Definição e importância do problema

O termo coarctação da aorta (CoAo) deriva do latim coartatio, que significa estreitar; define-se como o estreitamento da aorta torácica, próximo da inserção do canal arterial. Ocorre em cerca de 6-8% dos doentes com cardiopatia congénita, encontrando-se presente em 17% dos recém-nascidos cuja causa de morte seja atribuível a cardiopatia congénita. É mais frequente no sexo masculino (1,7/1) e admite-se etiologia multifactorial com determinantes genéticos, facto que é corroborado pela sua elevada incidência na síndroma de Turner. Têm sido descritos casos com transmissão autossómica dominante.

Anatomia

A coarctação da aorta localiza-se habitualmente (98% dos casos) no istmo aórtico, entre a origem da artéria subclávia esquerda e a inserção do canal arterial; e, muito raramente, antes da origem do tronco arterial braquiocefálico, no arco aórtico, na aorta torácica descendente ou na aorta abdominal.

Anatomicamente, existe um espectro de características que vai desde a coarctação localizada, à hipoplasia tubular do istmo. A coarctação localizada é mais frequente e caracteriza-se pela existência de uma membrana focal e/ou indentação tipo “prateleira”, com o vaso peri-coartação relativamente normal. A hipoplasia do istmo caracteriza-se por um estreitamento uniforme do arco aórtico que se inicia habitualmente antes da origem da artéria subclávia esquerda e acompanha-se de um grau variável de hipoplasia do arco aórtico. (Figura 1)

A coarctação da aorta pode associar-se a outras anomalias cardíacas como válvula aórtica bicúspide (em cerca de 50% dos casos), comunicação interventricular, estenose aórtica e malformações da válvula mitral. A associação com múltiplos obstáculos esquerdos é designada por síndroma de Shone. Por vezes existe associação com anomalias extracardíacas como artéria subclávia direita com origem distal à inserção do canal arterial, e aneurismas do polígono de Willis.

FIGURA 1. Esquema de coarctação da aorta com e sem hipoplasia do arco

Embriologia

Não existe consenso quanto ao modo como surge a coarctação da aorta. A teoria mais invocada é a da existência de tecido muscular liso ductal anómalo na parede da aorta que, ao contrair-se no período pós-natal, origina um estreitamento do seu lume. Esta hipótese é apoiada na frequente confirmação histológica de tecido ductal na zona da junção ducto-aórtica e pela resolução transitória do estreitamento com a infusão de prostaglandina E1, a qual relaxa o tecido muscular do canal arterial. A teoria hemodinâmica atribui este defeito a alterações do fluxo sanguíneo no arco e istmo aórticos no período embrionário, e poderá explicar a associação com outras anomalias intracardíacas que favoreçam redução do fluxo através da aorta e a sua redistribuição para o sistema arterial pulmonar.

Fisiopatologia

Após o nascimento, o encerramento do canal arterial condiciona um estreitamento do lume da aorta. As alterações hemodinâmicas dependem da gravidade da obstrução e da presença de lesões associadas. O aumento da pós-carga condiciona hipertensão arterial a montante e hipoperfusão a jusante. Se a coarctação for grave ou de instalação rápida, desenvolve-se disfunção ventricular sistólica e diastólica aguda com insuficiência cardíaca e choque cardiogénico. Nos casos de obstrução menos significativa ou de instalação progressiva, a sobrecarga de pressão leva à hipertrofia do ventrículo esquerdo e hipertensão arterial na metade superior do corpo. A hipertensão arterial pode persistir mesmo após correcção da coarctação, possivelmente explicada por disfunção de barorreceptores e alterações irreversíveis da parede vascular.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica depende do grau e da localização da obstrução, presença de anomalias associadas, e idade do doente. Nos recém-nascidos e lactentes com coarctação grave, a forma de apresentação é insuficiência cardíaca de baixo débito com má perfusão periférica, palidez, hipersudorese, taquipneia e taquicardia. As crianças mais velhas e os adultos são frequentemente assintomáticos, sendo o diagnóstico suspeitado no exame de rotina (por auscultação de sopro discreto, ou diminuição, ou ausência de pulsos nos membros inferiores) ou no decurso da investigação de hipertensão arterial, com sintomas inespecíficos (cefaleias, epistaxe, claudicação intermitente entre outras complicações da doença hipertensiva).

