Conceitos de Moral, Ética e Bioética

A Ética é um ramo da Filosofia; a palavra “ética” deriva do grego a partir de dois homónimos: “êthos” que significa disposição moral, e “éthos” que significa costume. Surge, assim, pela primeira vez, a ideia de moral associada a norma e costume.

Moral tem origem na palavra latina “mos” que significa costume, princípio. Ou seja, Ética e Moral com diferentes etimologias, têm um significado sobreponível dizendo respeito às regras de conduta do Homem.

O termo Bioética foi introduzido pelos americanos significando a ética ligada às ciências da vida.

Nesta perspectiva, a ética procura o bem-estar das pessoas através da melhor conduta profissional e da melhor decisão a tomar. A mesma implica, pois, escolhas e, na maior parte dos casos, as decisões (ditas éticas) resultam da necessidade de reequacionar e re-hierarquizar valores morais, religiosos, culturais e sociais.

Transpondo o conceito e atitude para a práxis médica, um problema ético surge quando, perante determinados factos, a decisão correcta é difícil implicando escolhas entre valores e verdades universalmente aceites, visando a resposta mais justa ou pelo menos, a menos injusta. Estando a Ética subjacente à Filosofia, a mesma não pode ser ensinada, no sentido da transmissão de saberes que reflectem conhecimentos recebidos e “outorgam” o elo de ligação destes últimos aos valores e opções considerados correctos. Trata-se, pois, de um método, um caminho para o pensamento, uma forma de olhar e argumentar na perspectiva de encontrar respostas e soluções para os dilemas que enfrenta. A Ética Médica é baseada num conjunto de princípios fundamentais os quais derivam não só da tradição hipocrática, como também do reconhecimento dos direitos humanos.

Destacam-se os seguintes: o respeito pela vida; o respeito pela pessoa e sua autonomia; o princípio da não maleficência e da beneficência; o princípio da justiça.

O respeito pela vida e a autonomia da Pessoa

O respeito pela vida do doente passa pela definição e compreensão do que se entende pela vida humana, pelos seus limites, isto é, quando começa e quando termina.

Para muitos, o início da vida corresponde ao momento da concepção, enquanto para outros ao momento da nidação e, para outros ainda, ao nascimento.

Do ponto de vista filosófico um ser humano é ou passa a ser uma pessoa quando, para além da vida biológica, existe uma vida psíquica, emocional, cognitiva e espiritual que lhe permite conduzir a própria vida de forma autónoma e responsável. Análoga indefinição existe quanto ao conceito de morte, o qual não é de consenso universal, sobretudo para as pessoas sem formação ou cultura médica. A este respeito, cabe referir que a decisão médica de desconectar um indivíduo do ventilador, em princípio, não levanta problemas éticos, uma vez que o conceito de morte cerebral é unanimemente reconhecido e está bem estabelecido em normas nacionais e internacionais.

O respeito pela pessoa deve partir da prévia definição de pessoa. Quando nos referimos ao doente como pessoa há que considerar a sua autonomia, isto é, a sua vontade e capacidade de autodeterminação.

Assim, o respeito pela pessoa doente passa pela obtenção do seu consentimento prévio para a realização de diversos procedimentos ou intervenções médico-cirúrgicas. Ou seja, está em causa o chamado princípio da autonomia, ao mesmo subjacente o chamado “consentimento informado ou consentimento esclarecido” (mais que informar, é preciso garantir que tenha havido recepção da mensagem com esclarecimentos). Este tópico será abordado de modo especial adiante.

Nesta perspectiva, a decisão médica deve ser partilhada com o doente (e seus familiares), sobretudo quando esta decisão pode ter consequências para a vida do próprio.

Em Pediatria nem sempre tal é possível; tratando-se de um adolescente existe autonomia, desde que esteja consciente e capaz de se autodeterminar. Cabe referir, contudo, que em determinadas situações a revelação da verdade de um prognóstico reservado pode ser contraproducente e até prejudicial para o tratamento.

No caso de adolescente não autónomo (por exemplo, em coma vegetativo, persistente ou temporário), e nos restantes grupos etários pediátricos, a decisão terá de ser tomada em colaboração com os familiares.

