Definições e importância do problema

A Organização Mundial de Saúde considera urgência toda a situação em que, na opinião do doente ou dos seus responsáveis, família ou outra entidade, são requeridos cuidados médicos imediatos. A Comissão Americana para a Medicina de Emergência Pediátrica definiu emergência sob o ponto de vista do utente (prudent-layperson laws): “todo o problema clínico de aparecimento súbito que se manifesta por sintomas suficientemente graves, incluindo dor de grande intensidade, para a qual o leigo prudente que possua conhecimentos médios sobre saúde e medicina, poderá com grande probabilidade esperar que, na ausência de avaliação médica, exista risco para a saúde da pessoa, ou perturbação grave de funções de órgão ou parte do corpo”. Há um grande componente subjectivo nestes conceitos, e uma situação considerada subjectivamente como urgência poderá vir a revelar-se como verdadeira urgência vital ou emergência, susceptível de assistência em serviços com características diversas, ou como não vital – a maioria. (Figura 1)

FIGURA 1. Urgência avaliada inicialmente segundo critérios subjectivos e evolução possível

No nosso País, a Comissão Técnica de Apoio ao Processo de Requalificação das Urgências (2007), estabeleceu as seguintes definições:

  • Urgências – todas as situações clínicas de instalação súbita em que existe o risco de falência de funções vitais;
  • Emergências – todas as situações clínicas de estabelecimento súbito em que existe, estabelecido ou iminente, o compromisso de uma ou mais funções vitais.

Sistema de cuidados de urgência e emergência

A filosofia de prestação de cuidados baseia-se num sistema que regula relações de complementaridade e de apoio técnico entre instituições hospitalares e não hospitalares, com graus de diferenciação diversos de modo a garantir o acesso atempado de todos os doentes aos serviços e unidades prestadoras de cuidados de saúde em função da patologia detectada. Estes sistemas deverão articular-se entre si explorando complementaridades e concentrando recursos humanos e técnicos, tendo em vista as necessidades reais das populações e a eficiência dos cuidados prestados.

Os utilizadores dos serviços de urgência têm características que os distinguem dos de outros serviços hospitalares:

  • A sua chegada não tem marcação;
  • A variabilidade das queixas e da gravidade é ampla;
  • O cuidado prestado é episódico;
  • O recurso ao serviço é muitas vezes inadequado.

De acordo com diversas estatísticas em contextos diversos, entre 20 e 80% das visitas de pacientes aos Serviços de Urgência (SU) pediátricos são motivadas por situações não urgentes. O seu atendimento deveria ter lugar nas instituições devotadas aos cuidados de saúde primários (CSP), o que não sobrecarregaria os SU hospitalares.

Uma vez que, dum modo geral, o cidadão comum e famílias não possuem conhecimentos sobre a orgânica e funcionamento dos serviços de saúde, surgem consequências dramáticas na organização e sustentabilidade dos SU na “pura e técnica” concepção do termo.

A Medicina de Urgência/Emergência, constituindo-se como paradigma actual para a resposta a essas necessidades, inclui diversas vertentes:

  • Triagem;
  • Avaliação médica de acordo com prioridade;
  • Prestação de cuidados (urgentes e emergentes em função do contexto clínico, incluindo lesões traumáticas);
  • Encaminhamento dos doentes para seguimento;
  • Transporte do doente grave ou com necessidades de cuidados específicos;
  • Formação própria;
  • Investigação básica e aplicada em aspectos clínicos, mas também de gestão e organização de recursos.

Sobre as vertentes Triagem e Transporte de doentes, as mesmas serão retomadas adiante.

Legislação sobre o Sistema Integrado de Emergência

O despacho nº 10319/2014 sobre o Sistema Integrado de Emergência Médica, que é omisso em orientações para o atendimento e seguimento de situações verdadeiramente não urgentes nos CSP, define a Rede de SU, respectivas responsabilidades e localizações da seguinte forma:

Serviços de Urgência Básica (SUB)

“O atendimento a crianças é da responsabilidade de Médicos e de Enfermeiros não diferenciados em Pediatria, os quais devem receber formação de modo a garantir as competências adequadas ao reconhecimento e abordagem de situações de doença grave, paragem cardíaca, abordagem da via aérea com adjuvantes, acesso vascular emergente e reconhecimento e abordagem inicial da paragem cardíaca em crianças.”

Em todos os SUB deve existir equipamento adequado às diferentes idades pediátricas, para utilização na abordagem correcta da via aérea básica e avançada, na obtenção de acesso vascular urgente e na monitorização em situações de doença grave ou paragem cardíaca; devem dispor de uma sala dedicada ao atendimento de crianças, e que permita, se necessário, a sua permanência para observação de curta duração em espaço separado do atendimento dos adultos. É igualmente considerada desejável a existência de espaços de admissão e salas de espera dedicados à idade.”

Serviços de Urgência Médico-Cirúrgica (SUMC) e Serviços de Urgência Polivalente (SUP)

O atendimento a crianças, da responsabilidade de Serviços de Urgências Pediátricas, deve ter instalações autónomas, incluindo admissão e áreas de espera.

Devem existir, nestas urgências, áreas adequadas a funcionar como salas de observação ou internamento de curta duração (incluindo o de foro ortopédico, cirúrgico e de outras especialidades de apoio). O atendimento deve abranger todos os pacientes em idade pediátrica independentemente da patologia apresentada, excepto nas situações inerentes ou consequentes à gravidez, as quais devem ser atendidas nos serviços de urgência obstétrica.

As Urgências Pediátricas devem funcionar como primeiro ponto de atendimento pediátrico especializado em situações urgentes e emergentes, com base numa lógica de proximidade e organização regional. Devem estar dotadas de canais de comunicação, ágeis e disponíveis, com os SUB e CSP da área, bem como com os serviços para os quais referenciam, nomeadamente Unidades de Cuidados Intensivos Pediátricos e outras áreas de especialidade, tais como Cirurgia Pediátrica, Neurocirurgia e outras. A referenciação para estas Unidades, via transporte inter-hospitalar pediátrico, deve ser protocolada regionalmente e coordenada pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM).

As urgências pediátricas de hospitais com SUMC ou SUP devem dispor da presença física permanente de, pelo menos, dois pediatras, um dos quais com formação em suporte avançado de vida pediátrico. Nos hospitais com SUMC, as crianças e jovens com patologia cirúrgica devem ser observados pelos especialistas que prestam cuidados na urgência de adultos, devendo ser protocolada a referenciação de situações clínicas que devam ser transferidas para um SUP Pediátrico.

Para além da disponibilidade dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica definidos para os SUMC ou SUP, as Urgências Pediátricas devem dispor de todos os equipamentos específicos da idade pediátrica necessários à abordagem avançada do paciente gravemente doente, traumatizado ou em paragem cardíaca.”

Serviços de Urgência Polivalente Pediátrica (SUPP)

O SUPP deve dispor de todos os recursos mínimos definidos para um SUP, e apoio em termos de diagnóstico e terapêutica e das diversas especialidades, incluindo Neurocirurgia, de Cirurgia Pediátrica e Cuidados Intensivos Pediátricos, local e permanente.

As equipas devem ainda ter formação adequada para que os SUPP funcionem como Centro de Trauma Pediátrico (CTP), devendo o SUPP estar preparado para o atendimento diferenciado de trauma grave, incluindo neurotrauma. O SUPP deve dispor de apoio fácil local ou com garantia de apoio efectivo das áreas de Cardiologia Pediátrica e Pedopsiquiatria. Tal apoio pressupõe a existência de normas rígidas exequíveis.

Triagem

A grande afluência de doentes aos SU em todos os países obrigou ao aperfeiçoamento das normas do atendimento, estabelecendo prioridades em função da gravidade. A finalidade última da triagem é prestar globalmente melhor serviço à comunidade, com rapidez, eficácia e eficiência proporcionais à gravidade. Para evitar iniquidades, estabeleceram-se critérios objectivos (de aplicabilidade, reprodutibilidade e validade), internacionalmente reconhecidos e já utilizados nos sistemas de triagem estruturados noutros Países.

Estes sistemas pressupõem obrigatoriamente os seguintes requisitos:

  • Definição de 5 níveis de prioridade (gravidade);
  • Definição de tempos máximos de espera aguardando observação médica de cada caso clínico previamente analisado;
  • Auditoria realizada por entidades externas.

A triagem é um processo dinâmico e exigente que se inicia quando o paciente chega ao serviço de urgência, e finaliza quando este recebe uma avaliação completa por um médico. Neste processo, requer-se, não só a capacidade de reconhecer os sinais e sintomas que necessitam de ser tratados imediatamente, mas também o reconhecimento de sintomas que provavelmente corresponderão a uma doença benigna.

Durante o tempo de espera os pacientes podem melhorar ou piorar; por isso, torna-se necessário proceder a reavaliações periódicas (retriagem).

Nesta perspectiva, a triagem implica, pois, formação e aperfeiçoamento dos profissionais que a realizam, estando bem definidas as características e as responsabilidades de tal função.

Os sistemas de triagem recomendados para a Pediatria em Portugal são o Manchester Triage Scale (MTS) e o Canadian Paediatric Triage and Acuity Scale (CPTAS). (Quadro 1)

QUADRO 1 – Sistemas internacionais de triagem pediátrica em Portugal

 MTSCPTAS
Nível de Gravidade
(sinalização com cor)
Tempo de Resposta
Médica Alvo (minutos)
Tempo de Resposta
Médica Alvo (minutos)
1 = Imediata (Vermelho)
2 = Muito Urgente (Laranja)
3 = Urgente (Amarelo)
4 = Menos Urgente (Verde)
5 = Não Urgente (Azul)
Imediato
10
60
120
240
Imediato
15
30
60
120

Transporte de doentes

Os sistemas de transporte pediátrico e neonatal inter-hospitalar permitem que os doentes beneficiem de cuidados especializados antes e durante a transferência. Está demonstrado em diversos estudos que o transporte, incorporando equipa médica e de enfermagem especializadas, permite reduzir a mortalidade e morbilidade, verificando-se também uma boa relação custo-benefício.

Existem diversos modelos de organização de sistemas de transporte, nem sempre consensuais. O ideal será, pois, criar condições para que o sistema de transporte se desloque ao local onde existe um doente em estado crítico requerendo tratamento emergente, e não o contrário.

Reproduzindo o que foi estabelecido oficialmente, importa realçar certos princípios: “Em Portugal o transporte pré-hospitalar é assegurado pelo INEM, dependente do Ministério da Saúde.

Quanto ao transporte inter-hospitalar neonatal e pediátrico destacam-se principalmente três períodos:

  • A experiência nacional desde 1978, com o transporte inter-hospitalar especializado de recém-nascidos (RN), de cobertura nacional, no âmbito do INEM;
  • A experiência da região centro do país desde 1991 coordenada a partir do Hospital Pediátrico de Coimbra, também no âmbito do INEM; tal subsistema assegura, não só o transporte de RN de alto risco, mas igualmente o de doentes pediátricos necessitando de cuidados intensivos;
  • O modelo actual, a funcionar desde 2013, em que houve uma uniformização e integração a nível nacional da gestão altamente diferenciada do Transporte Inter-hospitalar Pediátrico (TIP); tal modelo tem como missão:
    • a deslocação rápida de uma equipa de transporte de doente crítico urgente em idade pediátrica;
    • a estabilização clínica dos recém-nascidos e/ou crianças gravemente doentes; e
    • o transporte acompanhado para unidades de cuidados intensivos neonatais e/ou pediátricas disponíveis.”

Reforçando o que foi abordado anteriormente, o sistema de transporte implica igualmente o estabelecimento de normas de actuação médica e organizativa, assim como recursos logísticos tais como: equipa médica e de enfermagem treinada autónoma, meios de transporte por via terrestre ou aérea, aparelhagem específica, oxigénio e ar armazenados com possibilidade de ventilação mecânica, fármacos, etc.. (Quadros 2 e 3)

QUADRO 2 – Equipamento indispensável durante o transporte

    • Fontes de oxigénio e ar com sistema de mistura
    • Sistema de aspiração de secreções portátil
    • Material de reanimação primária (insuflador manual, máscaras laríngeas, laringoscópios para RN/lactentes e outras idades, tubos endotraqueais, etc.)
    • Monitores cardiorrespiratórios e de pressão intracraniana
    • Oxímetros de pulso
    • Ventilador
    • Aparelho para determinação da glicémia por micrométodo
    • Cateteres
    • Bombas de perfusão
    • Desfibrilhador
    • Ligaduras, talas e colares cervicais

QUADRO 3 – Fármacos e fluidos indispensáveis durante o transporte

    • Solução de cloreto de sódio em concentrações e volumes diversos
    • Dextrose em água em concentrações e volumes diversos
    • Fármacos diversos:
      • Dopamina, dobutamina, adrenalina, noradrenalina, milrinona;
      • Bicarbonato de sódio, gluconato de cálcio, sulfato de magnésio, amiodarona, naloxona, lidocaína, atropina, adenosina;
      • Fentanil, midazolam, cetamina, vecurónio, atropina, propofol, tiopental;
      • Furosemido;
      • Antibióticos e antivíricos;
      • Prostaglandinas;
      • Salbutamol, brometo de ipratrópio, prednisolona, metilprednisolona;
      • Diazepam, difenil-hidantoína, fenobarbital;
      • Manitol a 20%.


Uma norma basilar aplicável ao transporte de doentes em qualquer grupo etário diz respeito à garantia de estabilização hemodinâmica, antes de se iniciar o transporte, e à ponderação dos benefícios face aos riscos.

Com efeito, o hospital de proximidade da ocorrência, necessitando de transferência de doentes/hospital “emissor” (por doença ou por lesão traumática), deve ter:

  • Capacidade para a estabilização do doente antecedendo uma transferência;
  • Plano de transferências e transportes que permita enviar de modo sistemático, em segurança e atempadamente, um doente para um centro de maior diferenciação/hospital “receptor”, pré-identificado, que proporcione cuidados definitivos.

Unidades de cuidados intensivos pediátricos (UCIP)

Uma parcela limitada dos doentes recorrendo aos SU/E abertos ao exterior, ou transferidos doutros hospitais, requerem cuidados designados por intensivos pela situação clínica considerada crítica.

Considera-se doente crítico aquele em que, por disfunção ou falência profunda de um ou mais órgãos ou sistemas, a sobrevivência depende de:

  • Recursos humanos altamente especializados integrando equipas próprias médico-cirúrgicas e de enfermagem altamente na relação de 1 enfermeira/doente (permanentes, 7 dias por semana, 24 horas por dia, 365 dias por ano), e o apoio de múltiplos subespecialistas;
  • Meios sofisticados de terapêutica (por ex.: ventilação mecânica, hemodiálise, circulação extracorporal, farmacoterapia complexa, terapia pós-transplantes, etc.); e
  • Diversos tipos de monitorização contínua (electrónica, biofísica, bioquímica/laboratorial, invasiva e não invasiva, etc.).

Pelos elevados custos que tal tipo de cuidados exige, e pela necessidade de ser criada massa crítica com vista à aquisição de experiência e aperfeiçoamento de competências por parte das equipas assistenciais, garantindo a qualidade dos mesmos cuidados, torna-se necessário concentrar recursos humanos e materiais nas chamadas unidades de cuidados intensivos (neste caso pediátricos, com número limitado de postos), localizadas em hospitais do mais elevado nível de diferenciação na prestação de cuidados hospitalares (nível terciário), com esquemas organizativos variáveis, a que atrás se aludiu.

Urgências e Emergências Pediátricas – o presente e o futuro

Nas décadas recentes ocorreram grandes avanços no âmbito da prestação e organização de cuidados pediátricos urgentes e emergentes a nível mundial, com maior relevância nos países ditos desenvolvidos. Com efeito, de acordo com a experiência acumulada, concluiu-se que se torna indispensável considerar a valência Urgências Pediátricas como uma subespecialidade pediátrica, implicando a criação de equipas (designadamente médicas e de enfermagem), com sólida formação global e com competências específicas (designadamente técnicas) para o tratamento de doentes complexos em estado crítico.

Estas equipas participariam, não só na assistência médica directa, mas também noutras tarefas: auditorias internas devotadas ao atingimento de metas de qualidade assistencial dos respectivos serviços; consultas de reavaliação de situações agudas mais complexas; consultas sem presença de doente; ligação a instituições (de proximidade, emissoras de pacientes como anteriormente referido, quer hospitais, quer centros de saúde); acções de formação, incluindo as relacionadas com treino em simulação de técnicas; criação e discussão de normas de orientação clínica; investigação, designadamente no âmbito da comunicação médico-paciente e interpares, analgesia, sedação, avaliação do risco clínico e técnicas de imagiologia rápida como a ecografia, etc..

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Definições e importância do problema

Entende-se por reanimação cardiorrespiratória (RCR) o conjunto de técnicas que se aplicam a doentes em paragem respiratória ou cardiorrespiratória.

Em idade pediátrica, define-se paragem cardiorrespiratória (PCR) pela verificação de, pelo menos, um dos seguintes parâmetros:

  1. Interrupção da respiração e circulação; a este evento, que pode ser reversível, associa-se como consequência, estado de inconsciência, apneia e ausência de pulso (palpação em artéria central);
  2. Interrupção da respiração com bradicárdia (frequência cardíaca < 60 batimentos/minuto com pulso detectável), associada a sinais de circulação ineficaz apesar do suprimento de oxigénio e ventilação; trata-se da situação mais frequente;
  3. Actividade eléctrica detectável no monitor, mas sem pulso palpável (actividade eléctrica sem pulso ou AESP).

A incidência de PCR é cerca de 12/1 milhão de habitantes com menos de 18 anos. Na idade pediátrica, entre 45-70% dos casos de paragem cardiorrespiratória surge em menores de 1 ano de idade.

Os procedimentos e atitudes a realizar com carácter de emergência para tentar reverter a PCR, imprescindíveis para salvar a vida em perigo iminente, poderão ser realizados:

  1. Com o mínimo de meios disponíveis, não invasivos, em geral fora do ambiente hospitalar (na comunidade) utilizando determinados gestos básicos imprescindíveis para salvar a vida, como garantir a permeabilidade da via aérea, ventilar boca a boca e, se necessário, massagem cardíaca; é o conceito de RCR básica ou suporte básico de vida/SBV (cuja execução implica o conhecimento, treino e prática de atitudes correctas de imediato) que, em geral, implica continuidade com medidas mais sofisticadas por técnicos diferenciados;
  2. Com a utilização de equipamento de reanimação (entubação traqueal, ventilação, desfibrilhação, fármacos) e que deve ser efectuada por pessoal com formação específica; é o conceito de suporte avançado de vida/SAV.

Em circunstâncias especiais poderá ser necessário continuar as medidas de suporte avançado de modo prolongado em função do contexto clínico; trata-se do chamado suporte prolongado de vida/SPV.

Com a RCR pretende-se garantir, tanto quanto possível, a perfusão sanguínea e oxigenação cerebral até à recuperação da função cardiorrespiratória, tendo em consideração que a tolerância das células cerebrais à isquémia é muito limitada (cerca de 3-4 minutos). De facto, com as manobras correctas de SBV é possível promover uma oxigenação de emergência cerebral e de outros órgãos vitais, até haver condições para a realização do SAV.

Uma vez que o prognóstico da paragem cardiorrespiratória é, em princípio, reservado, sobretudo se prolongada, assumem a maior importância a prevenção, assim como a necessidade de formação básica em SBV de todos os cidadãos.

O objectivo deste capítulo é a descrição sucinta dos procedimentos a realizar no âmbito da RCR básica (SBV) e do SAV (sem pormenorizar técnicas específicas como entubação traqueal e ventilação mecânica); chama-se, entretanto, a atenção para a necessidade de os conhecimentos básicos serem completados com indispensável treino de gestos e atitudes em modelos ou manequins, exequível com o apoio de formadores experientes.

Etiopatogénese

Na maioria dos casos de paragem cardíaca no adulto, a causa é primariamente cardíaca: fibrilhação ventricular (FV) e taquicardia ventricular sem pulso (TVSP).

Pelo contrário, na idade pediátrica, a causa mais frequente (~95%) é a hipóxia resultante de falência respiratória de etiopatogénese diversa (respiratória ou extra-respiratória, designadamente por depressão do SNC). A falência circulatória como causa (por sépsis, choque ou patologia cardíaca primária) é, efectivamente muito mais rara (correspondendo a cerca de 5%), embora seja reconhecida frequência crescente de situações de paragem cardíaca súbita explicáveis por FV e taquicárdia ventricular sem pulso (TVSP) atribuíveis a patologia cardíaca primária subjacente (como miocardiopatia hipertrófica, síndroma de QT longo), drogas ou miocardite, entre outras, com implicação na abordagem imediata.

Em 90% das PCR na criança ocorre assistolia.

Sistematização

Para que a RCR seja eficaz, torna-se necessário o cumprimento de certos passos em sequência lógica, o que tem implicações importantes, quer em termos de treino/aprendizagem, quer em termos organizativos no âmbito dos cuidados à comunidade:

  1. Diagnóstico de PCR no contexto de doente que pareça inconsciente;
  2. Início dos procedimentos de SBV em que são utilizados métodos não invasivos;
  3. Activação do sistema de emergência médica (contacto solicitando apoio – o designado alerta);
  4. Entubação traqueal assegurando via aérea;
  5. Procedimento de desfibrilhação nos casos de FV/TVSP;
  6. Administração de fármacos.

As especificidades anatomofisiológicas da idade pediátrica e as diferenças quanto a etiopatogénese da PCR relativamente ao adulto, obrigam a que o esquema-base de gestos a efectuar seja diferente conforme a idade (excluindo o período neonatal).

Assim:

  • No lactente (> 28 dias até 1 ano) e na criança até à puberdade inicia-se de imediato a reanimação;
  • A partir da puberdade, procede-se primeiramente ao alerta por eventual necessidade de desfibrilhação;
  • Em qualquer grupo etário, nos casos de doença cardíaca conhecida, deve dar-se o alerta em primeiro lugar; nos casos de afogamento e trauma, inicia-se o SBV e dá-se o alerta de seguida;
  • Quando existem vários reanimadores, a RCR é iniciada e mantida, e 1 dos reanimadores dá o alerta.

No que respeita à técnica de RCR tem-se em conta igualmente tal subdivisão etária.

1. RCR BÁSICA (SBV)

Generalidades

O SBV integra o conjunto de manobras emergentes destinadas à reversão da PCR ou manutenção das funções vitais, utilizando meios não invasivos. Por razões didácticas, é clássico utlilizar a sigla derivada do inglês ABC: A-airway; B-breathing; C-circulation. Concretizando, eis as manobras:

A – Permeabilização da via aérea;
B – Ventilação boca-nariz e boca; boca-boca;
C – Massagem cardíaca externa.

O SBV inclui ainda as manobras de desobstrução da via aérea por corpo estranho.

Para a eficácia da reanimação importa que o doente se encontre sobre uma superfície dura (tábua, pavimento).

O suporte básico de vida inicia-se com os 3 “S”: Safety (segurança), Stimulate (estimular) e Shout for help (pedir ajuda).

Verificação de condições de segurança

O reanimador ou equipa de reanimação não devem correr riscos; se o ambiente for adverso (acidente na via pública, incêndio, sismo), a regra é que as referidas manobras sejam aplicadas em segurança.

A vítima deverá ser mobilizada se o local for considerado perigoso ou se a posição em que se encontra comprometer a realização das manobras.

Verificação do estado de consciência e pedido de ajuda

O doente deve ser estimulado (estímulos auditivos e tácteis).

Em caso de suspeita de traumatismo da coluna cervical, assim como no lactente, o doente não deve ser sacudido nem abanado, e todas as manobras deverão ser efectuadas com imobilização cervical no primeiro caso.

Se houver resposta com movimentos ou vocalizações, coloca-se o doente em posição lateral de segurança; ou, no caso de doentes mais pequenos, em posição de conforto, avaliando-se a situação de modo continuado. (Figura 1)

FIGURA 1. Posição lateral de segurança

Se não houver resposta, deve efectuar-se o primeiro pedido de ajuda (gritar por ajuda, ligar para o 112), não devendo o reanimador nesta fase abandonar a vítima

Abertura da via aérea

Após o posicionamento em plano duro, deve realizar-se a abertura da via aérea com as seguintes manobras:

Manobra de extensão da cabeça (fronte-mento)

Sempre que não haja suspeita de traumatismo cervical, efectua-se a extensão do pescoço, colocando cuidadosamente a mão sobre a fronte. No lactente, pela proeminência do occipital quando aquele se coloca sobre uma superfície plana, origina logo uma ligeira extensão. Em seguida levanta-se o mento, colocando a ponta dos dedos da outra mão debaixo do mesmo. No lactente, a abertura da via aérea realiza-se com a cabeça em posição neutra (eixo orelhas alinhadas com o eixo do tórax) e na criança com extensão cervical.

Precauções:

  • Não fechar a boca;
  • Não exercer pressão sobre os tecidos moles do pescoço para não provocar a compressão da via aérea, especialmente em lactentes. (Figura 2)

FIGURA 2. Abertura da via aérea (manobra fronte-mento)

Manobra de subluxação da mandíbula (manobra tripla)

Na suspeita de traumatismo crânio-cervical, puxa-se para cima a mandíbula com uma mão, enquanto se fixa a cabeça com a outra para impedir que a coluna se desloque. Pode também efectuar-se a manobra colocando dois ou três dedos de cada mão nos ângulos da mandíbula e levantá-la, para cima e para a frente, enquanto se fixa o pescoço. (Figura 3)

Respiração

Verificar a respiração

Mantendo a abertura da via aérea, o reanimador aproxima o ouvido e a face da boca da vítima para:

  • VER (V) se há movimentos torácicos ou abdominais;
  • OUVIR (O) se existem ruídos respiratórios;
  • SENTIR (S) se o ar golpeia a face.

Esta operação, designada pela sigla VOS, deve realizar-se, no máximo, em 10 segundos.

FIGURA 3. Subluxação da mandíbula

Ventilar

A ventilação artificial é realizada com o ar expirado pelo reanimador:

  • No lactente: boca – boca e nariz;
  • Na criança e adulto: boca – boca, com oclusão do nariz do doente com indicador e polegar.
Procedimento
  • 2 insuflações com expiração forçada de modo a provocar expansão do tórax do doente; se tal não acontecer, reabrem-se as vias aéreas e reinicia-se a ventilação até 5 insuflações, de modo a conseguir 2 insuflações eficazes (lentas, em cerca de 1 segundo). Na ausência de expansão do tórax, ou se esta for insuficiente, deve rever-se o posicionamento do doente, verificando a abertura da via aérea;
  • O reanimador, observando a expansão do tórax, insufla o seu ar expirado tanto quanto baste para garantir a referida expansão torácica (evitando insuflação excessiva pelo risco de barotrauma e de distensão gástrica);
  • Mantendo a extensão da cabeça e a elevação do mento, a boca do reanimador é afastada da boca da criança após verificação da expansão torácica desejada, verificando-se a seguir que o tórax se retrai (coincidindo com o ar expirado pelo doente);
  • De imediato repete-se a manobra de insuflação. (Figura 4)

 FIGURA 4. Ventilação com ar expirado

Desobstrução da via aérea em caso de corpo estranho

Se o doente estiver consciente

  • Se tosse eficaz, encorajar a tosse e manter vigilância.
  • Se tosse ineficaz:
    • O lactente (idade < 1 ano), é colocado em decúbito ventral sobre o antebraço do reanimador, segurando-o pela mandíbula com a cabeça ligeiramente estendida, em nível inferior ao do tronco. Na zona interescapular, com a base da outra mão, efectuam-se 5 pancadas rápidas; em seguida coloca-se o lactente em decúbito dorsal, prendendo a cabeça com a mão e em posição mais baixa que o tronco. Efectuam-se 5 compressões torácicas com os dedos indicador e médio, ao nível da região médio-esternal. (Figura 5)
    • Na criança com idade > 1 ano, efectua-se a manobra de Heimlich: ajoelhar ou ficar de pé por trás da criança e aplicar o punho de uma mão sobre o epigastro e, sobrepondo a outra mão, fazer movimentos de pressão para trás e para cima, até 5 vezes. (Figura 5)

Se o doente estiver inconsciente

  • Colocar a criança sobre uma superfície dura, abrir a boca e procurar qualquer objecto evidente que se possa remover (não tentar às cegas); abrir a via aérea e tentar 5 insuflações e, se não houver resposta, iniciar compressões torácicas sem verificação da circulação, ou seja SBV.

Circulação

Verificar a circulação

A palpação do pulso central deve fazer-se de modo rápido, em tempo < 10 segundos:

  • Na artéria braquial (no lactente);
  • Na artéria carótida (na criança e adolescente/adulto);
  • Na artéria femoral (em qualquer faixa etária).

Se houver pulso arterial central, continua-se a ventilação com uma frequência de 12-20 ciclos/minuto, consoante o grupo etário.

Se não houver pulso arterial central, ou se houver dúvidas quanto a tal, inicia-se a massagem cardíaca externa coordenada com a ventilação.

FIGURA 5. Desobstrução por corpo estranho

Massagem cardíaca externa

Procedimento
  • Manter a cabeça em posição adequada para a ventilação (ver atrás); posição das mãos do reanimador:

→ Lactente (< 1 ano): com as pontas dos dedos médio e anelar do reanimador sobre o esterno, um dedo abaixo da linha intermamilar. Esta é a técnica preferível quando há um só reanimador (Figura 6). Outra variante (com dois reanimadores e em geral na idade < 3 meses) é abraçar o tórax com as duas mãos e fazer compressão com os polegares sobre o esterno logo abaixo da linha intermamilar. Os outros dedos funcionam como plano duro. (Figura 7)
→ Criança (1 ano – puberdade): a base de uma das mãos do reanimador sobre o esterno, dois dedos acima do apêndice xifoideu. Compressão com o membro superior não flectido, utilizando as mãos sobrepostas, com os dedos entrelaçados ou não, exercendo-se a força apenas na base da mão, aproveitando o peso do reanimador na vertical e a linha dos ombros do reanimador paralela ao eixo da vítima. (Figura 8)
→ A partir da puberdade: sobre a metade inferior do esterno, compressão utilizando as mãos sobrepostas, com os dedos entrelaçados ou não, exercendo-se a força apenas na base da mão, aproveitando o peso do reanimador na vertical.

