Nomenclatura e importância do problema

Os agentes Riquétsia são bactérias Gram-negativas intracelulares obrigatórias. A ordem Rickettsiales compreende actualmente duas famílias, a família Rickettsiaceae e a família Anaplasmataceae.

A família Anaplasmataceae engloba os géneros Ehrlichia, Anaplasma, Cowdria, Wolbachia e Neorickettsia.

Por sua vez, a família Rickettsiaceae inclui o género Rickettsia, que se divide em dois grupos: o grupo do tifo, com duas espécies patogénicas para o homem, Rickettsia prowazeki e R. typhi, e o grupo das febres exantemáticas. Actualmente são conhecidas vinte e quatro estirpes de Rickettsia, mas apenas dezassete são responsáveis por doença no Homem.

O impacte mundial destas zoonoses continua a ser considerável devido à sua elevada prevalência em numerosas áreas do globo e à morbilidade a que determinam. Algumas espécies constituem actualmente autênticos paradigmas de agentes patogénicos emergentes. Por outro lado, o interesse geral por este género de microrganismos tem aumentado pela potencial utilização como arma biológica no bioterrorismo.

Etiopatogénese

As Riquétsias crescem livremente no citoplasma das células eucarióticas do hospedeiro (artrópodes ou helmintas), que servem como vectores biológicos para a transmissão ao Homem.

Os referidos agentes microbianos são transmitidos ao Homem por diferentes artrópodes, como piolhos, pulgas, ácaros ou mais frequentemente carraças (ixodídeos).

As Riquétsias do grupo tifo são essencialmente transmitidas:

  • através das fezes do piolho (Pediculus humanus corporis) no caso do tifo epidémico; ou
  • através das fezes da pulga, no caso do tifo murino.

Numa pequena percentagem de casos a transmissão faz-se por contaminação das mucosas (por ex. conjuntiva) e por inalação de aerossóis. O ciclo de vida mantém-se ao infectar espécies de hospedeiros (geralmente mamíferos) e vectores (habitualmente carraças ou pulgas). Com excepção do agente Rickettsia prowazekii, o ser humano constitui um hospedeiro acidental.

Neste capítulo, em obediência à taxonomia actual descrita no início, procede-se à abordagem sucinta das seguintes entidades clínicas:

  1. febres exantemáticas, com excepção da febre escaronodular, riquetsiose com maior expressão no nosso país, onde é endémica;
  2. tifo murino ou endémico;
  3. tifo exantemático epidémico;
  4. erliquiose e anaplasmose.

Cabe salientar que, com excepção das riquetsioses que integram o grupo exantemático, as restantes não estão presentes em Portugal.

Todas as estirpes de Rickettsia têm como alvo as células endoteliais, provocando uma resposta inflamatória por parte do hospedeiro que se manifesta através do aumento de IFN-γ, IFN-α e β que, por sua vez, estimulam a produção de IL-12 e resposta celular T helper tipo 1. As células endoteliais infectadas produzem IL-6, IL-8 e MCP-1.

Esta resposta de fase aguda, que é multifocal, conduz a vasculite disseminada (aumento da permeabilidade vascular, edema, hipovolémia e hipotensão) e a estado procoagulante, com fibrinogénio elevado.

1. FEBRES EXANTEMÁTICAS

Introdução

O grupo das febres exantemáticas, que inclui a espécie R. conorii, engloba a maioria das espécies de riquetsias transmitidas por ixodídeos ou carraças, sendo consideradas patogénicas todas as identificadas em humanos por amplificação de DNA. (Quadro 1)

Todas as riquetsias deste grupo provocam febre, cefaleia e mialgias intensas. Exantema e escara (tache noire) ocorrem na maioria, mas não em todas as riquetsioses do grupo.

