Definição e aspectos epidemiológicos

Intoxicação é definida como a acção exercida por substância tóxica (veneno) no organismo e o conjunto de pertubações daí resultantes.

As intoxicações agudas (IA) na criança representam a 4ª causa de mortalidade infantil, sendo responsáveis por 2-3% dos episódios de urgências pediátricas hospitalares e 1% das admissões em cuidados intensivos. Dois terços ocorrem antes dos 20 anos, sendo mais frequentes em crianças abaixo dos 5 anos. Em 95% dos casos ocorrem de forma acidental, sendo a via digestiva a mais frequente (85%), seguida das vias cutânea e inalatória. As intoxicações são, na maioria dos casos, provocadas por produtos de uso doméstico (50%), farmacológicos (23%), agrotóxicos e químicos (10%). Nos adolescentes, são prevalentes as intoxicações intencionais (fármacos, álcool e drogas ilícitas).

Em Portugal, o Centro de Informação Antivenenos (CIAV) – Telef. + 351- 808 250 143 presta informações sobre o diagnóstico, toxicidade, terapêutica e prognóstico da exposição a tóxicos.

Fisiopatologia

O risco e gravidade das IA na criança são superiores comparativamente aos adultos, por diversos factores: maior susceptibilidade à hipóxia e à falência respiratória (devido a taxas metabólicas mais elevadas e a menores reservas compensatórias), à desidratação por perdas insensíveis mais significativas, e à hipoglicémia devido a escassez de reservas de glicogénio. O diagnóstico requer um alto índice de suspeição, sendo o tratamento adequado e atempado o principal factor determinante do prognóstico.

Abordagem geral

A abordagem da criança vítima de IA deve ser sistemática de acordo com o acrónimo ABCD3EF (ABC → suporte de vida; D → D1: Disability; D2: tratamento empírico; D3: descontaminação; E → eliminação e F → Find – antídoto) e incluir:

  1. Reanimação e estabilização inicial – ABC.
  2. Identificação do tóxico.
  3. Terapêutica inespecífica – Medidas de descontaminação e eliminação – D e E.
  4. Terapêutica específica (antídoto, se disponível) – F.
  5. Terapêutica de suporte.

1. Reanimação e estabilização inicial

Na suspeita de intoxicação devem ser iniciadas medidas de suporte vital (Suporte Avançado de Vida) de acordo com a abordagem ABC. A estabilização inicial deve ainda incluir: avaliação neurológica sucinta, tratamento da hipoglicemia (se presente), eventual uso de drogas empíricas como naloxona e flumazenil, manutenção da temperatura corporal e medidas de descontaminação (ex: remover a roupa se contaminada).

2. Identificação do tóxico

2.1 Anamnese

Após estabilização inicial, deverá ser realizada uma história clínica breve e orientada para confirmar a intoxicação e identificar o tóxico.

  1. Tóxico conhecido: procurar obter resposta às seguintes questões
    • QUEM – idade, sexo, peso;
    • O QUÊ – tóxico, nome e dose → Tentar obter embalagem do produto;
    • COMO – via de administração, em jejum, com alimentos, bebidas alcoólicas ou substâncias ilícitas;
    • QUANDO – tempo decorrido desde a exposição;
    • ONDE – local da exposição e intervenções;
    • PORQUÊ – acidental/intencional, única ou múltiplas vítimas.
  2. Anamnese não esclarecedora: suspeitar perante quadro de início súbito, com alterações do estado de consciência ou comportamento, convulsões, acidose metabólica, arritmias ou sinais de falência multiorgânica de causa desconhecida. Inquirir tóxicos a que a criança possa ter tido acesso – uso da mnemónica AMPLE (A – alergias; M – medicação habitual; P – antecedentes pessoais; L – última refeição; E – eventos periexposição)
2.2 Exame objectivo

O exame objectivo deve incluir avaliação do estado de consciência, avaliação pupilar/exame neurológico sumário, sinais vitais e avaliação da pele e odores com objectivo de identificar possíveis “síndromas de intoxicação”. Devem ser igualmente identificados sinais de maus tratos na criança pequena e de consumos de drogas no adolescente. O Quadro 1 discrimina um conjunto de sintomas e sinais relacionáveis com a exposição a determinadas substâncias (“síndromas de intoxicação”).

