Definição e importância do problema

O afogamento é o processo que condiciona disfunção respiratória após submersão ou imersão em líquido.

Anteriormente era também utilizado o termo quase afogamento (hoje em desuso) para caracterizar situações de sobrevivência por mais de 24 horas após a submersão.

Este tipo de problema comporta elevado número de casos fatais e de sequelas graves nos sobreviventes: a lesão neurológica devida a hipóxia-isquémia constitui a causa principal de mortalidade e de morbilidade a longo prazo.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com os dados da OMS, estima-se que cerca de 372.000 pessoas morrem anualmente em todo o mundo por afogamento (cerca de 42 mortes a cada hora), o que corresponde a uma taxa de mortalidade aproximada de 5,2/100.000. Na Europa a referida taxa ronda 2-4/100.000 e em Portugal a incidência estimada é 1/100.000. Salienta-se, a propósito, que as medidas de reanimação imediatas por pessoal treinado antes da admissão hospitalar reduzem a mortalidade relacionada sobretudo com as consequências cardiorrespiratórias.

Segundo a Associação para a Promoção da Segurança infantil – APSI ocorreram 207 afogamentos com desfecho fatal em crianças e jovens entre 2002 e 2013, tendo havido uma redução de casos no triénio de 2011 a 2013 (com cerca de 9 mortes/ano). Ocorrem predominantemente em rapazes dos 0 a 4 anos e dos 10 a 14 anos, nos meses de verão. É importante notar que por cada morte existirão cerca de dois a três internamentos na sequência de um afogamento. De referir, contudo, que muitos casos fatais não são notificados.

Fisiopatologia

Ocorrendo submersão, todos os órgãos e tecidos correm o risco de hipóxia-isquémia. Em minutos, a hipóxia-isquémia pode levar a paragem cardíaca a que se poderá associar laringospasmo e aspiração de água para a via respiratória, o que contribui para agravar a hipóxia.

Seja por aspiração ou por laringospasmo, surge a hipoxémia com consequente morte celular. A mortalidade e morbilidade estão, no essencial, dependentes da duração da hipoxémia. Nos sobreviventes do afogamento verifica-se repercussão multiorgânica, sobretudo cardiopulmonar e neurológica.

A hipovolémia é frequente por perda de líquidos, relacionada com as alterações de permeabilidade vascular por hipóxia. A hiponatrémia, quando se desenvolve, está mais relacionada com os líquidos deglutidos do que com os líquidos aspirados; e, eventualmente com a síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIHAD) no contexto de disfunção pulmonar e ou do SNC.

A nível pulmonar, quer por alteração do surfactante, quer por diluição do mesmo, o resultado é uma acentuada diminuição da capacidade residual funcional, alteração na permeabilidade da membrana alvéolo-capilar e consequente hipoxémia, o que se pode verificar a partir de 1 a 3 ml/kg de líquido aspirado.

De referir o papel importante dos mediadores inflamatórios, da hipersecreção nas vias respiratórias e da vasoconstrição no território da artéria pulmonar originando hipertensão pulmonar.

A hipoxémia, a acidose metabólica e a hiperpermeabilidade vascular condicionam o aparecimento de hipovolémia e disfunção cardíaca, e a breve trecho, hipotensão importante, muitas vezes irreversível.

As questões relativas à submersão em água muito fria (<5ºC), água fria (<20ºC) e água quente (>20ºC), água doce e água salgada são de nula relevância clínica.

Com efeito, na literatura tradicional era afirmado: 1) a água salgada leva, por osmose, à passagem de água do espaço vascular para os pulmões, com preenchimento alveolar e hipovolémia; 2) água doce, pelo contrário, leva a absorção de água para o espaço vascular com consequentes hipervolémia e hemólise. Na prática tal não se verifica, possivelmente porque na maioria dos sobreviventes o tempo decorrido é insuficiente para que se verique aspiração (suficiente) de água para provocar as referidas alterações.

As alterações osmóticas surgem acima de 22 ml/kg aspirados, sendo que na maioria dos afogamentos não são aspirados mais de 4 ml/kg.

Avaliação

A história clínica inclui designadamente a eventualidade da existência de água perto da área do acidente, pais distraídos ou pouco vigilantes ainda que momentaneamente, rapidez na mobilidade da criança, e silêncio.

Haverá que inquirir sobre antecedentes de epilepsia, doenças cardíacas, traumatismos cervicais e ingestão de álcool ou drogas.

Os sintomas e sinais habitualmente associados são: tosse, dispneia, sibilos, hipotermia, vómitos, diarreia, arritmia cardíaca, alteração da consciência, paragem cardiorrespiratória, morte. Deverá avaliar-se a estabilidade cervical pela probabilidade de acidentes com fractura das vértebras cervicais. Haverá igualmente que detectar eventuais sinais de abuso e negligência.