 

Qualquer que seja a forma de apresentação, os pulsos femorais apresentam amplitude diminuída e existe gradiente tensional entre os membros superiores e inferiores (achados que podem estar ausentes se existir canal arterial de grande calibre com shunt direito-esquerdo persistente).

A auscultação cardíaca pode evidenciar os seguintes achados: – ser normal, ou apresentar um sopro de ejecção mais audível na região interescapular; ou ainda: – um sopro contínuo na parede anterior do tórax ou no dorso devido à presença de circulação colateral; – sopros provocados por lesões associadas, nomeadamente um estalido de abertura secundário a válvula aórtica bicúspide.

EXAMES COMPLEMENTARES

Radiografia do tórax

A radiografia do tórax pode ser normal nas formas ligeiras. Nas coarctações críticas do recém-nascido observa-se aumento do índice cardio-torácico; nos casos de apresentação tardia, são clássicos os achados de “ratamento” ou “erosão” do bordo inferior das costelas, devido à circulação colateral através das artérias intercostais e sinal do “3”, resultante da combinação das dilatações pré e pós-estenótica separadas pela zona coarctada. (Figura 2)

Electrocardiograma

No recém-nascido e no lactente o electrocardiograma apresenta sinais de hipertrofia ventricular direita. Em crianças mais velhas existe hipertrofia ventricular esquerda, muitas vezes com alterações da repolarização ventricular por sobrecarga miocárdica.

FIGURA 1. Esquema de coarctação da aorta com e sem hipoplasia do arco

Ecocardiografia

A ecocardiografia em modo bidimensional e Döppler é a técnica ideal para o diagnóstico da anatomia e da fisiologia. Além de definir a localização e o tipo da coarctação, permite avaliar a sua gravidade e diagnosticar lesões associadas. A presença de fluxo diastólico anterógrado no istmo aórtico é um sinal específico de coarctação da aorta, mesmo perante um gradiente sistólico baixo. A normal permeabilidade do canal arterial no período fetal torna difícil, mas não impossível, a suspeita de coarctação da aorta na ecocardiografia fetal: em tal circunstância poderá suspeitar-se a doença no caso de dilatação das cavidades direitas. (Figura 3)

Ressonância magnética

Este exame imagiológico permitindo um estudo morfológico detalhado com possibilidade de reconstrução tridimensional, está indicado nos casos com “má janela” ecocardiográfica (nomeadamente em crianças crescidas e adultos), e no seguimento de doentes submetidos a cirurgia ou a dilatação por cateterismo para detecção de eventuais complicações (distorções da aorta, dissecção ou aneurismas). Sob o ponto de vista fisiológico, esta modalidade fornece informações importantes e confiáveis, tais como o cálculo do gradiente trans-coarctação e a quantificação do fluxo colateral. Como limitações da técnica citam-se a necessidade de anestesia ou sedação nos doentes com idade habitualmente inferior a 8 anos.

FIGURA 3. Imagens de ecocardiografia mostrando o arco aórtico, coarctação muito acentuada (seta), e a turbulência do fluxo por Döppler (TBC – tronco braquicefálico; SCE – subclávia esquerda; COAO – coarctação da aorta)

Tomografia axial computadorizada

Esta técnica não invasiva fornece a melhor resolução espacial com reconstrução tridimensional. Raramente requer anestesia, excepto nas crianças mais pequenas. A principal limitação relaciona-se com os efeitos da radiação ionizante.

Cateterismo cardíaco

O cateterismo cardíaco tem apenas indicação no contexto da terapêutica percutânea da coarctação da aorta.

Tratamento

Na coarctação grave do recém-nascido, a utilização da prostaglandina E1 permite estabilizar o doente até à intervenção cirúrgica, que é urgente; assim, o transporte medicalizado para um centro cirúrgico deve ser imediato.

As lesões associadas significativas (por exemplo, CIV) são preferencialmente abordadas no mesmo tempo cirúrgico. Actualmente, somente em casos excepcionais de lesões associadas particularmente complexas se contempla a possibilidade de uma abordagem a dois tempos (primeiramente paliativa, com reparação da coarctação e banding da artéria pulmonar, seguindo-se de-banding e reparação das lesões associadas).

Nas situações de coarctação da aorta com diagnóstico em crianças e adolescentes, a existência de um gradiente tensional não invasivo superior a 20 mmHg constitui critério para ditar a intervenção.

