os seguintes critérios de definição de anemia:

  • Entre 7 meses e 5 anos: Hb < 11 g/dL;
  • Entre 6 e 9 anos: Hb < 11,5 g/dL;
  • Adolescentes: Hb < 12 g/dL (sexo feminino) e Hb < 12,5 g/dL (sexo masculino).

Adaptação fisiológica à anemia

Embora a redução do teor de Hb circulante diminua a capacidade de transporte do oxigénio, dum modo geral somente surge palidez da pele e mucosas quando a Hb atinge valor < 7-8 g/dL. Verifica-se, pois, um fenómeno de adaptação compensatória do organismo, traduzido nomeadamente por incremento do débito cardíaco, e da libertação do oxigénio ligado à Hb no sentido de maior oferta daquele (O2) aos tecidos de órgãos vitais, explicada pelo aumento da concentração de difosfoglicerato eritrocitário (2,3-DPG) com consequente desvio para a direita da curva de dissociação do oxigénio.

Outro fenómeno de adaptação é a elevação do nível de eritropoietina (EPO), que contribui para aumentar a produção de eritrócitos (eritropoiese), evidenciada no sangue periférico pelo aumento de reticulócitos circulantes (IPR↑ ou índice de produção reticulocitária). Salienta-se, no entanto, que nalguns tipos de anemia não se verifica tal estimulação de EPO.

Nos casos em que se verifica resposta reticulocitária, esta associa-se, em geral, a policromatofilia (eritrócitos corados com 2 ou mais corantes).

Os receptores de transferrina também aumentam no sangue nalgumas situações, tais como anemia por carência de ferro, eritropoiese ineficaz (talassémia, anemia megaloblástica); tal não acontece nos casos de medula hipoproliferativa.

Diagnóstico diferencial

Dada a grande variedade de anemias com mecanismos etiopatogénicos diversos, antes da abordagem de entidades específicas nos capítulos seguintes, será importante apresentar a respectiva classificação (Quadro 1), valorizando para o diagnóstico diferencial os parâmetros hematimétricos que fazem parte do hemograma, já referidos no capítulo anterior, e excluindo também o período de recém-nascido.

QUADRO 1 – Classificação etiopatogénica da anemia

IPR <2

a) Microcítica, hipocrómica
Anemia ferropénica, Talassémia, Doença inflamatória crónica, Carência em cobre, Intoxicação pelo chumbo, Intoxicação pelo alumínio, Anemia sideroblástica, Hemoglobina CC, Piropoiquilocitose hereditária, etc..

b) Normocítica, normocrómica
Doença infiltrativa maligna da medula óssea, Aplasia/hipoplasia da medula, Infecção por vírus da imunodeficiência humana (VIH), Síndroma hemofagocitária, Hemorragia recente, Doença renal crónica, Doença inflamatória crónica (conectivites, doença inflamatória intestinal), Eritroblastopénia transitória, etc..

c) Macrocítica
Carência em ácido fólico (hemólise crónica, má-nutrição, má absorção, antimetabolitos, fenitoína, trimetoprim-sulfametoxazol), Carência em vitamina B12 (regimes vegetarianos, anemia perniciosa, ressecção do íleo, transporte intestinal anómalo, défice congénito de factor intrínseco, etc.), Hipotiroidismo, Acidúria orótica, Doença crónica hepática, Síndroma de Lesch-Nyhan, Síndroma de Down, Insuficiência medular (mielodisplasia, anemia de Fanconi, anemia aplástica, etc.), Fármacos (álcool, zidovudina, etc.).

IPR >3

a) Hemorragia

b) Doença hemolítica
Hemoglobinopatia (Hb SS,S-C, S-β talassémia), Enzimopatia (défice da desidrogenase da glucose 6-fosfato/G6PD, défice da cinase do piruvato/PK), Membranopatia (esferocitose hereditária, eliptocitose, ovalocitose), Anemia hemolítica de causa imune (autoimune, isoimune, provocada por fármacos), Outras causas (síndroma hemolítica urémica, púrpura trombocitopénica trombótica, coagulação intravascular disseminada), Abetalipoproteinémia, Doença de Wilson, Carência em vitamina E, Queimaduras.

Eis, então, a interpretação dos parâmetros:

  • Microcitose: VGM < 75 fL;
  • Macrocitose: VGM > 100 fL;
  • Hipocromia: CHGM < 25% (ou g/dL);
  • IPR > 3: sugestivo de produção eritrocitária aumentada por hemólise ou por perda de sangue;
  • IPR < 2: sugestivo de produção eritrocitária diminuída ou ineficaz relativamente ao grau de anemia; poderá também explicar-se por destruição de reticulócitos na medula por anticorpos, por doença da medula óssea ou por atraso na resposta da medula óssea face a situações de anemia aguda. Valores entre 2 e 3 podem ser considerados inconclusivos;
  • Índice de Mentzer > 13,5 sugere anemia ferropénica;
  • Índice de Mentzer < 11,5 sugere traço talassémico;

Valor entre 11,5-13,5: inconclusivo;

  • RDW normal (11,5-14,5%) pode surgir no traço talassémico, hemorragia aguda e anemia aplástica;
  • RDW elevado pode surgir em anemia ferropénica, anemia hemolítica, megaloblástica, CID, SHU.

A situação de anemia hipocrómica microcítica traduz deficiente produção de Hb; como causas mais importantes citam-se a anemia por carência de ferro (ferropénica ou ferripriva) e talassémia (forma de hemoglobinopatia).

A situação de anemia macrocítica é, em geral, causada por carência de vitamina B12 e ácido fólico. A situação de anemia normocítica associa-se, em geral, a doença sistémica com consequente défice de produção eritrocitária na medula óssea. Como se pode depreender, os parâmetros laboratoriais devem ser interpretados em função da clínica e não isoladamente. Nos capítulos seguintes são abordadas as situações clínicas do foro hematológico com que o pediatra e o clínico geral mais frequentemente se confrontam. Realça-se a elevada prevalência da anemia ferropénica, cuja prevenção e tratamento são da competência do pediatra (não subespecialista em hematologia), em colaboração com o clínico geral; outras, no entanto, obrigarão a internamento hospitalar, sendo importante que o clínico exercendo actividade em ambulatório esteja sensibilizado para a respectiva identificação e encaminhamento em tempo oportuno para centros especializados. O tópico Leucemias foi abordado na Parte XVII.

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