FIGURA 6. Massagem cardíaca externa (no lactente)

FIGURA 7. Massagem cardíaca externa (no lactente – técnica do abraço)

FIGURA 8. Massagem cardíaca externa em criança (de 1 ano à puberdade)

A compressão deve durar 50% do ciclo (100/minuto) de modo que o tórax volte à sua posição normal, nunca se retirando a mão da zona de compressão, excepto se for necessário ao reanimador também efectuar a ventilação. A profundidade da compressão deve ser sempre cerca de 1/3 da altura (diâmetro ântero-posterior) do tórax, o que varia, segundo a idade, entre 4 e 5 cm. (Figura 8)

Quer com a intervenção de um, quer com a intervenção de dois reanimadores, a frequência da compressão cardíaca deve ser ~100/minuto em todos os grupos etários, com uma relação compressão/ventilação 15/2 no lactente e criança até à puberdade e 30/2 em idades ulteriores.

Esta última relação (30/2) também poderá ser utilizada em qualquer idade se o profissional de saúde estiver sozinho.

Avaliação da RCR

A RCR na criança é efectuada durante 1 minuto; ao cabo deste tempo reavalia-se o pulso: no caso de não ter sido eficaz, abandona-se momentaneamente a vítima para solicitar ajuda (alerta).

Se a vítima for um lactente muito pequeno, deve ser tentado o transporte e a reanimação simultaneamente, levando-o, e fazendo do antebraço do reanimador o plano duro.

As avaliações periódicas (pulso e a respiração) não devem exceder 10 segundos. Por outro lado, deve manter-se o SBV até à chegada da ajuda solicitada, a vítima recuperar, ou o reanimador ficar exausto.

As Figuras 9, 10 e 11 resumem os passos fundamentais do SBV, incluindo nos casos de eventual obstrução por corpo estranho.

2. RCR AVANÇADA (SAV)

Generalidades

A RCR avançada (o chamado SAV) compreende um conjunto de procedimentos invasivos que se aplicam na sequência do SBV, para o restabelecimento das funções respiratória e cardíaca. Como foi anteriormente referido, para a sua efectivação torna-se imprescindível a existência de equipa de profissionais (médicos, enfermeiros, paramédicos, etc.) com formação específica e experiência, assim como meios técnicos invasivos (equipamento, incluindo laringoscópios para entubação traqueal, ventiladores com tubagens, tubos traqueais ou alternativas, desfibrilhadores, fármacos, etc.).

Sendo essencial o diagnóstico do tipo de ritmo cardíaco de paragem (FV/TVSP, assistolia/AESP) (Figura 12), proceder a SAV em ambiente hospitalar implica a obediência a um conjunto de regras importantes que devem estar na mente de todos os intervenientes bem treinados, com funções bem definidas, no pressuposto de que muitas manobras terão que ser feitas concomitante e sincronizadamente por mais do que um reanimador:

  • Registar a hora da PCR e tempos de RCR;
  • Identificar o coordenador da reanimação;
  • Posição correcta do doente em decúbito dorsal em leito duro para garantir a eficácia da massagem cardíaca;
  • Garantir que o “carro de urgência” com instrumentos e fármacos para a reanimação seja colocado à cabeceira do doente, ao mesmo tempo que se aplicam eléctrodos no doente para ligação ao monitor cardíaco, assim como oxímetro de pulso;
  • O SAV deve ser aplicado na sequência do SBV, sem hiatos na actuação; ou seja, para iniciar e concretizar os procedimentos do SAV, não se devem interromper as manobras de reanimação básica mais do que 30 segundos para entubação traqueal. (Figuras 12, 13 e 14)

Quando houver via aérea segura (TET) as compressões serão contínuas, mantendo a mesma frequência de compressão (100 pm) e as ventilações entre 12 e 20 pm.

FIGURA 9. Suporte Básico de Vida Pediátrico (segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015)

FIGURA 10. Suporte Básico de Vida de Adulto com desfibrilhação automática externa/DAE (Segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015)

FIGURA 11. Aspiração de corpo estranho

FIGURA 12. Suporte Avançado de Vida Pediátrico (Segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015)

FIGURA 13. Suporte Avançado de Vida (Segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015). PCI= Percutaneous Coronary Intervention; RCP= Reanimação cardiopulmonar

FIGURA 14. PCR- Resumo da actuação nos casos de ritmos não desfibrilháveis. (Ver Figura 18)

Via aérea e ventilação

No âmbito do SAV, quer a técnica para se obter uma via aérea segura, quer o tipo de suporte ventilatório utilizado devem atender às características da criança e às capacidades do reanimador.

Ventilar com ressuscitador manual e oxigénio

Em primeiro lugar deve proceder-se à abertura da via aérea como descrito anteriormente. Podem ser utlilizados adjuvantes para este processo, como os tubos orofaríngeos ou de Guedel (tamanho adequado: distância entre os incisivos e o ângulo da mandibular) e os tubos nasofaríngeos (tamanho adequado: distância entre a asa do nariz e o ângulo da mandíbula).

Após a abertura da via aérea, deve iniciar-se ventilação com ressuscitador manual com máscara adequada à idade e oxigénio. A máscara deve ser transparente para permitir visualizar o eventual aparecimento de qualquer material na boca (sangue, secreções, alimentos, etc.). O ressuscitador manual deve ter um volume superior a 500 mL, concentrador de O2 e estar ligado a uma fonte de oxigénio permitindo débito de 15 L/minuto para se obter Fi O2 ~100%.

A entubação endotraqueal (orotraqueal), constitui o procedimento ideal para garantir a protecção da via aérea. (Figura 15)

FIGURA 15. Modo de imobilizar o lactente para proceder à laringoscopia e ulterior entubação traqueal

Dum modo geral os TET dividem-se em sem cuff e com cuff; os TET com cuff podem ser utilizados em qualquer idade excepto no período neonatal.

QUADRO 1 – Tubo endotraqueal (TET)

Tubo endotraqueal (TET):  cálculo para a escolha do calibre e profundidade de inserção (entubação orotraqueal)

→ TET sem cuff (se com cuff, subtrair 0,5):

RN de termo: TET 3,5
1 mês – 1 ano: 3,5-4,0
1-2 anos: 4,0-4,5
> 2 anos: diâmetro interno em mm = idade (anos)/4 + 4

→ Profundidade da inserção (entubação orotraqueal) em cm = (idade em anos/2) + 12 (a partir do lábio ou gengiva)

A posição intratraqueal do TET em emergência é verificada basicamente pela melhoria da saturação em O2 e expansão simétrica do tórax; posteriormente, através da auscultação bilateral das áreas axilares, da ausência de ruído de entrada de ar na auscultação do epigastro, da ausência de distensão gástrica, da detecção de CO2 exalado e, por fim, logo que possível, da radiografia do tórax póstero-anterior, será confirmada a posição ideal da extremidade do TET: ao nível da articulação esternoclavicular, 1-2 cm acima da carina.

Uma alternativa à entubação traqueal é a máscara laríngea, a qual não exige treino tão diferenciado como no primeiro caso, mas que também não protege totalmente a via aérea contra o risco de aspiração.

Em qualquer das opções, é fundamental garantir previamente ventilação e oxigenação (FiO2 100%) eficazes.

As situações de obstrução da via aérea superior poderão obrigar a efectuar de imediato a cricotirotomia de emergência (punção da membrana cricotiróide com cânula apropriada); não se dispondo desta, poderá utilizar-se um angiocateter (de calibre nº 14) que se conecta a um adaptador de TET nº 3 ou de 3 mm. (Figura 16)

FIGURA 16. Cricotirotomia

Acessos venosos

Devem ser tentados de imediato acessos venosos periféricos, não demorando mais de 60 segundos (cerca de 3 tentativas). Se tal não for conseguido, deve obter-se uma via alternativa: intra-óssea. Existem 3 tipos de dispositivos para punção intra-óssea: manual (ex. agulha IO Cook), automática por disparo (ex. Bone injection gun – BIG) e automática eléctrica (ex. EZ-IO).  O local de inserção mais utilizado em pediatria é a região tibial proximal (Figura 17). (consultar anexo para informação mais detalhada)

Como notas importantes, destaca-se que:

  • Já não é recomendada a via endotraqueal para a adiministração de fármacos;
  • A via intracardíaca para administração de fármacos nunca deve ser utilizada.

Desfibrilhação

A realização de desfibrilhação implica a observação do ritmo cardíaco no monitor electrónico ou no próprio desfibrilhador.

Tal procedimento deve ser iniciado de imediato, logo que se confirme FV ou TVSP. (Figura 18)

FIGURA 17. Punção intra-óssea (IO)

FIGURA 18. PCR- Resumo da actuação nos casos de ritmos desfibrilháveis.

De salientar que:

  • A desfibrilhação, em certas circunstâncias, poderá ser o primeiro acto no âmbito da RCR, caso possa ser executada nos primeiros 2 minutos após paragem cardíca súbita e presenciada por médico ou enfermeiro (a partir do 1 ano de idade);
  • Uma linha isoeléctrica detectada no visor do monitor poderá estar relacionada com contacto deficiente dos eléctrodos ou com um dos eléctrodos soltos – confirmar eléctrodos!

Há diversos tipos de desfibrilhadores; os que habitualmente se utilizam em meio hospitalar são os desfibrilhadores manuais bifásicos. O Quadro 2 sintetiza os passos fundamentais da técnica de desfibrilhação e a Figura 19 o modo de colocação das “pás” do desfibrilhador.

A intensidade do choque na criança é de 4 Joules/kg. Após a puberdade a dose é de 150-360 Joules, consoante o desfibrilhador (bifásico ou monofásico respectivamente). Desconhecendo-se o tipo de desfibrilhador aplicar-se-ão 200 Joules.

O chamado murro pré-cordial somente tem indicação na circunstância de se presenciar a paragem cardíaca e se não houver desfibrilhador para uso imediato, sendo improvável a sua eficácia se tiverem passado mais de 30 segundos.

FIGURA 19. Desfibrilhação: colocação das pás do desfibrilhador

QUADRO 2 – Técnica de desfibrilhação

    • Preparar as pás adequadas:
      < 10 kg → pás pediátricas;
      ≥ 10 kg → pás de adulto.
    • Pegar nas pás pelo cabo isolado.
    • Lubrificar as pás do desfibrilhador com gel condutor ou compressas embebidas em soro fisiológico, e evitar contacto entre si.
    • Marcar a potência pretendida.
    • Seleccionar o modo assíncrono.
    • Colocar as pás pressionando contra o tórax. Uma pá na zona infraclavicular paraesternal direita e a outra pá no ápex (abaixo e à esquerda do mamilo esquerdo). Na criança muito pequena as pás podem colocar-se na face anterior e posterior do tórax.
    • Avaliar a segurança da equipa (todas as pessoas devem afastar-se, afastar as fontes de oxigénio; afastar/secar superficies molhadas).
    • Confirmar ritmo desfibrilhável.
    • Disparar apertando simultaneamente os botões de ambas as pás.
    • Retomar massagem cardíca de imediato.

Farmacoterapia

Adrenalina

A adrenalina é o fármaco vasoactivo de eleição na RCR.

As suas indicações são: a assistolia, a actividade eléctrica sem pulso (AESP), sendo adjuvante na taquicárdia ventricular sem pulso (TVSP), e fibrilhação ventricular (FV).

A dose é 0,01 mg/kg por via intravenosa ou intra-óssea; tal corresponde a 0,1 mL/kg da diluição a 1:10000 (1 ampola de adrenalina 1:1000 <> 1 mg (1 ml) + soro fisiológico 9 ml para perfazer 10 ml de solução).

A partir da puberdade e no adulto a dose-padrão é de 1 mg não diluído (1 ampola 1 ml).

Antes e após a administração de adrenalina, tal como das outras drogas, deve “lavar-se” a via com soro fisiológico. Salienta-se que a adrenalina é inactivada em soluções alcalinas.

Amiodarona

Está indicada nas seguintes situações:

  • FV e TVSP;
  • FV e TVSP refractárias à adrenalina e ao 3º choque de desfibrilhação.

A dose de amiodarona é 5 mg/kg em bolus IV rápido, seguido de 2 minutos de SBV; após o início da puberdade emprega-se a dose de 300 mg.

Bicarbonato de sódio

O bicarbonato de sódio utiliza-se nos casos de acidose metabólica grave [pH < 7,2 e DB (défice de base) < 10 mmol/L] e PCR prolongada (10 minutos de RCR sem recuperação). Utiliza-se a dose de 1 mEq/kg (bicarbonato de sódio a 8,4%, 1 mL<> 1 mEq).

Cálcio

O cálcio, na forma de cloreto a 10% (sal com maior biodisponibilidade), ou de gluconato a 10%, tem como indicações PCR secundárias a hipocalcémia, hipercaliémia, hipermagnesiémia e sobredosagem de bloqueadores dos canais de cálcio.

  • Cloreto de cálcio a 10%: 0,2 mL/kg/dose;
  • Gluconato de cálcio a 10%: 0,3 mL/kg/dose em bolus lento.

Glicose

Nas situações de hipoglicémia administra-se glucose, evitando hiperglicémia. Utilizando a solução de dextrose a 10%, a dose é: 5 mL/kg/dose.

Atropina

A atropina somente tem indicação nas situações de bradicárdia por reflexo vagal, ou na profilaxia destas. A dose é 0,02 mg/kg/dose via IV, intra-óssea ou endotraqueal.

Nota importante: dose mínima 0,1 mg; dose máxima 0,5 mg.

Lidocaína

A lidocaína está indicada nas seguintes situações: FV e TVSP, como alternativa à amiodorona. A dose é 1 mg/kg/dose em bolus (deve usar-se com precaução nas crianças com disfunção hepática).

ECMO (Extra Corporeal Membrane Oxygenation life support)

Esta técnica de suporte de vida extracorporal deve ser considerada em crianças em PCR refractária a RCP convencional com uma causa potencialmente reversível, se a paragem ocorrer numa unidade assistencial com equipa experimentada e recursos indispensáveis.

Cuidados pós-reanimação

Os objectivos principais são reverter lesões cerebrais e disfunção miocárdica, tratar a resposta sistémica à isquémia/reperfusão e doenças precipitantes.

  • Disfunção miocárdica: manter boa perfusão de órgãos, com PA sistólica >P5 de acordo com a idade.
  • Oxigenação e ventilação: manter normoxémia e normocápnia (salvo situações especiais como cardiopatia cianótica ou ARDS/síndroma de dificuldade respiratória tipo adulto).
  • Controlo glicémico: evitar hiperglicémia e hipoglicémia.
  • Temperatura: evitar hipertermia e hipotermia graves. Hipotermia terapêutica versus normotermia controlada (ver seguidamente Notas importantes).

Notas importantes

 

Como principais causas reversíveis de PCR que devem ser corrigidas no decurso da RCR apontam-se:

  • 4 “H”: hpóxia, hipovolémia, hiper ou hipocaliémia/metabólico, hipotermia
  • 4 “T”: pneumotórax sob tensão, tamponamento cardíaco, tóxicos e tromboembolismo.

Durante a RCR usam-se fluidos intravenosos como veículo dos fármacos e manutenção do acesso venoso (soro fisiológico, lactato de Ringer, por ex.). A excepção é o quadro de choque em que se procede à expansão da volémia com o soro fisiológico na dose de 20 ml/kg em bolus inicial, ou ainda com concentrado eritrocitário nas situações acompanhadas de hemorragia aguda.

→ Sobre calibres e nomenclaturas de TET

  • TET sem cuff designado por 4 significa que o seu diâmetro interno é 4 mm.
  • As chamadas unidades French (F) representam o perímetro externo em mm.
  • A conversão de diâmetro interno em perímetro externo (ou Unidades F) depende da espessura de cada TET; com certa aproximação, pode obter-se pela equação: Unidades French (F) = (diâmetro interno x 4) + 2

→ Sobre actualização das normas da American Heart Association em 2019

  • Nos casos de paragem cardíaca fora do hospital, é razoável continuar a ventilação com máscara-balão até verificação de condições hospitalares para entubação traqueal.
  • É dada ênfase ao papel neuroprotector da hipotermia terapêutica e da normotermia controlada, chamando-se a atenção para a eventualidade de surgimento de febre por vezes acompanhando paragem cardíaca, coma e eventos hipóxico-isquémicos, com agravamento do prognóstico neurológico designadamente. Estes dados aplicam-se na idade pediátrica, incluindo o período neonatal.
  • Para além da prevenção da febre como medida terapêutica fundamental, o documento da AHA 2019 relata estudos realizados aplicando os seguintes protocolos, com as seguintes temperaturas programadas alvo:
    • Hipotermia terapêutica [32-34ºC à 2 dias; 36-37,5ºC à 3 dias]; ou
    • Normotermia controlada [36-37,5ºC à 5 dias]
  • No estado actual da investigação neste campo não foram verificadas diferenças significativas quanto a resultados (tempo de estadia em UCI, resultado neurológico a prazo e mortalidade).  

APÊNDICE

Em complemento do texto que integra este Capítulo, são apresentadas na parte final do 3º volume (Anexos) algumas tabelas utilizadas na UCIP do Hospital Dona Estefânia, elaboradas pelo Grupo de Formação em Reanimação Cardiorrespiratória do mesmo Hospital e autores deste capítulo.

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Definição

Estado de mal epiléptico (EME), ou status epiléptico, é tradicionalmente definido como persistência ou recorrência de convulsões num período igual ou superior a 30 minutos, sem recuperação da consciência; de acordo com as recentes normas da Neurocritical Care Society entende-se por EME como a situação clínica em que existe actividade convulsiva clínica e/ou electroencefalográfica contínua com duração igual ou superior a cinco minutos, ou duas ou mais convulsões sequenciais sem recuperação do estado de consciência.

Diz-se que o EME é precoce quando a actividade convulsiva tem a duração de 5-30 minutos, e que é refractário quando a actividade convulsiva tem uma duração superior a 30 minutos, ou persiste após administração de dois ou mais anticonvulsantes em doses adequadas.

Dada a existência de vários estudos demonstrando que a maior duração do EME está associada a pior prognóstico, e que quanto mais precoce o tratamento do EME, maior a eficácia do seu controlo, deve instituir-se terapêutica agressiva na crise convulsiva que dura mais de 5 minutos.

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

O EME é a emergência neurológica mais frequente na criança (18-23/100.000 crianças/ano), com maior incidência abaixo de um ano de idade. Em cerca de 10% das crianças a primeira convulsão apresenta-se como EME.

A avaliação inicial dos doentes com este tipo de problema deve focar-se na etiologia aguda tratável, presente em proporção variável, até 26% dos casos. As causas mais frequentes, sobretudo abaixo dos dois anos, são as infecções do sistema nervoso central (SNC).

Em cerca de 20% dos casos trata-se duma primeira manifestação de epilepsia, salientando-se que frequentemente o episódio é provocado por um factor extrínseco, como infecção (não do SNC), ou por alterações de medicação anterior.

A taxa de mortalidade do EME é variável de acordo com a duração do mesmo, estando descritos valores de 3% no EME precoce, e 19% no EME refractário.

Classificação

O Quadro 1 integra a classificação do EME, adaptada de fontes bibliográficas recentes.

QUADRO 1 – Classificação do estado de mal epiléptico

A. Estado de mal epiléptico não convulsivo

Crise generalizada
     – Ausência

Crise focal
     – Parcial complexa
     – Focal com sintomas autonómicos e sensitivos

B. Estado de mal epiléptico convulsivo

Crise focal motora (epilepsia parcial contínua)

Crise generalizada
     – Mioclónico
     – Clónico
     – Tónico

Crise mista
     – Tónico-clónico

Classificação

QUADRO 2 – Etiologia do EME na idade pediátrica

Etiologia
    • (45-58%) Criptogénica
    • (19-44%) Etiologia aguda neurológica: alterações do equilíbrio hidro-electrolítico, causa traumática, infecciosa, tumoral, metabólica ou tóxica
    • (11-25%) Doença neurológica crónica

Até ao 1º mês de vida

    • Lesão durante o parto (encefalopatia hipóxico-isquémica (EHI), hemorragia)
    • Anomalias congénitas
    • Infecção (meningite)
    • Doenças metabólicas e desequilíbrios electrolíticos (hipoglicemia, hipocalcemia, hiponatremia, lipidoses, aminoacidúrias)

≤ 6 anos

    • Convulsão febril (3 meses – 6 anos)
    • Lesão durante o parto (EHI, hemorragia)
    • Infecção do SNC
    • Doenças metabólicas
    • Trauma
    • Síndromas neurocutâneas
    • Doenças cerebrais degenerativas
    • Tumores
    • Malformações vasculares cerebrais
    • Epilepsia sem terapêutica adequada
    • Desequilíbrios electrolíticos (hipo ou hipernatremia, hipercalcemia)

> 6 anos

    • Epilepsia
    • Trauma
    • Infecção
    • Lesão durante o parto
    • Doenças cerebrais
    • Encefalite
    • Tumores
    • AVC (remoto ou agudo)
    • Hemorragia subaracnoideia
    • Tóxicos
    • Desequilíbrios electrolíticos
    • Encefalopatia hepática

Etiopatogénese

A convulsão é uma descarga eléctrica súbita, paroxística e auto-alimentada de um grupo de neurónios, podendo levar à morte celular. As manifestações clínicas dependem do local onde se inicia a descarga, da velocidade de recrutamento dos neurónios vizinhos, e do modo como aquela se propaga no SNC.

Os factores etiológicos são discriminados no Quadro 2, sendo de salientar que em cerca de 45-58% dos casos não é possível identificar tal factor, o que corresponde às chamadas situações criptogénicas. Dum modo geral pode afirmar-se que a etiologia é diversa e variável consoante a idade, o que determina significativamente o prognóstico.

À medida que o córtex cerebral evolui (da imaturidade do recém-nascido até ao córtex com maturação mais avançada, próprio da criança mais velha), o tipo de convulsões também varia com a idade.

A repercussão a nível hemodinâmico e bioquímico pode sistematizar-se em duas fases:

  • Nos primeiros 30 minutos há um aumento da frequência cardíaca, da frequência respiratória e da pressão arterial, assim como um aumento do consumo de oxigénio, do fluxo cerebral, do lactato sérico, da glicemia e do potássio;
  • Numa segunda fase, após aquele período de tempo, há uma diminuição dos referidos parâmetros hemodinâmicos, podendo ocorrer a lesão irreversível do neurónio e a morte celular, como resultado da alteração dos canais de cálcio, da permeabilidade da membrana celular e do consequente edema celular.

Diagnóstico

O algoritmo diagnóstico deve incluir uma anamnese sucinta orientada para o diagnóstico etiológico da convulsão, bem como uma investigação etiológica ajustada às particularidades de cada caso. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Abordagem diagnóstica do EME

Anamnese

Crise

    • História de epilepsia
    • Início e circunstâncias da crise
    • Duração da crise antes da observação médica
    • Partes do corpo envolvidas
    • Natureza dos movimentos
    • Incontinência
    • Cianose (perioral, facial)
    • Estado mental após a crise

Etiologia

    • Febre
    • Infecção ou doença do SNC
    • TCE recente ou remoto
    • Intoxicação ou exposição a tóxicos
    • Doença concomitante
    • Encefalite
    • Doença metabólica

Antecedentes

    • Antecedentes familiares
    • Gravidez
    • Parto
    • Desenvolvimento psicomotor e estaturo-ponderal
    • Doenças anteriores/crónicas
    • Epilepsia
    • Convulsão febril
    • Doença metabólica/genética
Exame objectivo

Características da crise
Alteração do estado de consciência
Há manifestações motoras?
TIPO: Convulsões tónico-clónicas rítmicas, convulsão tónica persistente, automatismos (movimentos de mastigação, gestuais, piscar dos olhos, grito)
LOCALIZAÇÃO: focais ou generalizadas
Há manifestações sensitivas?

Lesões associadas
Lesões associadas: laceração dos bordos da língua
Luxações articulares (ombro)
Sinais de traumatismo (craniano e/ou facial)

Evidência de lesão intracraniana
Hematoma, deformidade craniana, alterações no exame neurológico, sinais de HIC

Sinais de doença concomitante
Febre, dificuldade respiratória, cianose, sinais de meningite ou sépsis, alterações cutâneas (petéquias, púrpura, vesículas, má perfusão periférica)

Exames complementares

Dados laboratoriais

    • Hemograma
    • Glicemia
    • Função renal
    • Ionograma
    • Calcemia
    • Magnesiemia
    • Função hepática
    • Doseamento dos antiepilépticos (se doente com epilepsia)
    • Tóxicos
    • Pesquisa de doença: infecciosa, metabólica
    • Exames culturais (hemocultura, urocultura, cultura LCR)
    • Punção lombar
      • Se suspeita de infecção do SNC
      • Protelar se suspeita de lesão estrutural/hipertensão intracraniana (HTIC), mas, se probabilidade de infecção, iniciar de imediato antibioticoterapia empírica

Neuro-imagiologia

    • Crise convulsiva de novo, especialmente se em apirexia
    • Ausência de causa óbvia de EME
    • Défices neurológicos focais
    • Epilepsia refractária
    • Alteração do estado de consciência, com ou sem história de intoxicação, febre, TCE recente, cefaleia prévia persistente, neoplasia, anticoagulação, SIDA

*TAC-CE: mais sensível para hemorragia nas primeiras horas; mais facilmente disponível na urgência

*RM-CE

Electroencefalograma

    • Não é necessário no serviço de urgência para EME convulsivo generalizado
    • Indicações para EEG urgente:
    • Alteração do estado de consciência persistente inexplicado (excluir EME não convulsivo)
    • Paralisia neuromuscular
    • EME refractário com terapêutica anticonvulsante em doses elevadas
    • EME duvidoso (excluir pseudo-convulsões)

TRATAMENTO

A abordagem terapêutica do EME e EME refractário é ilustrada no Quadro 4.

QUADRO 4 – Tratamento do EME e do EME refractário

Tratamento EME
Avaliação inicial
    1. Confirmar a convulsão
    2. Verificar o tipo de convulsão
    3. Registar o tempo de actividade convulsiva
    4. Ressuscitação:
      A – Assegurar a via aérea: posicionamento, aspiração de secreções, coadjuvantes da via aérea
      B – Estabilizar ventilação: oxigénio suplementar por máscara (concentração de 100%), ponderar entubação orotraqueal
      C – Manter circulação (dois acessos venosos periféricos; iniciar soro isotónico glicosado para 80% das necessidades)
    5. Monitorizar sinais vitais; ponderar descompressão gástrica com SNG
    6. Avaliação da glicemia capilar e correcção dos desequilíbrios metabólicos e hidro-electrolíticos
    7. Administração de antipirético se necessário
Sem acesso IVCom acesso IV
DIAZEPAM 0,5 mg/kg rectal (máx. 10 mg/dose)
MIDAZOLAM 0,2 mg/kg IM (máx. 6 mg/dose)
MIDAZOLAM 0,2 mg/kg intranasal (máx. 10 mg/dose)
MIDAZOLAM 0,2-0,5 mg/kg bucal (máx. 10 mg/dose)
DIAZEPAM 0,1-0,3 mg/kg IV lento
(3-5 minutos; máx. 10 mg/dose) 
Não cede em 5 minutos
2ª administração de benzodiazepina
Não cede em 5 minutos
FENITOÍNA 20 mg/kg IV em 15-20 minutos (máx. 1 g; velocidade de administração ≤ 1 mg/kg/min, pura ou diluída em soro fisiológico)
Não cede em 10 minutos
FENOBARBITAL 20 mg/kg IV (máx. 1 g; velocidade de administração ≤ 1 mg/kg/min)
Não cede 10 minutos após administração de fenobarbital (ou ≥ 30 minutos após o primeiro fármaco administrado)

EME REFRACTÁRIO
30 minutosMedidas gerais e investigação de emergência

Se UCIP não disponível (até haver vaga): 

FENOBARBITAL 20 mg/kg IV (máx. 1 g; velocidade de administração ≤ 1 mg/kg/min)
Pode repetir bolus de 5-10 mg/kg cada 15-20 minutos; aos 30-40 mg/kg de dose total pode haver necessidade de entubação

LEVETIRACETAM 20-30 mg/kg (velocidade de administração ≤ 5 mg/kg/min) – considerar nos casos de insuficiência renal, doença hepática ou metabólica, coagulopatias e crianças sob quimioterapia 

VALPROATO DE SÓDIO 20 mg/kg (velocidade de administração ≤ 3 mg/kg/min) – particular atenção: se crianças < 2 anos, doença hepática ou metabólica e coagulopatias

Ventilação mecânica

Intensificar suporte hemodinâmico (poderá haver necessidade de drogas vasopressoras)

Se houver sinais de hipertensão intracraniana, tratar em conformidade

Manter anestesia até 12-24 horas depois da última convulsão clínica e/ou electroencefalográfica

Optimizar tratamento de manutenção com anticonvulsante

Monitorização electroencefalográfica contínua

Tratar outras complicações do EME: mioglobinúria, hiperuricemia e hipertermia

 

≥ 30 minutos

MIDAZOLAM IV

Bolus de 0,5 mg/kg seguido de perfusão a 2 mcg/kg/min

Se persistência da convulsão:
bolus de 0,5 mg/kg
e aumentar perfusão para 4 mcg/kg/min

Após 5 minutos:
Bolus de 0,5 mg/kg
e aumentar midazolam 4 mcg/kg/min cada 5 minutos até máximo de 32 mcg/kg/min 

Se ausência de convulsões nas últimas 24-48 horas: reduzir gradualmente perfusão de midazolam 1 mcg/kg/min cada 15 minutos

TIOPENTAL IV

Bolus de 2-4 mg/kg (velocidade de administração £ 50 mg/min) seguido de perfusão a 0,5-5 mg/kg/h

Se persistência da convulsão:
Aumentar o ritmo 0,5-1 mg/kg/h a cada 12 horas
(Parar fenobarbital e perfusão de midazolam após início de tiopental)

PENTOBARBITAL IV

Bolus de 5-15 mg/kg (velocidade de administração £ 50 mg/min), seguido de perfusão a 0,5-5 mg/kg/h

Se persistência da convulsão
:
Aumentar o ritmo 0,5-1 mg/kg/h a cada 12 horas
(Parar fenobarbital e perfusão de midazolam após início de pentobarbital)

Se ausência de convulsões nas últimas 24-48 horas:
Reduzir gradualmente o fármaco iniciado, 25% a cada 12 horas
Reiniciar fenobarbital durante a redução

Se recorrência de convulsões no desmame: reiniciar midazolam, tiopental ou pentobarbital

PROPOFOL IV (> 5 anos)

Bolus de 3-5 mg/kg, seguido de perfusão 1-15 mg/kg/h
A perfusão do propofol deve ser reduzida para 50% 12 horas após o controlo das crises (a suspensão rápida pode induzir convulsões)
Atenção à síndroma de infusão do propofol

Outros tratamentos de acordo com quadro clínico

VALPROATO DE SÓDIO: EM de ausências, EM mioclónico, EM por suspensão de VPA que fazia previamente e EM refractário

PIRIDOXINA: Bolus IV/IM 50-100 mg em crianças com menos de 2 anos; manutenção: 50-200 mg PO/dia

HIPOGLICEMIA:
RN: bolus IV glicose 10% 2-4 ml/kg em 2-3 min seguido de perfusão de glicose 6-8 mg/kg/min
Criança: bolus IV glicose 10% 2,5-5 ml/kg ou glicose 30% 2 ml/kg em 2-3 min seguido de perfusão de glicose a 5 mg/kg/min
Reavaliar 30/30 minutos e, se hipoglicemia, repetir bolus e aumentar perfusão
COMA ALCOÓLICO: TIAMINA 100 mg IM
INTOXICAÇÃO POR OPIÓIDES: NALOXONA IV lento 0,1 mg/kg/dose; repetir cada 5-10 minutos se ausência de resposta

Tratamento de manutenção (prevenção de recorrências)
FENITOÍNA 5-8 mg/kg/dia, 12/12 horas
VALPROATO DE SÓDIO 20 mg/kg/dia, 12/12 horas
FENOBARBITAL 3-5 mg/kg/dia, 12/12 horas

De acordo com estudos recentes em casos seleccionados, e em função de estudos experimentais, a hipotermia durante tempo variável (32-35ºC) poderá ser também uma opção nos casos refractários.

