Sistematização
O Quadro 1 sistematiza as principais anomalias do pénis e uretra.
Neste capítulo, pela sua importância e maior frequência em clínica pediátrica, são abordados a fimose, a parafimose, a hipospadia e o falso micropénis. O micropénis pode estar associado a hipopituitarismo. A agenésia do pénis é raríssima (1/10 milhões).
1. FIMOSE
Definição
A fimose caracteriza-se pela presença de estenose fisiológica do prepúcio, não permitindo a exposição da glande quando se faz a retracção do mesmo.
QUADRO 1 – Anomalias do pénis e uretra
|
A fimose é normal no período neonatal. Aos seis meses de idade apenas 20% dos lactentes permitem a retracção do prepúcio. Aos três anos de idade já é possível realizar a retracção prepucial em 90% dos casos.
A causa do aperto do anel fimótico não é conhecida, mas é considerada fisiológica pela generalidade dos autores. A fimose torna-se patológica quando existem processos inflamatórios balanoprepuciais conducentes ao estabelecimento de fibrose prepucial secundária.
Manifestações clínicas
O diagnóstico é redundante. A presença de fimose fisiológica enquanto a criança não controla os esfíncteres impede as lesões irritativas da glande pelo contacto com a urina na fralda. (Figura 1)
A presença de aderências balanoprepuciais, sem fimose associada, é corrente na primeira infância. Por vezes coexiste a presença de quistos de retenção de material sebáceo subprepucial, denominados “quistos de esmegma”, os quais podem ser eliminados com a retracção do referido prepúcio.
A ocorrência de balanite e postite, processo inflamatório balanoprepucial, pode ser de natureza recorrente e conduzir ao estabelecimento de fibrose prepucial secundária. Simultaneamente pode haver formação de uma “casca” fibrótica periglande e mesmo estenose inflamatória do meato urinário denominada balanite esclerótica obliterante (“balanitis xerotica obliterans”).
Actuação prática
A aplicação tópica de cremes com esteróides (por ex. propionato de fluticasona a 0,05%) duas vezes por dia poderá ser eficaz em certos casos. Se tal não resultar, a fimose fisiológica tem indicação cirúrgica (ressecção do prepúcio ou circuncisão): após a idade de controlo esfincteriano, na impossibilidade de retracção prepucial; ou antes da referida idade, na presença de fimose esclerótica obliterante ou de balanites de repetição.
Devido a condicionalismos étnicos, culturais e religiosos, a fimose fisiológica, pode também ter indicação cirúrgica a pedido de familiares.
A técnica cirúrgica mais utilizada é a postatoplastia postatoplastia de Duhamel (plastia dorsal do prepúcio) ou a circuncisão formal (ablação do prepúcio).
FIGURA 1. Fimose fisiológica em RN
Complicações pós-operatórias
As complicações da cirurgia correctiva da fimose têm uma incidência de 0,1% a 15%. As complicações mais frequentes prendem-se com a técnica cirúrgica ou com o status peniano pós-múltiplos episódios de balanite.
As complicações cirúrgicas mais correntes são: estenose do meato, infecção da ferida operatória, hematoma pós-operatório, excesso de pele ventral peniana e persistência do anel fimótico.
A reintervenção cirúrgica pode ser indicada por razões estéticas ou funcionais.
Seguimento
Após a plastia prepucial os familiares do doente devem favorecer a manutenção de bons hábitos de higiene local e realizar a retracção prepucial frequente para evitar a recorrência de aderências balanoprepuciais pós-operatórias.
Prognóstico
O prognóstico é, em geral, bom com cura cirúrgica em cerca de 98% dos doentes.
FIGURA 2. Parafirmose
2. PARAFIMOSE
A chamada parafimose consiste no estrangulamento e ingurgitamento da glande quando um prepúcio de abertura muito estreita é retraído até à zona proximal da glande, não podendo, depois, ser puxado até à sua posição inicial, o que é por sua vez dificultado pelo edema que também surge no próprio prepúcio.
Pela inspecção o edema do prepúcio peri-base da glande resultante de estase venosa assemelha-se a “pneu” que comprime a base da glande. (Figura 2)
O tratamento (redução) consiste em lubrificar o prepúcio e glande tentando fazer o referido “pneu” ultrapassar o sulco coronal no sentido distal, exercendo pressão suave sobre a glande ao nível do meato, no sentido meato-púbis, mas mantida, com o auxílio de analgesia.
Em casos raros poderá ser necessário proceder a circuncisão sob anestesia geral.
FIGURA 3. Pénis escondido ou “sepulto”
3. FALSO MICROPÉNIS (PÉNIS ESCONDIDO)
Nesta situação o pénis, de dimensões aparentemente normais está “mergulhado” ou camuflado por abundante almofada de gordura envolvente suprapúbica. Retraindo por compressão a gordura envolvente e repuxando distalmente o pénis verifica-se que as dimensões são aparentemente normais. Poderá estar indicada intervenção cirúrgica por razões cosméticas. (Figura 3)
4. HIPOSPADIA
Definição e importância do problema
A hipospadia é uma anomalia congénita do pénis, caracterizada pela associação de três alterações morfológicas, sendo a primeira de carácter constante:
- Localização ventral do meato urinário.
- Curvatura ventral do pénis.
- Presença de prepúcio com rafe não fundido na sua linha média e na sua porção ventral, como que “cortado” longitudinalmente.
- Ausência de artéria frenular.