Poderão mesmo surgir situações delicadas quando, por exemplo, familiares de doentes em estado crítico recusam tratamentos considerados vitais pelo médico (caso das Testemunhas de Jeová).

Recentemente, o princípio da autonomia tem sido considerado um elemento perturbador na relação médico/doente: para o primeiro, porque introduz um interlocutor activo ao questionar normas relativas ao diagnóstico e decisão terapêutica tradicionalmente deixados ao critério médico; para o doente, porque a inerente fragilidade e susceptibilidade biopsíquica geram desequilíbrio na referida relação clínica, dificultando o seu protagonismo no processo de tomada de decisão.

Os princípios da beneficência e de não maleficência

Estes princípios têm a sua origem no código de ética hipocrática e nos princípios da moral cristã. De referir, aliás, que certos autores chamam a atenção para o facto de o princípio da não maleficência ter precedência sobre o da beneficência porque, antes de beneficiar, há que não prejudicar. Para alguns especialistas nesta área, tais princípios constituem a essência da ética profissional médica.

A dificuldade da sua aplicação reside em conhecer o que é considerado benéfico para um determinado doente, pois este poderá ter uma concepção não coincidente com a do médico.

A administração de uma transfusão de sangue a um doente pode ser considerada pelo médico como um acto bom, mas pelo doente, Testemunha de Jeová, um acto perverso.

Nos doentes em fase terminal, em especial do foro oncológico, será melhor optar por tratamento analgésico e paliativo, mesmo que não se prolongue a vida do doente, ou dever-se-á prolongar esta à custa de maiores sofrimentos?

Analisemos outro exemplo: se o médico praticar determinado acto com a intenção de beneficiar o doente, a sua atitude é eticamente irrepreensível, mesmo que desse acto resulte um efeito colateral indesejável. O importante é que a intenção do médico seja boa e a natureza intrínseca do acto seja também boa ou, pelo menos, neutra. Assim, se o médico administrar um analgésico narcótico a um doente oncológico em grande sofrimento e em fase terminal da doença, pratica um acto moralmente correcto, mesmo que essa atitude terapêutica possa abreviar a sua vida por algumas horas ou dias, dado que a sua intenção era aliviar o sofrimento.

Outra questão diz respeito à distinção entre meios ordinários e extraordinários de tratamento a qual não deve ser assumida em termos absolutos, mas sim equacionada em termos do doente, da doença e dos resultados esperados. Ou seja, não existem meios de tratamento que, à partida, se possam considerar como ordinários e extraordinários.

Segundo o princípio da proporcionalidade dos meios, considera-se um tratamento como extraordinário quando ele representa para o doente uma grande desproporção entre os benefícios esperados e os encargos (custos) para o próprio (ou sua família). A hemodiálise, as transplantações, etc. podem constituir meios ordinários para certos doentes ou em certas doenças, e extraordinários, noutros.

A metodologia das decisões conhecidas pela sigla DNR (Do Not Resuscitate) tem a ver, precisamente, com a não aplicação de meios de ressuscitação em doentes nos quais os critérios médicos e científicos permitem prever, com razoável segurança, que o benefício decorrente da aplicação desses meios terapêuticos será ínfimo para os doentes em causa.

O princípio da justiça

Trata-se do princípio que encerra em si mais dilemas para o médico.

Quando os recursos são escassos o princípio de justiça tem, sobretudo, o sentido de justiça distributiva, isto é, de fazer com que o maior número possível de indivíduos necessitados possam beneficiar desses recursos. Desperdiçar os escassos recursos existentes com doentes que deles não necessitam constituirá uma injustiça para os que deles podem beneficiar.

Decorre desta lógica que o princípio da justiça tem, na sua aplicação para os médicos, um sentido utilitarista, ou seja, de que deverão beneficiar dos poucos recursos existentes os doentes que maiores benefícios possam colher.

Neste campo da decisão existem muitas armadilhas para quem não se encontra previamente alertado. Por exemplo, na ausência de ventilador disponível, qual a decisão perante um jovem que chega à unidade de cuidados intensivos, com um traumatismo craniano, boas perspectivas de evoluir favoravelmente, e em que simultaneamente existe outro acometido por acidente vascular cerebral, de prognóstico mau ligado ao ventilador?