Prognóstico

O prognóstico depende da etiologia, da duração das crises (se duração superior a uma hora o risco de morbilidade é ~50%, variando desde défice neurológico ligeiro, como hemiparesia, síndroma extrapiramidal, até insuficiência intelectual profunda e estado vegetativo), das complicações hemodinâmicas, metabólicas e hidro-electrolíticas.

Através de estudos por RM-CE comprovou-se sobretudo em crianças com idade < 1 ano, que proporção significativa de casos se relaciona com lesão do hipocampo com atrofia, associada a disgenesia cerebral prévia.

A terapêutica anticonvulsante adequada e atempada, minorando a duração do EME, constitui o principal factor com influência no referido prognóstico.

O estado de mal epiléptico é uma emergência médica. As medidas iniciais de suporte ventilatório, hemodinâmico e metabólico, associadas à terapêutica adequada das convulsões e da sua causa permitem, não só diminuir a mortalidade, como a morbilidade.

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Definições e importância do problema

A situação clínica designada por coma é definida como perda do estado de consciência, traduzida por impossibilidade de despertar, e por ausência de resposta a qualquer estímulo sensitivo externo ou interno. Nas formas graves, o coma acompanha-se de perturbações vegetativas e/ou metabólicas.

Nos países industrializados registam-se cerca de 140 casos de coma traumático e 30 casos de coma não traumático por 100.000 pacientes em idade pediátrica por ano.

O coma deve ser distinguido da morte cerebral, em que se verifica ausência permanente de toda a função do tronco cerebral, e do estado vegetativo, em que existe uma perda de consciência de si e do meio envolvente, acompanhado de alterações do ciclo sono/vigília, com preservação variável das funções do tronco cerebral.

Há que considerar outros termos que tipificam diversos níveis intermédios de consciência entre a vigília e o coma:

  • Estupor ou estado que se pode confundir com o sono normal; acompanha-se de escassez ou ausência de movimentos espontâneos, podendo o doente ser despertado por estímulos dolorosos;
  • Letargia ou estado de vigília reduzida com défice de atenção, associando-se por vezes a estados de agitação;
  • Obnubilação, apatia ou torpor em que se verifica sonolência com resposta a estímulos externos não dolorosos.

O chamado mutismo acinético é um estado acompanhado de lentidão ou ausência de actividade motora, e lentidão da cognição, com vigília preservada.

Uma vez que estes termos poderão comportar certo grau de subjectividade na apreciação, foi criado um instrumento de avaliação estruturada – adaptado do modelo utilizado no adulto – integrando um conjunto de achados físicos aos quais se atribui determinada pontuação. É a chamada escala de coma de Glasgow (Glasgow Coma Scale). (ver adiante)

Estabelecido o diagnóstico de coma, importa a respectiva investigação etiológica.

Etiopatogénese

Ao abordar sucintamente a etiopatogénese do coma, convém separar dois conceitos fundamentais: o que tem a ver com a percepção, relacionado com mecanismos de origem cortical; e com a reactividade, relacionada, esta, com mecanismos primários de origem subcortical. A vigília depende da activação cortical pela substância reticular do tronco cerebral e pelo tálamo medial. A referida vigília pode ser interrompida pelo sono ou por patologia da substância reticular ascendente, do tálamo ou do córtex cerebral ao nível de ambos os hemisférios.

O estado de coma corresponde invariavelmente a disfunção encefálica grave que pode ser rapidamente progressiva e fatal; nos casos em que não é fatal, poderá ser irreversível.

A situação de coma poderá estar associada a hipertensão intracraniana, fundamentalmente por: hemorragia intracraniana, edema cerebral e lesões ocupando espaço. O edema cerebral pode ser vasogénico, celular ou osmolar. O edema celular afectando os astrócitos, relaciona-se com alterações da homeostase da excitotoxicidade, acidose e acumulação de água e sódio no citoplasma. O edema osmolar pode ocorrer no contexto de focos de necrose por contusão cerebral.

Nos casos de lesões ocupando espaço e/ou associadas a edema, na ausência de distensibilidade da caixa craniana ou nos casos em que o aumento de volume do conteúdo encefálico ultrapassar a capacidade da caixa craniana rígida, pode surgir herniação a vários níveis: através da tenda do cerebelo (transtentorial), uncal, ou amigdalina (através do foramen magnum).

Numa perspectiva de classificação etiopatogénica, na criança os estados de coma podem ser devidos a:

  • Causas não estruturais (tóxico-metabólicas): são a maioria, em geral com evolução insidiosa, associadas a disfunção difusa das células neuronais as quais, em fases avançadas, poderão conduzir a lesão cerebral focal;
  • Causas estruturais (supra ou infratentoriais): associadas a destruição importante do tecido cerebral.

Numa perspectiva prática, clínica, podem ser consideradas duas grandes causas: traumáticas e não traumáticas.

As causas traumáticas incluem principalmente as diversas formas clínicas de traumatismo cranioencefálico (TCE) analisadas no capítulo 284.

As causas não traumáticas, mais comuns em crianças com idade inferior a seis anos, podem ser divididas de diversas formas, nomeadamente em coma com sinais focais, coma sem sinais focais e sem irritação meníngea e coma sem sinais focais, mas com irritação meníngea.

Estas causas podem ser exemplificadas pelas seguintes situações: abcesso ou tumor do sistema nervoso central, acidente vascular cerebral, hidrocefalia, encefalopatia hipóxico-isquémica, meningite, encefalite, doenças desmielinizantes, encefalopatia hipertensiva, doenças metabólicas sistémicas (por ex.: hipoglicemia, hiperglicemia, falência hepática, uremia, desequilíbrios hidroelectrolíticos, síndroma de Reye, doenças hereditárias do metabolismo), intoxicações, doenças inflamatórias autoimunes (sarcoidose, cerebrite do lúpus, síndroma de Sjögren), estado de mal epiléptico, etc.. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Causas de coma na idade pediátrica

SEMIOLOGIA E QUADROS CLÍNICOS

Coma com sinais focais

Coma sem sinais focais e sem sinais de irritação meníngea

Coma sem sinais focais mas com sinais de irritação meníngea

    • Hemorragia intracraniana
    • AVC
    • Tumores
    • Abcessos cerebrais
    • Status pós-convulsivo (paralisia de Todd)
    • Encefalomielite aguda disseminada
    • Hipoxia/isquemia (anemia grave, apneia, asfixia, intoxicação por CO, afogamento, choque)
    • Alterações metabólicas (hipoglicemia, acidose, hiperamoniemia, uremia, alterações electrolíticas, doenças hereditárias do metabolismo)
    • Infecções sistémicas
    • Distúrbios pós-infecciosos
    • Encefalopatia pós-imunização
    • Drogas e toxinas
    • Malária cerebral
    • Encefalopatia hipertensiva
    • Status pós-convulsivos
    • Meningite
    • Encefalite
    • Hemorragia subaracnoideia

Exame clínico inicial e diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas associadas ao estado de coma variam consoante a etiologia deste. Para o correcto diagnóstico etiológico, pressupõe-se um trabalho de equipa com medidas diversas executadas de modo coordenado e concomitante por diversos elementos para garantir eficácia, tentando evitar lesões neurológicas secundárias.

A abordagem inicial de um doente em coma, ou com compromisso do estado de vigília, baseia-se no princípio de que se trata dum quadro clínico com risco iminente de vida, com necessidade de estabilização emergente e de manutenção das funções vitais. Nesta perspectiva, é fundamental proceder à anamnese e ao exame físico, como base para a realização de exames complementares face às hipóteses de diagnóstico formuladas e subsequente orientação terapêutica.

 Anamnese

Importa inquirir sobre antecedentes de doença crónica, antecedentes familiares, forma de início do coma, traumatismo crânio-encefálico (TCE) recente, possibilidade de intoxicação, febre, doença aguda recente, ingestão de tóxicos, fármacos, doença prévia ou concomitante, vómitos matinais e cefaleias, convulsões, etc..

Exame objectivo

O exame físico implica a monitorização da FC, FR, PA, saturação O2-Hb (SpO2); salienta-se a importância da pesquisa de sinais exteriores de TCE, de odor peculiar (sugestivo de cetoacidose diabética, de intoxicação alcoólica ou por organofosforados), de sinais cutâneos (por ex.: em relação com discrasia hemorrágica, pigmentação), de febre, de sinais meníngeos, etc..

É importante realçar que a presença de sinais neurológicos focais é sugestiva de coma de causa estrutural.

No âmbito do referido exame, salientando a componente neurológica, deverão ser contemplados obrigatoriamente os seguintes parâmetros:

Avaliação do nível de consciência

Deve ser efectuada através da já referida escala quantitativa (Escala de Coma de Glasgow/GCS). (Quadro 2)

Oscila entre um valor mínimo de 3 pontos e um máximo de 15 pontos, devendo ser considerada a melhor resposta em cada avaliação. Um valor £ 8 sugere disfunção cerebral grave e indica necessidade de entubação endotraqueal imediata e de ventilação mecânica.

QUADRO 2 – Escala de coma de Glasgow (*)

Actividade

< 5 anos

≥ 5 anos

Pontuação

Abertura das pálpebras

Espontânea
À voz
À dor
Sem resposta

Espontânea
À voz
À dor
Sem resposta

4
3
2
1

Verbal

Vocaliza, palra
Irritado, chora
Chora com dor
Geme com dor
Sem resposta

Orientada e adequada
Discurso desorientado
Palavras sem nexo
Ininteligível
Sem resposta

5
4
3
2
1

Motora

Movimentos espontâneos
De fuga à estimulação táctil
De fuga à dor
Flexão anormal
Extensão anormal
Sem resposta

Obedece a ordens
Localiza a dor
Fuga
Em flexão
Em extensão
Sem resposta

6
5
4
3
2
1

(*) Nalguns centros utiliza-se também a chamada nova escala de coma ou The FOUR Score (sigla do inglês: Full Outline of UnResponsiveness), avaliando quatro componentes: olho, motor, tronco cerebral e respiração, atribuindo-se a cada componente a pontuação máxima de 4. Segundo certos especialistas são reconhecidas vantagens a este critério relativamente à escala Glasgow: avaliação dos reflexos relacionados com o tronco cerebral, avaliação do padrão respiratório, reconhecimento da síndroma locked in e reconhecimento de diversos estados de herniação.

Padrão respiratório

Podem ser detectados diversos padrões respiratórios no contexto de coma. (Figura 1)

  • Respiração de Cheyne-Stokes: respiração periódica, com amplitude em crescendo/decrescendo, seguida de pausas de apneia. Surge nas lesões bilaterais dos hemisférios, do diencéfalo ou em situações do foro metabólico.
  • Respiração de Kussmaul ou hiperventilação: hiperpneia rápida e profunda. Pode indiciar lesão do mesencéfalo, na ausência de hipoxia ou acidose metabólica.
  • Respiração apnéustica: pausas respiratórias prolongadas. Associada em geral a lesões da protuberância.
  • Respiração atáxica ou de Biot: respiração irregular, desorganizada, implicando possível lesão bulbar.
  • Hipoventilação: pode verificar-se nos casos de depressão respiratória secundária a drogas com efeito de depressão do SNC.

FIGURA 1. Coma e tipo de respiração

Pupilas

Nos comas metabólicos observa-se em geral miose reactiva, enquanto nas intoxicações por atropina e na hipoxia aguda se verifica midríase não reactiva. Outras intoxicações, como as provocadas por cocaína, anfetaminas ou álcool, podem provocar midríase com reflexo pupilar presente. As benzodiazepinas, os opiáceos e os barbitúricos tendem a produzir miose com reflexo pupilar preservado. Na situação de estado de mal epiléptico as alterações pupilares são diversas, incluindo anisocoria.

Havendo lesão estrutural, podem ser observadas as seguintes correspondências: mesencéfalo – midríase média; protuberância – miose reactiva; 3º par unilateral – midríase unilateral; diencéfalo – miose reactiva.

Movimentos oculares e reflexos

O exame dos movimentos oculares é importante para obter informação sobre a integridade do tronco cerebral. Quando existe perda da consciência, os movimentos voluntários desaparecem, devendo recorrer-se aos reflexos.

  • Reflexo oculocefálico ou dos “olhos de boneca” (pesquisa contra-indicada se existe possibilidade de traumatismo cervical) – com a deslocação lateral da cabeça, se o tronco cerebral estiver intacto, ambos os olhos se deslocam em direcção contrária ao movimento lateral.
  • Reflexo oculovestibular – ao instilar lentamente água fria no canal auditivo externo os olhos desviam-se para esse lado.
  • Reflexo corneano – ao estimular com algodão (5º par), produz-se pestanejo (7º par) e desvio do olho para cima (3º par). Neste reflexo participam os núcleos dos referidos pares (3º – mesencefálico; 5º e 7º – bulboprotuberanciais).

No que respeita a desvios conjugados:

  • Desvio para cima é próprio de lesão hemisférica;
  • Desvio para o lado paralisado pode ser devido a lesão da protuberância.
Função motora

As respostas motoras dão informação sobre o nível da lesão.

  • Postura e movimentos espontâneos – a presença de padrão hemiplégico sugere disfunção a qualquer nível da via piramidal; se há movimentos anormais como tremores ou mioclonias, há que admitir a hipótese de coma metabólico. No caso de escassez de movimentos devem ser observados a postura e os movimentos provocados por estímulos dolorosos; se o doente colaborar, localizando de modo correcto a dor, haverá integridade das vias motoras e sensitivas; se tal não acontecer, poderá haver lesão focal.
  • Rigidez de descorticação – traduz-se por hiperextensão das extremidades inferiores e flexão das extremidades superiores; tal corresponde a interrupção das vias cortico-espinhais e possível lesão na cápsula interna ou pedúnculo cerebral.
  • Rigidez de descerebração – hiperextensão das quatro extremidades; esta postura poderá corresponder a lesões mesencéfalo-pontinas ou cerebrais difusas.
  • Flacidez difusa – pode corresponder a lesão bulbar, medular e surgir associada ao coma metabólico profundo.
Sinais meníngeos

Os sinais meníngeos podem estar presentes na meningite, na hemorragia subaracnoideia e nos tumores da fossa posterior.

Sinais e sintomas de hipertensão intracraniana
  • Cefaleia matutina, vómitos em jacto, deterioração do nível de consciência, alterações da conduta, edema da papila, tríade de Cushing (hipertensão arterial, bradicardia, respiração irregular), convulsões, etc..
  • No lactente (com a fontanela anterior não encerrada, designadamente) o quadro clínico tem especificidades: hipertensão e bombeamento da fontanela anterior, olhos em sol poente, aumento das dimensões do perímetro craniano, deiscência das suturas, irritabilidade, etc..
Sinais de herniação
  • Herniação transtentorial – surge na hipertensão intracraniana global com deterioração progressiva do estado de consciência – entre letargia e coma – associada a miose, rigidez de descorticação e respiração de Cheyne-Stokes. Na ausência de tratamento, poderá surgir compromisso mesencefálico (pupilas intermédias fixas, rigidez de descerebração e respiração de Kussmaul) e, posteriormente, sinais de compromisso bulboprotuberancial (respiração irregular e resposta motora ausente).
  • Herniação uncal devida a hipertensão intracraniana por tumor ou hemorragia hemisférica localizada, com compromisso ipsilateral do 3º par (midríase, ptose e parésia adutora).
  • Herniação das amígdalas cerebelosas através do buraco occipital; verifica-se compressão do tronco cerebral com hipertensão na fossa posterior, e desaparecimento dos reflexos vestibulares e oculares.

Exames complementares

A situação de coma implica a realização de determinados exames com carácter de urgência, a ponderar em função do contexto clínico (anamnese e exame objectivo inicial), quer inicialmente, quer ao longo da evolução.

  • Sangue: glicemia, gasometria, hemograma completo e morfologia, ureia, ionograma incluindo cálcio, fósforo, magnésio e hiato iónico, provas de função renal e hepática, lactato, amónia, provas de coagulação, proteína C reactiva, serologias, doseamento de medicamentos antiepilépticos, etc.;
  • Urina: análise sumária, urocultura, pesquisa de tóxicos (principalmente em adolescentes);
  • Líquido cefalorraquidiano: frequentemente é necessário efectuar punção lombar para excluir a infecção do SNC (ter atenção aos sinais de hipertensão intracraniana, em que a punção lombar estará contra-indicada); igualmente, lactato, PCR para vírus, culturas especiais;
  • TAC ou RM CE urgentes (e outros exames de imagem) caso haja, por exemplo, suspeita de TCE ou de hemorragia do SNC, hipertensão intracraniana (HIC) e/ou herniação;
  • EEG nos casos de convulsões e/ou suspeita de encefalite e coma de etiologia tóxico-metabólica;
  • Se a causa não for evidente devem ser guardados sangue, urina e, eventualmente, conteúdo gástrico (este último para uma pesquisa mais alargada de tóxicos);
  • Outros exames mais específicos a realizar em função da suspeita etiológica (doseamento de aminoácidos no sangue e na urina, doseamento de ácidos orgânicos na urina, ácidos gordos livres e carnitina, amónia, função tiroideia, estudos virológicos, etc.).

Tratamento

A intervenção terapêutica obedece aos seguintes princípios: estabilização inicial e monitorização, tratamento imediato das causas tóxico-metabólicas, tratamento da HIC, e tratamento etiológico.

Estabilização inicial e monitorização

Neste tipo de intervenção prioritário, (monitorizando continuamente os parâmetros FC, FR, PA, SpO2-Hb e temperatura), aplicam-se os princípios da reanimação, já abordados noutro capítulo, e sintetizados a seguir.

  • A (Airway): permeabilização e estabilização da via aérea.
    (Deve ser dada uma atenção particular ao cuidado com a mobilização cervical sempre que se suspeite de causa traumática);
  • B (Breathing): avaliação da função respiratória e, se necessário, entubação endotraqueal e ventilação mecânica;
  • C (Circulation): avaliação da função circulatória (sinais vitais, pulsos periféricos, repercussão da má perfusão nos órgãos-alvo), garantindo normovolemia, PA normal, SpO2-Hb > 95% e hematócrito > 30% para eficaz perfusão tecidual.

A hipotensão deve ser tratada com fluidos e inotrópicos; se houver hipertensão, a mesma deverá ser combatida paulatinamente.

As medidas de protecção cerebral incluem:

  • A colocação da cabeça na linha média e inclinada 30º sobre a horizontal (caso não se verifique hipotensão arterial);
  • Analgesia para evitar estímulos susceptíveis de gerarem HIC;
  • Vigilância da temperatura, mantendo a normotermia;
  • Sedação a ponderar tendo em conta a repercussão sobre a valorização dos sinais neurológicos.

Tratamento imediato das causas metabólicas e tóxicas

  • A hipoglicemia é uma emergência médica que deve estar sempre presente quando se avalia uma criança em coma. Assim que exista um acesso vascular e após colheita de sangue, caso não seja possível determinar de imediato a glicemia capilar, deve ser administrado um bolus de glicose 10% na dose de 2,5 mL/kg IV;
  • Correcção das alterações hidroelectrolíticas e do equilíbrio ácido-base;
  • Tratamento das convulsões;
  • Tratamento da intoxicação por opiáceos: naloxona na dose de 0,01-0,1 mg/kg por via subcutânea, IM, IV ou intra-óssea. Poderá ser necessário administrar várias doses, uma vez que a vida média da naloxona é mais curta que a do tóxico. Nos casos de coma sem etiologia esclarecida, a naloxona pode ser administrada como tratamento de prova;
  • Tratamento da intoxicação por benzodiazepinas: flumazenil IV na dose de 0,01 mg/kg em 15 segundos, até máximo de 0,2 mg/dose. Se os sinais clínicos persistirem, pode repetir-se a dose inicial de minuto a minuto até máximo de 1 mg.

O tratamento de situações como diabetes, hiperamoniemia, SHU, meningite, encefalite vírica, etc. foi abordado nos respectivos capítulos. Nesta alínea referimo-nos sucintamente apenas aos seguintes quadros:

  • Intoxicação pelo chumbo, obrigando ao emprego de quelantes; a este propósito sugere-se ao leitor a consulta do capítulo sobre Intoxicações agudas;
  • Intoxicação por CO obrigando a oxigénio a 100% e, eventualmente, câmara hiperbárica;
  • Intoxicação pelo álcool originando défice de tiamina (vitamina B1), obrigando a administração desta vitamina (10-25 mg/dose), até 100 mg/dose.

Tratamento da hipertensão intracraniana

O tratamento da HIC foi abordado noutro capítulo.

Prognóstico

O coma é uma situação que pode ser consequência de múltiplos processos. Daqui resulta que a evolução do quadro dependa fundamentalmente da etiologia. Em geral, pode afirmar-se que as lesões estruturais cursam com maior mortalidade do que as não estruturais.

Sendo um estado transitório, geralmente de duração inferior a 2-4 semanas, período após o qual o paciente recupera (de forma completa ou com sequelas e incapacidade), morre ou evolui para estado vegetativo ou para estado de mínima consciência.

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Definição e importância do problema

O choque é uma situação clínica relativamente frequente em idade pediátrica, sendo uma causa importante de morbilidade e mortalidade em todo o mundo.

Define-se como um estado agudo de falência energética em que existe insuficiência da microcirculação com consequente perfusão inadequada dos tecidos, sendo, a oferta de oxigénio e nutrientes, desajustada em relação às necessidades metabólicas.

O atraso no reconhecimento e consequente atraso no tratamento do choque resulta em metabolismo anaeróbio (menos eficiente), acidose tecidual e progressão de um estado compensado reversível para um estado de irreversibilidade com falência multiorgânica com uma probabilidade de morte directamente proporcional ao número de órgãos em falência.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com diversos estudos, o quadro de choque ocorre em cerca de 2 a 3% dos doentes hospitalizados (idade pediátrica e adultos), com uma mortalidade que tem diminuído muito nas últimas décadas graças aos progressos que permitem o reconhecimento e diagnóstico cada vez mais precoces, e também ao desenvolvimento de técnicas invasivas de diagnóstico e terapêutica.

Na perspectiva epidemiológica, e no que respeita a factores etiológicos em idade pediátrica adiante analisados, é importante salientar que o choque hipovolémico é o mais frequente, quer seja devido a hemorragia aguda (nos países desenvolvidos), quer a desidratação aguda por gastrenterite (nos países em vias de desenvolvimento).

No referido grupo etário, o choque cardiogénico é pouco frequente.

Por outro lado, a infecção constitui uma das principais causas de mortalidade nas unidades de cuidados intensivos.

Etiopatogénese e classificação

A perfusão tecidual depende da pressão arterial, sendo esta dependente de três variáveis relacionadas com a função cardiocirculatória:

  • O volume sanguíneo que deve ser adequado e com uma viscosidade sanguínea equilibrada;
  • A contractilidade cardíaca;
  • O tono vascular arterial e venoso que determina as resistências vasculares.

Qualquer interferência num destes factores poderá resultar em falência cardiocirculatória e choque.

Dado que a função essencial do sistema cardiovascular é levar aos tecidos o oxigénio adequado às suas necessidades, tal só poderá ser feito de forma eficaz em presença de condições de normalidade do mesmo.

O transporte de O2 aos tecidos (DO2) é o resultado do produto do débito cardíaco (DC) pelo conteúdo arterial de O2 (CaO2), de acordo com a fórmula:

DO2 = DC x Ca O2 (VN = 520 – 570 ml/min/m2)

Quando há diminuição da pressão arterial é desencadeada no organismo uma série de mecanismos de compensação para tentar manter a perfusão e oxigenação adequadas ao nível dos tecidos.

Inicialmente há uma activação do sistema simpático através da estimulação dos barorreceptores carotídeos, o que leva a um aumento do débito cardíaco por aumento da frequência e contractilidade cardíacas e a vasoconstrição periférica. Estes fenómenos conduzem a uma redistribuição do fluxo sanguíneo, com desvio para áreas “nobres” ou prioritárias em termos fisiológicos, como o cérebro e coração, em detrimento doutras em que o fluxo sanguíneo diminui – pele, músculo e circulação esplâncnica.

Para além do sistema simpático são activados diversos mecanismos endócrinos, nomeadamente, libertação de hormona antidiurética (HAD) e activação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, levando a aumento da reabsorção renal de água e sódio com aumento do volume intravascular.

Esta resposta neuroendócrina compensatória, eficaz até certos limites, determina as várias fases do choque.

Classicamente, a resposta hemodinâmica correlacionando-se com a clínica, pode ser consubstanciada em três fases:

  1. Choque hiperdinâmico (choque compensado, choque quente)
    A resposta hemodinâmica compensatória é eficaz. Assim, a pressão arterial é normal, a frequência cardíaca é normal ou pode estar aumentada, e a diurese é normal;
  2. Choque hipodinâmico (choque descompensado, choque frio)
    Há falência da resposta hemodinâmica. O que caracteriza esta fase é a hipotensão arterial associada a taquicardia e sinais de hipoperfusão – diurese diminuída, depressão da consciência;
  3. Choque irreversível
    Há falência de órgãos e a morte é inevitável.

Desta evolução decorre que o choque pode ocorrer sem hipotensão; ou seja, a hipotensão, quando detectada, corresponde já a uma fase de falência dos mecanismos de compensação. É sempre um sinal tardio.

Embora os factores etiológicos do choque sejam múltiplos, os mecanismos patogénicos desencadeados pelos vários determinantes são os mesmos a nível celular e molecular, o que resulta numa apresentação clínica comum.

Com efeito, sabe-se, desde há vários anos, que em resposta a uma agressão grave, que pode ser infecciosa, traumática ou outra, há uma resposta inflamatória sistémica não específica designada síndroma de resposta inflamatória sistémica (SIRS). Mais do que a entidade agressora é esta resposta do hospedeiro que vai condicionar o prognóstico. Os mediadores inflamatórios produzidos com o intuito de combater o agente agressor tornam-se, a partir de certo ponto, os responsáveis pela manutenção das lesões celulares. Esta resposta inflamatória pode progredir independentemente da remoção da causa desencadeante para estádios de gravidade crescente. (ver capítulo sobre Sépsis)

As endotoxinas e exotoxinas circulantes induzem a libertação de mediadores pró-inflamatórios e anti-inflamatórios de cujo balanço resulta o quadro clínico. Se houver predomínio de mediadores pró-inflamatórios será desencadeada a cascata da inflamação, surgindo uma situação clínica de SIRS.

O endotélio e a parede vascular têm um papel chave em todo este processo. (Figura 1)

FIG. 1 – Fisiopatologia do Choque

O endotélio é o maior órgão do organismo e desempenha um papel relevante na vasorregulação. É local de actuação e de produção de muitos mediadores.

Há perda do tono vascular e aumento da permeabilidade vascular, com vasodilatação e depleção do volume intravascular, que originam hipotensão, e hipóxia tecidual, com aumento do lactato e morte celular. Para além disso, o endotélio activado, com uma actividade pró-coagulante e fibrinolítica, é responsável por fenómenos de adesão plaquetária e microtromboses, o que contribui para diminuir, ainda mais, a perfusão dos tecidos.

De acordo com os aspectos da etiopatogénese, pode classificar-se o choque como se sintetiza no Quadro 1.

QUADRO 1 – Classificação etiopatogénica do choque

Hipovolémico (défice de volume intravascular)

      • Desidratação
      • Hemorragia
      • Queimadura

Cardiogénico (falência da bomba cardíaca)

      • Cardiopatias congénitas
      • Disritmias
      • Cirurgia cardíaca
      • Miocardite

Distributivo (alteração do tono vascular)

      • Anafilaxia
      • Neurogénico: secção da medula espinhal, bloqueio simpático

Obstrutivo (obstáculo mecânico à ejecção ventricular)

      • Pneumotórax hipertensivo
      • Tamponamento cardíaco
Séptico (distributivo, hipovolémico, cardiogénico)

 

Como se depreende pela análise da lista do Quadro 1, em determinadas situações verificam-se mecanismos associados, sendo alguns deles comuns a diversas entidades clínicas.

O choque séptico é o exemplo clássico em que existe simultaneamente uma hipovolémia profunda em paralelo com alterações da distribuição do fluxo sanguíneo e também, muitas vezes, disfunção cardíaca. É também frequente que crianças com cardiopatias congénitas apresentem, em simultâneo, choque cardiogénico e hipovolémico devido a défice de suprimento hídrico por não ingesta, ou a perdas gastrintestinais.

 Manifestações clínicas e exames complementares

Um doente que evidencie um quadro de choque constitui uma emergência médica, necessitando duma avaliação clínica rigorosa paralelamente à instituição rápida de medidas terapêuticas adequadas.

A primeira avaliação deve ser feita com base apenas em parâmetros clínicos, sem necessidade de recursos semiológicos complexos, permite, em geral, o reconhecimento da fase evolutiva do choque.

Sendo o choque uma síndroma multissistémica com disfunção em grau variável de todos os órgãos, o objectivo da avaliação semiológica inicial é, fundamentalmente, a detecção de sinais de défice de perfusão tecidual (estado de consciência, temperatura diferencial, tempo de reperfusão capilar, diurese) e a avaliação das funções cardíaca e respiratória. (Quadro 2)

Quadro 2 – Parâmetros prioritários de avaliação clínica

Função circulatória

      • Frequência e ritmo cardíacos
      • Pressão arterial não invasiva
      • Pulsos periféricos
      • Tempo de reperfusão capilar

Função respiratória

      • Frequência e esforço respiratórios
      • Saturação em O2/SpO2 (por oximetria de pulso)

Temperatura diferencial (central/periférica)

Diátese hemorrágica

      • Petéquias, sufusões, hemorragia das mucosas

Estado de consciência

Diurese


É importante reconhecer a situação de choque na fase de taquicardia, taquipneia, tempo de reperfusão capilar ligeiramente aumentado, com boa reactividade e com pressão arterial normal (choque compensado ou quente). A instituição de terapêutica nesta fase aumenta muito a probabilidade de sobrevivência.