A imunofluorescência indirecta (IFA) é a técnica recomendada para o diagnóstico, apesar de existirem outras técnicas para testes serológicos como a ELISA. Contudo, aquela tem a desvantagem de não permitir o diagnóstico em fase aguda de doença e de não identificar a espécie de Rickettsia dentro do mesmo grupo taxonómico.

O tratamento é semelhante para todas e deve ser iniciado imediatamente perante suspeita clínica, após colheita de amostras para diagnóstico, de forma a melhorar o prognóstico.

Quadro 1 – Grupo das Febres Exantemáticas.

Agente Doença Vector
R. rickettsii Febre das Montanhas Rochosas Dermacentor spp., Amblyoma spp., Rhipicephalus spp.
R. conorii sensu stricto (Malish) Febre Botonosa Rhipicephalus spp., Haemaphysalis spp.
Astrakhan fever rickettsia Febre de Astrakan Rhipicephalus punilo
Israeli tick typhus Febre Botonosa de Israel Rhipicephalus spp
R. sibirica Tifo Siberiano Dermacentor spp., Haemaphysalis spp.
R. australis Tifo da carraça de Queensland Ixodes holocyclus
R. honei Febre botonosa das ilhas Flinders Aponoma sp., Ixodes sp.
R. japonica Febre exantemática oriental Haemaphysalis spp., Dermacentor spp.
R. africae Febre da carraça africana
 Amblyomma sp.
R. sibirica monglotimonae Lymphangitis associated rickettsiosis (LAR) Hyalomma asiaticum
R. slovaca TIBOLA, DEBONEL Dermacentor marginatus
R. helvetica Perimiocardite crónica Ixodes ricinus
R. akari Riquetsiose vesicular Liponyssoides sanguineus
R.felis California flea rickettsiosis Ctenocephalides felis

1.1. Febre das Montanhas Rochosas

Aspectos epidemiológicos e etiopatogénese

A febre das Montanhas Rochosas (FMR), que não existe em Portugal, é a riquetsiose mais frequente nos EUA. Está presente também no Canadá e América Central e Sul. Nos EUA, é a segunda doença infecciosa transmitida por vectores, logo a seguir à doença de Lyme. Apresenta uma incidência anual crescente (14,3 casos por cada milhão de pessoas em 2012), sendo mais frequente de Abril a Setembro e em crianças abaixo dos 10 anos de idade.

  1. rickettssi, o agente etiológico, é transmitido por várias espécies de carraças, nomeadamente Dermacentor, Rhipicephalus e Amblyomma. Após inoculação, os microrganismos alcançam o endotélio vascular e invadem-no através da interacção entre os lipopolissacáridos da membrana e proteínas da membrana externa das riquétsias (rOmp), permitindo a entrada nas células endoteliais por endocitose.

Uma vez no interior das células, provocam lise do fagossoma, ficando livres no citosol onde provocam polimerização dos filamentos de actina do citoplasma das células hospedeiras, originando a sua invaginação. Os agentes R. rickettsii disseminam-se posteriormente por via hematogénica e linfática.

O mecanismo pelo qual provocam morte celular a nível dos pequenos vasos não é conhecido: está provavelmente relacionado com a acção da peroxidase lipídica, das proteases e de fosfolipase A.

O exame histológico permite evidenciar infiltrados perivasculares linfocíticos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Após um período de incubação de 3 a 12 dias, surge febre alta, de início súbito, associada a mialgias, cefaleia intensa, náuseas, vómitos e anorexia. Outras manifestações menos frequentes incluem irritabilidade, alteração do estado de consciência, dor abdominal, esplenomegália, hiperémia conjuntival e edema periorbitário.

Em cerca de 80% a 90% dos casos surge exantema entre o 2º e o 4º dias de doença: inicialmente macular, podendo evoluir para papular e para petequial; a evolução é centrípeta, com início nos punhos e tornozelos, incluindo palmas e plantas, expandindo-se depois para o tronco, coxas, braços e face. A doença dura geralmente três semanas, com compromisso habitual dos sistemas nervoso central, cardiovascular, pulmonar e renal.