Deverá ser desligado o doente com prognóstico mais reservado quanto à vida e função para ceder o ventilador ao doente com prognóstico mais optimista?

Este e outros exemplos podem ser comparados às situações, hoje históricas, chamadas de triagem de guerra, nas quais os cirurgiões preferiam tratar prioritariamente os moderadamente feridos, em relação aos muito graves ou ligeiros. Também durante a II Guerra Mundial, quando a penicilina era ainda muito escassa, dava-se preferência à sua utilização em soldados com doenças transmitidas sexualmente (pois ficando rapidamente curados poderiam voltar ao campo de batalha) em relação a outras situações infecciosas.

Assim, os recursos deverão ser atribuídos aos doentes que mais benefícios possam vir a colher, tornando-se claro que a escassez de recursos impõe uma rotatividade no acesso à sua utilização, para que os benefícios dos mesmos possam ser aplicados ao maior número de doentes deles necessitados.

Neste contexto e aplicando o princípio da justiça às unidades de cuidados intensivos, deverão ser bem definidos os critérios de admissão e de alta dos doentes assistidos, de modo a ser possível aplicar os respectivos recursos ao maior número possível de doentes.

Os princípios e a prática clínica

O consentimento informado, alicerçado no princípio da autonomia, define-se como a livre aceitação e autorização pelo doente de intervenção médica ou participação em programa de investigação, após adequada explicação pelo médico da natureza daquelas, relação custos/benefícios e alternativas. Apresenta duas vertentes fundamentais: a legal e a relacional.

A vertente legal é a regra social de consentimento em instituições que devem obter legalmente consentimento válido para doentes e pessoas, previamente à realização de procedimentos terapêuticos ou de programas de investigação. No entanto, isoladamente, não legitima a decisão ou actuação terapêutica e só corporiza integralmente a decisão do doente quando devidamente associada à vertente relacional que a fundamenta e complementa.

A vertente relacional diz respeito à expressão das preferências e opções do doente. Tal expressão viabiliza escolhas racionais e partilha da decisão, bem como contínua permuta interactiva e negocial reforçando, modificando ou anulando o consentimento inicial.

Esta interacção sedimentadora da aliança terapêutica médico/doente rendibiliza, por sua vez, o trabalho do médico porque o doente estará mais apto a colaborar, terá expectativas mais realistas e estará mais preparado para eventuais complicações.

O consentimento informado tem sido geralmente considerado um dever parental, apesar de questionável e moralmente desajustado relativamente ao doente pediátrico competente.

Dado que a autonomia é baseada na capacidade de o doente compreender as consequências e alternativas possíveis à sua escolha e que muitas crianças em idade escolar e adolescentes já possuem essa capacidade, esse facto pode gerar conflitos, atendendo ao direito legal de supervisão parental em matéria de saúde.

O número de adolescentes que necessitam de cuidados hospitalares tem progressivamente aumentado, tendo sido publicados poucos estudos que foquem problemas éticos durante a hospitalização neste grupo etário, sendo que alguns dos dilemas éticos surgidos na população adolescente não se enquadram adequadamente nas orientações existentes referentes a crianças e adultos.

Exemplificando, com um caso clínico: uma adolescente de 16 anos portadora de fibrose quística, com história anterior de 2 transplantes cardiopulmonares, entra pela terceira vez consecutiva em fase de rejeição aguda e é internada numa unidade de cuidados intensivos pediátricos. Apesar da terapêutica adequada, a situação clínica deteriora-se e é necessário decidir ou não pela ventilação mecânica. Ouvindo a família, o pediatra está de acordo em não ventilar, atendendo ao mau prognóstico, mas adia a decisão final até à realização de conferência entre a doente e o médico assistente. Lúcida, ciente da irreversibilidade da sua situação clínica, convicta da ineficácia de medidas terapêuticas invasivas adicionais, recusa a ventilação, sendo a decisão integralmente respeitada.

Este caso clínico é um exemplo do exercício de autonomia, aparentemente isento de paternalismo. A visão global do diagnóstico, situação clínica e evolução da criança, aliada ao sentido ético do exercício da medicina, permitiu à equipa clínica autonomizar a doente e simultaneamente ter a atitude responsável e profissional de a poupar a um prolongamento inútil de vida.

