Definições e importância do problema

O termo gastrite significa inflamação microscópica da mucosa gástrica, não devendo ser utilizado como um diagnóstico clínico, radiológico ou endoscópico. Úlcera péptica é o termo utilizado para designar lesões profundas da mucosa que ultrapassam a muscularis mucosa da parede gástrica ou duodenal, enquanto as erosões pépticas não a atingem. Úlcera e erosões pépticas englobam a chamada doença péptica ulcerosa. A gastrite do antro está associada a um aumento da estimulação da produção de ácido e predispõe ao aparecimento da úlcera duodenal, enquanto a gastrite predominantemente do corpo ou a pan-gastrite estão associadas a uma produção reduzida de ácido e predispõem à úlcera gástrica e ao adenocarcinoma gástrico.

A gastrite e a doença péptica ulcerosa (DPU) podem ser subdivididas em primárias e secundárias. A maioria das gastrites e das DPUs primárias é provocada pelo Helicobacter pylori (H. pylori). As secundárias estão associadas a um grande estresse fisiológico (como no grande traumatizado e na sépsis), ao uso de medicamentos como os anti-inflamatórios não esteróides e os anti-epilépticos, ou a uma patologia hipersecretória como na síndroma de Zollinger-Ellison. Neste capítulo só se faz referência à gastrite e DPU provocadas por H. pylori.*

Dois argumentos implicam o H. pylori como causa de gastrite crónica na criança: (1) o facto de todas as crianças colonizadas por H. pylori terem gastrite crónica; e (2) o achado de que a erradicação da bactéria da mucosa gástrica conduz à cicatrização da gastrite e da DPU, tanto na criança como no adulto.

Com efeito, o H. pylori encontra-se na mucosa do antro gástrico em quase 90% das crianças com úlcera duodenal e a sua erradicação leva à cicatrização duradoira da doença ulcerosa duodenal tanto na criança como no adulto.

*A propósito da doença péptica ulcerosa gástrica consultar Glossário Geral- Síndroma de Zollinger – Ellison.

Apectos epidemiológicos

A infecção por H. pylori, bacilo Gram-negativo em forma de S, produzindo urease, oxidase e catalase, é considerada, no Homem, a infecção crónica mais prevalente no mundo. Nos países em desenvolvimento, 70 a 90% da população está infectada por H. pylori. Nos países desenvolvidos a prevalência é menor, variando actualmente entre 10 e 60%. De um modo geral, a frequência da infecção é mais elevada nos grupos económicos mais desfavorecidos. Em Portugal é de cerca de 70 a 90% nos adultos, e de 50% nas crianças.

Os dados da literatura sugerem que a taxa de aquisição da infecção é muito baixa na idade adulta e que a maioria das infecções é adquirida na infância (geralmente abaixo dos 5 anos), podendo persistir durante toda a vida se não for tratada. A co-infecção entre os pais (especialmente na mãe), irmãos e outros co-habitantes são factores de risco bem estabelecidos para a aquisição de H. pylori na infância, sendo o maior factor de risco as más condições sócio-económicas. Outros indicadores de pobreza e de precárias condições de higiene, como a partilha de camas e um grande número de irmãos, constituem factores de risco adicionais.

Um estudo da prevalência e da incidência do H. pylori numa população pediátrica saudável na área de Lisboa, com idades compreendidas entre os 0 e 15 anos, revelou que a prevalência global era de 31,6% e que aumentava com a idade, sendo de 51,5% no grupo dos 11 aos 15 anos de idade. A idade média de aquisição da infecção foi de 6,3 anos sendo que 47,5% das crianças a adquiriu antes dos 5 anos de idade.

Etiopatogénese

O estômago do homem e o de alguns primatas parece ser o único reservatório do H. pylori, não sendo conhecido qualquer reservatório ambiental. A fragilidade do H. pylori em condições laboratoriais sugere que a viabilidade da bactéria fora do hospedeiro é limitada, embora haja evidência de que o microrganismo possa sobreviver no ambiente na sua forma cocóide. As unhas com sujidade e a boca são focos importantes de H. pyloriA transmissão faz-se essencialmente por três vias: fecal-oral, oral-oral, gastro-oral. Como tal, a transmissão interfamiliar e institucional adquire um peso muito importante.