QUADRO 1 – Síndroma de intoxicação – diagnóstico diferencial

Abreviaturas: SNC: sistema nervoso central; FR: frequência respiratória; TA: tensão arterial; FC: frequência cardíaca; GI: gastrintestinal.

Síndromas de intoxicação (tipo de tóxico)

Substâncias tóxicas possíveisAlterações SNCPupilasSecreções oraisFRSecrecões respiratóriasTA/FCMotilidade GIDiureseMuscular
/Regulação temperatura
Sudorese
Colinérgico

Organofosfatos

Insecticidas

Piridostigmina

Agitação

Convulsões

Miose
(bradicardia)

Fasciculações

/paralisias

Simpaticomimético

Descongestionante

Xarope tosse

Anfetaminas

Cocaína/ectasy

Teofilina

Agitação

Ansiedade

Midríase+/-Hipertermia
Anticolinérgico

Antidepressivos tricíclicos

Antiparkinsónicos

Anti-histamínicos

Atropina

Antiespasmódicos

Fenotiazinas

Amanita sp

Colírio ciclopentolato

Delírio

Alteração do estado consciência

Midríase+/-Retenção

Hipertermia

/rubor

Sedativos

/hipnóticos

Benzodiazepinas

Barbitúricos

Depressão estado mental+/-+/-Hipotermia

Abstinência sedativos

/hipnóticos

 Alteração do estado de consciênciaMidríase

Hipertermia

/tremores

OpióidesMorfinaDepressão estado mentalMiose+/-Hipotermia
Abstinência opioides Midríase

Lacrimejo/

Secreção oral ↑

Normotérmica
2.3 Exames complementares

A avaliação laboratorial compreenderá sempre um painel bioquímico de base. Os restantes exames deverão basear-se no padrão sintomatológico para confirmar ou excluir a situação clínica e guiar o tratamento (Quadro 2). A radiografia do tórax está indicada nos casos de intoxicações por via inalatória e/ou aspiração, alteração do estado de consciência ou dificuldade respiratória. Deverá ser realizado um electrocardiograma (ECG) se alterações no traçado ECG do monitor (relacionáveis com cardiotóxicos, com intoxicações graves por tóxicos que provocam hipóxia-isquémia ou com arritmogénicos (por ex. anti-histamínicos, bloqueadores dos canais de cálcio, CO, digoxina).

QUADRO 2 – Exames toxicológicos

Nota: exames de urina: uma prova toxicológica negativa não permite excluir a possibilidade da presença de uma substância tóxica (elevada proporção de falsos negativos e falsos positivos); a pesquisa é geralmente inespecífica e não fornece informação confiável quanto ao tempo de exposição à droga.

Exames no sangue

Acetilcolinesterases

Anti-depressivos tricíclicos

Barbitúricos*, BZD*

Carbamazepina

Carboxihemoglobina

Digoxina; Fenitoína

Fenobarbital

Ferro

Etanol

Metemoglobina

Metanol

Monóxido de carbono

Paracetamol

Salicilatos; Teofilina

Valproato de sódio

Exames na urina (qualitativo)

Anfetaminas

Barbitúricos

BZD

Canabinóides

Cocaína

Metadona

Opiáceos

3. Terapêutica inespecífica: descontaminação e eliminação

3.1 Medidas de descontaminação: evitar ou diminuir absorção do tóxico
  • Contacto por via cutânea: remoção da roupa contaminada; lavagem corporal com água e sabão;
  • Contacto por via ocular: irrigação ocular com soro fisiológico ou água, 10-15 min;
  • Contacto por via inalatória: administrar 02;
  • Contacto por via digestiva:
    1. Lavagem gástrica
      Não está indicada por rotina; poderá ser considerada:
      1. Na primeira hora após intoxicações graves por substâncias com possibilidade de causar risco de vida (primeira 2 horas se tóxicos de libertação prolongada/reabsorção retardada).
      2. Intoxicação por substâncias não adsorvidas pelo carvão activado.
      3. Está contraindicada nas ingestões de corrosivos e substâncias voláteis (hidrocarbonetos). De referir a necessidade de assegurar a protecção das vias aéreas.
    2. Carvão activado (1 g/kg carvão activado – máximo 50 g) 
      Não indicado por rotina; considerar em doentes com ingestão há menos de 1 hora de substâncias com possibilidade de associação a risco de vida (benefício máximo na 1ª hora após ingestão; benefício potencial após as 1as horas se fármacos com circulação entero-hepática ou de libertação prolongada).
      Está contraindicado nas intoxicações por substâncias não adsorvidas pelo carvão activado (lítio, ferro, metais pesados, álcoois, cianeto, cáusticos e hidrocarbonetos) e nas crianças com risco de perfuração do trato gastrintestinal (TGI) ou hemorragia (obstrução intestinal, ileum). De referir a necessidade de assegurar a protecção das vias aéreas.