O estudo laboratorial permite o diagnóstico do factor etiológico desencadeante do choque, bem como avaliar a repercussão na função dos vários órgãos.

Por outro lado, tratando-se duma situação complexa com indicação para assistência em unidades de cuidados intensivos, importa uma referência especial ao papel da monitorização invasiva na avaliação clínica do problema em análise, o choque. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Exames complementares nas situações de choque

    1. Diagnóstico de infecção
      Em função do contexto clínico estão indicados exames culturais seriados – sangue, urina, LCR, lesões cutâneas, etc..
    2. Avaliação clássica da função de órgãos
      Pulmonar/cardíaca – Gasometria, troponina, CPK/CK-MB, BNP, Radiografia do tórax, ECG, ecocardiograma
      Hematológica – Hemograma, provas de coagulação, fibrinogénio, dímeros-D, PDF
      Renal – ureia, creatinina, ionograma sérico e urinário
      Hepático-pancreática – ALT, AST, bilirrubinas, albumina, amilase, LDH
      Metabólica – glicémia, bicarbonato, lactato
      Neurológica – ecografia transfontanelar (em lactentes), EEG, TAC-CE, RM do neuro-eixo (casos a seleccionar)
    3. Avaliação por métodos invasivos

 

Notas importantes:

      • Deve excluir-se anemia e transfundir-se com concentrado eritrocitário, se necessário. São frequentes também a trombocitopénia e alteração das provas de coagulação.
      • Nas primeiras fases do choque é habitual a hiperglicémia secundária a resposta adrenérgica. São também frequentes, alterações da função renal, hipernatrémia (choque hipovolémico) e hipocalcémia (muito importante, uma vez que poderá condicionar depressão de função miocárdica).
      • A acidose metabólica é uma constante, por elevação do lactato sérico. Este último é o indicador mais precoce de hipoperfusão tecidual e um importante parâmetro de avaliação da eficácia da terapêutica.
      • O BNP (B-Type Natriuretic Peptide) é uma hormona produzida pelos miócitos ventriculares, sendo libertada em resposta ao estresse na parede miocárdica. Os níveis séricos elevam-se na sépsis e na insuficiência cardíaca com choque cardiogénico. Níveis elevados de BNP reflectem estresse miocárdico; a melhoria da função cardíaca está associada à normalização dos níveis de BNP.

No que respeita à monitorização invasiva, importa valorizar os seguintes parâmetros:

      • Saturação venosa em oxigénio: A medição da saturação em O2 na artéria pulmonar (MvO2 mixed venous oxygen saturation), utilizando um cateter de Swan-Ganz, não é utilizada na maioria das unidades de cuidados intensivos pediátricos, tendo sido substituída por outras técnicas menos invasivas, tal como a medição de saturação em oxigénio numa amostra colhida de um cateter venoso central (SvO2).
        Comparando a saturação venosa em oxigénio (SvO2) com a saturação arterial em oxigénio (SaO2) poderá determinar-se a diferença quanto a saturação em oxigénio arteriovenosa, assim como a ratio de extracção de O2 (O2ER). Num doente com SaO2 normal (93-100%), a SvO2 normal é ~65-77%, uma vez que os tecidos extraem 23-35% do oxigénio distribuído aos tecidos. Se a extracção de oxigénio for superior a 35% é porque a perfusão dos tecidos pode ser inadequada, reflectindo um estado de choque.
        Se a extracção de oxigénio for inferior a 23%, tal é explicável pelo facto de o sangue oxigenado poder estar a seguir um trajecto de derivação ou desvio (shunt) ao nível dos leitos capilares como resultado duma distribuição inapropriada de fluxo de sangue (choque distributivo com shunt arteriovenoso resultando de vasodilatação). A sépsis pode levar a inibição do metabolismo celular, diminuindo a extracção de oxigénio e, consequentemente, a aumento da saturação venosa em oxigénio.
      • Pressão venosa central (PVC): Para a medição de PVC, pode ser utilizado um cateter colocado na veia cava superior. A pressão de enchimento cardíaco medido por esse cateter reflecte a função ventricular e a compliance/distensibilidade e não necessariamente apenas o volume intravascular. Contudo, os valores obtidos associados aos achados clínicos podem ajudar na monitorização do doente. A PVC normal oscila entre 8 e 12 cm H2 Pressões mais elevadas podem reflectir excesso de fluidos ou insuficiência cardíaca direita.
      • Monitorização de débito cardíaco: Na maior parte das unidades de cuidados intensivos utiliza-se frequentemente o ecocardiograma como forma de monitorização dinâmica do débito cardíaco. O índice cardíaco (CI) é calculado dividindo o débito cardíaco pela área de superfície corporal. Valores normais de CI situam-se entre 3,5-5,5 L/min/m2. A monitorização do CI permite o incremento da eficácia e eficiência da terapêutica com volume e inotrópicos.

Outros métodos mais recentes para monitorização de débito cardíaco incluem o cateter de PICCO (pulse contour cardiac output) e o FATD (femoral artery thermodilution cateter).

      • Espectroscopia próxima dos infravermelhos (NIRS ou near-infrared spectroscopy): Método não invasivo que permite monitorizar a saturação em oxigénio nos tecidos em territórios específicos como o cérebro, rins e região mesentérica.
      • Essa informação permitirá avaliar a resposta às diversas terapêuticas.

Tratamento

As medidas terapêuticas do choque devem ser instituídas o mais rapidamente possível. Há numerosos estudos que demonstram a melhoria do prognóstico com baixa significativa da mortalidade nos doentes tratados agressivamente na primeira hora, a chamada hora de ouro.

As primeiras medidas terapêuticas são comuns à maioria dos tipos de choque, sendo que o conhecimento da respectiva etiopatogénese permite instituir medidas específicas importantes.

  • No choque hipovolémico é fundamental parar a perda aguda (contenção de focos hemorrágicos, de perdas gastrintestinais).
  • No choque anafiláctico é determinante a administração rápida de adrenalina intramuscular.
  • No choque séptico é obrigatória a instituição precoce de antibioticoterapia de largo espectro.

Como os princípios iniciais do tratamento do choque são muito semelhantes independentemente da etiologia, em 2007 o American College of Critical Care Medicine (ACCM) definiu com rigor os parâmetros para o tratamento do choque pediátrico e neonatal. Em 2012 a Surviving Sepsis Campaign divulgou recomendações suplementares, com idêntico objectivo.

Com base nas referidas normas e recomendações, são descritos seguidamente os passos fundamentais no tratamento do choque. (Figura 2)

FIG. 2 – Algoritmo de Tratamento do Choque.
Adaptado de: American College of Critical Care Medicine 2007 e Surviving sepsis campaign guidelines for management of pediatric and neonatal patients with sepsis shock 2012.
Abreviaturas: EV- endovenoso; IO-intra-ósseo; PA-pressão arterial; SF- soro fisiológico; ECMO- extra corporal membrane oxygenation (técnica de oxigenação com circulação extracorporal)

O reconhecimento do choque é clínico e deve ser feito nos primeiros minutos da nossa observação.

O objectivo principal e prioritário do tratamento é restaurar a perfusão tecidual normal.

São assim, objectivos terapêuticos no tratamento do choque:

  • Estado de Consciência Normal;
  • Pressão Arterial Normal para a idade;
  • Frequência Cardíaca Normal para a idade;
  • Pulsos Periféricos e Centrais normais;
  • Extremidades quentes com tempo de reperfusão capilar de 2 segundos, ou menos;
  • Diurese de pelo menos 1 mL/kg/h;
  • Níveis de Glicémia Normais;
  • Níveis de Cálcio Ionizado Normais;
  • Níveis de Lactato a diminuir.

Reanimação inicial

Abordagem ABC (airway, breathing, circulation)

  • A via aérea do doente deve ser assegurada e o doente deve ser adequadamente ventilado e oxigenado. Inicialmente deve ser administrado oxigénio suplementar de alto débito com FiO2 de 100%;
  • Se houver dificuldade respiratória poderá tentar-se cânula nasal de oxigénio de alto fluxo ou ventilação não invasiva;
  • Se houver falência respiratória, considerar entubação e ventilação mecânica;
  • Se a via aérea puder ser mantida, e oxigenação e ventilação suportadas sem intervenção imediata do ponto de vista respiratório, deverá atrasar-se a entubação para permitir ressuscitação rápida e agressiva de fluidos. Esta recomendação advém do efeito potencialmente negativo da ventilação com pressão positiva no retorno venoso e na estabilidade cardíaca no doente hipovolémico.

Passos seguintes

  • Depois de assegurar a via aérea, assim como oxigenação e ventilação adequadas, deve canalizar-se de imediato 2 veias periféricas de bom calibre ou, na impossibilidade, garantir uma via intraóssea e iniciar de imediato ressuscitação hídrica, pedra basilar do tratamento de todas as situações de choque.
  • Deve proceder-se a uma primeira expansão vascular com administração de 20 mL/kg de soro fisiológico, em 5 – 10 minutos e, se o choque persistir e não houver sinais de sobrecarga hídrica (como sucede no choque cardiogénico), administrar mais dois bolus do mesmo volume.
  • É obrigatório ter em atenção os sinais de sobrecarga hídrica: taquipneia, tosse, fervores, hepatomegália. Se estes surgirem há que ser criterioso na administração de líquidos e iniciar o mais precocemente possível o suporte inotrópico.
  • Se não houver resposta às medidas terapêuticas anteriores e o doente se mantiver em choque deve iniciar-se a administração de fármacos inotrópicos. Estes usam-se em perfusão contínua, de preferência em veia central e com monitorização invasiva – pressão venosa central (PVC) e pressão arterial (PA). Deve-se, no entanto, salientar que o suporte inotrópico pode ser iniciado, sem risco, numa veia periférica de bom calibre.
    Na criança deve-se utilizar em primeiro lugar a dopamina – na dose de 5 mcg/kg/minuto, aumentando rapidamente para 10 mcg/kg/minuto, se necessário.

QUADRO 4 – Regra de preparação de inotrópicos

FÁRMACODILUENTEPREPARAÇÃORITMO DE INFUSÃO

ADRENALINA
NORADRENALINA
MILRINONA

Soro Fisiológico
Glicose a 5%

0,6 x peso + diluente até 100 ml1 ml/hora → 0,1 mg/kg/min

DOPAMINA
DOBUTAMINA
INAMRINONA
NITROGLICERINA
NITROPRUSSIATO

6 x peso + diluente até 100 ml1 ml / hora → 1 mg/kg/min

 

  • Se a hipotensão persistir, associa-se um vasopressor: a adrenalina no choque frio, e a noradrenalina no choque quente.
  • Se não houver resposta favorável, admite-se situação de choque resistente às catecolaminas. Nesta situação e, se houver risco de insuficiência adrenal, deve administrar-se hidrocortisona.
  • Pode suspeitar-se de insuficiência adrenal:
    • perante o surgimento de púrpura fulminante (síndroma de Waterhouse-Friderichsen);
    • nos doentes com anomalias conhecidas da suprarrenal ou da pituitária; ou
    • com terapêutica prévia com corticosteróides.
  • A hidrocortisona administra-se em dose de choque – 50 mg/m2/dia, em bolus, seguido de perfusão contínua com a mesma dose, mantida até à estabilização hemodinâmica, só sendo suspensa após a retirada dos inotrópicos. A utilização de metilprednisolona em altas doses e de dexametasona está contraindicada no choque séptico.
  • Se, depois de cumpridos todos os passos terapêuticos descritos, a situação de choque se mantiver, há que admitir uma de três hipóteses:
    1. Choque frio com Pressão Arterial Normal (e neste caso poderá adicionar-se dobutamina ou um inibidor da fosfodiesterase do tipo milrinona, ou considerar levosimendan);
    2. Choque frio com Pressão Arterial baixa (neste caso deverá titular-se o volume de fluidos administrados e da adrenalina);
      → Se se mantiver hipotensão, considerar a administração de noradrenalina.
      → Se SvO2 <70%, considerar a administração de dobutamina, milrinona ou levosimendan.
    3. Choque quente com Pressão Arterial Baixa (neste caso titular noradrenalina).
      → Se se mantiver hipotensão, ponderar a administração de vasopressina
                       ou
      angiotensina → Se SvO2 <70%, considerar baixa dose de adrenalina.

Nas situações de choque refractário pode-se considerar a hipótese de ECMO (extracorporeal membrane oxigenation).

Outras medidas terapêuticas

  • A correcção das alterações iónicas e metabólicas deve ser feita em simultâneo com as outras terapêuticas.
  • É importante manter a glicémia normal através do suplemento adequado de glicose ou da administração de insulina quando necessário.
  • A hipocalcémia, também habitual, deve ser corrigida precocemente. De facto, níveis baixos de cálcio ionizado têm sido associados a disfunção cardíaca. Por outro lado, a administração de cálcio está também recomendada no tratamento do choque causado por disritmias precipitadas por hipercaliémia, hipermagnesiémia ou por toxicidade de bloqueadores dos canais de cálcio.
  • A diátese hemorrágica, por vezes, com quadros de coagulação intravascular disseminada, é muito frequente em certos tipos de choque (choque séptico meningocócico). Para a sua resolução, o mais importante é o tratamento da causa desencadeante; contudo, muitas vezes é necessário tratamento substitutivo – concentrado eritrocitário, plasma, crioprecipitado, plaquetas. A tendência actual é para uma política transfusional restritiva pois os estudos mostram que não há vantagem na terapêutica liberal devido aos numerosos riscos dos derivados de sangue.
  • Deve manter-se valor da hemoglobina (Hb) na ordem de 9-10 g/dL. As transfusões de plasma e de crioprecipitado só devem ser realizadas se há manifestações de diátese activa e não para corrigir as provas de coagulação. A transfusão de plaquetas deve ser feita sempre que a contagem de plaquetas revelar ≤ 5000/mm3. Se for necessário, há que realizar técnicas invasivas ou intervenção cirúrgica, o valor das plaquetas deve ser > 50.000/mm3.
  • Sendo o rim um órgão atingido nas situações de choque, e sendo a lesão renal agravada pelos mecanismos de compensação hemodinâmica, deve evitar-se a oligoanúria prolongada, o que só é possível com a correcção da hipovolémia e da hipotensão.
  • Se surgir insuficiência renal oligoanúrica deve evitar-se a hipervolémia e a anasarca, instituindo precocemente depuração extra-renal. O método de eleição nestes casos é a hemofiltração venovenosa contínua.
  • No choque séptico é obrigatória a instituição precoce de antibioticoterapia de largo espectro, pelo menos com dois antimicrobianos, para cobertura dos agentes bacterianos mais prováveis. (ver capítulo sobre Sépsis)
  • Deve ser feita profilaxia da úlcera de estresse com inibidores dos receptores H2 ou inibidores da bomba de protões.

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Importância do problema

Embora o organismo humano esteja exposto a numerosos agentes infecciosos potencialmente patogénicos, os seus sistemas de defesa de primeira linha actuam nos locais de invasão impedindo, na maior parte dos casos, infecções com desfecho fatal.

A sequência de eventos após a entrada em circulação de um agente infeccioso é complexa, dependendo o resultado final do balanço entre a virulência daquele e a capacidade de resposta do hospedeiro.

Embora a inflamação seja uma resposta essencial do hospedeiro, o início e progressão da sépsis resulta de uma “desregulação” da resposta normal, habitualmente com um aumento tanto de mediadores pró-inflamatórios como anti-inflamatórios, iniciando-se uma cadeia de eventos que leva a lesões teciduais generalizadas.

Esta desregulação da resposta do hospedeiro, mais do que o microrganismo infeccioso primário, é tipicamente responsável pela disfunção orgânica e pelo prognóstico.

Apesar dos avanços consideráveis da medicina intensiva nas últimas décadas, a sépsis continua a ser uma das principais causas de morte na idade pediátrica, com taxas que têm diminuído muito ao longo dos anos, mas que ainda atingem valores oscilando entre os 8 e 12%. A precocidade da sua identificação e do tratamento adequado contribuem decisivamente para a melhoria do prognóstico.

Definições

Segundo o Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock de 2016  é uma síndroma de resposta inflamatória sistémica (SIRS) em presença de uma infecção suspeitada ou demonstrada, acompanhada de disfunção orgânica grave, compromisso da microcirculação e, em geral de desregulação imunológica.

Este processo reactivo de resposta  não é, contudo, específico da infecção, podendo ser desencadeado por qualquer noxa considerada grave como traumatismo, queimadura, pancreatite, grande cirurgia, etc. (SIRS não infecciosa).

 Os critérios utilizados para as definições de sépsis, sépsis grave, SIRS e choque séptico encontram-se descritos no Quadro 1.

Quadro 1 – Infecção sistémica e critérios de diagnóstico

SIRS

Presença de 2 dos 4 critérios seguintes, um dos quais obrigatoriamente alteração da temperatura ou número anormal de leucócitos.

      • Temperatura central > 38,5ᵒC ou < 36ᵒC.
      • Taquicárdia (FC > 2 DP acima do valor de referência para a idade) na ausência de estímulos externos, drogas ou estímulo doloroso; ou inexplicada, persistindo 30 minutos – 4 horas; ou
      • Bradicárdia (FC < percentil 10 para a idade) na ausência de estímulo vagal, drogas b-bloqueantes, cardiopatia congénita; ou inexplicada e persistente > 30 minutos.
      • Frequência respiratória (FR > 2 DP acima do valor de referência para a idade); ou ventilação mecânica por um processo agudo não relacionado com:
        1. doença neuromuscular subjacente; ou
        2. status pós-anestesia geral.
      • Leucocitose ou leucopénia (não induzida por quimioterapia) ou neutrófilos imaturos > 10%.
Infecção

Invasão do organismo por agente microbiano patogénico, com capacidade de multiplicação.

      1. suspeita; ou
      2. provada (por cultura positiva ou PCR-reacção em cadeia da polimerase); ou
      3. probabilidade elevada (achados clínicos sugestivos, achados imagiológicos, ou laboratoriais (por ex. presença de leucócitos em fluido normalmente estéril, víscera perfurada, radiografia de tórax compatível com pneumonia, exantema purpúrico ou petequial, ou púrpura fulminante)
Sépsis
SIRS na presença de, (ou como resultado de) infecção suspeita ou provada.
Sépsis grave

Sépsis associada a um dos seguintes parâmetros:

      1.  disfunção cardiovascular; ou
      2. síndroma de dificuldade respiratória aguda; ou
      3.  disfunção de dois ou mais órgãos.
Choque séptico

Sépsis associada a disfunção cardiovascular definida por:

      • hipotensão (PA < percentil 5 para a idade ou < 2 DP para a idade); ou necessidade de
      • drogas vasoactivas para manter pressão arterial normal (dopamina > 5 μg/Kg/minuto, ou dobutamina, adrenalina ou noradrenalina em qualquer dose; ou
      • dois dos seguintes critérios:
        • Acidose metabólica: défice de base (DB) > -5 mEq/L;
        • Lactato arterial aumentado > 2 vezes o limite superior do normal;
        • Oligúria: débito urinário < 0,5 mL/Kg/h;
        • Tempo de recoloração capilar aumentado: > 5 segundos;
        • Diferença entre a temperatura central e periférica > 3oC,…
          …apesar da administração fluido isotónico 40 ml/kg durante 1 hora.

Etiopatogénese

Dum modo geral, as infecções invasivas em crianças saudáveis no período pós-neonatal são provocadas predominantemente por três germes: Streptococcus pneumoniae, Neisseria meningitidis, e Haemophilus influenzae do tipo b, sendo que os programas de vacinação em diversos países têm contribuído para a redução da incidência de sépsis pelos referidos germes.

Causas mais raras de sépsis em crianças saudáveis incluem infecções por Staphylococcus aureus, Streptococcus dos grupos A, C e G e espécies de Salmonella. Na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia são analisados os agentes mais frequentes no RN.

Nas crianças com défices imunitários podem estar implicados agentes tais como Pseudomonas aeruginosa e fungos. Nas situações cuja gravidade obriga a internamento em unidades de cuidados intensivos com uso de técnicas invasivas de diagnóstico e terapêutica existe um risco acrescido de sépsis por Staphylococcus coagulase negativo, Enterococcus e S. aureus resistentes à meticilina.

Actualmente, devido à aplicação de medidas preventivas e à melhoria dos cuidados de saúde e das condições de vida da população, tem-se verificado a diminuição dos casos de sépsis grave e de choque séptico adquiridos na comunidade em indivíduos saudáveis.

Efectivamente, esta patologia afecta particularmente os doentes hospitalizados, portadores de doenças debilitantes, com imunodeficiência primária ou secundária, submetidos a técnicas invasivas de diagnóstico e terapêutica e portadores de microbioma altamente resistente devido, entre outras causas, ao uso excessivo de antibióticos de largo espectro em meio hospitalar.

Considerando todos os germes mencionados, cabe salientar que, embora seja condição indispensável a presença dos mesmos na corrente sanguínea, nem sempre tal presença conduz a sépsis ou choque séptico, o que depende, como foi referido, do balanço entre as características do microrganismo e o sistema de defesa imunitário do hospedeiro.

Certos vírus, designadamente vírus herpes, enterovírus e adenovírus podem provocar doença com manifestações semelhantes às da sépsis bacteriana, sobretudo em RN e lactentes.

Na etiopatogénese da sépsis estão envolvidos mecanismos muito complexos que funcionam sequencialmente “em cascata”. Há factores predisponentes do hospedeiro que aumentam a probabilidade de sépsis por determinados agentes.

São dados alguns exemplos: asplenia predispõe a infecção por S. pneumoniae; polisplenia predispõe a infecção por Salmonella; os germes anteriores originam com maior probabilidade sépsis nos casos de doença de células falciformes; a sobrecarga em ferro predispõe a infecção por Listeria monocytogenes, Yersinia enterocolitica e Vibrio vulnificus; deficiência em complemento (C5 a C9) predispõe a infecções pelo género Neisseria, etc..

A acção das bactérias Gram-positivas depende da produção de exotoxinas potentes (por ex. tétano, botulismo, difteria); quanto às Gram-negativas, é principalmente o componente da camada externa da parede celular (lipopolissacárido/LPS) que está implicado na patogénese da sépsis.

Algumas exotoxinas (chamadas superantigénios) elaboradas por estreptococos e estafilococos actuam do seguinte modo:

  • Estimulam a proliferação das células T, induzindo a libertação maciça de citocinas pró-inflamatórias (TNF-alfa, interferão-gama e IL-1) mesmo em casos de infecção localizada; e
  • Desencadeiam a resposta inflamatória sistémica responsável pelas alterações cardiovasculares e hemodinâmicas características da sépsis.

As endotoxinas ligam-se a receptores dos macrófagos (designadamente hTLR) e estimulam a produção e libertação de citocinas pró-inflamatórias (sobretudo TNF-a, IL-1 e IL-6), radicais livres de oxigénio e metabólitos do ácido araquidónico. (Figura 1)

Os metabólitos do ácido araquidónico incluem: tromboxano A2 que causa vasoconstrição e agregação das plaquetas; prostaglandinas (PGF 2-alfa que causa vasoconstrição e PGI2 que causa vasodilatação); os leucotrienos que levam a vasoconstrição, broncoconstrição e aumento da permeabilidade capilar. A TNF-alfa e algumas IL podem lesar o miocárdio, ao mesmo tempo que estimulam a sintetase do óxido nítrico (NO).

É também activada a via alterna do complemento bem como a cascata da coagulação, criando-se um estado pró-coagulante e antifibrinolítico que leva a fenómenos de microtrombose causadores de hipóxia e lesão tecidual. Há também consumo de factores de coagulação com estabelecimento de quadros de coagulação intravascular disseminada.

O endotélio vascular, com papel fundamental na vasorregulação, é o alvo e fonte de produção de muitos mediadores. O NO produzido pelas células endoteliais é responsável pelas alterações a nível da microcirculação com vasodilatação e fuga transcapilar causadoras da hipotensão que se observa nas situações de choque séptico.

Na tentativa de conter a produção de citocinas pró-inflamatórias há libertação de citocinas anti-inflamatórias – IL4, IL10, IL13. A interacção entre estes dois tipos de mediadores pode ser considerada uma “luta entre forças opostas”. O seu equilíbrio significaria a obtenção da homeostase no processo séptico.

A produção e libertação de citocinas em quantidades moderadas é importante e necessária na defesa eficaz contra a infecção. No entanto, a sua libertação anárquica ou em quantidade muito elevada determina uma resposta amplificada, ultrapassando a capacidade reguladora do organismo, o que contribui para as alterações cardiovasculares e hemodinâmicas, com implicação na mortalidade.

FIGURA 1. Fisiopatologia da sépsis

Manifestações clínicas e exames complementares

Os sinais e sintomas de sépsis são muito variáveis, dependendo da idade, da doença de base, da duração da doença e do microrganismo responsável, podendo o seu curso ser de instalação rápida ou progressiva.

Quanto menor for a idade do doente mais inespecífica é a sintomatologia. Não há nenhum sinal clínico que possa ser considerado um indicador específico e sensível de infecção grave; consequentemente, o diagnóstico de sépsis requer um alto índice de suspeição clínica no pressuposto de anamnese cuidada e exame físico rigoroso, fundamentando a execução racional de exames complementares.

Nos lactentes pequenos, os sinais mais precoces de sépsis são muitas vezes as alterações do estado de consciência com períodos de irritabilidade, choro inconsolável, prostração e apneia.

Nas crianças maiores é mais frequente a hipertermia com calafrio, taquicárdia, taquipneia, palidez, icterícia, distensão abdominal, diminuição ou ausência de pulsos periféricos, prolongamento do tempo de preenchimento capilar, extremidades frias e exantema. O exantema petequial ou purpúrico é muito característico da infecção por Neisseria meningitidis, mas também se observa frequentemente nas infecções por outros agentes (por ex. H. Influenzae, Enterovírus, Rickettsias). De salientar que a hipotensão é um sinal de aparecimento tardio, pela existência de mecanismos compensatórios.

Por vezes são evidentes sinais de infecção focal, como pneumonia, meningite, celulite, artrite. No momento do diagnóstico poderão ser detectados já sinais clínicos de disfunção de vários órgãos, sobretudo o cérebro (alteração do estado de consciência), pulmão, coração, rim (diminuição da diurese), e vasos sanguíneos e sangue (exantema petequial).

O doente com sépsis necessita duma avaliação clínica cuidada e de instituição rápida de terapêutica adequada. A primeira avaliação deve ser feita com base em parâmetros meramente clínicos, sem necessidade de grandes recursos; é extremamente importante, pois permite o reconhecimento precoce do doente com sépsis, a avaliação da fase evolutiva em que se encontra, como tal, a instituição precoce de medidas terapêuticas, gesto decisivo no prognóstico da doença.

Quando a evolução clínica é desfavorável e não há resposta às primeiras medidas terapêuticas, torna-se necessária a utilização de métodos invasivos de monitorização (pressão venosa central, pressão arterial e saturação venosa de oxigénio) e tratamento; em tais circunstâncias o doente deve ser transferido para uma unidade de cuidados intensivos pediátricos.

Devem ser avaliados os seguintes parâmetros: estado de consciência, a frequência e ritmo cardíaco, pressão arterial não invasiva, pulsos periféricos, tempo de recoloração capilar, frequência e esforço respiratório, saturação O2-Hb/SpO2 por oximetria de pulso, temperatura central e periférica, diurese e presença de manifestações de diátese hemorrágica (petéquias, sufusões, hemorragia das mucosas).

Torna-se necessária a confirmação microbiológica de infecção, com identificação do agente causal. Devem ser realizados exames culturais seriados de vários líquidos orgânicos: sangue, urina, fezes, LCR, secreções respiratórias, líquido pleural, peritonial ou sinovial, e também de exsudados e de lesões cutâneas. A punção lombar deve ser efectuada após estabilização hemodinâmica, respiratória e neurológica, sem que isso atrase a instituição da terapêutica antibiótica.

Outros exames úteis no diagnóstico de infecção são: a pesquisa de antigénios bacterianos por testes de aglutinação; a detecção de antigénios víricos nas secreções nasofaríngeas por imunofluorescência; e as técnicas de biologia molecular – PCR (reacção da polimerase em cadeia – polymerase chain reaction), no soro e LCR, consideradas as mais eficazes e confiáveis para o diagnóstico de infecção por um determinado agente.

Em todos os casos em que se admite, pela anamnese e exame objectivo, o diagnóstico de sépsis, e atendendo a que o respectivo quadro clínico se caracteriza por repercussão multissistémica, deve proceder-se a exames complementares de modo sistematizado para avaliação do grau de disfunção dos vários órgãos:

  • Hematológica – hemograma (com tipagem), provas de coagulação;
  • Renal – ureia, creatinina, ionogramas sérico e urinário;
  • Hepática – ALT, AST, bilirrubinas, albumina;
  • Metabólica – glucose, bicarbonato, lactato, défice de bases;
  • Respiratória – gasometria (para monitorização da hipóxia e da retenção de dióxido de carbono);
  • Neurológica – ecografia transfontanelar, EEG, TAC (a ponderar caso a caso).

Habitualmente, verifica-se a existência de leucocitose com elevação do número absoluto de neutrófilos imaturos, vacuolização dos neutrófilos, e corpos de Döhle. A neutropénia é um sinal de gravidade. São frequentes: trombocitopénia e alterações da coagulação com diminuição do nível sérico do fibrinogénio, assim como aumento da proteína C reactiva, da procalcitonina, dos tempos de protrombina e de tromboplastina parcial.

Tratamento

Medidas prioritárias

Nas situações de sépsis bacteriana, o diagnóstico e intervenção terapêutica precoces são decisivos para a melhoria do prognóstico, por se impedir a progressão para o estádio de choque séptico e de falência multiorgânica.

O objectivo prioritário é restaurar a perfusão tecidual através da estabilização hemodinâmica e manutenção de oxigenação e ventilação adequadas (se necessário com ventilação invasiva, reduzindo desta forma o gasto cardíaco). As medidas terapêuticas preconizadas com esta finalidade foram desenvolvidas no capítulo sobre Choque.

Antibioticoterapia

Por outro lado, está demonstrado que o início precoce de antibioticoterapia empírica adequada melhora significativamente o prognóstico, pelo que, após realização dos exames culturais, aquela deve ser iniciada de imediato (na primeira hora), e posteriormente ajustada de acordo com os resultados dos exames microbiológicos.