Nas situações graves pode surgir choque e, rararamente, CIVD. São considerados como principais factores de risco a presença de défice de glucose-6-fosfato desidrogenase e o atraso no início da antibioticoterapia.

O diagnóstico é estabelecido por serologia e/ou por detecção de DNA por polymerase chain-reaction (PCR), no sangue ou em tecido, ou ainda por imunopatologia através de biópsia cutânea.

A serologia por imunofluorescência indirecta (IFI) embora continue a ser o método-padrão de diagnóstico, é um método retrospectivo. Nos primeiros 10-15 dias é frequentemente negativa, não excluindo a hipótese diagnóstica em fase aguda. Contudo, serve para confirmação diagnóstica a posteriori.

Para o diagnóstico será necessário comprovar elevação do título 4 vezes no intervalo de 2-4 semanas a partir da fase aguda, ou título > 64 na convalescença; em qualquer fase, título > 128 corresponde a caso suspeito.

A PCR, apesar de dispendiosa, é altamente sensível e específica, permitindo o diagnóstico rápido, antes da seroconversão. Pode ser efectuada no sangue ou em amostra de tecido de biópsia.

Tratamento

A antibioticoterapia de eleição para a FMR é a doxiciclina PO durante 5-7 dias (2,2 mg/kg/dose em duas doses; máximo 100 mg/dose). Nas formas graves com disfunção multiorgânica está indicado internamento em UCIP e doxiciclina EV.

A taxa de mortalidade é mais elevada em crianças com menos de 4 anos (3%-4%).

Prevenção

As medidas principais consistem em prevenir a infestação de animais pelos vectores nas áreas endémicas, protecção da pele com roupa e repelentes contendo DEET (N-dietil-meta-toluamida) e eventual remoção dos vectores da pele. Não existe vacina disponível.

1.2. Linfangite associada a riquetsioses (LAR)

A LAR é provocada por R. sibirica mongolotimonae, isolada pela primeira vez de uma carraça na Mongólia em 1991. Vários casos de infecção por este agente foram entretanto reconhecidos no sul de França, mas também em Portugal, Espanha, Grécia, Argélia e Egipto (bacia do Mediterrâneo) e África do Sul. É transmitida pelos vectores Hyalomma asiaticum (Mongólia), H. truncatum, H. anatolicum excavatum (Grécia) e Rhipicephalus pusillus (Portugal, Espanha, França).

A doença manifesta-se fundamentalmente por linfadenopatia loco-regional e/ou linfangite; em diversos estudos, os sinais mais frequentemente encontrados, por vezes em associação, são assim sintetizados: adenopatia (50% casos), febre (100%), cefaleia (80%), exantema maculopapular, e escara de inoculação (92%) que pode aparecer em vários locais. Habitualmente trata-se duma situação de mediana gravidade, embora haja casos descritos de doença grave com complicações renais e retinianas.

O diagnóstico etiológico é confirmado por PCR utilizando-se tecido da escara (propiciando maior sensibilidade) e sangue periférico.

O tratamento faz-se com doxiciclina durante 5-7 dias, na dose 2,2 mg/kg/dose de 12/12h nas crianças com ≤ 45 kg ou 100 mg de 12/12 horas também, nas crianças com peso superior.

1.3. Linfadenopatia associada a carraça (TIBOLA) ou Linfadenopatia e escara de necrose associada à carraça Dermatocentor (DEBONEL)

A infecção por Riquétsias R. slovaca, R. raoultii e R. rioja resulta na síndroma de linfadenopatia associada a carraças – Tick-borne lymphadenopathy ou TIBOLA, também reconhecida por Dermacentorborne necrosis-eschar-lymphadenopathy ou DEBONEL. Recentemente foi proposto o acrónimo SENLAT como substituto (scalp eschars and neck lymphadenopathy).