Assim, o exercício da autonomia não implica crueldade no confronto com a realidade de vida e de morte ao permitir que o doente se pronuncie e eventualmente decida, quando tem condições para tal, sobre questões que influenciam de forma decisiva a vivência do seu corpo na doença.

O pediatra ou outro médico ao dialogar em paridade com uma adolescente que, por doença grave e prolongada, admite as hipóteses de vida ou de morte que se lhe deparam, deve demonstrar capacidade de diálogo e humildade. Deve também revelar respeito pelo princípio da beneficência ao reconhecer o sofrimento físico, psicológico e espiritual de crianças e adolescentes, os quais têm direito a protecção e alívio da dor. É este o fundamento dos cuidados paliativos.

Importa, no entanto, sublinhar que a autonomia não é um princípio que retira à criança ou adolescente resiliência, fragilizando-a e tornando-a indefesa face à doença e à morte. Muito pelo contrário, pode constituir um factor de crescimento de interioridade e intimidade daqueles, reconhecendo-lhes direitos e capacidade de protecção contra a imensidão de normas, regras, teorias e tecnologias de que a medicina dispõe actualmente.

Ou seja, o exercício da autonomia contém de uma maneira ou de outra, quiçá de forma complementar, os princípios da beneficência e da não maleficência.

De referir que a informação dada ao doente pelo médico deve pautar-se pela preocupação de comunicação através de linguagem simples, fluida, isenta de termos técnicos, adequada e acessível, que consiga transmitir a verdade àquele, devidamente enquadrada por empatia e solicitude, que o médico deve disponibilizar de modo personalizado.

Contudo, a preocupação do total esclarecimento relativamente à doença não deve sobrepor-se à compaixão face ao doente doseando-a (ou até, por vezes, omitindo-a e adaptando-a à idade, perfil e momento psicológico). Isto é, cada doente tem direito à verdade que pode suportar.

A legislação em Portugal

Em Portugal a legislação portuguesa confere o direito à autodeterminação em saúde aos menores de 18 anos, mediante a portaria nº 52/85 que permite o acesso às consultas de planeamento familiar a todos os jovens em idade fértil, bem como o artigo 141º da lei nº 6/84 DR-Iª série nº 109- 11/5/1988 que reconhece o direito ao consentimento de interrupção voluntária de gravidez em jovens dos 16 aos 18 anos, desde que nas situações contempladas na lei.

Por sua vez, a autonomia da criança é reconhecida no Código Penal – decreto-lei nº 48/95 de 15/3/1995 ao “Reconhecer no domínio dos bens jurídicos livremente disponíveis, como causa de exclusão de ilicitude, o consentimento prestado por quem tiver mais de 14 anos e possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta”.

Também o Código Deontológico da Ordem dos Médicos refere que “No caso de crianças ou incapazes, o médico procurará respeitar, na medida do possível, as opções do doente, de acordo com as capacidades de discernimento que lhes reconhece, actuando sempre em consciência na defesa dos interesses do doente”.

Consentimento informado e esclarecido

Sublinhando a importância do triângulo relacional “criança, pais e médico” é reconhecido o direito ao consentimento informado e confidencialidade em adolescentes maiores de 14 anos relativamente à contracepção oral, ao tratamento de doenças sexualmente transmissíveis e ainda nos casos de comportamento aditivo (alcoolismo, ou toxicodependência), sem necessidade de consentimento parental.

Em caso de terapêutica com baixo risco de mortalidade e morbilidade (tratamento da acne, por exemplo), poderá também ser dispensado o consentimento parental. Pelo contrário, nos casos em que a terapêutica envolva considerável risco (intervenções cirúrgicas ou terapêutica do foro oncológico com citostáticos) é exigido o consentimento informado e esclarecido do doente, caso este se situe no grupo etário superior aos 18 anos, ou o consentimento parental se se tratar de menor de 18 anos, não legalmente emancipado.

Exemplificando, é também necessário permissão informada em caso de:

  • Imunizações;
  • Exames diagnósticos invasivos (cateterismo cardíaco, broncoscopia);
  • Terapêutica prolongada com anticonvulsantes para controlo da epilepsia;
  • Correcção cirúrgica de anomalias esqueléticas;
  • Remoção cirúrgica de massa tumoral suspeita;
  • Punção lombar (mesmo em situações de emergência).