A bactéria já foi detectada nas fezes de crianças malnutridas com trânsito intestinal muito rápido e já foi isolada a partir da placa dentária. A forma gastro-oral parece ser uma via de transmissão frequente entre crianças, ocorrendo particularmente em infantários e escolas, sobretudo através da emissão do conteúdo gástrico (vómito).

transmissão por via endoscópica também foi documentada quando não são cumpridas as regras de desinfecção e esterilização dos endoscópios. A água não tratada e a mosca doméstica poderão ser veículos de transmissão. A taxa de reinfecção em crianças tratadas, com idade superior a 5 anos, é de apenas 2%. Alguns estudos sero-epidemiológicos têm sugerido um aumento do risco de cancro gástrico em portadores de H. pylori, em 2 a 6 vezes. O risco de cancro gástrico é mais elevado em doentes com gastrite predominante no corpo gástrico, atrofia gástrica e metaplasia intestinal. Nos doentes com úlcera duodenal (que têm gastrite predominantemente no antro) não se desenvolve cancro gástrico. O H. pylori tem sido implicado como factor etiológico do linfoma MALT. A erradicação do H. pylori conduz à resolução completa de 75% dos linfomas MALT gástricos.

Múltiplos estudos fazem referência à eventual acção dos mediadores inflamatórios circulantes consequentes à infecção pelo H. pylori com responsabilidade variável nas manifestações de algumas doenças extradigestivas (doença isquémica coronária, púrpura de Schönlein Henoch, anemia ferropénica, etc.).

Manifestações clínicas da infecção por Helicobacter pylori

A maioria das crianças infectadas é assintomática. Não existe nenhum quadro clínico específico que indique a necessidade de rastreio do H. pylori. Actualmente não está provada uma ligação entre gastrite por H. pylori e dor abdominal na ausência de úlcera péptica. Considerando que a dor abdominal funcional ocorre em 15% das crianças em idade escolar, não devem estas crianças ser submetidas a testes não invasivos ou a endoscopia para detectar uma infecção por H. pyloriNão há qualquer ligação entre a dor abdominal funcional e a infecção por H. pylori.

Diagnóstico

Para o diagnóstico podem ser utilizados testes invasivos (que requerem endoscopia com biópsias) e testes não invasivos.

  1. Testes invasivos: exame histológico, exame cultural (antibiograma), teste rápido da urease e testes moleculares.
  2. Testes não invasivos: anticorpos no soro e sangue total, anticorpo na saliva, anticorpo na urina, antigénio nas fezes, teste respiratório com ureia marcada com C13.

A biópsia permite não só pôr em evidência as consequências da infecção por H. pylori (classificando a gastrite ao microscópio óptico), como também visualizar a própria bactéria, cultivá-la (o que parece ser fundamental, pois permite obter um teste de sensibilidade aos antibióticos), fazer o teste rápido da urease e testes moleculares.

Os testes moleculares são cada vez mais utilizados, pois podem detectar o H. pylori com maior rapidez, precisão e sensibilidade, e têm ainda a possibilidade de avaliarem a existência de resistência a antibióticos (claritromicina e fluoroquinolonas), de identificar determinantes de virulência e de fazer a quantificação bacteriana, não só na biópsia como também em amostras biológicas como por exemplo as fezes. Seja qual for o tipo de teste utilizado a amplificação de ácidos nucleicos por PCR está quase sempre presente, seja por PCR convencional seja por PCR em tempo real.

Nos casos em que não está disponível o exame cultural e o teste de sensibilidade aos antibióticos, ou no caso de falência terapêutica, é possível a detecção da resistência à claritromicina nas biópsias fixadas em formalina pelo método PNA-FISH (peptide nucleic acidfluorescence in situ hybridization).

Estão disponíveis muitos testes para o sangue total e soro, mas a variabilidade de precisão entre os kits faz com que a sua sensibilidade e especificidade oscile, nos diversos estudos, entre os 60 e os 93%. Por outro lado, a serologia (IgG) não distingue entre infecção actual e infecção prévia, uma vez que o título de anticorpos desce lentamente após a cura. Portanto, a serologia não é adequada para monitorizar a resposta ao tratamento.

Os testes na saliva e urina ainda são menos sensíveis e não podem ser recomendados.