Para uma prescrição adequada é necessário ter em conta o quadro clínico, a idade do doente e os seus antecedentes no que respeita a doenças anteriores, estado imunitário e antibioticoterapia prévia. É também importante o conhecimento de factores epidemiológicos, bem como do padrão de resistência local aos antibióticos. É correcto começar com antibióticos de largo espectro, os quais devem ser substituídos por outros de espectro mais limitado logo que se conheçam os agentes bacterianos envolvidos e sua sensibilidade aos antimicrobianos.

Os antibióticos a utilizar nas situações mais frequentes estão resumidos no Quadro 2. Os mesmos destinam-se ao tratamento da sépsis em crianças com quadro clínico grave que necessitam de ser hospitalizadas ou que adquiriram a infecção em meio hospitalar.

QUADRO 2 – Antbioticoterapia na sépsis

(#) → Nas crianças de idade > 3 meses os antibióticos empíricos de primeira linha são sempre as cefalosporinas de 3ª geração, de acordo com o quadro. Somente se associa a vancomicina nos casos em que há forte suspeita de infecção por Streptococcus pneumoniae.
(x) → Considera-se a gentamicina como o aminoglicosídeo de 1ª escolha, reservando outros (amicacina e tobramicina) para situações mais específicas.
(•) → Carbapenems: como 2ª linha.

Idade

Agentes prováveis

Antibióticos
(esquemas a adaptar em função da probabilidade/contexto clínico ou germe isolado)

RN – 3 meses

    • Streptococcus grupo B
    • Enterobacteriáceas
    • Listeria
    • Herpes simplex(*)
    • Ampicilina + aminoglicosídeo(x) ou cefotaxima/ceftriaxona

(*) + aciclovir se suspeita

> 3 meses(#)
Crianças saudáveis

    • S. pneumoniae
    • Neisseria meningitidis
    • Haemophilus influenzae
    • Staphylococcus aureus
    • Streptococcus βhemolítico
    • Cefotaxima/ceftriaxona (+ vancomicina se suspeita de meningite por S. pneumoniae ou se estafilococo ou pneumococo resistente à meticilina)
    • Flucloxacilina + aminoglicosídeo
    • Penicilina + clindamicina

Imunodeficiência, neutropénia ou infecção nosocomial

    • Enterobacteriáceas
    • Pseudomonas
    • S. aureus coagulase negativo
    • Serratia
    • Candida
    • Vancomicina + agente anti-pseudomonas:
      • Ceftazidima ou cefepime
      • Tobramicina
    • Vancomicina + ceftazidima + aminoglicosídeo
    • Penicilina + inibidor das beta-lactamases (clavulânico, tazobactam, sulbactam);
    • Carbapenems(•) (imipenem ou meropenem);
    • Anfotericina B

Sépsis de origem abdominal

    • Enterobacteriáceas
    • Anaeróbios
    • Cefotaxima/ceftriaxona + gentamicina + metronidazol ou clindamicina

Salienta-se a importância da adopção de critérios rigorosos na prescrição de antibióticos ao tratar infecções adquiridas na comunidade em crianças aparentemente saudáveis até à data do episódio infeccioso; com efeito, em tal circunstância os germes microbianos responsáveis são, na maioria das vezes, sensíveis aos velhos antibióticos, os quais deverão ser utilizados como terapêutica de primeira linha.

Não se deve esquecer o controlo de algum foco infeccioso existente, designadamente através da drenagem de colecções, do desbridamenteo de tecidos infectados e da remoção de corpos estranhos ou outros dispositivos.

Outras medidas terapêuticas

Nos últimos anos, o melhor conhecimento da fisiopatologia da sépsis levou ao aparecimento de numerosas terapêuticas na tentativa de modificar ou modular a resposta inflamatória do hospedeiro à infecção.

São exemplos os usos: de imunoglobulina IV em altas doses (com especial indicação nas síndromas de choque tóxico), de anticorpos antiendotoxina, de anticitocinas (anti-TNFa, anti-IL1), e do inibidor da sintetase do óxido nítrico. De referir que com nenhuma destas terapêuticas se demonstrou eficácia no respeitante à redução da mortalidade por sépsis.

A interacção entre as actividades inflamatória e procoagulante abriu um novo caminho no âmbito da terapêutica com anticoagulantes. Em estudos realizados em adultos verificou-se que a administração de proteína C activada, anticoagulante endógeno com propriedades anti-inflamatórias, levou a redução da mortalidade em casos de sépsis grave, o que não aconteceu na idade pediátrica. A utilização de corticóides continua a ser controversa, sendo recomendada apenas em crianças com choque resistente às catecolaminas e com risco de insuficiência da suprarrenal ou do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal. Também as hipóteses de efeito benéfico com a administração da hormona de crescimento (GH), tendo como base a disfunção do eixo hipotálamo-hipofisário, não se confirmaram em estudos científicos.

E ainda, outras medidas deverão ser tidas em conta:

  • Transfusão de concentrado eritrocitário (para manter níveis de hemoglobina superiores a 10g/dL);
  • Transfusão de concentrado plaquetário se sangramento activo e plaquetas inferiores a 50.000/µL, ou de forma profiláctica se as plaquetas apresentarem valores inferiores a 20.000/µL;
  • Administração de plasma perante alterações da coagulação que a justifiquem (poderá ser efectuado um tromboelastograma prévio);
  • Controlo da glicemia;
  • Correcção de alterações iónicas;
  • Utilização de ECMO (extracorporeal membrane oxygenation) em situações específicas designadamente em contexto de choque séptico refractário.

Prevenção

Os aspectos principais da prevenção da infecção por Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis são abordados noutros capítulos.

A diminuição dos casos de infecção associada à prestação dos cuidados de saúde, através do cumprimento rigoroso das medidas de controlo de infecção deve ser hoje um objectivo prioritário em qualquer unidade de saúde, constituindo um dos principais indicadores de qualidade dos cuidados prestados.

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1. HIPERTERMIA

Definições e importância do problema

A temperatura corporal compreende dois componentes: a chamada temperatura central (ou do interior do corpo), e periférica (ou do exterior, à superfície do mesmo). A temperatura central pode ser representada pela temperatura rectal, esofágica e oral; por sua vez, a temperatura periférica pode ser exemplificada pela temperatura cutânea, em geral determinada na região axilar. Cabe salientar, a propósito, que a temperatura central se relaciona com o risco de lesão dos vários órgãos.

Os termorreceptores em relação com a temperatura periférica residem na pele, enquanto os receptores para a temperatura central estão localizados, não só na pele, como no córtex cerebral, hipotálamo, tronco cerebral, medula espinhal e estruturas abdominais profundas.

Com as variações de temperatura, estes receptores transmitem impulsos aferentes através do feixe lateral espinotalâmico para o termóstato central localizado no hipotálamo anterior/pré-óptico que, com papel regulador, contribui para que a temperatura corporal se mantenha dentro dos níveis de normalidade (36-37,5ºC).

O termo genérico hipertermia refere-se à situação em que se verifica elevação da temperatura corporal para além dos limites de regulação do hipotálamo, quer por perda, quer por ganho excessivo de calor. O termo febre, com uma acepção mais ampla, designa especificamente elevação da temperatura central > 38,5ºC associada a determinados sinais e sintomas como taquicardia, taquipneia, delírio, letargia, alterações electrocardiográficas, etc.. Muitas vezes estes termos são empregues impropriamente como sinónimos.

O termo golpe de calor, situação potencialmente fatal, caracteriza-se pela elevação da temperatura central > 40ºC, associada a sintomas e sinais com maior repercussão sobre o estado geral que na situação considerada febre.

Existem múltiplas implicações fisiopatológicas da elevação excessiva da temperatura, de grau diverso em função da susceptibilidade individual, de base genética. A este propósito salientam-se as repercussões neurológicas, sobretudo ao nível do cerebelo, órgão particularmente sensível a altas temperaturas; outros problemas relacionam-se com a possibilidade de lesões no tubo digestivo e neurológicas, como hemorragia intracraniana, enfarte cerebral, edema cerebral, hipóxia-isquémia, etc..

Etiopatogénese

Para a melhor compreensão dos problemas clínicos decorrentes de hipertermia, importa recordar os mecanismos fundamentais do balanço térmico no organismo.

O calor é produzido no organismo como resultado final do metabolismo celular e também adquirido a partir do ambiente. As reacções metabólicas são exotérmicas, contribuindo para 50-60 kcal/m2/hora. Durante um esforço físico intenso a produção de calor pode atingir valor 10-20 vezes superior ao do correspondente à situação basal.

Os mecanismos de transferência de calor são quatro:

1 – Convecção: o calor é transferido através do ar e do vapor de água circundante ao corpo (dependendo do movimento do ar na pele e velocidade do vento e explica o efeito do uso de roupas largas e folgadas em climas quentes para manter algum conforto);

2 – Radiação: o calor é transferido por ondas electromagnéticas; trata-se da principal fonte de ganho de calor em ambientes quentes – até 300 Kcal/hora podem ser ganhas num dia de Verão;

3 – Evaporação: a conversão de um líquido para um gás resulta em transferência de calor (por exemplo 1 litro de suor resulta em uma perda de 580 Kcal de calor);

4 – Condução: o contacto físico transfere calor de um objecto mais quente para um mais frio (a água é 25 vezes mais eficiente que o ar na condução de calor).

 A maior parcela da perda verifica-se através da pele, designadamente por evaporação induzida pela perspiração. De particularizar que através dos vasos à superfície da pele é perdido calor do sangue circulante a determinada temperatura por condução e convecção, sendo que o sistema simpático regula o débito sanguíneo ao nível da pele através do efeito sobre fibras vasodilatadoras ou vasoconstritoras.

As síndromas com hipertermia podem ter na sua base factores ambientais por aumento do calor (ondas de calor, maior humidade) ou diminuição da dissipação do calor (excesso de roupa, maior humidade, anidrose), aumento da produção de calor (exercício físico, tirotoxicose, hipertermia maligna, síndroma maligna neuroléptica, feocromocitoma, delirium tremens, hemorragia hipotalâmica, ingestão tóxica – simpaticomiméticos, anticolinérgicos, ecstasy) e causas genéticas ou desconhecidas. De salientar que nos casos de hipertermia em que se identifica o exercício físico como factor de risco, poderá haver concomitantemente predisposição genética.

A seguir à elevação da temperatura corporal (com maior impacte nas situações de golpe de calor) surge elevação do nível sérico de TNF-alfa, IL1, IL6 e de endotoxinas susceptíveis de originarem lesão tecidual. Do balanço entre os mediadores pró-inflamatórios (tais como interferão-gama e IL1-beta) e mediadores anti-inflamatórios (tais como TNF-alfa e IL10) resultará o grau de lesão. A vasodilatação que resulta dos mediadores desvia o sangue da circulação esplâncnica para a circulação à superfície, do que resulta, designadamente hipóxia-isquémia gastrintestinal. A activação da cascata da coagulação como resultado da lesão tecidual pela temperatura excessiva traduz-se pela presença do complexo trombina-antitrombina e por diminuição do nível sérico das proteínas C, S e da antitrombina III.

Formas clínicas

Golpe de calor

Nos casos de exposição a calor ambiente excessivo em diversos cenários pode verificar-se delírio, convulsões, letargia ou coma; neste contexto, com temperatura central > 40,6ºC deve suspeitar-se de golpe de calor.

Em relação com os eventos fisiopatotógicos atrás descritos, verifica-se o seguinte quadro clínico-biológico-imagiológico: hipotensão e hipovolémia, IRA, alterações electrocardiográficas e ecocardiográficas (disfunção miocárdica, disritmias, alterações da condução, alterações do intervalo QT e do segmento ST, etc.). O prolongamento do intervalo QT poderá ser devido a diminuição do cálcio, magnésio e/ou potássio séricos (hipocaliémia- inicialmente- como consequência da alcalose respiratória), hiponatrémia (perdas de Na por sudorese acentuada), hipoglicémia, hiperuricémia, rabdomiólise (valor elevado de CPK e mioglobinúria), acidose láctica (compensada com alcalose respiratória por hiperventilação) e CID são achados frequentes.

A rabdomiólise, frequente no contexto de golpe de calor, leva a hiperpotassémia com acção cardiotóxica, mioglobinúria, necrose diafragmática e insuficiência respiratória grave. Nos casos de rabdomiólise, e nas 24-48 horas subsequentes ao episódio agudo do golpe de calor, pode surgir quadro de choque por sequestração de volume considerável de fluido intramuscular (síndroma compartimental), o que agrava a necrose muscular por compressão.

O quadro de SDR (tipo adulto) com sinais de hipoventilação globar (pulmão branco) pode estar relacionado com lesão alveolar pulmonar com disfunção ou destruição do surfactante.

As complicações do golpe de calor ao nível do SNC poderão obrigar a TAC ou RM para esclarecimento de eventuais lesões.

O diagnóstico diferencial faz-se com afecções do SNC (por ex. meningoencefalite), doença de Graves, acção de drogas como neurolépticos e anticolinérgicos, síndromas de abstinência de drogas (narcóticos, benzodiazepinas), cetoacidose diabética, hipertermia maligna (esta última abordada adiante mais pormenorizadamente).

O tratamento (emergente) em UCIP implica a aplicação dum conjunto de medidas assim sintetizadas (Quadro 1):

  • Ressuscitação cardiorrespiratória em obediência aos princípios explanados no Capítulo próprio, admitindo-se a eventualidade de ulterior ventilação mecânica com PEEP e oxigenoterapia para correcção da hipoxémia, não ultrapassando FiO2 de 50%; há que ter atenção ao choque pelas 24-48 horas, após o episódio inicial nos casos de rabdomiólise;
  • Aplicação de vários métodos de arrefecimento com o objectivo de obter temperatura central < 39ºC;
  • Fluidoterapia/reidratação em caso de rabdomiólise, com o objectivo de promover diurese > 3 mL/kg/hora e prevenir a IRA;
  • Correcção das alterações electrolíticas, tais como hiperpotassémia, hipocalcémia, etc.;
  • Correcção da hiperfosfatémia com quelantes do fósforo e diálise;
  • Alcalinização da urina acrescentando bicarbonato de sódio aos fluidos IV (para obter pH urinário > 6,5 a fim de prevenir a precipitação da mioglobina no túbulo renal, necrose tubular e IRA);
  • Administração de manitol IV (0,25 g/kg) uma vez obtido o estado de hidratação, com o objectivo de promover diurese osmótica;
  • Fasciotomia nos casos de rabdomiólise com síndroma compartimental.

QUADRO 1 – Métodos de antipirexia no golpe de calor

Gerais

    • Criança sem roupa.
    • Antipirético associado a fluidoterapia anteriormente referida.
      • 1º fármaco ” paracetamol po (10-15 mg/kg/dose, 4-6x/dia, até 80 mg/dia; duração variável); em alternativa pode ser usado propacetamol IV em que 1 g <> 0,5 g de paracetamol
      • 2º fármaco ” ibuprofeno po (5-10 mg/kg/dia, 4-6x/dia, até 20 mg/kg/dia); duração variável
    • Banho com água a temperatura cerca de 4ºC inferior à temperatura central, precedido de antipirético.
    • Ingestão de líquidos se o estado do doente o permitir.


Específicos (a aplicar apenas em UCIP)

    • Imersão em água com gelo (risco de vasoconstrição, interferindo com as medidas de ressuscitação).
    • Aplicação de água atomizada em micropartículas (spray) com ar quente de modo a manter a temperatura corporal > 33ºC (equipamento próprio).
    • Envolvimento com lençol húmido associado a deslocação de ar com ventoinha.
    • Aplicação de sacos com gelo sobre as axilas, virilhas e pescoço.
    • Outros métodos (em investigação)
      • introdução, através de sonda, de água fria no estômago e bexiga
      • fluidoterapia IV com fluidos arrefecidos

 

Síndroma de hipertermia maligna clássica

A chamada hipertermia maligna (HM) clássica é definida como uma síndroma hereditária autossómica dominante, com expressividade e penetrância variáveis (em relação com gene anormal localizado em locus 19q13.1, conhecendo-se mais de 15 mutações); pode estar associada a determinadas miopatias, designadamente a conhecida por central core.

A sua incidência varia entre 1/15.000 anestesias efectuadas em crianças, e cerca de 1/50.000 em adultos.

A etiopatogénese relaciona-se com disfunção do músculo esquelético (estriado), traduzida por incapacidade de a membrana do retículo sarcoplásmico reter o cálcio, aumentando a sua libertação para a estrutura muscular envolvente, o que leva a contracção muscular permanente e consequente estado hipermetabólico. Este estado de hipermetabolismo conduz a um aumento do metabolismo anaeróbio por estimulação do catabolismo do glicogénio, com acumulação de ácido láctico, aumento da produção de calor e de CO2 e aumento de consumo de O2. O aumento da permeabilidade das membranas leva a necrose das fibras musculares (rabdomiólise) com libertação de enzimas, electrólitos e mioglobina para a circulação sanguínea. Como se pode depreender, existe repercussão destas alterações ao nível de vários órgãos e sistemas, pelo que o doente deverá estar monitorizado em UCIP com apoio laboratorial e imagiológico contínuo.

As manifestações surgem sob a forma de episódios agudos na sequência de exposição do doente a certos anestésicos gerais potentes e a certos anestésicos locais (Quadro 2); para além da temperatura corporal excedendo por vezes 41ºC, verificam-se rigidez muscular, trismo, acidose respiratória e metabólica, taquicárdia e taquipneia (por vezes relacionável com SDR tipo adulto). Na ausência de intervenção emergente, a rabdomiólise leva a aumento dos valores de CPK ~ 35.000 UI/L e a mioglobinúria), verificando-se entretanto, taquicárdia, hipercaliémia e IRA mioglobinúrica. A repercussão hepática e hematológica traduz-se por elevação de ALT, LDH, TP, PTT, anemia, trombocitopénia, diminuição do fibrinogénio, aumento de PDF, etc..

QUADRO 2 – Hipertermia maligna (HM): agentes desencadeantes e agentes agravantes

* MAO = monoaminoxidase
DesencadeantesAgravantes
      • Halotano
      • Enflurano
      • Isoflurano
      • Desflurano
      • Sevoflurano
      • Metoxiflurano
      • Tricloroetileno
      • Ciclopropano
      • Contraste radiológico halogenado
      • Clorofórmio
      • Éter
      • Etileno
      • Succinilcolina
      • Drogas simpaticomiméticas
      • Drogas parassimpaticolíticas
      • Digitálicos
      • Cálcio
      • Potássio
      • Inibidores da MAO*
      • Inibidores da angiotensina
      • Antidepressivos tricíclicos
      • Bloqueantes dos canais de cálcio

Cabe salientar que a HM tem um espectro de apresentação clínica variável; de acordo com o Grupo Europeu de Hipertermia Maligna, distinguem-se os seguintes tipos: 1) fulminante – o mais grave com, pelo menos três das seguintes manifestações: taquicárdia e arritmia cardíaca, acidose, hipercápnia, rigidez muscular e febre; 2) espasmo do masséter – a única manifestação é a contractura do masséter ou trismo que, só por si pode levar a admitir o diagnóstico de HM em 50% dos casos; 3) abortivo, traduzindo-se por alguns dos sinais e sintomas ou alterações metabólicas descritos; a tríade “hipertermia, hipercápnia e acidose” constitui a associação mais frequente.

No diagnóstico diferencial da HM clássica há que ter em conta a chamada síndroma simile HM (SSHM) surgindo na ausência de exposição, quer a anestésicos, quer a succinilcolina; tal situação ocorre nos casos de coma hiperosmolar hiperglicémico não cetótico, associado a diabetes mellitus tipo 2, sendo que a hipertermia é desencadeada após administração de insulina. O quadro, mais frequente em obesos afroamericanos com acanthosis nigricans, é acompanhado de rabdomiólise, instabilidade hemodinâmica e falência de órgãos.

O tratamento de emergência da HM (a cargo do anestesista ou intensivista) integra um conjunto de medidas descritas nos Quadros 3, 4 e 5, relacionando aspectos semiológicos e diagnósticos com a actuação segundo a Associação da Hipertermia Maligna dos Estados Unidos da América.

QUADRO 3 – Hipertermia maligna: Avaliação Imediata

Avaliação imediata
Sinais de hipertermia malignaParagem cardíaca súbita/inesperadaTrismo ou contractura dos masseteres com succinilcolina
Aumento de ETCO2
(CO2 expirado)
Presumir hipercaliémia e iniciar tratamentoSinal precoce de HM
Rigidez corporalMedição de CPK, mioglobina e gasimetria até os valores normalizaremIniciar dantroleno se rigidez dos membros
Trismo ou contractura dos masseteresConsiderar dantrolenoPara procedimentos emergentes evitar agentes desencadeadores de HM; considerar dantroleno
Taquicardia/ taquipneiaSuspeitar de patologia miopática (ex. distrofia muscular)Monitorizar CPK imediatamente e de 6/6 horas até normalizar e pelo menos até 36 horas. Se urina escura testar para mioglobinúria
AcidoseReanimação pode ser difícil e prolongadaInternamento em Cuidados Intensivos até pelo menos 12 horas
Aumento da temperatura (pode ser um sinal tardio)  

QUADRO 4 – Hipertermia maligna: Tratamento na Fase Aguda

Tratamento na fase aguda
1. Notificar o cirurgião
      • descontinuar agentes voláteis e succinilcolina
      • hiperventilar com FiO2 100% ou > 10 L/minuto
      • suspender o procedimento quando possível; se emergente, não usar agentes desencadeantes
2. Dantroleno 2,5 mg/kg ev rápido
      • repetir até regressão dos sinais de HM
      • se necessário máxima dose 10-30 mg/kg
      • dissolver 20 mg em pelo menos 60 ml de água esterilizada
3. Bicarbonato para tratamento da acidose metabólica
      • 1-2 mEq/kg de imediato se ainda não houver valores de gasometria 
4. Arrefecimento do doente se temperatura central > 39ºC
      • lavagem das cavidades abertas (estômago: lavagem gástrica por sonda naso/orogástrica – instilar 10 ml/kg de água ou soro fisiológico gelado em 30-60 segundos e remover em 30-60 segundos (objectivo: reduzir 0,15ºC por minuto); também se pode utilizar a bexiga e a ampola rectal)
      • lavagem peritoneal por catéter peritoneal: instilar e drenar 500-1000 ml de soro fisiológico gelado até temperatura central atingir 38-39ºC (objectivo: reduzir 0,5ºC por minuto ou 5-10ºC por hora)
      • perfusão endovenosa de solução salina gelada
      • arrefecimento externo: aplicação de gelo à superfície corporal, imersão em água gelada, vaporização com água tépida (15ºC), evaporação com ventoínhas, ambiente frio (ar condicionado, refrigeração)
      • suspender estes procedimentos quando temperatura central < 38ºC
5. Disritmias geralmente respondendo ao tratamento da acidose e hipercaliémia
      • usar fármacos adequados excepto os bloqueadores dos canais de cálcio (risco de hipercaliémia ou paragem cardíaca na presença do dantroleno)
6. Hipercaliémia: tratar com hiperventilação, bicarbonato, glicose/insulina, calcio
      • bicarbonato ≥ 1-2 mEq/kg ev
      • insulina ≥ 0,1 Unidade/kg e 1 ml/kg de glicose a 50% (adulto: 10 U insulina regular ev e 50 ml de glicose a 50% ev)
      • gluconato de cálcio a 10% ≥ 10-50 mg/kg se risco de vida pela hipercaliémia
      • monitorizar glicemia de hora a hora
7. Monitorizar ETCO2, electrólitos, gasometria, CPK, temperatura central, diurese e coloração da urina, provas de coagulação
      • induzir diurese se < 0,5 ml/kg/h ou CPK e/ou caliémia em agravamento, para evitar insuficiência renal por mioglobinúria

QUADRO 5 – Hipertermia maligna: Tratamento na Fase Pós- Aguda

Tratamento na fase pós-aguda
      1. Observação do doente em Cuidados Intensivos até pelo menos 24 horas pelo risco de recorrência
      2. Dantroleno 1 mg/kg ev de 4-6 horas de intervalo ou 0,25 mg/kg/hora de perfusão ev, até pelo menos 24 horas
      3. Monitorizar CPK de 6/6 horas e gasimetrias frequentes (ver item 7. da fase aguda)
      4. Monitorizar mioglobinúria e prevenir a precipitação da mioglobina nos túbulos renais e subsequente insuficiência renal aguda. Promover diurese aumentada e alcalinização da urina com bicarbonato de sódio
      5. Sinalizar o doente e familiares em consultas médicas específicas. Risco de desenvolver esta situação em novas ocasiões e prevenção para que não ocorram

Síndroma neuroléptica maligna

Define-se a síndroma neuroléptica maligna (SNM) como situação rara associada ao uso de fármacos antipsicóticos após período de latência de dias ou semanas.

As manifestações clínicas incluem classicamente quatro sinais cardinais:

  1. Rigidez muscular;
  2. Alterações do estado mental (confusão, agitação, catatonia, encefalopatia, coma);
  3. Hipertermia; e
  4. Instabilidade autonómica (taquicárdia, HTA lábil, diaforese).

Para o tratamento têm sido usados os fármacos dantroleno, bromocriptina e amantadina.

Síndroma serotonínica

Define-se como síndroma serotonínica (SS) uma situação em que se verificam sinais de excesso de neurotransmissão serotoninérgica pós-sináptica por acção de um conjunto de fármacos após período de latência curto (~24 horas).

Os fármacos que podem produzir tal efeito, entre outros, incluem: fentanil, dextrometorfam, L-triptofano, anfetamina, cocaína, ecstasy, fluoxetina, amitriptilina, nortriptilina, linezolid (inibidor da MAO), etc..

As manifestações clínicas incluem uma tríade clássica de anomalias: 1) do estado mental (agitação, delírio); 2) da função neuromuscular (hiperreflexia, clono, hipertonia, tremor); e 3) da função autonómica (hipertermia, taquicárdia, HTA, diaforese, vómitos, diarreia). Por vezes é confundida com SNM, sendo que o clono não é proeminente nesta última.

O tratamento inclui as seguintes medidas:

  • Ressuscitação circulatória com fluidos;
  • Fenilefrina (vasoconstritor de acção directa) para tratar a hipotensão;
  • Cipro-heptadina (antídoto para SS) por via nasogástrica na dose diária de 0,25 mg/kg/dia dividida em 4 doses (dose máxima diária de 12 mg dos 2-6 anos, e de 16 mg dos 7-14 anos).

Nos casos de SSHM o tratamento inclui também o dantroleno; uma vez que o dantroleno é diluído em água esterilizada, concomitantemente deve administrar-se soluto salino hipertónico em dose a calcular, a fim de se prevenir o rápido declínio da osmolalidade sérica, susceptível de originar edema cerebral. 

2. HIPOTERMIA

Definições e importância do problema

Hipotermia é definida pela verificação de temperatura corporal central inferior a 35ºC. A hipotermia tem implicações clínicas importantes pelas alterações fisiopatológicas sistémicas e lesões teciduais locais ou sistémicas que pode provocar em função do grau, obrigando a medidas terapêuticas específicas. Tal pode acontecer designadamente em crianças e jovens expostos a ambientes de clima frio com neve e gelo durante grande parte do ano, e em cenários de desportos de neve e de escaladas de montanhas no inverno. Para além da hipotermia de causa ambiental, são exemplos de lesões provocadas pelo frio: a frieira, e a necrose gorda ou paniculite.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Tendo em consideração o balanço térmico descrito em 1. torna-se importante salientar que existe maior susceptibilidade à lesão pelo frio em situações de alteração circulatória por doença cardiovascular, desidratação, anemia, toxicodependência, sépsis, e idades extremas (infância e velhice). Surge, assim, hipotermia como epifenómeno da falência dos mecanismos de manutenção da normalidade da temperatura central relacionados com diminuição da perda ou tentativa de produção de calor (designadamente por vasoconstrição, arrepio, contracção muscular). O Quadro 6 resume os principais factores etiológicos da hipotermia (acidental ou não, ambiental ou não), cuja gravidade se pode classificar do seguinte modo:

1) Ligeira (35-32ºC); 2) Moderada (< 32-28ºC); 3) Grave (< 28ºC).

Nos casos de hipotermia moderada ou grave, a água intra ou extacelular congela, o que interfere no funcionamento da bomba de sódio e conduz a ruptura da membrana celular. Ocorrem igualmente alterações estruturais em células sanguíneas podendo verificar-se microembolismo ou trombose. Como resultado de respostas neurovasculares (vasoconstrição/vasodilatação), poderão surgir curto-circuitos veiculando sangue para zonas menos afectadas, o que agrava as lesões iniciais. O espectro de lesões abrange sobretudo vasos, nervos e pele.

Ao abordar o tópico Hipotermia, torna-se oportuno citar sucintamente alguns exemplos de manifestações clínicas relacionadas com o efeito do frio no organismo (causa ambiental) – lesões locais provocadas pela exposição prolongada ao frio (não necessariamente associadas a hipotermia):

      • Forma ligeira de alteração dos tecidos da pele pelo frio, especialmente da face, orelhas, extremidades dos dedos das mãos e pés em indivíduos expostos a temperaturas ~15ºC (áreas brancas e frias). Poderão surgir nos 2-3 dias seguintes vesículas e descamação. (Frostnip)
      • Frieiras (eritema pérnio), ou lesões eritemato-vesiculares, por vezes ulcerando, em zonas expostas a temperaturas < 15ºC (orelhas, dedos das mãos e pés). Verifica-se, também, discreto edema, dor e prurido, admitindo-se que se originem por vasoconstrição. Podem durar enquanto se verificar a exposição ao frio.
      • Necrose gorda induzida pelo frio (paniculite), situação benigna traduzida por lesões maculares, papulares ou nodulares durando em geral entre 1 a 3 semanas. Esta afecção foi abordada anteriormente em capítulo próprio.
      • Destruição da pele ou outros tecidos (sofrendo congelação e podendo levar a gangrena) por exposição a temperaturas entre 6ºC e -15ºC. (Frostbite)

QUADRO 6 – Factores etiológicos de hipotermia

Perdas de calor aumentadas
(ambiental, iatrogénica/tratamento do golpe de calor, queimaduras, dermatose esfoliativa, vasodilatação periférica/etanol, beta-bloqueantes, etc.).
Produção de calor diminuída
(insuficiência neuromuscular, hipoglicémia, má-nutrição, falência endocrinológica/hipopituitarismo, hipotiroidismo, hipoadrenalismo).
Alteração da termogénese
(patologia do SNC, acção de fármacos no SNC, falência do sistema nervoso periférico/neuropatias/lesão da espinhal medula).
Outras situações clínicas
(lesões de politraumatismo, choque, sépsis, pancreatite, intoxicação pela água, disautonomia familiar).


Em função do grau de hipotermia surgem manifestações clínicas e respostas diversas, endócrino-metabólicas e ao nível de vários sistemas (SNC, cardiovascular, respiratório, renal e neuromuscular), considerando respectivamente os símbolos:

L = ligeiras; M = moderadas; G = graves.