Existem várias técnicas para a reparação da coarctação da aorta. Não existe consenso quanto à melhor abordagem terapêutica, não cabendo uma discussão detalhada do tema no âmbito desta obra. A selecção da referida abordagem depende essencialmente da idade do doente, da anatomia da obstrução, da experiência do centro, e das lesões associadas.

  1. Ressecção com anastomose topo-a-topo: foi a primeira técnica descrita em 1945. A incidência mais elevada de recoarctação em algumas séries levou ao desenvolvimento nas últimas duas décadas de várias técnicas de anastomose alargada ou termino-lateral.
  2. Aortoplastia com interposição de remendo: para fazer face à incidência elevada de recoarctação dos primeiros tempos, foi desenvolvida, em 1957, a técnica de interposição de um remendo losângico (pericárdio, Dacron® ou Goretex®) na anastomose da aorta. Contudo, a impossibilidade de crescimento do remendo e a incidência de aneurismas relegou esta técnica para os casos de hipoplasia tubular longa e em crianças mais velhas ou adolescentes com anatomia local complexa, a fim de evitar zonas de maior tensão na linha de sutura.
  3. Aortoplastia com retalho da artéria subclávia: nesta técnica, introduzida em 1966, a artéria subclávia esquerda é laqueada distalmente à origem da artéria vertebral e utilizada como remendo para encerramento da incisão longitudinal realizada na zona da coarctação. Tem a vantagem de utilizar tecido autólogo com potencial de crescimento e pode ser utilizada em situações de coarctação difusa e hipoplasia do istmo. É, nalgumas séries, associada a menor incidência de recoarctação. Tem como maior inconveniente o compromisso da circulação do membro superior esquerdo que, contudo, é relativamente bem tolerado se a cirurgia for efectuada no período neonatal; por este motivo, a referida técnica deve ser evitada nos doentes fora deste grupo etário.
  4. Angioplastia com balão e colocação de stent: nas últimas duas décadas assistiu-se a um progresso assinalável das técnicas percutâneas. Actualmente, estas utilizam-se consensualmente nas situações de recoarctação da aorta. A maioria dos centros advoga que devem também ser a primeira escolha nas crianças mais velhas e adolescentes. A angioplastia de balão simples parece estar associada a elevada taxa de aneurismas pós-dilatação e risco ligeiramente maior de ruptura da parede aórtica. A implantação de stents está associada a uma muito baixa taxa de recoarctação ou a risco de ruptura; contudo, de tal procedimento resulta um segmento que não cresce, pelo que a sua utilização está limitada às crianças mais velhas e adolescentes.
  5. Conduto extra-anatómico: em casos raros de hipoplasia extrema ou recoarctação refractária às modalidades anteriores, a única opção terapêutica é a implantação de um conduto extra-anatómico que faça o bypass da zona estenosada.

Prognóstico

A coarctação da aorta é uma patologia com excelente prognóstico a curto prazo, e mortalidade actual inferior a 2%, independente da técnica terapêutica. Considerando as várias técnicas, a incidência de morbilidade é sobreponível (entre 0 e 25%).

Apesar de uma reparação aparentemente adequada, verifica-se uma incidência importante de mortalidade tardia por complicações cardiovasculares, como hipertensão arterial e doença coronária; tal facto condiciona uma esperança média de vida significativamente inferior à da população em geral.

Em suma, esta doença não deve continuar a ser olhada como uma “simples” obstrução na aorta descendente, mas antes como uma síndroma cardiovascular complexa que engloba disfunção vascular (de etiopatogénese não totalmente esclarecida) requerendo seguimento atento após o tratamento.

GLOSSÁRIO

Banding > Aplicação de fita ou banda em torno de vaso (neste caso, da artéria pulmonar) provocando diminuição do calibre (sinónimo do termo francês “cerclage”). Destina-se a diminuir a quantidade de sangue que chega às artérias pulmonares e utiliza-se, em geral, em situações de grande shunt esquerdo-direito, quando não é possível fazer a correcção total do defeito por razões anatómicas.

Stent > Endoprótese vascular tubular de calibre muito pequeno que se introduz por cateterismo periférico na artéria (neste caso, aorta) após angioplastia, para impedir recidiva de CoAo.

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