A indução de vómito com xarope de ipecacuanha está contraindicada.

3.2 Medidas de eliminação
  1. Alcalinização da urina com bicarbonato de sódio 8,4%: 1-2 ml/kg/dia EV para manter pH urinário > 7,5 – para salicilatos, barbitúricos, isoniazida, ácido diclorofenoacético.
  2. Irrigação intestinal completa: administração entérica de uma solução electrolítica osmoticamente equilibrada de polietilenoglicol – 30 ml/Kg/hora – continuando tratamento até emissão de fezes líquidas claras). Indicado para substâncias que não são adsorvidas pelo carvão activado, tenham trânsito intestinal lento e apresentem risco de vida.
  3. Remoção do tóxico (protocolos de unidades de cuidados intensivos):
    • Hemodiálise: intoxicações por moléculas com baixo peso molecular (salicilatos, etanol, metanol, propranolol, etilenoglicol, vancomicina e lítio);
    • Hemoperfusão: remoção de tóxicos com solubilidade baixa na água, grande afinidade para o adsorvente, rapidez de equilíbrio dos tecidos periféricos para o sangue e baixa afinidade para as proteínas plasmáticas (intoxicações por carbamazepina, barbitúricos, teofilina e paraquato);
    • Hemodiafiltração: remoção de moléculas com elevado peso molecular (intoxicações por teofilina, aminoglicosídeos e lítio).

Nota: existem substâncias que não beneficiam de técnicas de depuração extrarrenal (benzodiazepinas, antidepressivos tricíclicos e fenotiazinas).

4. Terapêutica específica (antídotos)

Existem atitudes e antídotos específicos para determinadas intoxicações, os quais devem ser administrados o mais precocemente possível, podendo constituir prova terapêutica.

No Quadro 3 estão resumidas os antídotos indicados em intoxicações específicas.

QUADRO 3 – Tóxico e antídotos

Tóxico

Antídoto

Benzodiazepinas

β-bloqueantes

Monóxido de Carbono

Tetracloreto de Carbono

Digoxina

Ferro

Isoniazida

Lítio

Metemoglobinémia

Metanol

Etilenoglicol

Metoclopramida

Opióides

Organofosforados

Paracetamol

Tiroxina

Anticolinérgicos

Sulfonilureias

Antidepressivos tricíclicos

Flumazenil

Adrenalina (infusão), glucagon

Oxigénio/Câmara hiperbárica

N-acetilcisteína

Anticorpos antidigoxina

Desferroxamina

Piridoxina, bicarbonato de sódio

Substituição salina, dopamina

Azul de metileno

Etanol

Fomepizol

Prociclidina

Naloxona

Atropina, pralidoxina, toxogonina

N-acetilcisteína

Propranolol

Fisiostigmina

Octreótido

Bicarbonato de sódio

Considerações finais e prevenção

A avaliação de uma criança que se presume ter sido exposta a uma substância tóxica deve incluir uma história clínica elaborada com rigor (anamnese com especial realce quanto às circunstâncias da exposição, exame físico), e conhecimento dos diversos tipos de produtos, assim como das práticas recreativas mais prevalentes. Os Centros de Informação Antivenenos podem ser consultados para auxiliar no diagnóstico de intoxicações, aconselhamento para estabilização, e recomendações de tratamento com base na mais recente pesquisa.

A prevenção das IA continua a ser um desafio e uma necessidade para evitar que a população mais vulnerável esteja expostas a drogas e toxinas potencialmente letais.

Apesar de o diagnóstico precoce e as medidas de suporte conduzirem a uma recuperação na maioria das situações, torna-se obrigatório falar na prevenção e na abordagem psicossocial das intoxicações e acidentes em geral; todas as noções gerais explanadas no capítulo sobre traumatismos, ferimentos e lesões acidentais têm perfeito cabimento no âmbito das intoxicações.

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