Em função do contexto clínico, poderá haver necessidade de proceder a:

  1. Monitorização contínua cardiorrespiratória, da pressão arterial e da saturação em O2 da Hb/SpO2 através da oximetria de pulso), ECG.
  2. Exames complementares: hemograma, gasometria, ionograma, enzimas hepáticas, glicemia, doseamento de drogas e álcool, radiografia do tórax, do crânio e da coluna cervical, etc..

Procedimento

A actuação deve ser doseada de acordo com os dados da história clínica e dos exames complementares.

  • A medida prioritária é a administração de oxigénio suplementar a 100%, sempre e em primeiro lugar.

O uso de insuflador manual pode implicar a utilização de pressões bastante superiores às habituais devido à baixa distensibilidade pulmonar, resultante do edema pulmonar, com compromisso do surfactante.

  • Não esquecer a hipótese de lesão cervical e a colocação de colar cervical.

Pacientes com breves momentos de submersão e sem sintomatologia podem regressar a casa após 4 a 6 horas de observação. Sendo notórios sinais de disfunção respiratória, hipoxémia, alterações do estado de consciência ou suspeita de abuso/negligência, os pacientes devem ser transferidos para unidade de cuidados intensivos, onde deverá proceder-se a:

  • Entubação nasogástrica;
  • Expansão vascular (soro fisiológico: 20 ml/kg em 30 minutos) que, associada à oxigenação, resolve quase sempre a acidose metabólica;
  • Entubação e ventilação mecânica se se verificar dificuldade respiratória, alteração do sensório, paO2 <60 torr ou pH <7,20. É frequente a necessidade de PEEP (pressão positiva contínua no fim da expiração) elevada. Existem casos descritos de utilização de ECMO (oxigenação por membrana extracorporal) na abordagem de doentes afogados, sendo, no entanto, necessários mais estudos para a sua recomendação na abordagem deste tipo de doentes;
  • Algaliação;
  • Cateterização venosa central;
  • Broncoscopia.

Notas importantes:

  • Os doentes afogados em água muito fria, < a 5ºC, devem ser observados com especial cuidado; devem ser aquecidos até se atingirem temperaturas normais, ao mesmo tempo mantendo as manobras de reanimação;
  • A monitorização da pressão intracraniana não parece ser útil nem necessária;
  • A utilização de antibióticos de forma profiláctica não está recomendada na abordagem inicial dos doentes.

Complicações

As complicações imediatas são as relacionadas com a hipóxia e acidose com repercussão sobre o sistema cardiovascular, tendo em atenção a possibilidade de disritmias e, em particular, fibrilhação ventricular e assistolia. Se a lesão cardíaca for muito grave é possível surgir choque cardiogénico irreversível.

As lesões do SNC dependem igualmente da intensidade e duração da hipóxia. A sobrevivência em estado vegetativo é uma complicação particularmente grave. De referir que a hipotermia associada ao afogamento poderá ser um factor protector, pela redução do consumo de oxigénio cerebral, embora este efeito seja contrariado pela mortalidade associada ao tempo de exposição da vítima à água.

Nos sobreviventes do afogamento poderá desenvolver-se pneumonia e, no caso da submersão em piscina, pneumonite.

Prognóstico

O prognóstico está directamente relacionado com a duração e magnitude da hipóxia, e com a qualidade dos cuidados pré-hospitalares. Os doentes que necessitam de ressuscitação cardiorrespiratória no hospital têm uma taxa elevadíssima de mortalidade e morbilidade (35-60% morrem no serviço de urgência). Dos sobreviventes, poderão registar-se sequelas neurológicas em 60 a 100% dos casos.

Nos doentes admitidos em estado vigil no serviço de urgência o prognóstico depende de eventuais complicações pulmonares.

As crianças em coma, continuam a ter um prognóstico reservado.

Prevenção

Quase sempre acidentais, as situações de afogamento podem ser prevenidas com medidas simples e de fácil aplicação prática.

  • Bom senso e medidas simples: colocação de portas de segurança, muros e redes em torno de poços, tanques, piscinas, etc..
  • Os auxiliares de flutuação, como por exemplo, braçadeiras e coletes salva-vidas não substituem a necessidade de vigilância.
  • Adulto de vigia devendo saber nadar e actuar em caso de acidente.
  • Banheiras, baldes e alguidares devem ser esvaziados após utilização.
  • Nunca nadar só ou sem vigilância

NB – Crianças que sabem nadar constituem as de maior risco pela sensação de segurança que transmitem.

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http://www.apsi.org.pt/index.html, (acesso em fevereiro, 2019)