L: arrepio, taquipneia, taquicárdia, HTA, íleo paralítico, hipocaliémia, alcalose, diurese pelo frio estado confusional, disartria, ataxia, hiperreflexia.

M: arrepio inconstante, hipoventilação, hipoxémia e acidose respiratória, bradicárdia, hipotensão, hipovolémia/IRA, prolongamento do intervalo QT, pancreatite, doença péptica, hiperglicémia, hipercaliémia, acidose láctica, oligúria, rigidez, hemoconcentração, hipercoagulabilidade, agitação, midríase, hiporreflexia.

G: ausência de arrepio, apneia, edema pulmonar, SDR, AESP, FV, assitolia, pancreatite, doença péptica, hipercaliémia, hiperglicémia, acidose láctica, rabdomiólise, trombocitopénia, CID, IRA, coma, pupilas não reactivas, estado símile morte cerebral.

Exames complementares

No doente hipotérmico são considerados exames complementares prioritários: ionograma sérico, glicémia, provas de função renal, gasometria arterial, hemograma completo, estudo da coagulação e exame toxicológico para doseamento de fármacos e etanol.

Tratamento

A actuação nos casos de hipotermia consiste nas seguintes medidas, a ponderar em função do contexto clínico de cada caso:

  • Reaquecimento passivo de todo o corpo, incluindo cabeça, com cobertor no sentido de reduzir as perdas por evaporação, em geral eficaz nos casos ligeiros (L) podendo incrementar a temperatura entre 0,5 – 4ºC;
  • Aquecimento externo activo através da aplicação de calor directo à pele, só efectivo se a circulação estiver intacta, permitindo o retorno, da periferia para a zona central do organismo, de sangue reaquecido; tal pode realizar-se através de cobertores aquecidos ou calor irradiante ou sob a forma de ar forçado aquecido a curta distância do doente; este método é eficaz em geral nos casos ligeiros e moderados (L,M);
  • Aquecimento interno activo através de ar humidificado e aquecido a 42ºC por via endotraqueal, associado a fluidoterapia IV com fluido aquecido a 42ºC em perfusão rápida controlada conseguindo-se elevação térmica ~1ºC-2ºC/hora;
  • Aquecimento interno invasivo com “lavagem” através de instilação de soro fisiológico aquecido na bexiga, estômago e cólon (e, nalguns centros, também cavidades pleural e peritoneal), conseguindo-se elevação térmica ~1ºC-4ºC/hora.

Na maior parte dos casos as disritmias corrigem-se com o aquecimento.

Aplicam-se nos casos de hipotermia as medidas de ressuscitação ABC descritas no Capítulo próprio, com algumas especificidades:

  • Em geral torna-se prioritário promover o reaquecimento até, pelo menos, 30ºC salientando-se que as manobras poderão ter que ser muito prolongadas;
  • Embora o doente pareça clinicamente morto, os esforços de ressuscitação deverão continuar até se atingir, com as manobras de reaquecimento, a temperatura central normal;
  • Justifica-se a ressuscitação circulatória agressiva nos doentes hipotérmicos desidratados, tendo em conta a hipovolémia e a vasodilatação após reaquecimento.

Nota final – Dado que a hipotermia programada constitui uma medida terapêutica (efeito neuroprotector) em situações especiais, o leitor pode consultar o capítulo sobre encefalopatia hipóxico-isquémica na Parte Perinatologia/Neonatologia.

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Definição e importância do problema

Ao abordar-se o tópico TCE, importa estabelecer uma destrinça entre traumatismo craniano e traumatismo cranioencefálico. A primeira situação refere-se ao problema clínico associado a concussão e contusão da cabeça. O TCE refere-se às situações em que a lesão traumática da cabeça origina perda transitória da consciência, perturbação do estado mental ou amnésia com ou sem défice neurológico. Nas formas ligeiras de TC ligeiro a criança está consciente ou é facilmente despertável, não se verificando défice neurológico. De acordo com estudos epidemiológicos, na maioria das situações não se verifica evolução de TC para TCE.

A lesão cerebral constitui a causa mais frequente de morte por traumatismo em idade pediátrica (75-97%). As causas mais frequentes variam de acordo com o grupo etário: em menores de 4 anos são as quedas e acidentes de viação, com destaque em menores de 1 ano para a síndroma da criança batida e, em adolescentes, os acidentes desportivos e de viação. De referir que o veículo motorizado é o componente que comporta maior risco no ambiente que rodeia a criança.

Os TCE correspondem a cerca de 50% dos acidentes no primeiro ano de vida e a 25% dos mesmos até aos 5 anos. Nos EUA estima-se uma incidência de 200-300 casos por 100.000 crianças por ano, correspondendo a cerca de 1-2% de todas as situações de emergência no referido grupo etário. Destas, cerca de 5% são fatais. 

Etiopatogénese

O TCE pode originar dois tipos de lesão: primária e secundária.

A chamada lesão primária é imediata e corresponde à lesão física

do couro cabeludo, crânio, dura, vasos e parênquima nervoso (neurónios, dendritos, axónios, glia). Descrevem-se os seguintes mecanismos de lesão: impacte (hemorragias epidural, subdural, intracerebral, contusão, fracturas); inércia (concussão, lesão difusa axonal); hipóxia/isquémia.

Se a lesão primária não for reconhecida, poderá surgir lesão secundária na base da qual estão cinco categorias de mecanismos: excitotoxicidade, isquémia e falência de energia, activação da cascata da inflamação, lesão/ruptura tecidual, e lesão dos axónios.

Todos estes fenómenos associam-se a eventos clínicos diversos: hipotensão sistémica, insuficiência respiratória e hipóxia-isquémia, assim como herniação cerebral ou do tronco cerebral como resultado de edema cerebral ou hemorragia intracraniana com consequente hipertensão intracraniana, agravante da hipóxia-isquémia/hipoperfusão cerebral. A presença de tecido cerebral lesado, por sua vez, poderá comprometer o débito sanguíneo cerebral, por disfunção do mecanismo de autorregulação.

A localização do encéfalo no interior da calote craniana confere protecção às agressões externas. Contudo, a rigidez óssea opõe-se às variações do volume do conteúdo intracraniano, exceptuando nas primeiras idades em que se verifica certo grau de distensibilidade da calote enquanto não se verificar o encerramento das fontanelas e suturas. Ou seja, a partir das idades em que a calote deixa de ser distensível, a expansão do tecido cerebral, ou dos fluidos que circulam dentro do crânio por lesão traumática originam elevação da pressão intracraniana (hipertensão intracraniana). Especificando: qualquer aumento do volume do tecido cerebral, do volume de sangue contido no tecido cerebral e meninges, e/ou do volume do LCR por patologia (como edema, hemorragia ou hidrocefalia) origina desvio do LCR para o canal espinal como mecanismo de compensação, o que, como se pode calcular, tem limites.

Se o aumento do volume intracraniano for muito acentuado, a pressão intracraniana (PIC) aumenta rapidamente. Se a PIC exceder a pressão venosa (PV) os vasos cerebrais são comprimidos, o que se repercute sobre a pressão de perfusão cerebral (PPC- pressão que garante o débito sanguíneo cerebral); a consequência é a redução do débito sanguíneo cerebral.

Recordam-se, a propósito, algumas noções básicas:

  • A PPC é a diferença entre a pressão nas artérias à entrada na calote craniana e a PIC;
  • Na maior parte dos órgãos, o débito sanguíneo é directamente proporcional à diferença entre a pressão arterial e a pressão venosa (pressão de perfusão) e inversamente proporcional à resistência que o órgão oferece ao leito vascular;
  • Nalguns órgãos como o coração e o cérebro, verifica-se igualmente um mecanismo de regulação através do tono vascular (resistência vascular) de modo a garantir débito sanguíneo constante face às variações da pressão de perfusão; trata-se do fenómeno de autorregulação.

Ao nível ultraestrutural são verificados os seguintes eventos com resultado do TCE:

  • Depleção de fosfocreatina com repercussão no défice de energia para as reacções requerendo ATP;
  • Falência da membrana com perda de gradientes iónicos, aumento de Ca++ e Na+ e diminuição de K+ intracelulares;
  • Libertação de ácidos gordos livres da membrana neuronal;
  • Acção do glutamato e de outros aminoácidos excitatórios originando lesão neuronal (excitotoxicidade) paralelamente à produção de radicais livres;
  • Estresse oxidativo (acção do O) e nitrativo (acção do N) como resultado da disfunção mitocondrial;
  • Peroxidação lipídica e oxidação proteica, conduzindo a lesão do ADN, necrose e apoptose; estes fenómenos são associados a nível elevado de poli-insaturação;
  • Edema citotóxico conduzindo a necrose neuronal e edema vasogénico (relacionado com disfunção da barreira hemato-encefálica por inflamação).

Actuação inicial

Sendo os TCE situações emergentes, importa abordar aspectos da actuação inicial (prioritária) antes da descrição sucinta das formas clínicas mais frequentes e dos procedimentos a realizar durante a estadia do doente na unidade de cuidados intensivos pediátricos. (Figura 1)   

Numa perspectiva prática, a actuação no âmbito deste problema clínico pressupõe um trabalho coordenado de equipa treinada, importando chamar a atenção para a necessidade de uma sequência de gestos:

  • Tratar prioritariamente a disfunção respiratória e cardiovascular;
  • Anamnese inquirindo sobre circunstâncias em que se verificou o acidente, sinais e sintomas ocorridos eventualmente como convulsões, vómitos, hemorragias nasais ou auriculares, perda de LCR etc.;
  • Exame somático global para detecção de lesões como abdómen agudo, fracturas, lesões torácicas etc;
  • Observação cuidadosa da calote craniana;
  • Monitorização dos sinais vitais (pressão arterial e pulso; hipertensão e bradicárdia apontam para hipertensão intracraniana, enquanto hipotensão e taquicárdia, para choque hipovolémico);
  • Avaliação neurológica prévia englobando atenção especial: – às pupilas (simetria, dimensões e reacção à luz), ao nível de consciência de modo estruturado, objectivo e mensurável em cada caso – através da escala de Glasgow ou Glasgow Coma Scale/GCS; e – à existência de défices motores e de sinais meníngeos; anisocória pode sugerir herniação ou hematoma epidural ou subdural;
  • Outros procedimentos a aplicar concomitantemente em função do contexto clínico (Quadros 1 e 2); salienta-se que a realização de radiografia do crânio nos TC ligeiros é pouco esclarecedora; por isso, é dada preferência à TAC-CE em situações acompanhadas de perda de consciência, sinais de fractura, suspeita de síndroma da criança batida, sinais neurológicos focais, ataxia, cefaleias e vómitos persistentes, otorráquia, rinorráquia, convulsão ou antecedentes de discrasias sanguíneas; a necessidade de suporte ventilatório implica seguramente, também, monitorização hemodinâmica invasiva e monitorização da PIC. De salientar que pode ocorrer herniação apesar de valores de PIC normais.

Nota: uma TAC-CE inicial normal não exclui a hipótese de se desenvolver hipertensão intracraniana ou de aparecerem outras lesões. Deverá repetir-se o exame se:

  • TAC-CE realizada nas primeiras 6 horas
  • Após 24 horas se a TAC-CE inicial evidenciar sinais de patologia
  • Se houver agravamento clínico
  • 24 h após drenagem de colecção para excluir recidiva
  • 24 h após primeira TAC normal, em doentes sedados, sem monitorização de PIC

FIGURA 1. Algoritmo para casos de TCE na idade pediátrica

QUADRO 1- Monitorização neurológica (Glasgow Coma Scale)

Interpretação: graus 13-15: ligeiro compromisso neurológico; graus 9-12: moderado compromisso neurológico; graus < 8: grave compromisso neurológico
Melhor abertura dos olhos (1-4)Melhor resposta motora
(membros superiores (1-6))
Melhor resposta verbal (1-5)Melhor resposta verbal (1-5)
(modificado para criança mais nova)
    1. Sem resposta
    2. Responde à dor
    3. Responde à voz
    4. Espontâneo
    1. Sem resposta
    2. Extensão anormal (postura de descerebração)
    3. Flexão anormal (postura de descorticação)
    4. Flexão de retirada à dor
    5. Localização da dor
    6. Obedece a ordens
    1. Ausência
    2. Sons incompreensíveis
    3. Palavras inapropriadas
    4. Discurso confuso
    5. Orientado
    1. Ausência
    2. Inquieto, agitado
    3. Irritabilidade persistente
    4. Choro consolável
    5. Palavras apropriadas, sorri, fixa + segue

QUADRO 2 – Procedimentos ABC (Airway – Breath – Circulation)

Entubação traqueal: quando, quem, como?…
Quando:
      • Escala de coma de Glasgow (GCS) < 8
      • Decréscimo de 3 pontos na GCS, independentemente do valor inicial de GCS
      • Assimetria pupilar
      • Esforço respiratório ineficaz ou lesão torácica ou pulmonar significativa
      • Perda do reflexo faríngeo (gag)
      • Apneia
      • Convulsões
Por quem:
      • Pela mais qualificada e experiente pessoa disponível
      • Com a presença de, pelo menos, duas pessoas qualificadas e experientes
      • Com o apoio indispensável de equipa de enfermagem e de assistência respiratória
Como:

Sequência rápida de procedimentos:

          • Estabilização com tracção axial do pescoço se houver suspeita de lesão da coluna cervical (até prova em contrário, toda a lesão craniana está associada a lesão cervical)
          • Compressão da cartilagem cricóide
          • Pré-oxigenação com O2 a 100% e máscara (2-3 minutos)
          • Lidocaína (1-2 mg/kg) – prevenção da elevação da pressão intracraniana (PIC)
          • Tiopental: 2-3 mg/kg se TC + hipovolémia; 5-7 mg/kg na ausência de hipovolémia
          • Considerar bloqueio neuromuscular: vecurónio (0,2-0,4 mg/kg)
          • Entubação
          • Promover oxigenação e ventilação eficazes

Algumas formas clínicas e actuação em situações específicas

 Importa considerar as principais formas clínicas de apresentação, descritas a seguir, chamando-se a atenção para medidas particulares de actuação. (Figuras 2 a 7)

Associada a qualquer das formas clínicas, poderá estar a hipertensão intracraniana; recordam-se os sinais principais desta última: alteração do estado de consciência, edema da papila, cefaleias e paralisia do 6º par craniano.

Poderá verificar-se evolução para herniação perante as seguintes circunstâncias:

  • Anisocória por midríase unilateral; ou
  • Tríade de Cushing (hipertensão, bradicardia e padrão respiratório anómalo).

Fracturas do crânio

Existindo uma força de impacte importante, o clínico poderá deparar-se com diversas situações:

  • Fractura linear; deverá ser ponderada a vigilância no domicílio ou no hospital.
  • Fractura exposta (risco de lesão directa do SNC e risco infeccioso); tal implica necessidade de avaliação neurocirúrgica.
  • Fractura com afundamento (quando a tábua interna sofre uma deslocação superior à espessura do osso); obriga à necessidade de avaliação neurocirúrgica e antibioticoterapia.
  • Fractura da base do crânio (basilar); o diagnóstico é clínico e imagiológico. A TAC evidencia sinais de fractura e de lesões cerebrais associadas. Relativamente ao exame objectivo há a salientar:
    • equimose retroauricular ou mastoideia (sinal de Battle) – por dissecção do sangue na região occipital ou mastoideia;
    • laceração do canal auditivo externo, nervos facial e auditivo (fractura do rochedo temporal);
    • hemorragia endotimpânica com abaulamento (fractura do rochedo temporal);
    • equimose periorbitária (racoon eyes)difusão do sangue para a região periorbitária;
    • perda de LCR (nasal, canal auditivo) <> ruptura da leptomeninge.

Este tipo de fracturas exige hospitalização, fluidoterapia IV, analgésicos e anti-eméticos, estando contra-indicada a entubação nasogástrica pelo risco de lesão da lâmina crivada do etmóide. A evolução, embora decorra habitualmente sem complicações, estas poderão surgir:

  • perda de LCR pela lâmina crivada do etmóide é a mais frequente (~80%), em geral com cura espontânea em cerca de 1 semana;
  • meningite (3-25% com rinorráquia; 4,5% com otorráquia); está contra-indicada a antibioticoterapia profiláctica;
  • lesão dos nervos cranianos: entre 3-10% com anósmia (permanente), entre 1-10% com paralisia ocular recuperando na maioria dos casos (~75%); entre 1-12% paralisia facial, com recuperação em cerca de 90%; e, em cerca de 2%, surdez neurossensorial completa.

Concussão

Trata-se da perda de consciência transitória na sequência de traumatismo craniano (termo descritivo, sem especificar alterações anatómicas ou fisiológicas). A sintomatologia acompanhante varia:

  • Nas crianças mais novas: sonolência e vómitos arrastados, sendo elevada a incidência de convulsões benignas pós-traumáticas.
  • Nas crianças mais velhas (colaborantes): amnésia pós-traumática, com duração proporcional à gravidade do trauma).

De um modo geral, verifica-se a normalização da função neurológica em 1 semana. A chamada síndroma pós-concussão pode persistir até 1 ano (ligeiro atraso na aprendizagem, alterações de comportamento, cefaleias ligeiras ou moderadas).

Contusão

Esta designação refere-se à maceração do tecido nervoso com hemorragia microscópica, sem laceração de tecidos.

As causas mais frequentes relacionam-se com agressão directa e efeito por desaceleração/aceleração.

Verifica-se deterioração neurológica relacionada com edema local progressivo, enfarte ou hematoma.

O tratamento é fundamentalmente médico: controlo da PIC. Em função da magnitude das lesões e sintomatologia, poderá estar indicado tratamento cirúrgico: drenagem do hematoma. O prognóstico é favorável.

FIGURA 2. Hematoma epidural (Esquema)

Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos (Imagem de TAC)

Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos pós-drenagem cirúrgica (TAC)

FIGURA 3. Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos

Hematoma epidural

Esta forma clínica, geralmente associada a fractura, corresponde à colecção de sangue entre o crânio e a dura-máter. (Figuras 2, 3, 4)

Os factores etiológicos relacionam-se com agressão directa sobre a cabeça, com energia suficiente para descolar a dura do crânio. Trata-se dum hematoma limitado pelas linhas das suturas, podendo a sua origem ser arterial (manifestações surgidas cerca de 6-8 h após evento desencadeante), ou venosa (de início de manifestações mais tardio, cerca de 24 horas depois da acção do desencadeante). Classicamente existe um intervalo livre de tempo (intervalo lúcido) entre o evento agressivo e o início das manifestações clínicas com deterioração neurológica em geral rápida; as manifestações dependem da expansão maior ou menor do hematoma, da possível herniação do lobo temporal e da eventualidade de compressão da protuberância. A anisocória, como se disse, poderá ser um sinal suspeito. O hematoma da fossa posterior é assintomático em geral até se verificar herniação.

A TAC CE evidencia sinais de lesão de alta densidade, localizada, lenticular e efeito de massa.

A actuação emergente consiste em craniotomia. O prognóstico favorável:  mortalidade 5% e recuperação em cerca de 90% dos casos.

Hematoma epidural agudo em criança com 11 anos de idade (Imagem de TAC)

FIGURA 4. Hematoma epidural agudo em criança de 11 anos

Hematoma subdural agudo

O hematoma subdural agudo é uma colecção de sangue na superfície do córtex, debaixo da dura, em geral associada a lesão cortical (laceração de vasos ou contusão cortical), por acção mecânica de agente externo. (Figura 5)

Ao contrário do hematoma epidural, não está limitado pelas linhas das suturas, podendo ser holo-hemisférico.

As manifestações neurológicas surgem abruptamente, sem intervalo lúcido, o que se pode relacionar com lesão parenquimatosa grave associada. Poderá surgir anisocória entre outros sinais.

A TAC CE, realizada com carácter emergente, evidencia sinal em forma de crescente de hiperdensidade localizado ao longo da convexidade, efeito de massa importante, lesão cerebral subjacente e sinais de edema cerebral.

O tratamento é médico e cirúrgico. O prognóstico é menos favorável do que no caso do hematoma epidural.

Hematoma subdural crónico

Esta situação corresponde a uma colecção hemática no espaço subdural com produtos sanguíneos degradados. O principal factor etiopatogénico é um trauma não acidental (especialmente por abuso).

Raro em crianças depois dos 2 anos (a distensibilidade craniana – fontanelas e suturas – permitem uma lenta acumulação de líquido subdural), manifesta-se por convulsões como epifenómeno de irritação cortical; poderão verificar-se hipertensão intracraniana e hemorragias retinianas.

A TAC CE revela: sinais de colecção hipodensa nas convexidades cerebrais, em forma de crescente; alargamento dos espaços do LCR; e sulcos espaçados. (Figura 6)

O tratamento é geralmente médico e, por vezes, cirúrgico.

Hematoma subdural (Esquema)

Hematoma subdural (imagem de TAC)

Hematoma subdural com drenagem externa (imagem de TAC)

Hematoma subdural agudo em lactente de 3 meses de idade no contexto de sépsis meningocócica

FIGURA 5. Hematoma subdural agudo

Hematoma subdural crónico em criança de 8 meses de idade vítima de maus tratos (shaken baby) (TAC)

FIGURA 6. Hematoma subdural crónico

Hematoma intracerebral

Esta entidade clínica é pouco frequente na idade pediátrica. Em geral associado a lesão parenquimatosa grave, acompanha-se de prognóstico reservado. (Figura 7)

O tratamente consiste essencialmente em drenagem cirúrgica.

Hemorragia intracerebral num recém-nascido (TAC). Uso de derivação ventrículo-peritoneal como tratamento da hidrocefalia sequelar.

FIGURA 7. Hemorragia intracerebral

Lesão penetrante

Nos casos de lesões penetrantes está indicada intervenção neurocirúrgica emergente com avaliação imagiológica (TAC CE, RM ou angiografia). O objecto penetrante não deve ser removido pelo risco de hemorragia.

Deverá proceder-se a antibioticoterapia profiláctica e a terapêutica anticonvulsante em situações associadas a lesão cortical.

Hemorragia intraventricular

Este tipo de lesão traumática é, na maioria dos casos, provocada por pequenos traumas, com resolução espontânea. Existe risco de hidrocefalia obstrutiva.

Poderá estar indicada derivação ventriculoperitoneal.

Hemorragia subaracnoideia

Constitui a hemorragia intracraniana pós-traumática mais frequente.

Os sinais clínicos incluem: irritação das meninges pela hemorragia (cefaleias, rigidez da nuca, agitação, náuseas/vómitos). O tratamento é sintomático, incluindo analgesia com paracetamol e corticosteróides.

Lesão axonal difusa

Esta entidade corresponde a ruptura das vias axonais (resultado do efeito desaceleração/aceleração do crânio) com repercussão sobre os núcleos basais, tálamo e corpo caloso. A RM revela sinais de pequenas e numerosas hemorragias, assim como edema parenquimatoso difuso.

O prognóstico é reservado pelas sequelas, obrigando a ulterior reabilitação.

Lesão de golpe-contragolpe

Esta lesão traumática pode resultar de queda para trás com consequentes lesões bilaterais ou de acção traumática exercida sobre a região frontal (Figura 8). Geralmente estão implicados os lobos frontal inferior e temporal.

Neste tipo de lesões há grande probabilidade de ocorrer hemorragia subaracnoideia com contusão dos lobos frontal e temporal.

Síndroma do bébé abanado (Shaken Baby Syndrome)

A esta situação já foi feita referência no capítulo sobre “a criança maltratada” (volume 1).

Como consequência da oscilação da cabeça para a frente e para trás originando flexões e extensões da região cervicocefálica rápidas, intermitentes e até ao limite de mobilidade, poderá surgir lesão craniana fechada inesperada. Recorda-se, a propósito, frequente atraso na procura de apoio médico e história inconsistente ou ausente de evento traumático.

As características fundamentais das lesões são:

  • Hematoma subdural e/ou hemorragia intraparenquimatosa;
  • Hemorragias retinianas bilaterais (Figuras 9 e 10);
  • Fracturas ocultas;
  • Verificação de lesões antigas e recentes.

FIGURA 8. Lesão tipo chicote (golpe-contragolpe) – lesão de cabeça fechada com lesão cerebral resultante. Exibe os seguintes estágios: A. à cabeça empurrada para trás com o cérebro a chocar com a parede do crânio (impacte primário); e B. à cabeça é empurrada para a frente com o cérebro a chocar com a parede posterior do crânio (impacte secundário)

FIGURA 9. Hemorragia peripapilar (Fundoscopia)

FIGURA 10. Hemorragia intra e pré-retinal (Fundoscopia)

  • Terapia e monitorização na unidade de cuidados intensivos

 Para além dos aspectos focados na alínea Actuação inicial, importa focar os procedimentos a aplicar durante a estadia do doente na UCIP:

Monitorização
  • Avaliação neurológica e exame objectivo seriado;
  • Monitorização contínua cardiorrespiratória e hemodinâmica (frequência cardíaca, frequência respiratória, pressão arterial invasiva, pressão venosa central, capnografia e diurese);
  • Monitorização da PIC (tratar se >15 mmHg até aos 2 anos e > 20 mmHg acima dos 2 anos) e da PPC; esta deve ser superior a 40-50 mmHg no lactente, 50-60 mmHg na criança e > 60 mmHg no adolescente);
  • Doppler transcraniano;
  • NIRS (near-infrared spectroscopy) – permite a monitorização não invasiva da saturação de O2 cerebral;
  • Outros métodos de monitorização: Saturação venosa jugular? Pressão tecidual de O2, potenciais auditivos evocados do tronco, microdiálise cerebral.
Tratamento
  • Oxigenação e a ventilação
    • Entubação imediata se GCS ≤ 8 ou rápida deterioração neurológica
    • Manter PEEP < 10 para prevenir a diminuição do retorno venoso
    • Evitar a hiperventilação; normocápnia
  • Circulação
    • Manter normovolémia, com soro fisiológico para as necessidades (soro dextrosado apenas se houver hipoglicemia)
    • Garantir o suporte hemodinâmico necessário, rendibilizando PPC de modo que se estabeleça a relação → PPC=PAM-PIC
  • Suspeitar de lesão cervical até esta ser excluída
  • Colocar sonda orogástrica se suspeita de fractura da base do crânio
  • Posição do pescoço na linha média, elevação da cabeceira a 30º
  • Tratamento da dor e da agitação (sedoanalgesia; considerar bloqueio neuromuscular quando necessário)
  • Monitorização cuidadosa da PIC durante os cuidados de enfermagem, limitando ao mínimo a manipulação; aspiração de secreções – só quando necessário; administração de bólus de lidocaína 1 mg/kg ev antes das aspirações e manipulações
  • Após preparação cuidadosa dos visitantes, permitir o contacto calmo
    NB – Corticóides sem indicação
  • Tratar a hipertensão intracraniana
    • Aumentar sedoanalgesia; relaxantes musculares
    • Considerar drenagem LCR quando possível (se cateter PIC intraventricular)
    • Drenar hemorragias ocupando espaço se aplicacável
    • Promover fluidoterapia hiperosmolar:
      • manitol: 0,25-0,5 g/kg/dose): manter osmolalidade sérica < 320 mOsm/kg para evitar agravamento da lesão do tecido neural; pode associar-se furosemido
      • soro salino hipertónico (NaCl 3%-2-6 ml/kg; modo de preparação: 15 ml NaCl 20%+85 ml água destilada), pode seguir perfusão contínua 0,1-1 ml/kg/h; manter osmolalidade sérica < 360 mOsm/kg
    • Hiperventilação moderada (pCO2 30-35 mmHg)
    • Se falência das medidas anteriores:
      • hiperventilação intensa (pCO2 < 30 mmHg)
      • coma barbitúrico
      • craniectomia descompressiva
  • Diminuir a taxa metabólica cerebral
    • Prevenir as convulsões (fenitoína, fenobarbital)
    • Tratar agressivamente as convulsões (diazepam, fenitoína, fenobarbital)
    • Reservar o tiopental/pentobarbital para situações refractárias
    • Evitar a hipertermia; normotermia como meio de preservar o tecido cerebral; em relação a hipotermia (32-34ºC) – ainda não está provada a eficácia em crianças
    • Evitar a hiperglicemia; perfusão de insulina se necessário
  • Tratar possíveis complicações – disfunção do eixo hipotálamo-hipófise
    • Diabetes insípida central
    • Secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIADH)
    • Insuficiência suprarrenal

Procedimentos após a alta hospitalar

Após a alta, os pais ou prestadores de cuidados no domicílio deverão ser esclarecidos sobre a necessidade de vigilância, incidindo a atenção sobre determinados aspectos, quer nos casos de TCE, quer nos de TC ligeiro:

  • Alteração do estado mental/comportamento
  • Observação das pupilas (dimensões, simetria e resposta à luz)
  • Dificuldade em falar
  • Alterações da visão
  • Desequilíbrio na marcha
  • Dificuldade em usar os membros superiores
  • Cefaleias ou vómitos persistentes
  • Convulsões
  • Febre

Abreviaturas

GCS: Glasgow Coma Scale
SNC: sistema nervoso central
TC: traumatismo craniano
LCR: líquido cefalo-raquidiano
PIC: pressão intracraniana
HIC: hipertensão intracraniana
UCIP: unidade de cuidados intensivos pediátricos
PAM: pressão arterial média
PA: pressão arterial
TAC CE: tomografia axial computotadorizada cranioencefálica
CID: coagulação intravascular disseminada
SIHAD: síndroma secreção inapropriada de hormona anti-diurética
PPC: pressão de perfusão cerebral
ET: endotraqueal
SF: soro fisiológico

BIBLIOGRAFIA

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Definições e importância do problema

Antes da abordagem do tema relacionado com dor, importa recordar definições básicas relacionadas:

  • Analgesia significa perda da sensibilidade à dor, o que suprime ou atenua a mesma;
  • Anestesia significa genericamente perda de sensibilidade que pode dizer respeito a uma ou mais formas de sensibilidade (por ex. à dor, ao calor, ao toque, etc.); especificamente, anestesia significa supressão artificial da sensibilidade por meio de fármacos chamados anestésicos, numa parte do corpo (local ou regional), ou em todo o corpo (geral- estado farmacologicamente induzido de amnésia, analgesia, perda de consciência e perda de reflexos musculares esqueléticos), quase sempre com vista a uma intervenção cirúrgica;
  • Narcose é o estado de sono provocado por fármacos, na maior parte durante uma anestesia geral; por extensão designa a própria anestesia geral;
  • Hipnose é um estado próximo do sono provocado pelo hipnotismo; no sentido menos corrente é o sono provocado por hipnotismo;
  • Hipnótico (sonífero ou soporífero) é um medicamento que provoca o sono;
  • Sedação corresponde a estado de consciência diminuída, induzida farmacologicamente, com respiração espontânea; pode ser ligeira ou ansiolítica, moderada (doente despertável e ventilação espontânea) e profunda, de acordo com doses administradas;
  • Sedação profunda é um estado de depressão do nível de consciência: o doente não pode ser despertado com facilidade, responder aos estímulos dolorosos, mas existe perda dos reflexos protectores da via aérea, necessitando de suporte para a manutenção da permeabilidade das vias aéreas e/ou ventilatório.