Existem vários testes para a detecção de antigénios nas fezes utilizando anticorpos monoclonais e policlonais e que estão disponíveis como testes ELISA ou imunocromatográficos. O teste Premier Platinum HpSA (Meridian Bioscience) que utiliza anticorpos monoclonais e o método ELISA é o único que tem mais de 90% de fiabilidade. A pesquisa de antigénios nas fezes é um teste muito promissor para estudos de investigação epidemiológica, para o diagnóstico e para a avaliação do sucesso do tratamento.

teste respiratório tem elevada sensibilidade e especificidade (>95%); tanto em adultos como em crianças acima dos 5 anos de idade, pode ser influenciado pelo uso de antibióticos e de agentes supressores da acidez. Os resultados em crianças com idades inferiores a 5 anos podem ser influenciados, tanto positiva como negativamente, pela presença de outros organismos produtores de urease na cavidade oral ou por técnica incorrecta, mas a sua sensibilidade é superior a 90% no grupo dos 2-5 anos.

Em resumo, o diagnóstico da infecção por H. pylori deve basear-se preferencialmente na endoscopia com biópsias para exame cultural e teste de sensibilidade aos antibióticos ou para testes moleculares, reservando-se o teste respiratório para a avaliação da eficácia terapêutica.

Actuação prática – Recomendações

A ESPGHAN / NASPGHAN emitiram recomendações/consensos em 2011 que se poderão resumir nos seguintes pontos:

  1. A investigação clínica de sintomas gastrointestinais deve ter como objectivo determinar a sua causa subjacente e não apenas a presença de infecção por H. pylori;
  2. Não há qualquer indicação para a utilização de testes para o diagnóstico de infecção por H. pylori em crianças com dor abdominal funcional;
  3. Admite-se a utilização destes testes na criança que tenha familiares em primeiro grau com cancro gástrico ou que tenha anemia ferropénica refractária à terapêutica e em que tenham sido excluídas outras causas de ferropénia;
  4. Não há actualmente evidências suficientes para apoiar a realização destes testes nas seguintes condições: otite média, infecções do trato respiratório, doença periodontal, alergia alimentar, púrpura trombocitopénica idiopática ou baixa estatura;
  5. A estratégia utilizada nos adultos de “testar e tratar” não é recomendada em crianças;
  6. O diagnóstico inicial de infecção por H. pylori deve ser baseado num exame cultural de biópsia positivo ou, em alternativa, numa histopatologia positiva (biópsias do antro e corpo gástricos) mais um teste rápido para a urease positivo;
  7. Tanto o teste respiratório com ureia marcada, como o teste para o antigénio fecal por ELISA utilizando anticorpo monoclonal, são testes não-invasivos fiáveis para avaliar a eficácia da erradicação do H. pylori;
  8. Os testes baseados na detecção de anticorpos (IgG, IgA) para o H. pylori no soro, sangue total, urina, saliva não são fiáveis para utilização na prática clínica;
  9. Os testes iniciais para H. pylori devem esperar um mínimo de 2 semanas após a interrupção do tratamento com Inibidor da Bomba de Protões (IBP) e pelo menos 4 semanas após a interrupção de antibióticos;
  10.  Não está recomendada a utilização de testes não-invasivos fiáveis para avaliação da erradicação do H. pylori antes de 4 semanas após a conclusão da terapêutica;
  11.  A erradicação do H. pylori é recomendada nos doentes com úlcera péptica com H. pylori positivo;
  12.  O tratamento para H. pylori pode ser considerado quando houver infecção comprovada na biópsia e ausência de úlcera péptica;
  13.  O tratamento pode ser oferecido às crianças infectadas com familiar de primeiro grau com cancro gástrico.

Tratamento

A instituição de terapêutica deve tomar em consideração as taxas de resistência aos antibióticos nas áreas de residência e, preferencialmente, deve basear-se no exame bacteriológico com antibiograma, sobretudo nas regiões com elevada taxa de resistência à claritromicina.

Em crianças, dos 4 meses aos 18 anos de idade observadas em Consulta de Gastrenterologia Pediátrica de 3 hospitais de Lisboa, foram isoladas 1.115 estirpes de H. pylori durante um período de 10 anos, e verificou-se a existência de taxas de resistências muito altas em relação à claritromicina (34,7%), ao metronidazol (13,9%) e à ciprofloxacina (4,6%), existindo ainda 6,9% de resistências a 2 destes antibióticos simultaneamente, o que tornou o antibiograma fundamental para a instituição da terapêutica.