Trata-se duma infeção comum nos países europeus (França, Espanha, Itália, Alemanha, Polónia, Hungria e, mais recentemente, em Portugal), mais frequente nos meses mais frios, de Outubro a Abril, transmitida pelos vectores Dermacentor marginatus e D. reticulatus.

A prevalência de infecção por R. slovaca em Dermatocentor spp é elevada na Europa; atingindo o valor de 41% em Portugal, sendo actualmente a segunda riquetsiose mais frequente depois da febre escaronodular, é mais comum nas crianças e mulheres.

Após inoculação e 5 dias de incubação, surge uma lesão em crosta com exsudado cor de mel no couro cabeludo (68%-100%), no local da mordida, que evolui para uma escara necrosada dias depois, associada a linfadenopatia dolorosa occipital e/ou cervical (74%-100%) e a eritema local. Febre e exantema são pouco frequentes (25% e 5% respectivamente). A escara mantém-se durante um ou dois meses, sendo frequente o desenvolvimento de alopécia no local.

A suspeita diagnóstica (pela epidemiologia e manifestações clínicas) é confirmada por seroconversão e/ou por amplificação de DNA por método PCR (utilizando amostra da escara ou sangue periférico).

O tratamento de escolha é a doxiciclina, conforme esquema prévio.

 1.4. Riquetsiose das pulgas

R. felis foi isolada pela primeira vez em 1992 a partir de pulgas de gatos (Ctenocephalides felis). É mais frequente na América do Sul, México e continente africano.

O quadro clínico é ligeiro e semelhante ao do tifo murino (ver adiante), podendo também cursar com exantema maculopapular no tronco, escara e linfadenopatia regional.

De acordo com resultados de exames laboratoriais verifica-se, tal como nas restantes riquetsioses, leucopénia, trombocitopénia e anemia ligeiras. Pode também surgir hiponatrémia, hipoalbuminémia, aumento das transaminases e disfunção renal.

Apesar de a IFA ser recomendada como método de diagnóstico, os anticorpos para R. felis apresentam reactividade cruzada com os anticorpos de R. rickettsii, R. conorii e R. typhi.

Assim, perante suspeita de riquetsiose, deve ser efectuada IFA e, para ulterior identificação da espécie, deve proceder-se a exames Western-Blott, PCR ou cultura (principalmente em doentes com contacto com pulgas de gatos e sem contacto com ratos).

Para o tratamento utiliza-se a doxiciclina, em esquema já descrito anteriormente.

2. TIFO MURINO OU ENDÉMICO

Definição e etiopatogénese

O tifo endémico é uma infecção causada por R. typhi, mais frequente em países em desenvolvimento e em áreas de elevado agregado populacional com proximidade de contacto com ratos. Estes constituem o principal reservatório, sendo a pulga Xenopsylla cheopsis o vector de transmissão da doença. Contudo, outras espécies de pulgas podem estar envolvidas, como a pulga do gato que pode desempenhar um importante papel no ciclo biológico e na transmissão ao Homem.

Actualmente rara em países desenvolvidos, foi identificada pela última vez em Portugal em 1996, em Porto Santo, em cinco doentes hospitalizados.

O mecanismo desta afecção é semelhante ao descrito para R. rickettsii.

 Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

O período de incubação varia entre 6 a 14 dias. Trata-se duma doença de gravidade moderada na idade pediátrica, caracterizando-se por febre, cefaleia, calafrio e mialgias.

Entre o 4º e 7º dias de doença (em média pelo 6º dia) pode surgir exantema macular, maculopapular, ou papular, petequial, ou ainda, morbiliforme. O exantema atinge sobretudo o tronco e extremidades (evolução centrífuga) sendo raro nas palmas, plantas e face. A presença de escara é rara.

A tríade febre, cefaleia e exantema ocorre em menos de 15% dos doentes, razão pela qual, sendo habitualmente de gravidade ligeira, é facilmente subdiagnosticada podendo confundir-se com síndroma gripal.