A dor, experiência emocional e sensorial desagradável associada a uma lesão, pode desencadear uma resposta ao estresse com libertação de catecolaminas. A abordagem da dor (um dos sintomas mais frequentes na idade pediátrica), podendo ser avaliada de forma subjectiva ou através de escalas de quantificação adequadas ao grupo etário, deve ser feita fundamentalmente com duas perspectivas: – proporcionar conforto e sensação de segurança ao doente; – ter em conta que a libertação de catecolaminas contribui para a instabilidade do doente crítico. Assim, a supressão da dor frena a resposta neuroendócrina e permite uma maior estabilização clínica.

Na prática clínica em geral, e no contexto da terapia de urgência e emergência, designadamente em cuidados intensivos, a analgesia e a sedação são aplicados: – em casos de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos dolorosos; – para promover a adaptação à ventilação mecânica. Importa referir a propósito o fenómeno de amnésia durante o período de sedação.

Não existindo um modelo único de actuação, a abordagem da terapêutica em análise tem como base normas que garantam segurança e facilitem a aplicação clínica. (ver capítulo “Dor no Recém-Nascido) – Parte sobre Perinatologia/Neonatologia.

Avaliação da dor

As escalas de avaliação de dor são muito úteis, especialmente, em crianças pequenas. Existindo várias escalas, a Direcção Geral da Saúde (2010) recomenda algumas daquelas, não pormenorizadas neste capítulo, mas com especificação de idades em que estão indicadas:

Menores de 4 anos ou crianças sem capacidade para verbalizar

  FLACC (Face, Legs, Activity, Cry, Consolability).

Entre 4 e 6 anos

      1. FPS-R (Faces Pain Scale–Revised). Válida a partir dos 4 anos;
      2. Escala de faces de Wong-Baker. Válida a partir dos 3 anos.

A título de exemplo apresenta-se ainda a escala (OPS), adequada para avaliar crianças de todas as idades (0-18 anos), combinando indicadores comportamentais e fisiológicos com atribuição de pontuação 0-1-2. (Quadro 1)

QUADRO 1 – OPS – Escala objectiva da dor, até 18 anos

Sigla: OPS<> Objective Pain Scale. PA <> pressão arterial
Parâmetro012
PA sistólicaaumento < 20% PA basal20-30%> 30%
Choroausenteconsolávelinconsolável
Actividade motoratranquilamoderada/controlávelintensa/inconsolável
Expressão facialsorrisoneutraexpressiva
Avaliação verbal
(2-3 anos)
sem dorincómodo, não localizando a dorqueixa e localizando a dor
Linguagem corporal
(< 2 anos)
postura normalhipertoniaprotege ou toca zona dolorosa


Nesta escala, pontuações de 1-2 significam presença de dor ligeira; 3-5 dor moderada; 6-8 dor intensa que justificam a administração de opióides; 9-10 dor insuportável, com necessidade de opióides em perfusão.

Normas práticas importantes

1. O doente deve ser monitorizado durante todo o procedimento de analgesia e/ou sedação: frequência cardíaca, saturação em oxigénio por oximetria de pulso e pressão arterial.

2. Deve-se administrar oxigénio, se necessário.

3. Toda a equipa deve estar familiarizada com os procedimentos a efectuar, realçando-se a importância do cálculo das doses, das diluições usadas, do tempo de administração, do material e dos antídotos. Quanto à dose, recomenda-se iniciar por doses mais baixas e ir administrando bólus até atingir o efeito pretendido (sem ultrapassar a dose máxima). Excluir alergias

4. Recomenda-se dieta absoluta precedendo a analgesia e/ou sedação, com restrição de líquidos de duração variável: se líquidos à 2 h; se leite materno 4 h; se leite artificial ou restante alimentação à 6 h.

5. Conhecer factores de risco que possam alterar a susceptibilidade individual ao fármaco e que possam levar à necessidade de redução da dose, tais como idade inferior a 5 anos, antecedentes de apneia, risco de obstrução da via aérea (por ex. hipertrofia das adenóides), risco de doença crónica como displasia broncopulmonar e asma, insuficiência hepática, renal e doenças neurológicas. Na presença destes factores de risco, deve-se começar com doses mais baixas (25 a 50% de redução) até efeito desejado.

6. Outra forma de reduzir os efeitos secundários é utilizar sempre que possível, associação de fármacos, o que permite reduzir a dose total. O uso concomitante de fármacos adjuvantes também pode ser útil. Por exemplo, a hidroxizina (1-2 mg/kg/dose oral, dose máxima 25 mg), pode ser usada para aliviar a ansiedade e insónia, sem necessidade de incrementar as doses dos fármacos principais.

7. O conhecimento dos efeitos hemodinâmicos e respiratórios, da rapidez de actuação, da vida média do fármaco, de eventual interacção medicamentosa e da existência de antídoto específico contribuem para auxiliar o clínico na escolha dos fármacos a utilizar, com base na patologia de base, designadamente em contexto de insuficiência hepática ou renal.

ANALGESIA

1. Fármacos analgésicos mais utilizados

O Quadro 2 discrimina os fármacos analgésicos mais utilizados, seguindo-se a subdivisão de acordo com os diversos tipos de acção.

QUADRO 2 – Fármacos analgésicos mais utilizados

Não opióidesOpióides, doses de acordo com o efeito pretendido (ver adiante)
Paracetamol oral/rectal 10-15 mg/kg cada 4-6 h máx 30 mg/kg/dia (< 10 kg)
ev: < 10 kg 7,5 mg/kg/dose máx 30 mg/kg/dia > 10 kg 15 mg/kg cada 4-6 h máx 60 mg/kg
dose máx dia: 4 g/3 g se factores de risco
Morfina
Ibuprofeno: oral 5-10 mg/kg cada 6-8 h
(máx 40 mg/ kg/d)
Fentanil
Metamizol oral: 20-40 mg/kg cada 6-8 h
ev: 40 mg/kg cada 6-8 h
dose máx 2 g/dose
Alfentanil
Cetorolac ev/oral: 0,25-0,5 mg/kg cada 6 h
(> 3 anos) dose máx 30 mg/dose, durante 48-72 h
Remifentanil
Cetamina ev: 1-2 mg/kg/bólusCodeína oral: 0,5-1 mg/kg cada 4-6 h
1.1 Analgésicos não opióides – anti-inflamatórios não esteroides (AINE)

Estes analgésicos, com uma ação analgésica e anti-inflamatória, apresentam como efeitos secundários náuseas, vómitos, gastrite erosiva (pelo que se realça a importância da necessidade de gastroprotecção), e hepatoxicidade (paracetamol lesão/dose dependente).

1.2 Analgésicos opióides

Os analgésicos opióides, porque têm efeito analgésico e hipnótico, também são denominados narcóticos. São fármacos potentes com modulação no sistema nervoso autónomo, originando, entre outros efeitos, diminuição da sudorese; não produzem amnésia, e são frequentemente associados às benzodiazepinas. Produzem miose, o que permite titular o seu efeito. Têm eliminação hepática e renal, sendo necessário adaptar doses em caso de insuficiência orgânica.

Como efeitos secundários frequentes, descrevem-se: depressão respiratória (dose-dependente), náuseas, vómitos, íleo paralítico, espasmo do esfíncter Oddi, retenção urinária e bradicárdia. Como induzem a libertação de histamina, podem associar-se a prurido importante, broncospasmo e laringospasmo. A administração prolongada associa-se a tolerância e a dependência. A suspensão abrupta pode levar a síndroma de abstinência.

A Naloxona, é um antídoto que permite reverter a depressão respiratória em doentes com respiração espontânea (doses 0,01 mg/kg/dose, máx 2 mg). Pode repetir-se a dose e usar-se em perfusão ao ritmo de 2-10 mcg/kg/h. A reversão dos efeitos está contra-indicada quando existe dependência física.

Os opióides podem ser naturais, como a morfina e a codeína. Existem ainda várias substâncias sintéticas com acção semelhante aos opióides, como por exemplo a meperidina, o propoxifeno e a metadona.

Faz-se seguidamente referência aos analgésicos opióides mais representativos (Quadros 3, 4, 5, 6).

Morfina

A morfina está indicada no tratamento sintomático da dor moderada a severa (associada a cirurgia, doenças neoplásicas e dor crónica em geral), na sedação pré-operatória e como adjuvante da anestesia. É igualmente útil nas crises hipoxémicas na hipertensão pulmonar e edema pulmonar.

QUADRO 3 – Doses da Morfina

MORFINAVia EV/IM (idades em anos → A)Em perfusãoVia oral
Dose (respiração espontânea)0,1-0,2 mg/kg
cada 2-4 h
máx por dose
    • < 1 A – 2 mg
    • 1-6 A – 4 mg
    • 7-12A – 8 mg
    • > 12 A – 15 mg
10-15 mcg/kg/h0,2-0,5 mg/kg cada 4-6 h
Fentanil

É um fármaco muito utilizado para analgesia em procedimentos muito dolorosos, podendo ser usado em bólus (procedimentos curtos) ou em perfusão contínua (em situações de pós-operatório). É cem vezes mais potente do que a morfina, com início de acção após alguns minutos, e duração de 30-45 minutos. Doses repetidas podem prolongar os efeitos farmacológicos por acumulação.

A administração rápida pode produzir depressão respiratória, bradicardia e rigidez muscular. (Quadro 4)

QUADRO 4 – Doses de Fentanil (ev)

Nota → Diluir com soro fisiológico ou Dextrose a 5% para perfusão contínua, na concentração máxima 50 mcg/mL; reajuste de dose na insuficiência renal <> 75% da dose com TGF 10-50 ml/min/1,73m3; 50% da dose TGF < 10 ml/min/1,73 m3

Analgesia (respiração espontânea)Sedoanalgesia (doente ventilado)
Bólus 0,5 mcg/kg
(dose máx 25-50 mcg); repetir, se necessário, de 5-5 minutos
1-3 mcg/kg   bólus cada 2 a 4 h
Perfusão   0,5-1 mcg/kg/h1-5 mcg/kg/h

Uma das utilizações do fentanil diz respeito ao tratamento da dor crónica, como a dor oncológica; pode ser utilizado sob a forma transdérmica (adesivos), sublingual, ou oral através de chupa-chupas. O cálculo da dose necessária leva em conta a soma de todos os analgésicos usados, aplicando, posteriormente, uma conversão através de uma tabela que permite calcular a dose final de fentanil.

 Alfentanil

Os derivados do fentanil (sulfentanil, alfentanil, remifentanil) vieram reduzir alguns dos efeitos secundários, nomeadamente alterações hemodinâmicas associadas ao uso da morfina, tendo níveis de potência de acção superiores em relação à morfina. São fármacos com maior estabilidade hemodinâmica e por isso são utilizados durante procedimentos ou mesmo durante cirurgia.

O alfentanil é um opióide sintético, de curta duração, indicado para analgesia, isolado ou em associação com outros anestésicos ou sedativos. Deve-se administrar em bólus lento, de forma a evitar rigidez muscular, em particular da caixa torácica que interfere com a ventilação. Tem uma acção de curta duração, sendo um fármaco de eleição para procedimentos breves e quando se pretende rápida recuperação da consciência, até cerca de 15 minutos. Tem acção mais rápida do que o fentanil, com 25% da sua potência. Vigilância acrescida nos doentes com bradicardia e sinais de hipertensão intracraniana. (Quadro 5)

QUADRO 5 – Doses de Alfentanil (ev)

Nota Diluir com soro fisiológico ou com Dextrose a 5% para perfusão contínua, atendendo à concentração máxima permitida de 80 mcg/mL

AnalgesiaSedoanalgesia (doente ventilado)
Bólus 2-5 mcg/kgBólus  5-10 mcg/kg
Perfusão 2-5 mcg/kgPerfusão  2,5-30 mcg/kg/h
Remifentanil        

O remifentanil tem uma vida ultracurta (3-5 minutos); com eliminação rápida, permite recuperação imediata da consciência, muito útil quando é necessário proceder a monitorização neurológica. Tratando-se dum fármaco muito seguro no caso de insuficiência renal e hepática, é considerado um fármaco de eleição. O efeito analgésico é obtido ao fim de 1-3 minutos, não se acumula nos tecidos, permitindo a extubação após intervenção; também é adequado em contexto de se proceder a entubação (dose 1-3 mcg/kg/dose). (Quadro 6)

QUADRO 6 – Doses de Remifentanil (ev)

AnalgesiaSedoanalgesia
Bólus 0,1 mcg/kg, em procedimentos rápidosBólus sem interesse por acção curta
Perfusão 0,025-0,1 mcg/kg/minPerfusão 0,05-1 mcg/kg/min

 

2. Fármacos sedativos mais utilizados

O Quadro 7 discrimina os fármacos sedativos mais utilizados, divididos em dois grupos terapêuticos: os anestésicos e os ansiolíticos-hipnóticos.

QUADRO 7 – Fármacos sedativos mais utilizados: anestésicos e ansiolíticos-hipnóticos

ANESTÉSICOSANSIOLÍTICOS – HIPNÓTICOS
TiopentalHidrato cloral
EtomidatoDiazepam
PropofolMidazolam
Cetamina 
Protóxido de azoto 

 

2.1 Ansiolíticos-hipnóticos
Hidrato de cloral

O hidrato de cloral é um fármaco sedativo não analgésico que não provoca depressão respiratória nas doses de sedação. É utilizado frequentemente nos procedimentos não dolorosos, como por exemplo nos exames de Imagem. Com metabolismo hepático e eliminação renal, o seu efeito é mantido por 6-8 h. (Quadro 8)

QUADRO 8 – Hidrato cloral: doses e vias de administração

Vias de administração Doses
(Nota – Dose máxima: 2 g/24 h)
Oral (1 mL <> 50 mg)Sedação: 25 mg/kg/dia
Rectal (1 mL <> 100 mg)Hipnose: 50-100 mg /kg/dia
Dose máxima 2 g/24 h
Benzodiazepinas

O grupo das benzodiazepinas tem efeito dependente da dose, com acção inicial ansiolítica e, gradualmente, anticonvulsante, sedativa, e relaxante muscular, até à fase anestésica. Tem metabolismo hepático com eliminação renal e biliar. Este grupo terapêutico produz sedação, mas não analgesia.

Como efeitos secundários citam-se: depressão respiratória, depressão miocárdio, hipotensão, náuseas e vómitos.

O antídoto específico é o flumazenil (anexato); dose: 0,01 mg/kg até 0,2 mg/dose, podendo repetir-se bólus até máximo 1 mg. Dose para perfusão: 5-10 mcg/kg/h. Deve usar-se flumazenil só depois de reverter efeito do bloqueio neuromuscular (até o doente ter movimentos respiratórios espontâneos) e tendo-se em atenção o mal convulsivo: ao anular efeito farmacológico das benzodiazepinas, perde-se também acção terapêutica dirigida ao status convulsivo.

Entre as benzodiazepinas citam-se de modo sucinto, como os mais frequentemente utilizados, o midazolam e o diazepam. Nos Quadros 9 e 10 são descritas respectivamente as doses e as vias de administração

QUADRO 9 – Midazolam: doses e vias de administração

Nota – Diluir com soro fisiológico ou D5% para perfusão contínua, concentração máxima 1-5 mg/mL. Se sedação insuficiente: administrar bólus extra de 0,05 mg/kg
MidazolamEVSublingual/intranasalOral
Dose0,05-0,1 mg/kg
(máx <> 5 mg)
0,2-0,5 mg/kg0,5-0,7 mg/kg;
(máx <> 20 mg)
Início de acção1-3 min10 min10-20 min
Efeito máximo5-7 min10 min 
Duração20-30 min (bólus)60 min 
Perfusão1-15 mcg/kg/min  

QUADRO 10 – Diazepam: doses e vias de administração

Nota – Menor potência do que o midazolam, mas acção mais prolongada. Concentração máxima de 5 mg/mL, não ultrapassando o ritmo de 5 mg/min
 >EVRectalOral
Dose
    • 0,05-0,1 mg/kg (pode ser repetido até 10 mg/dose)
    • 2-4 h (máx 0,6 mg/kg em 8 h)
    • 0,5 mg/kg/dose (até 5 anos)
    • 0,3 mg/kg/dose (6-11 anos)
    • 0,2 mg/kg (> 12 anos máx 10 mg)
0,2-0,8 mg/kg/dia (a: 6-8 h)
Início de acção3 min5 min10-20 min
Duração60-120 min  
2.2 Anestésicos
Cetamina

É um anestésico dissociativo que bloqueia selectivamente as vias de associação cerebral e deprime o sistema talâmico-cortical, o sistema activador reticular e límbico, produzindo analgesia e sedação.

Tem efeito anti-inflamatório e diminui as citocinas pró-inflamatórias, propriedades muito úteis em situações de estresse importante como cirurgia, sépsis e no trauma. Embora tenha efeito inotrópico negativo intrínseco e propriedades vasodilatadoras, a cetamina preserva a estabilidade hemodinâmica pelo efeito simpático secundário ao induzir a libertação de catecolaminas, (atenção, por isso, aos casos de hipertensão e/ou aneurisma), acabando por ser um estimulante cardiovascular: incrementa a pressão arterial, o cronotropismo e a resistência dos vasos periféricos. Por estas propriedades é um fármaco de primeira eleição nos casos cursando com hipotensão, (sépsis), broncospasmo (efeito broncodilatador) e nos queimados. Garante uma associação segura com propofol (ver adiante) por manter estabilidade hemodinâmica. Tem metabolismo hepático e excreção renal. (Quadro 11)

Como efeitos secundários indesejáveis regista-se o aumento das secreções orais e brônquicas.

QUADRO 11 – Cetamina: doses e vias de administração

Nota – Diluir com soro fisiológico ou D5% para perfusão contínua; concentração de 5-10 mg/mL
Cetamina
Sedação para procedimentos 1 mg/kg/dose, pode-se repetir bólus (lento)
Anestésico 2 mg/kg/dose
Perfusão 5-20 mcg/kg/min
Intramuscular 2-3 mg/kg/dose

Uma dose endovenosa 1-2 mg/kg é normalmente adequada para induzir sedação com preservação da via aérea e de ventilação espontânea; por isso, permite realizar procedimentos dolorosos (suturas, colocação de catéteres centrais, redução de fracturas) em doentes não ventilados.

Tiopental

É um barbitúrico de acção ultracurta, início de acção imediata, com duração de 5 minutos. Produz sedação profunda e apneia em 15-30 segundos. Diminui o fluxo cerebral, o consumo de oxigénio cerebral e a pressão intracraniana. Indicado para procedimentos rápidos como a entubação. Indicado, também, na hipertensão intracraniana, e ainda na abordagem do estado mal convulsivo; as crises convulsivas podem ser controladas com tiopental enquanto os agentes anticonvulsantes não atingirem os níveis terapêuticos ideais. O uso de tiopental em perfusão já pressupõe ventilação assistida e possível suporte vasopressor. Tem eliminação hepática e excreção renal.

As doses em diferentes situações constam do Quadro 12.

QUADRO 12 – Doses do Tiopental (ev)

Nota – Diluir com soro fisiológico ou D5% para perfusão contínua; concentração máxima de 50 mg/mL
TIOPENTAL ev SEDAÇÃO curta ENTUBAÇÃO MAL CONVULSIVO
DOSE 1-3 mg/kg 3-5 mg/kg 1-5 mg/kg/h
Propofol

O propofol pertence ao grupo de anestésicos gerais; tem início de acção muito rápida (15-45s), e despertar também rápido. É metabolizado no fígado e eliminado pelo rim. Pode ser utilizado na sedação de jovens e adultos em ventilação mecânica, nas crianças com mais de um mês de idade (de acordo com o INFARMED, 2014) e adultos durante procedimentos de diagnóstico e cirúrgicos.

A administração rápida produz vasodilatação com diminuição das resistências periféricas e do inotropismo, pelo que deverá ser evitado em doentes hipovolémicos ou hemodinamicamente instáveis. Em perfusão contínua e prolongada (>10 mg/k/h) por mais de 48 horas, associa-se a acidose metabólica. Assim, a perfusão contínua e prolongada, não está recomendado em crianças pequenas, pela probabilidade de surgimento da chamada síndroma de perfusão do propofol (acidose metabólica, hipercaliémia, hiperlipémia, hepatomegália, insuficiência renal, disritmia, e insuficiência cardíaca. (Quadro 13)

Este fármaco está contra-indicado em casos de alergia ao ovo, à soja e ao amendoim.

QUADRO 13 – Doses de administração do Propofol (ev) e respectivos efeitos

PROPOFOL
Indução anestésica 2,5-3,5 mg/kg
Sedação 1-2 mg/kg
Perfusão 1-4 mg/kg/h
Etomidato

É um anestésico com início de acção imediata, indicado na indução de anestesia para procedimentos de curta duração, procedimentos de diagnóstico ou intervenções rápidas que exigem uma recuperação rápida sem sintomas residuais. O seu tempo de actuação é mais curto do que o do midazolam. A dose em bólus por via ev é 0,2-0,3 mg/kg.

Trata-se do anestésico com menor repercussão hemodinâmica, diminuindo a pressão intracraniana através da diminuição do fluxo cerebral e diminuição do consumo de oxigénio. Não recomendado para uso de rotina em doentes críticos ou sujeitos a estresse grave pelos efeitos de supressão da função da suprarrenal (inibe a 11-beta hidroxilase). Em tais circunstâncias deve proceder-se sempre à administração duma dose de reposição de prednisolona (1-2 mg/kg) de forma a acautelar a disfunção adrenocortical. Pode ocorrer supressão prolongada de cortisol e aldosterona quando administrado em perfusão contínua; por isso, este modo de administração não é aconselhado. Não possuindo efeito analgésico, recomenda-se a administração simultânea de um opióide como o alfentanil.

Protóxido de azoto

O protóxido de azoto é um gás anestésico, que associa propriedades analgésicas e amnésicas. É usado por via inalatória com máscara, permitindo diminuir a ansiedade e o medo, aumentando o limiar da dor e melhorando a cooperação da criança. Pode ser usado através de uma mistura equimolar de 50% de protóxido de azoto e pelo menos 50% de oxigénio (MEOPA). A via inalatória é feita através de uma máscara (com fluxo de 4 l/min) e durante pelo menos 3-4 minutos antes do início do procedimento.

A criança deve permanecer sempre comunicativa, já que o nível de sedação pretendido é mínimo. Verifica-se uma resposta normal a comandos verbais, sendo que, por outro lado, a função cardiovascular e respiratória permanece inalterada. Se a criança adormecer durante a administração, deve suspender-se o fornecimento do gás, passando a oxigénio unicamente. O procedimento pode manter-se desde que o paciente responda ao estímulo táctil. No fim de cada procedimento deve administrar-se oxigénio a 100%.

A sedação consciente mantém intactos os reflexos protectores da via aérea. O início rápido de acção e eliminação rápida (3-5 min), associados a ausência de nefrotoxicidade ou hepatotoxicidade são características que tornam o protóxido de azoto uma opção válida em pediatria, proporcionando segurança no seu uso, designadamente sem depressão do centro respiratório.

As suas limitações relacionam-se com dificuldades na adaptação da máscara, seja por falta de aderência, seja por alterações anatómicas faciais: distúrbios psiquiátricos, traumatismo craniano com alteração do estado de consciência, e associação de patologia com risco de expansão das cavidades com ar sob tensão, como pneumotórax. Também, tratando-se de procedimentos mais cruentos, esta abordagem poderá não ser suficiente.

A utilização desta técnica está indicada em procedimentos de curta duração, em casos de dor de intensidade ligeira ou moderada, mas associada a um elevado nível de ansiedade. Muito útil em pequenos procedimentos como punção venosa, punção lombar, cateterismo para uretrocistografia, suturas de pele, correcção de fractura, tratamento dentário e procedimentos endoscópicos.

Esquemas terapêuticos

Depois de avaliada a condição clínica do doente e os potenciais efeitos secundários dos fármacos, a escolha deve ser baseada no efeito pretendido, escolhendo para isso fármacos com menor risco, com doses mais baixas, e com possibilidade de existir antídoto. (ver Quadros seguintes)

A aplicação de escalas de dor é, mais uma vez, muito útil para decisão terapêutica.

QUADRO 14 – Analgesia de acordo com situação clínica e grau da dor

Dor Leve Dor moderada Dor intensa
Paracetamol Associação de 2 AINE Opióide em bólus
Metamizol AINE + Opióide Opióide em perfusão
Cetorolac Opióide + Midazolam

QUADRO 15 – Terapêutica em função do tipo de procedimento

Procedimentos não dolorosos Ecografia, Tomografia, Ressonância Magnética
Colaborante Sem necessidade
Não colaborante e sem via Hidrato de cloral, Hidroxizina oral Midazolam oral (0,5-0,75 mg/kg), 20 min antes
Não colaborante e com via Midazolam ev 0,05-0,1 mg/kg, lento, no local
Procedimentos dolorosos
Canalização venosa, punção lombar EMLA, ponderar de acordo com idade, clínica e colaboração restante sedação
Pensos, queimaduras, drenos torácicos em doentes não ventilados Cetamina+Midazolam Alfentanil+Midazolam Alfentanil+Propofol
Pensos, queimaduras, drenos torácicos em doentes ventilados Fentanil/Alfentanil+Midazolam (sedação profunda) Fentanil/Alfentanil+Midazolam+Vecurónio ou Rocurónio
Procedimentos muito dolorosos Doses até sedação profunda
Biópsia medula, hepática, renal, desbridamento de feridas, queimaduras Canalização de vias centrais Fentanil/Alfentanil+Midazolam Fentanil/Alfentanil+Propofol Cetamina+Midazolam

 

Esquemas terapêuticos segundo a patologia

O quadro 16 esquematiza as noções anteriormente expostas.

QUADRO 16 – Terapêutica segundo patologia

TRAUMA
Sem traumatismo cranianoCom traumatismo craniano e estabilidade hemodinâmicaSem estabilidade hemodinâmica
Midazolam+AlfentanilPropofol+RemifentanilMidazolam+Cetamina
Midazolam+CetaminaMidazolam+RemifentanilMidazolam+Alfentanil
 Midazolam+Alfentanil 
QUEIMADO
AlfentanilUso preferencial pelo seu efeito sobre a dor
HIPERTENSÃO INTRACRANIANA
Midazolam/Propofol+RemifentanilPonderar Tiopental (Coma Barbitúrico)
Ponderar Vecurónio/Rocurónio 
ENTUBAÇÃO
SedaçãoMidazolam
Cetamina (asma, hipotensão, choque)
Propofol
Nota – Com instabilidade hemodinâmica deve-se evitar o Propofol.
VENTILAÇÃO MECÂNICA
Midazolam+Fentanil/AlfentanilBólus e perfusão
Propafol+Fentanil/AlfentanilBólus e perfusão
Adicionar relaxante muscularQuando há transporte do doente
Risco de auto-extubação
Assistência respiratória agressiva


O Quadro 17 descreve aspectos sucintos do tratamento dos efeitos secundários dos opióides.        

QUADRO 17 – Tratamento dos efeitos secundários dos opióides

Digestivos
(náuseas, vómitos, dor abdominal)
Cutâneos
(prurido)
Urinários
(retenção urinária)
Metoclopramida
0,1-0,2 mg/kg/dose cada 6-8 h IV
Diminuição da dose opióidesAlgaliação
Ondasetron
0,1-0,2 mg/kg/dose 6-6 h IV
Compressas friasDiminuir dose de opióide
Difen-hidramina
1,25 mg/kg/dose 6-6 h IV
Difen-hidraminaBetanecol 0,05 mg/kg/dose de 8-8 h
PO SC
Droperidol
10-30 mcg/kg dose IV
  
Naloxona
0,01 mg/kg IV
Mudar para Cetamina 

Tolerância, dependência e abstinência

O uso de opióides, benzadiazepinas, barbitúricos e de cetamina por períodos curtos e em baixa dose, raramente induzem abstinência. O risco de abstinência é de 50% com o uso de fentanil por mais de 5 dias ou numa dose cumulativa maior que 1,5 mg/kg enquanto, para o midazolam, este risco ocorre com uma dose cumulativa total superior a 60 mg/kg.

Existem vários esquemas de redução da dose destes fármacos cuja descrição ultrapassa os objectivos deste livro.

Escalas de sedação

Os níveis de sedação dos doentes devem ser avaliados, a fim de evitar uma sedação mais profunda do que a necessária, reduzindo tempo de ventilação mecânica e de internamento, e não agravar o prognóstico pela associação de complicações e maior mobilidade. Para a descrição das referidas escalas, sugere-se ao leitor a consulta da bibliografia.

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1. QUEIMADURAS E TRATAMENTO EMERGENTE

Definições e importância do problema

As queimaduras são lesões da pele e mucosas, de extensão e profundidade variáveis (lesões tridimensionais) que podem ser causadas por agentes físicos (líquidos quentes ou frios, corpos sólidos incandescentes, fogo, radiações ionizantes, corrente eléctrica), químicos corrosivos (fósforo, flúor, ácidos e bases fortes, hidrocarbonetos, medicamentos com acção na queratina) e biológicos (animais como a medusa, vegetais como látex, etc.).

Idênticas lesões podem ser consequências de fotossensibilidade em relação com a ingestão de sulfamidas, butazolidina ou difenil-hidantoína (síndroma de Leill).

A maioria das queimaduras em crianças é provocada por acidentes domésticos; dum modo geral são mais graves que no adulto. Com efeito, na criança as várias estruturas que formam a pele ainda não atingiram a maturação e são menos espessas. Por outro lado, os reflexos de defesa, consoante a idade, podem ainda não estar presentes.

Aspectos epidemiológicos

É sobretudo na faixa etária dos 0 aos 4 anos, com maior incidência aos 2 anos, que ocorrem queimaduras. É nesta fase de desenvolvimento psicomotor que a criança está mais activa na descoberta do ambiente que a rodeia: agarra, puxa, mete os dedos, corre pela casa sem se fazer notar, etc.. Os líquidos quentes são a principal causa de queimaduras neste grupo etário (60%): água a ferver, leite, chá, café, sopa, óleo alimentar, azeite, etc.); de salientar que cerca de 95% dos acidentes ocorrem na cozinha na presença de, pelo menos, um adulto.