O assentimento da criança e permissão informada e esclarecida dos pais será aconselhável em situações como:

  • Punção venosa numa criança depois dos 10 anos;
  • Exames complementares diagnósticos nos casos de dor abdominal recorrente numa criança depois dos 10 anos;
  • Medicação psicotrópica para controlar a perturbação da atenção grave.

Ou seja, em medicina da criança e do adolescente o assentimento reconhece e assume o doente como pessoa com capacidade de ser integrada num processo decisional e pressupõe:

  • Ajudar o doente a compreender a sua doença;
  • Transmitir-lhe a normal expectativa dos exames e tratamentos a realizar;
  • Atender à compreensão do doente face à sua doença.

A dissensão ou persistente recusa ao assentimento deve ser respeitada sempre que a intervenção proposta não seja essencial ao bem-estar da pessoa ou possa ser adiada sem risco.

Em investigação é vinculativa, mesmo que os pais tenham autorizado.

Recentemente, o grupo de trabalho em ética da Confederation of European Specialists in Paediatrics (CESP) publicou as linhas de actuação e recomendações do Consentimento Informado/Assentimento em Pediatria e em investigação biomédica envolvendo populações pediátricas.

O documento é norteado por uma preocupação de preservar a dignidade da criança e adolescente nas suas dimensões física, psicológica e intelectual, salvaguardar os seus interesses, protegê-los de riscos, assegurar e respeitar a sua privacidade/confidencialidade e reforçar o seu direito à expressão e cumprimento dos seus desejos e preferências sempre que possível, numa perspectiva realista.

Humanização dos cuidados

Em 1945, pela primeira vez Spitz descreveu a síndroma do hospitalismo. As manifestações clínicas de tal situação, relacionadas com o ambiente hospitalar de separação da mãe e família da criança, o próprio trauma e agressão emocional da doença implicando muitas vezes intervenções diagnósticas e terapêuticas, traduzem-se por carência afectiva, regressão do desenvolvimento psicomotor e afectivo, e estados depressivos.

Foi precisamente na transição da década de 70-80 que passou a desenvolver-se, em Portugal, uma “cultura” – originária dos Estados Unidos da América do Norte – de encarar a criança, mais ligada à família e ao seu meio, mesmo quando no hospital, tornando este meio mais acolhedor, compreensivo, humano. Em Portugal cabe destacar o pioneirismo na aplicação sistemática de certas práticas do Instituto Português de Oncologia e do Hospital Pediátrico de Coimbra.

Assim, contribui para a humanização todo o profissional de saúde que recusa a rotina reduzida ao tecnicismo, que vê no doente uma pessoa inteira com emoções, angústias ou desesperos que se estendem às famílias.

A partir de então, nas maternidades passou a vigorar, de modo progressivo, a prática de contacto precoce mãe-filho, já na sala de partos, onde o recém-nascido deveria ser colocado ao peito para estimular a secreção láctea e o vínculo.

Ao sistema de alojamento conjunto mãe-filho nas enfermarias de puérperas, tem sido dada importância crescente. Assim, o conceito de berçário nas maternidades (recém-nascidos saudáveis em enfermaria separada da mãe) passou a ser considerado obsoleto e antinatural.

A par doutras medidas relacionadas com a qualidade do atendimento nas diversas instituições, passou igualmente a ser cada vez mais habitual a mãe acompanhar o seu filho durante a hospitalização em qualquer grupo etário, abrindo-se as portas das unidades de internamento ou de ambulatório às famílias segundo certas regras que passaram a estar incluídas nos manuais de qualidade e consagradas por legislação, de que se destaca a Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas descrita adiante.

Quer a Secção de Pediatria Social da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), criada em 1979, quer o Instituto de Apoio à Criança (IAC), fundado em 1983, têm tido ao longo dos anos um papel pedagógico altamente relevante, veiculando, designadamente, os conceitos da humanização e de assistência centrada na família, constituindo-se como grupos de pressão junto das autoridades governamentais no sentido de as práticas de humanização passarem a ter suporte legal, o que tem vindo a acontecer ao longo dos anos.