Relacionando as alterações morfológicas com o desenvolvimento embriológico, a hipospadia pode ser definida como uma atrésia do raio ventral do pénis. O aspecto ventral do pénis é caracterizado pela existência de pele fina e aderente à parede da uretra, a glande é pouco desenvolvida e não encerrada ventralmente e, por fim, o corpo esponjoso, a jusante da abertura ectópica do meato urinário, é de aspecto atrésico.
Esta anomalia surge com uma incidência variando entre 8 e 15/1.000 nascimentos.
Etiopatogénese
Os factores etiológicos deste defeito não estão completamente esclarecidos, admitindo-se alterações da produção hormonal, dos receptores periféricos e anomalias vasculares locais, de base genética.
Nalguns estudos especulou-se sobre o possível papel da exposição in utero de agentes químicos com acção antiadrogénica ou estrogénica (fitoestrogénios, policlorobifenóis, etc.).
Diagnóstico pré-natal
O diagnóstico da hipospadia pode ser obtido no período pré-natal, por meio de estudo de ecografia morfológica realizada ao feto. Actualmente é possível obter a indicação diagnóstica indirecta da anomalia peniana pela existência de imagem ecográfica de curvatura peniana exagerada e de baixo percentil na medição do comprimento peniano.
Manifestações clínicas e classificação
Na maior parte dos casos, o diagnóstico da hipospadia é obtido no exame do recém-nascido (RN), no período pós-parto.
De acordo com a localização ectópica do meato, no sentido ântero-posterior é estabelecida a seguinte classificação anatómica e descritiva (Figura 4):
- Glanular.
- Coronal.
- Peniano anterior/médio/posterior.
- Peno-escrotal.
- Escrotal.
- Vulviforme/perineal.
A presença da curvatura ventral do pénis (corda), aspecto fundamental a ter em conta na descrição da hipospadia, deriva da confluência de quatro factores:
- Aderência da pele ventral à uretra.
- Aderência da placa uretral aos corpos cavernosos.
- Atrésia do corpo esponjoso a jusante do meato urinário.
- Assimetria dos corpos cavernosos.
A classificação correcta da hipospadia, que deverá incluir a localização do meato e a existência ou não de curvatura ventral, tem interesse não só para a planificação do acto cirúrgico, como também para o estabelecimento do prognóstico.
As Figuras 5 e 6 mostram aspectos de hipospadia anterior.
FIGURA 4. Localização ectópica do meato urinário (Hipospadia)
FIGURA 5. Hipospadia glanular em RN
FIGURA 6. Hipospadia coronal
Complicações pós-operatórias
As complicações pós-operatórias são decorrentes do tipo de hipospadia, da localização do meato urinário ectópico e das técnicas utilizadas.
Assim, a sua frequência é maior nas hipospadias posteriores com curvatura ventral mais pronunciada, e em reintervenções relacionadas com complicações prévias.
A complicação mais frequentemente encontrada é a fístula. A sua incidência varia entre 4%, (nas formas mais distais) e 20%, nas formas mais complexas. O aparecimento de fístula deve-se a uma permeabilização do trajecto uretral devido a desvitalização do tecido utilizado, de natureza isquémica ou infecciosa.
Outras complicações importantes são: a infecção da sutura ventral peniana originando invariavelmente a deiscência da mesma, e a formação de uma fístula urinária; a estenose uretral, decorrente do processo de cicatrização excessiva da glanuloplastia; e a persistência da curvatura ventral implicando a revisão cirúrgica da situação para permitir uma erecção peniana completa.
Seguimento
Os doentes com hipospadia devem ser seguidos durante a idade pediátrica até à adultícia. A existência de uma frequência algo elevada de complicações pós-operatórias funcionais ou estéticas leva à necessidade de acompanhamento em serviço de cirurgia pediátrica durante longo período.
O seguimento deve ser orientado para a vertente funcional e estética e, igualmente, incluir a avaliação da situação clínica do ponto de vista fisiológico e psicológico.
Prognóstico
O prognóstico global da patologia é em geral bom, na ausência de defeitos associados da maturação renal da árvore excretora e da junção uréter-vesical conducentes a deterioração da função renal.
O prognóstico funcional depende do tipo de hipospadia, da técnica utilizada e das complicações pós-operatórias. Porém, apesar da presença de complicações cirúrgicas, é possível, na generalidade dos casos, concluir o tratamento com bom resultado funcional e estético.
BIBLIOGRAFIA
Ashcraft KW, Holder TM (eds). Paediatric Surgery. Philadelphia: Saunders, 2003
Baskin LS, Ebbers MB. Hypospadias: Anatomy, etiology, and technique. J Pediatr Surg 2006; 41: 463-472
Brines J, Carrascosa A, Crespo M, et al (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2013
Carmichael SL, Shaw GM, Laurent C, et al. Maternal progestin intake and risk of hypospadias. Arch Pediatr Adolesc Med 2005; 159: 957-962
Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics Philadelphia: Elsevier, 2020
Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics.NewYork:Mc Graw Hill Education, 2018
Kurzrock EA, Karpman E. Hypospadias: Pathophysiology and etiological theories. Pediatr Endocrinol Rev 2004; 1: 288-295
McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
Mouriquand P, Persad R, Sharma S. Hypospadia repair: current principles and procedures. Br J Urol 1995; 76: 9-22
Prabhakaran S, Ljuhar D, Coleman R, Nataraja RM. Circumcision in the paediatric patient: A review of indications, technique and complications. J Paediatr Child Health 2018; 54: 1299- 1307
Tekgul S, Dogan HS, Hoebeker P, et al. Guidelines on Pediatric Urology. London: Eur Soc Paediatr Urol, 2016
Wein AJ, Kavouss LR, Novick AC, et al (eds). Campbell-Walsh Urology. Philadelphia: Elsevier, 2008