A ESPGHAN / NASPGHAN nas suas recomendações propõe três regimes terapêuticos: (1) terapêutica tripla com Inibidor da Bomba de Protões (IBP) e amoxicilina associados à claritromicina ou a um imidazol, (2) substituição da claritromicina pelos sais de bismuto coloidal (actualmente não disponível em Portugal) e (3) terapêutica sequencial. Nas regiões com taxas conhecidas de resistência à claritromicina superiores a 20% é recomendado o teste de sensibilidade aos antibióticos antes de se iniciar o tratamento. A terapêutica tripla deve ter uma duração de 7 a 14 dias havendo evidência que o aumento da duração da terapêutica tripla aumenta o sucesso da erradicação em 5%.

A terapêutica sequencial envolve uma terapêutica dupla com IBP e amoxicilina durante 5 dias, seguida sequencialmente por 5 dias de terapêutica tripla (IBP com dois antibióticos alternativos – claritromicina e imidazol habitualmente). Especula-se que a amoxicilina possa reduzir a carga bacteriana e, possivelmente, possa conferir protecção contra a resistência à claritromicina.

Nos casos em que há insucesso da terapêutica e não houve terapêutica guiada por antibiograma deve ser feita endoscopia digestiva alta com biópsias e exame cultural com antibiograma ou exame molecular, mas se houve biópsia e não foi feito exame bacteriológico deve ser feito o teste de FISH nas biópsias embebidas em parafina que foram enviadas para a anatomia patológica. Nestes casos ou (1) se faz segundo tratamento adicionando um novo antibiótico ou (2) utilizam-se antibióticos diferentes ou (3) aumentam-se as doses e/ou (4) aumenta-se a duração do tratamento. Nas duplas resistências à claritromicina e metronidazol poderá ser utilizada uma terapêutica tripla com IBP + amoxicilina + levofloxacina.

Esquemas de tratamento da infecção por Helicobacter pylori (sem incluir bismuto coloidal)

A – Terapêutica tripla ou quádrupla concomitante (tratamentos com duração de 10 ou 14 dias com 3 ou 4 medicamentos utilizados concomitantemente):
  1. IBP + A + C = IBP 1 – 2 mg/kg/dia, 2x/dia + Amoxicilina (A) 50 mg/kg/dia até 1 grama, 2x/dia + Claritromicina (C) 15 mg/kg/dia até 500 mg, 2x/dia;
  2. IBP + A + M = IBP 1 – 2 mg/kg/dia, 2x/dia + Amoxicilina (A) 50 mg/kg/dia até 1 grama, 2x/dia + Metronidazol (M) 20 mg/kg/dia até 500 mg, 2x/dia;
  3. IBP + A + L = IBP 1 – 2 mg/kg/dia, 2x/dia + Amoxicilina (A) 50 mg/kg/dia até 1 grama, 2x/dia + Levofloxacina (L) 10-20 mg/kg/dia até 500 mg 2 X dia;
  4. IBP + A + C + M = IBP 1 – 2 mg/kg/dia, 2x/dia + Amoxicilina (A) 50 mg/kg/dia até 1 grama, 2x/dia + Claritromicina (C) 15 mg/kg/dia até 500 mg, 2x/dia + Metronidazol (M) 20 mg/kg/dia até 500 mg, 2x/dia.
B – Terapêutica sequencial

tratamento com duração de 10 dias, sendo os 5 primeiros dias com IBP e amoxicilina e os 5 dias subsequentes com IBP associado a 2 antibióticos alternativos, habitualmente claritromicina mais imidazol (melhores resultados com o tinidazol) mas também com tinidazol mais levofloxacina, utilizando as mesmas doses da terapêutica concomitante.

C – Terapêutica híbrida (é um novo regime terapêutico que combina a terapêutica sequencial com a terapêutica concomitante e que tem sido utilizado em adultos)

Consiste na utilização de um IBP mais amoxicilina nos primeiros 7 dias seguido por terapêutica quádrupla que inclui um IBP, amoxicilina, claritromicina e metronidazol (ou tinidazol) nos últimos 7 dias.
A avaliação do resultado da terapêutica deve ser feita, preferencialmente, pelo teste respiratório com ureia marcada com C13, 4 a 8 semanas após se ter completado a terapêutica (antibióticos e inibidor da bomba de protões).

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