Em casos graves pode haver envolvimento do sistema nervoso central (confusão, convulsões, coma), renal (IRA), hepático (icterícia), cardíaco (alterações do ritmo) e pulmonar (derrame pleural, insuficiência respiratória).

Os exames laboratoriais evidenciam frequentemente elevação das transaminases e da LDH, hiponatrémia ligeira e hipocalcémia. Pode também cursar com hipoalbuminémia, leucopénia e trombocitopénia precoce.

O diagnóstico é confirmado por métodos moleculares, através da técnica de PCR, ou por serologia, através de IFI (IgM >1/32 e/ou IgG >1/64 ou seroconversão 4 semanas depois), ou de Western blot.

Tal como no grupo das febres exantemáticas, o tratamento de eleição é a doxiciclina em esquema semelhante durante 7 a 14 dias. O cloranfenicol não é actualmente recomendado por se associar a risco de recorrência.

Geralmente o prognóstico é bom.

3. TIFO EXANTEMÁTICO EPIDÉMICO

Definição e importância do problema

O tifo exantemático epidémico, infecção provocada por R. prowazekii, tem sido responsável por um elevadíssimo número de mortes ao longo da história da Humanidade.

Considerada a partir da II Guerra Mundial como uma doença do passado, tem reemergido desde 1995 com pequenos surtos (Rússia 1997, Peru 1998) e com casos esporádicos (África e França).

O ser humano constitui o reservatório, sendo a doença transmitida pelo piolho Pediculus humanus corporis. Afecta todas as idades, sendo que a pobreza e as más condições de higiene favorecem o aparecimento e disseminação da doença.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Após um período de incubação de 10 a 14 dias, a doença tem um início súbito com febre, arrepios, mialgias, cefaleia intensa.

O exantema, maculopapular aparece entre o 4º e 7º dias de doença, nas axilas e posteriormente tronco, com ulterior evolução para a periferia (centrífugo) e para petequial e hemorrágico. Poupa face, palmas das mãos e plantas dos pés.

A escara de inoculação está ausente. As complicações relacionadas com alteração do SNC eram frequentes na era pré-antibiótica (delírio, letargia, coma, convulsões).

A recorrência da doença (designada por doença de Brill-Zinsser) podendo ocorrer anos mais tarde após a infecção primária, tem carácter benigno.

O diagnóstico é confirmado habitualmente por serologia através de IFA (IgM > 1/32 e/ou IgG > 1/64 ou seroconversão 4 semanas depois), ou de Western blot (mais específico e sensível em fase precoce da doença do que a imunofluorescência indirecta). Pode ainda realizar-se PCR com amostra de sangue (rápido e sensível) e exame cultural.

O tratamento de eleição é também a doxiciclina, mas em dose única, 100-200 mg. Cloranfenicol, fluoroquinolonas e macrólidos não são alternativas.

4. ERLIQUIOSES e ANAPLASMOSES

Introdução

Reportando-nos à primeira alínea deste capítulo, cabe referir que todos os membros da família Anaplasmataceae (Ehrlichia, Anaplasma, Cowdria, Wolbachia e Neorickettsia) são bactérias intracelulares obrigatórias que crescem em vacúolos com origem na membrana celular das células eucarióticas do hospedeiro.

À excepção do género Wolbachia, todas as estirpes têm a capacidade de replicação em hospedeiros vertebrados, sobretudo em células hematopoiéticas.

Tipicamente, os microrganismos Ehrlichia spp infectam células da linhagem leucocitária (monócitos e macrófagos), enquanto Anaplasma spp têm como alvo todas as células hematopoiéticas (eritrócitos, neutrófilos e plaquetas). Destacam-se duas espécies mais frequentemente associadas a doença na espécie humana:

  • a Ehrlichia chaffeensis (Erliquiose humana);
  • a Anaplasma phagocytophilum (Anaplasmose humana granulocítica).