Cuidados paliativos

A partir de 1960, sob os auspícios da OMS, passou a ser comum o termo de cuidados paliativos como um novo paradigma de assistência total e activa ao doente e família por equipa multidisciplinar, não necessariamente em fim de vida, quando se verifica uma de duas situações:

  • Doença crónica, avançada e ou incurável, de prognóstico muito reservado com imprevisível resposta à terapêutica;
  • Doença progressiva (sintomatologia rapidamente evolutiva com consequente sofrimento do doente e família).

Tal tipo de cuidados permite suprimir ou atenuar sintomas sem actuar directamente na doença que os provoca, dando também apoio à família para lidar com a doença, na tentativa de melhorar a qualidade de vida do doente na sua relação com a mesma sem que tal signifique abandono.

Constitui dever ético da equipa assistencial junto da família chamar a atenção de modo humanizado para certos princípios e realidades que poderão contribuir para a compreensão de atitudes (diversas da distanásia ou encarniçamento terapêutico, e da eutanásia ou morte provocada sem sofrimento):

  • Evolução vida – morte como processo natural e inevitável;
  • Não adiamento nem aceleração da morte;
  • Alívio da dor e doutros sintomas numa relação fraterna;
  • Valorização da dignidade e da qualidade de vida da pessoa;
  • Informação de modo individualizado, gradual e adaptado à cultura, religião e circunstâncias psico-afectivas da “unidade” doente-família, a cargo da equipa que presta cuidados.

Embora em instituições de saúde prestando assistência a adultos existam unidades de cuidados paliativos com equipa própria, separadas doutras enfermarias e unidades, na idade pediátrica tal assistência é propiciada, em geral, em enfermarias convencionais, embora em área reservada e versátil com o recato e isolamento que a situação impõe. Tais situações surgem com maior frequência em unidades de cuidados intensivos neonatais e pediátricas e em serviços de oncologia pediátrica.

Salienta-se, em suma, que a noção de cuidados paliativos:

  1. Não diz respeito exclusivamente a cuidados terminais, em fim de vida;
  2. Não se resume ao tratamento da dor;
  3. Exige que se proceda à avaliação global da pessoa que sofre atendendo à sua complexidade biológica, psico-afectiva, familiar e social.

Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas

Em consonância com o conceito de humanização, importa relevar um importante documento (já generalizado e aplicado no nosso país), aprovado pela Confederação Europeia dos Sindicatos Nacionais e Associações de Profissionais de Pediatria em 1996:

  1. As crianças somente serão admitidas no hospital se os cuidados de que necessitam não puderem ser igualmente administrados no domicílio ou em regime ambulatório;
  2. As crianças hospitalizadas têm o direito de ter os seus pais permanentemente com elas, desde que isso seja para maior benefício da criança. Assim, deve ser oferecido alojamento a todos os pais e estes devem ser auxiliados e encorajados a permanecer junto delas. De modo a comparticipar na assistência dos seus filhos, os pais devem ser informados acerca da rotina da enfermaria e encorajada a sua participação activa;
  3. As crianças ou os seus pais têm o direito a uma informação apropriada à sua idade e compreensão;
  4. As crianças e os pais têm o direito a uma informada participação em todas as decisões que envolvem a sua assistência. Todas as crianças devem ser protegidas de tratamentos médicos desnecessários, devendo tomar-se medidas no sentido de minorar o seu sofrimento físico e emocional;
  5. As crianças devem ser tratadas com tacto e compreensão, e a sua privacidade sempre respeitada;
  6. As crianças devem ser assistidas por uma equipa adequadamente treinada e plenamente consciente das necessidades físicas e emocionais de cada grupo etário;
  7. As crianças têm o direito de usar as suas próprias roupas e ter os seus pertences pessoais;
  8. As crianças devem ser assistidas conjuntamente com outras crianças do mesmo grupo etário, separadamente dos adultos em todas as valências assistenciais (consulta, internamento, serviço de urgência, etc.);
  9. As crianças devem ter um ambiente guarnecido e apetrechado de modo a satisfazer as suas necessidades e que esteja de acordo com as normas conhecidas de vigilância e segurança;
  10. As crianças devem ter total oportunidade para brincar, para diversão e educação adequadas à sua idade e condição.

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