Ao contrário do que acontece nas riquetsioses propriamente ditas, a vasculite é rara, não estando a patogénese completamente esclarecida. Os principais achados anatomopatológicos incluem infiltrados linfo-histiocitários perivasculares, hepatite lobular ligeira, infiltrados de fagócitos mononucleares no baço, e granulomas no fígado e medula óssea. Poderá haver compromisso multiorgânico.

4.1. Erliquiose humana

Definição e epidemiologia

A erliquiose humana é uma infecção provocada pelas espécies do género Ehrlichia: E. chaffeensis, associada à Erliquiose Monocítica (EM); a carraça Amblyomma americanum, rara na Europa e frequente nos EUA, é o vector mais frequente da doença,

Nos EUA a doença apresenta uma incidência crescente, tendo sido verificados 3,2 casos da doença por milhão de pessoas anualmente, entre 2008-2012. Em Portugal, há registos serológicos que apontam para a exposição do homem a E. chaffeensis ou a agentes antigenicamente semelhantes.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Após um período de incubação de 5-10 dias surge, em geral, febre, cefaleia e mialgias; numa minoria, poderão surgir também manifestações graves como hepatite, pneumonia/ARDS, meningite, menigoencefalite ou IRA.

Tipicamente, o exantema de localização variável (macular ou maculopapular, mais comum que o petequial), é menos frequente do que nas riquetsioses propriamente ditas, e mais comum em crianças (67%) do que em adultos.

Os exames laboratoriais evidenciam geralmente leucopénia e trombocitopénia (início pelo 3º dia, nadir pelo 6º dia). Pode haver aumento das transaminases (ALT>AST).

O diagnóstico pode ser confirmado:

  • por visualização directa (detecção de mórulas nos leucócitos do sangue periférico – achado típico mas raro);
  • por detecção molecular de ADN;
  • por serologia (IFI ou Western blot) ou;
  • por cultura.

Habitualmente é estabelecido por serologia (seroconversão ou aumento de 4x nos títulos em duas amostras consecutivas colhidas com um intervalo de 2-3 semanas). Há contudo a referir, que numa fase inicial da infecção, o diagnóstico pode ser efectuado por PCR de sangue periférico ou por isolamento cultural.

A doxiciclina é o tratamento recomendado em primeira linha, durante 5-14 dias segundo esquema habitual, incluindo em crianças com menos de 8 anos (risco baixo de pigmentação dentária com cursos curtos). Em alternativa, pode ser usada rifampicina.

Nas crianças com menos de 5 anos, a taxa de mortalidade é superior à dos adultos (4% vs 1%, respectivamente).

4.2. Anaplasmose granulocítica humana

Definição e epidemiologia

A anaplasmose granulocítica humana (AGH) é provocada por A. phagocytophilum, transmitida por carraças do género Ixodes, identificada em Portugal nas espécies I. ricinus e I. ventalloi. Ocasionalmente, pode ocorrer coinfecção com doença de Lyme, uma vez que o vector é o mesmo.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Esta zoonose manifesta-se habitualmente através de um quadro febril ligeiro, geralmente de prognóstico benigno, acompanhado de sintomatologia inespecífica como arrepios, mal-estar geral, cefaleias e mialgias.

A presença de exantema é rara e habitualmente deve-se a coinfecção por Borrelia burgdoferi (eritema migrans). O exame objectivo habitualmente não revela alterações.

Os exames laboratoriais poderão evidenciar trombocitopénia, leucopénia, aumento das transaminases e/ou hiponatrémia ligeira.

O diagnóstico pode ser confirmado através da visualização de aglomerados de bactérias nos vacúolos citoplasmáticos de granulócitos (achado raro nos doentes Europeus) e/ou por PCR e/ou por serologia, identicamente ao que foi descrito para a erliquiose.

A doxiciclina é o tratamento recomendado, em esquema semelhante ao da erliquiose. Em alternativa, pode ser usada rifampicina.

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