Na faixa etária dos 5 aos 10 anos a água quente continua a ser a principal responsável, mas verifica-se um aumento importante dos acidentes com fogo, mais frequentemente associado a substâncias inflamáveis como o álcool ou a gasolina. As queimaduras eléctricas são mais frequentes no grupo etário dos 1-4 anos; e, a partir dos 10 anos, há um recrudescimento de acidentes por esta causa.

Nos Estados Unidos ocorrem em cada ano cerca de dois milhões de queimaduras, que originam internamento de 150.000 doentes. Neste país as queimaduras são causa de morte em 2.500 crianças por ano; e entre os sobreviventes, 50% requerem internamento superior a um mês. Por outro lado, as queimaduras são responsáveis por sequelas graves em cerca de 10.000 casos/ano. São também, em acidentes domésticos, a primeira causa de morte até aos catorze anos de idade.

Esta patologia pode, por outro lado, estar associada a casos de maus tratos infantis (entre 10-20% conforme as estatísticas). Este tipo de abuso é típico antes dos cinco anos de idade, apresentando um pico de incidência cerca dos 18 meses.

As queimaduras ocorrem também com incidência significativa em meios socialmente desfavorecidos e no contexto de crianças sozinhas durante longos períodos de tempo, sem vigilância adequada. Por isso, a principal medida com o objectivo de diminuir a incidência deste problema é a prevenção.

Etiopatogénese

A pele é constituída por uma camada superficial, a epiderme, uma camada intermédia, a derme ou mesoderme, e uma camada profunda, a hipoderme. Na epiderme encontram-se os queratinócitos, os melanócitos e as células de Langerhans. Na derme as células principais são os fibroblastos; nela existe uma rede densa, fibrosa, composta por colagénio, elastina e reticulina onde abundam os vasos sanguíneos, as terminações nervosas, as glândulas sebáceas e as estruturas pilosas. A hipoderme é constituída essencialmente por células adiposas.

A separação entre a epiderme e as camadas mais profundas é feita pela junção dermo-epidérmica ou membrana basal. (Figura 1)

Por efeito do agente agressor ocorre trombose vascular levando a hipóxia, isquémia e grau variável de disfunção e destruição celulares. Esta variação depende fundamentalmente da área afectada, do tipo e intensidade da acção do agente agressor, e da espessura da pele.

Na pele lesada por queimadura são identificadas três zonas no sentido da superfície para a profundidade. A zona externa (mais superficial) inclui tecido necrótico irrecuperável. Abaixo desta encontra-se zona de estase parcialmente viável, podendo evoluir para necrose. A zona adjacente à zona de estase é a chamada zona de hiperémia, dado que se verifica a esse nível incremento do fluxo sanguíneo associado a resposta inflamatória e imunitária.

Ao nível da superfície lesada, por alteração da permeabilidade capilar, verifica-se extravasão de fluidos e plasma para os tecidos vizinhos (edema), do que poderá resultar hipovolémia e choque.

A libertação de prostaglandinas provoca irritação das terminações nervosas sensitivas que se traduz clinicamente por dor. Nos casos de queimaduras de boca poderá haver edema e obstrução das vias respiratórias.

A resposta inflamatória à queimadura é constituída por uma fase vascular e uma fase celular. Inicialmente ocorre um curto período de vasoconstrição seguido de vasodilatação activa. Simultaneamente verifica-se afluxo à zona da lesão de vários mediadores inflamatórios, proteínas, macromoléculas assim como neutrófilos, monócitos e plaquetas. 

FIGURA 1. Esquema da pele

Os monócitos têm um papel central na modulação da resposta inflamatória. Os factores de coagulação e o complemento estimulam a migração celular e regulam a fase de resposta vascular.

A resposta imunitária processa-se nas seguintes fases: uma, inespecífica, ocorrendo logo no período inicial pós-queimadura; outra, constando de resposta celular e humoral mais tardia; e, finalmente por uma resposta específica linfocitária de natureza tímica e não tímica. Os elementos celulares referidos são fundamentalmente neutrófilos e macrófagos; e os elementos humorais integram factores de coagulação, fibrinogénio, complemento e fibronectina. A acção sinérgica dos linfócitos B pela produção de anticorpos específicos, e dos linfócitos T pela libertação de linfocinas, condiciona a resposta imunitária final.

A supressão da resposta imunitária nestes doentes é um fenómeno bem documentado. Tal fenómeno poderá contribuir para o agravamento clínico global do doente queimado e, designadamente, para o aparecimento de quadro séptico pós-queimadura explicável por compromisso da fagocitose e da quimiotaxia dos neutrófilos, por disfunção dos macrófagos, e diminuição da resposta linfocitária à estimulação mitogénica, dos níveis de IL-2, de fibronectina, de gamaglobulina, e da acção celular T-supressora.

A resposta metabólica às queimaduras cursa com um período inicial de hipometabolismo durante 48 horas, iniciando-se posteriormente um período de hipercatabolismo que pode originar perda importante de proteínas estruturais e de lípidos. Esta fase prolonga-se enquanto não se verifica reepitelização da área queimada, e agrava-se durante os episódios de infecção, o estresse pós-operatório e a colheita e colocação de enxertos cutâneos.

As queimaduras químicas, eléctricas e as provocadas por agentes inalados merecem uma referência especial.

As primeiras provocam desnaturação das proteínas e destruição celular. O grau de lesão depende do tempo de exposição, da concentração do agente e da sua solubilidade nos tecidos, sendo que os agentes alcalinos tendem a penetrar mais que os ácidos.

No caso das queimaduras eléctricas, o efeito lesivo não pode ser somente avaliado pela lesão verificada à superfície. Com efeito, uma vez que a corrente eléctrica segue a via dos tecidos com menor resistência, como consequência poderão surgir lesões “à distância”, ao longo dos nervos e vasos, e lesão miocárdica em grau variável, traduzida muitas vezes por arritmia.

Quanto às lesões inalatórias, exceptuando no caso do vapor de água a temperaturas elevadas, o calor provoca lesão apenas acima das cordas vocais. No que respeita à inalação de fumo, como consequência surge alteração da permeabilidade vascular pulmonar, do que pode resultar: edema pulmonar e destruição do surfactante pulmonar com consequentes diminuição da distensibilidade alveolar (compliance) e hipoventilação, culminando em insuficiência respiratória. Contudo, a maioria das lesões da via respiratória é atribuída a queimaduras por aspiração/inalação de produtos químicos como gases tóxicos, óxidos, aldeídos e produtos azotados.

A perda de integridade da pele expõe a criança ao ambiente exterior de agentes infecciosos como bactérias, vírus e fungos, ao mesmo tempo que leva à perda de fluidos e de temperatura corporal.

Em geral, as complicações secundárias das queimaduras estão ligadas à infecção e à ulterior cicatrização.

Quando a queimadura é profunda, o processo de cicatrização é prolongado, com formação, após 3-6 meses, de cicatriz hipertrófica relacionada com proliferação dos fibroblastos e neovasos, concomitantemente com aumento da produção de colagénio espesso e desorganizado. A cicatriz tem aspecto vermelho, é rosada, dura e pruriginosa; a partir do 9º-12º mês, este processo inflamatório diminui, adquirindo progressivamente a cicatriz o aspecto de cor rosada clara até atingir, pelo 18º-24º mês, o aspecto de pele normal.

No caso das queimaduras eléctricas poderão surgir sequelas tardias (meses ou anos) como cataratas e mielite transversa.

Na literatura tem sido descrita situação de carência em vitamina D como resultado das cicatrizes extensas.

Manifestações clínicas e classificação

De acordo com a profundidade das lesões, as queimaduras podem ser classificadas em 3 graus:

1° grau – As lesões estão confinadas à camada mais superficial da pele – a epiderme – sem perda de continuidade, não sendo atingida a membrana basal (Figura 1). Traduz-se por eritema doloroso. São exemplos as queimaduras provocadas por exposição solar ou por contacto de curta duração com chama; quanto à evolução, salienta-se a cura espontânea em menos de uma semana, sem sequelas.

2° grau – As queimaduras, lesando a membrana basal, atingem também a derme mais ou menos profundamente (2º grau superficial, e 2º grau profundo, respectivamente), com formação de eritema e flictenas ou bolhas (que correspondem à acumulação de líquido seroso subepidérmico). Nesta modalidade de queimaduras é possível a regeneração a partir do epitélio glandular.

  • Nas formas superficiais a pele mantém a elasticidade normal, verificando-se reepitelização cerca de 2 a 3 semanas após o evento agudo. A sequela mais frequente é a hipo ou hiperpigmentação, sinal que poderá regredir ao cabo de alguns meses, sobretudo nas crianças mais pequenas.
  • Nas formas profundas verifica-se edema mais acentuado relativamente às superficiais, com aspectos variáveis da pele: vermelho brilhante, ou branco amarelado, ou ainda aspecto nacarado central com halo de eritema. A cura é mais lenta que nas formas superficiais, podendo aparecer, como sequelas, cicatrizes hipertróficas e retracção da pele com repercussão funcional músculo-esquelética. (Figura 2)

3° grau – Neste tipo de queimaduras que, em fase inicial se poderão confundir com as de 2º grau profundas, toda a espessura da derme e tecidos subjacentes são atingidos, com destruição de vasos e terminações nervosas; trata-se de lesões indolores com aspecto macroscópico de necrose de coagulação dos tecidos. A cura é lenta e as sequelas graves.
Na prática clínica, são consideradas queimaduras profundas as de 2º grau profundas e as de 3º grau.
Como nota, salienta-se que constituem sinais de suspeita de queimaduras por maus tratos: 1 – presença de lesões da pele simétricas; 2 – lesões do períneo e dos membros inferiores; e 3 – intervalo de tempo alargado entre a ocorrência da queimadura e o pedido de observação médica.

FIGURA 2. Cicatriz em fase inf lamatória (vermelha, dura e pruriginosa)

Factores de gravidade

Classicamente considera-se que a gravidade duma queimadura na criança depende de um conjunto de factores:

  1. Extensão traduzida objectivamente pela percentagem de área total queimada (TSBA – sigla de: total surface burn area);
  2. Espessura e vascularização do tecido atingido;
  3. Localização;
  4. Idade < 5 anos.

São consideradas queimaduras major com indicação de serem referidas para centro especializado (com unidades de cuidados especiais ou intensivos e condições de internamento implicando isolamento e assépsia rigorosos, assim como apoio de equipas multidisciplinares médico-cirúrgicas especializadas) aquelas com as seguintes particularidades:

  • se TSBA > 15%;
  • se TSBA > 9% e idade < 5 anos;
  • se do 3º grau com TSBA > 5%
  • se associadas a doenças pré-existentes e a lesões traumáticas;
  • se atingirem olhos, orelhas, face, mãos, pés, períneo;
  • se eléctricas;
  • se inalatórias.

Nos casos de TSBA > 50% a probabilidade de sobrevivência é limitada.

Chama-se a atenção para o facto de a distribuição da TSBA ser diferente da do adulto, o que se explica pelas particularidades do organismo em idade pediátrica (crescimento e desenvolvimento), verificando-se maior relação superfície/peso. O Quadro 1 é elucidativo.

QUADRO 1 – Diferente distribuição da TSBA (%) em diferentes idades

Idade em anos
Área0-11-45-910-1415
Cabeça191713119
Pescoço22222
Tronco anterior1313131313
Tronco posterior1313131313
Cada nádega2,52,52,52,52,5
Genitais11111
Cada braço44444
Cada antebraço33333
Cada mão2,52,52,52,52,5
Cada coxa5,56,588,59
Cada perna555,566,5
Cada pé3,53,53,53,53,5

A determinação da extensão da queimadura permite uma estimativa do cálculo das perdas de fluidos e das respectivas necessidades, o que tem implicações práticas ao estabelecer o plano de tratamento emergente (Parte X).

Exames complementares

Sucintamente são indicados alguns exames complementares nos casos de queimaduras que requerem internamento. Contudo, cada caso – mesmo sem indicação para internamento – deverá ser ponderado face às respectivas particularidades.

Eis os essenciais:

  • hemograma e estudo da coagulação;
  • ionograma sérico;
  • doseamento sérico de glicose, ureia, creatinina, sódio, potássio, proteínas totais, albumina e pré-albumina;
  • análise sumária de urina com determinação de mioglobinúria;
  • osmolalidade sérica e urinária;
  • gasometria arterial;
  • determinação de carboxiemoglobina;
  • retinol ligado a proteína.

Tratamento emergente

No âmbito da actuação prioritária é fundamental determinar a TSBA, assim como obter a estimativa da profundidade da lesão. Por outro lado há que ter em atenção que a TSBA e a profundidade da lesão podem aumentar nas primeiras horas pós-trauma.

Tratando-se duma situação requerendo, nas formas graves, actuação de emergência em ambiente asséptico, (inicialmente em unidades de cuidados especiais ou intensivos e, depois, em unidades de queimados com equipas especializadas e logística própria), muitas das medidas a seguir descritas poderão ter de ser realizadas em simultâneo, garantindo sempre a estabilidade hemodinâmica com monitorização dos sinais vitais.

Cuidados gerais

  • Lavagem da área lesada, em condições de assépsia, com compressas esterilizadas utilizando soro fisiológico ou sabão cirúrgico/solução antisséptica sob analgesia, sedação, ou anestesia (ver adiante).
  • Algaliação.
  • Aplicação de sonda nasogástrica para descompressão do estômago.
  • Aplicação de cânula venosa periférica para garantir acesso venoso, eventualmente em dois locais, de preferência nos membros superiores (em caso de necessidade, não contra-indicada em tecidos lesados).
  • Profilaxia antitetânica.
  • Aplicação de penso ”almofadado” com sulfadiazina de prata a 1% ou vaselina esterilizada.
  • Analgesia/sedação*.
    • *As benzodiazepinas, das quais o midazolam é a escolha habitual em pediatria, têm um efeito sedativo variável consoante a dose. Não têm efeito analgésico, pelo que não devem ser usadas isoladamente em procedimentos dolorosos.
    • O paracetamol é o analgésico mais frequentemente utilizado; é eficaz apenas no tratamento da dor ligeira.
    • Os opióides são os fármacos de eleição no tratamento da dor intensa. A codeína, cloridrato de tramadol, morfina, fentanil e sufentanil têm uma potência analgésica crescente. A sua utilização de forma transitória não tem risco de dependência. O risco de depressão respiratória não deve inibir a sua prescrição.
    • A cetamina é um fármaco que produz analgesia, sedação, diminuição da ansiedade e amnésia, com relativa estabilidade cardiovascular; pode constituir alternativa para a realização de alguns procedimentos dolorosos como nos casos de queimaduras.

O esquema terapêutico a aplicar depende da extensão da queimadura e da sua profundidade. Em queimaduras superficiais e de pequena área pode utilizar-se apenas o paracetamol ou propacetamol. Em queimaduras mais extensas pode iniciar-se cetamina ou cetamina + midazolam. Nos casos mais graves: fentanil + midazolam.

  • Paracetamol; dose inicial 10-15 mg/kg PO ou 15-20 mg/kg rectal; intervalos de 4-4 horas SOS até máximo de 100 mg/kg/dia.
  • Proparacetamol (1 grama<>500 mg de paracetamol); dose inicial 30 mg/kg IV; intervalos de 4-4 horas SOS até máximo de 100 mg/kg/dia.
  • Cetamina; dose inicial 0,5 mg/kg IV a repetir de 10-10 minutos SOS até máximo de 2 mg/kg; por via IM, dose inicial: 2-3 mg/kg, seguida de doses parcelares de 0,5 mg/kg SOS de 10-10 minutos até máximo de 2 mg/kg.
  • Midazolam; dose inicial em bólus IV de 0,05-0,1 mg/kg, seguida de perfusão IV ao ritmo de 0,5-3 mcg/kg/minuto até dose total máxima de 10 mg.
  • Fentanil; dose inicial IV em bólus: 0,5 mcg/kg a repetir até efeito desejado, sem ultrapassar 5 mcg/kg (1/3 da dose em crianças com < 3 meses); em perfusão IV, após bólus: 0,5-3 mcg/kg/hora até máximo de 5 mcg/kg.
  • Homeostase térmica.
    A manutenção da temperatura corporal deve ser acautelada desde a primeira avaliação do doente e durante todos os procedimentos cirúrgicos subsequentes. De salientar que a hipotermia pode agravar o catabolismo pós-traumático. Assim, torna-se fundamental manter uma temperatura constante no bloco operatório de queimados a fim de evitar a perda térmica do doente.
  • Garantir a permeabilidade da via aérea.
    O factor primordial de reanimação de um queimado é a chamada reanimação com fluidos IV nos casos de TSBA > 15%. Na idade pediátrica, a maior relação superfície/peso e a maior intensidade do catabolismo, implicam o cálculo preciso do volume de fluidos a administrar, considerando-se a normalidade da natrémia um elemento chave na hidratação.

Assim, de acordo com a chamada fórmula de Parkland modificada para a idade pediátrica, o volume de fluidos (cristalóides) de ressuscitação (que devem ser aquecidos) para as primeiras 24 horas é: 

lactato de Ringer (4 mL/Kg x TSBA em %) + fluidos de manutenção

administrando 50% do volume nas primeiras oito horas, e os restantes 50% nas dezasseis horas subsequentes. O ritmo de perfusão deverá ser ajustado de modo a manter a diurese ~1 mL/kg/hora). Os fluidos de manutenção não são considerados se o doente pesar > 40 kg.

Como notas importantes quanto a reanimação por fluidoterapia há a referir:

  • uma reidratação ineficaz poderá ter efeitos adversos ao nível dos pulmões, rim e mesentério;
  • uma reidratação excessiva (sobrecarga de fluidos) poderá conduzir a edema pulmonar agudo, a edema ao nível das lesões da queimadura com hipóxia-isquémia secundárias;
  • o objectivo da fluidoterapia é manter normalidade das FC, FR, PA, diurese e natrémia;
  • nos casos de albuminémia < 3 g/dL está indicada albumina sem sal a 20% na dose de 1 g/kg em 4-6 horas, seguida, em função do contexto clínico, de furosemido (1 mg/kg).

Assistência respiratória

O tipo de assistência respiratória pode variar entre oxigenoterapia suplementar humidificada e aquecida através de cânula nasal ou máscara, e ventilação mecânica sofisticada e terapia com oxigénio hiperbárico, sobretudo nos casos de inalação de químicos tóxicos e SDR tipo adulto (sigla ARDS na nomenclatura de língua inglesa) com compromisso de surfactante (ver atrás). A verificação de estridor, sugestiva de edema da via aérea superior, estabelece a indicação de epinefrina racémica para melhorar o fluxo aéreo.

As estratégias ventilatórias mais usadas e “menos agressivas” incluem protocolos com baixo volume corrente, PEEP elevada, e alta frequência oscilatória. O heliox (mistura de oxigénio + hélio) é utilizado sobretudo nas lesões da via aérea superior.

Nas UCIP, para a ventilação mecânica nas situações de queimaduras e inalação de fumos, há tendência para a utilização de tubos endotraqueais (TET) com cuff (0,5 cm menores do que os sem cuff) com as seguintes dimensões/comprimento em cm, de acordo com as normas da Pediatric Advanced Life Support: (Idade/4) + 3 se TET com cuff, e (Idade/4) + 4 se TET sem cuff.

Nutrição e metabolismo

Os fenómenos que integram a chamada resposta metabólica às queimaduras, atrás descritos, são mediados por corticosteróides, epinefrina, norepinefrina, glucagom, aldosterona e HAD.

Na prática utilizam-se as seguintes fórmulas para suprimento energético global:

  • Lactentes (0-12 meses): 2100 kcal/m2 + 1000 kcal/m2 de área de queimadura;
  • Crianças (1-12 anos): 1800 kcal/m2 + 1300 kcal/m2 de área de queimadura;
  • Crianças/adolescentes (>12 anos): 1500 kcal/m2 + 1500 kcal/m2 de área de queimadura.

Em termos de % de VCT são estabelecidas as seguintes proporções de nutrientes: proteínas – 25%; hidratos de carbono – 50%; e lípidos – 25%. A nutrição deverá ser ministrada por via entérica, ficando a nutrição por via parentérica reservada para casos de extrema gravidade (se o suprimento calculado ultrapassar o limite de tolerância entérica). Igualmente deverá ser dada atenção às necessidades doutros nutrientes.

Deverá ser providenciada monitorização sérica de parâmetros bioquímicos e outros.

O hipercatabolismo pode ser combatido, até certo ponto, com a administração de propranolol (0,3-1 mg/kg cada 4 a 6 horas por via nasogástrica). Para combater a degradação da massa magra e do conteúdo mineral ósseo, assim como para promover a normalização da albuminémia, pré-albuminémia e do retinol ligado a proteína, é recomendada a administração de análogo da testosterona – a oxandrolona.

No âmbito do tópico em análise, há que atender a diversos problemas metabólicos (por ex. hiperglicémia, hipoglicémia) e hidroelectrolíticos a prevenir, detectar e tratar. Em casos seleccionados pode estar indicada insulinoterapia que, para além da normalização da glicémia, poderá contribuir para o combate ao catabolismo proteico.

Procedimentos cirúrgicos

Nas queimaduras superficiais e não incluídas nos critérios major, definidos a propósito dos factores de risco, a resolução é na maior parte das vezes conseguida com tratamento conservador, vigiando de modo seriado a reepitelização da zona lesada e aplicando os cuidados gerais.

Nas queimaduras profundas, os princípios fundamentais do tratamento cirúrgico são:

  • a excisão de tecidos desvitalizados sob anestesia, sedação e analgesia, evitando a infecção local;
  • a preparação precoce do leito da queimadura para receber o enxerto com sucesso.

A excisão tangencial dos tecidos não viáveis deverá ser limitada a cerca de 15% a 20% de área queimada por sessão cirúrgica. Por vezes, a gravidade da queimadura pela sua profundidade e disposição circunferencial, não permite este objectivo. A presença de compromisso neurovascular distal por desenvolvimento de síndroma compartimental poderá implicar a realização de escarotomias, o que impede a concretização de enxerto precoce.

Como terapêutica promissora, ainda em fase de investigação, citam-se as técnicas de reconstrução com base em pele fetal e cultura de tecidos (engenharia tecidual).

Como nota importante, salienta-se que o tratamento agressivo e precoce da queimadura permite reduzir o tempo de internamento hospitalar, limitar o número de procedimentos sob anestesia geral, e melhorar a relação custo-benefício do processo terapêutico.

2. QUEIMADURAS E REABILITAÇÃO

Importância do problema

A reabilitação dos doentes com formas graves deste tipo de patologia deve começar na fase inicial, ainda na unidade de queimados, e prolongar-se até à fase de maturação cicatricial; o objectivo é evitar repercussão em diversas vertentes, quer de ordem física, quer de ordem psíquica, tendo em conta a elevada probabilidade de sequelas funcionais e estéticas.

Em média, a duração da reabilitação é cerca de 18 a 24 meses, sendo que nos casos mais complicados poderá atingir 5 anos.

Reabilitação durante o período de cicatrização

A intervenção no âmbito da reabilitação de lesões por queimaduras em idade pediátrica deve estar integrada num programa de cuidados multidisciplinares, desde o internamento numa unidade especializada até à maturação cicatricial; o principal objectivo é a prevenção das sequelas cicatriciais e osteoarticulares.

Durante a hospitalização, o tratamento de reabilitação integra os seguintes procedimentos:

  1. posicionamento articular correcto, quer no leito quer sob os pensos cirúrgicos;
  2. aplicação de ortóteses estáticas para manter o posicionamento articular pretendido (Figura 3);
  3. prevenção de complicações respiratórias através de cinesiterapia respiratória;
  4. mobilização articular através de hidrocinesiterapia realizada durante os banhos salinos efectuados antes da realização dos pensos cirúrgicos (Figura 4);
  5. estímulo precoce da função, como nos casos de mão queimada (terapia ocupacional). (Figura 5)

FIGURA 3. Ortótese estática (tala) para posicionamento no leito da tibiotársica/pé em extensão; caso de queimadura na face dorsal do pé

FIGURA 4. Hidrocinesiterapia

FIGURA 5. Queimadura do membro superior: terapia ocupacional durante o internamento

Reabilitação após o período de cicatrização

Após cicatrização deve ser feita uma avaliação do estado da pele e das zonas funcionais abrangidas.

Na avaliação da pele é importante ter sempre presente a história clínica desde o acidente até à cicatrização. O balanço deverá ser feito tendo em conta o factor etiológico da queimadura, o tempo decorrido e os cuidados prestados até à admissão hospitalar, o tempo de cicatrização, a necessidade de enxerto e a existência de complicações durante a mesma cicatrização. Associando estes dados à eventualidade de antecedentes familiares de tendência para cicatrização hipertrófica (componente genético), é possível estabelecer a probabilidade de evolução do caso para cicatriz hipertrófica, ou não (Quadro 2). Nesta perspectiva há a referir que, até à 10ª semana após a cicatrização, a vigilância clínica deve ser extremamente rigorosa, minuciosa e frequente. Se não se verificarem sinais de hipertrofia com a cicatrização durante o referido período, existe fraca probabilidade de tal acontecer depois deste período.

QUADRO 2 – Parâmetros preditivos da evolução da cicatriz*

Cor
Dá orientação sobre a neovascularização.

Relevo
Presença de hipertrofia. No início detecta-se melhor à palpação superficial do que à inspecção.

Prurido
Directamente relacionado com a possibilidade de surgir hipertrofia.

Dor
Só está presente nas fases iniciais. Se se prolongar é possível surgir hipertrofia.

Consistência
Dá orientação sobre a formação de fibrose e consequente perda das fibras elásticas.


* Na cicatriz são avaliadas as seguintes características fundamentais: cor, relevo, prurido, dor e consistência. A cor pode ser rosada, vermelha rosada ou vermelha escura; tais variantes dão indicações quanto ao modo de evolução da neovascularização:
      1. a manutenção de cor vermelha viva poderá significar que a cicatriz está a evoluir para quelóide, com neovascularização activa e produção de colagénio;
      2. quando, pelo contrário, a cicatriz evolui para cor mais clara, tal significa que há regressão da vascularização acompanhada de diminuição da produção do colagénio, o que corresponde a melhor prognóstico.

 

Em função do resultado da avaliação referida, decide-se ou não pela aplicação de material compressivo o mais precocemente possível para contrariar a tendência para a cicatrização hipertrófica; uma vez que este tipo de material tem um custo elevado, a sua prescrição deverá ser sempre muito bem ponderada caso a caso.

Na avaliação das áreas articulares afectadas há que ponderar a necessidade, ou não, de ortótese para evitar a instalação de bridas que afectem a amplitude do movimento articular, obrigando posteriormente a uma ou mais intervenções cirúrgicas. Nas crianças, ao contrário dos adultos, o uso prolongado de ortóteses de imobilização não provoca rigidez articular, e o aparecimento de osteomas pós-imobilização é raro.

Quando a área queimada afecta, por retracção cutânea, a atitude postural, como acontece nas frequentes queimaduras da região anterior e ou lateral do tórax, ou quando existe uma ou mais zonas articulares com limitação da amplitude articular, devem ser prescritos tratamentos de fisioterapia para evitar a instalação de deformações osteoarticulares definitivas que poderão necessitar de intervenções cirúrgicas futuras. (Figura 6)

Se a queimadura abranger o membro superior, e em especial a mão (uni ou bilateralmente), os tratamentos devem ser sempre que possível orientados para terapia ocupacional. A recuperação da função dos membros superiores é fundamental para o normal desenvolvimento psicomotor e sensorial da criança.

FIGURA 6. Limitação articular do ombro por queimadura axilar

Prevenção e tratamento da hipertrofia

Dada a sua importância, reitera-se que o tratamento de reabilitação da criança que sofreu queimaduras deve ser fundamentalmente centrado na evolução cicatricial das áreas queimadas. Com efeito, uma boa cicatrização com a instalação mínima possível de hipertrofia e de bridas, poderá evitar sequelas osteoarticulares e posturas anómalas, com ou sem desvios da coluna.

Neste campo, cabe salientar a extraordinária importância da colaboração dos pais/família; de facto, são os mesmos que cuidam diariamente da criança. Devendo ser minorado pelo clínico assistente o eventual sentimento de culpa que possa instalar-se por parte daqueles em relação ao acidente (o que passou, passou…), há contudo que os responsabilizar pelo tratamento a decorrer, chamando-se a sua atenção para a hipótese de agravamento das sequelas, no caso de não colaboração nos cuidados a prestar à criança em casa.

Caso se venha a instalar cicatriz hipertrófica, torna-se fundamental descrever os principais procedimentos para combater a sua intensificação:

  • Hidratação correcta da pele, com a aplicação de um creme hidratante associado a um componente gordo (por ex. creme de aveia com omega 6); a aplicação deve ser feita várias vezes ao dia consoante o estado da pele, salientando-se que uma boa hidratação também diminui o prurido. Este deve ser evitado, pois o acto de coçar contribui para aumentar a vascularização, com consequente produção de colagénio por parte dos fibroblastos. As lesões de coceira numa pele friável podem, de facto, atrasar o processo cicatricial.
  • Para combater o prurido pode administrar-se, ao deitar (se for necessário, também durante o dia), hidroxizina; e, nos casos mais graves, diazepam.
  • Para lutar contra a hipertrofia (produção e deposição anómala de colagénio) recorre-se ao uso de peças de vestuário compressivas – pressoterapia (Figura 7). A compressão cicatricial é o meio mais eficaz de luta contra a proliferação anómala das fibras de colagéneo. Ao comprimir-se a rede vascular anómala existente na evolução cicatricial em fase inflamatória, diminui o suprimento de oxigénio aos fibroblastos e, consequentemente, a produção de colagénio. Por outro lado, a pressão sobre a cicatriz também promove uma distribuição paralela das fibras de colagénio, o que a torna menos dura e retráctil. O fato compressivo deve ser usado durante o máximo de tempo possível, cerca de 23 horas/dia, só se retirando para a higiene e para aplicação do hidratante. O seu uso em tempo parcial não é recomendado, principalmente na fase inflamatória do processo cicatricial.
  • No reforço da compressão cicatricial pode ser utilizado o silicone-gel (Figura 8) ou mesmo placas de couro (vulgar sola de sapato). O efeito do silicone-gel na evolução da cicatriz ainda hoje é discutível. Além da melhor distribuição das forças de pressão na zona pretendida, atribui-se-lhe a criação de um ambiente de anaerobiose local sobre a cicatriz, susceptível de contrariar a produção de colagénio. A pressoterapia deve ser mantida até haver a certeza de que a fase inflamatória cicatricial chegou ao seu termo; tal ocorre em geral quando a cicatriz começar a ficar rosada, clara, enrugada e mole.
  • Depois da fase inflamatória, podem ser iniciados os tratamentos de vacuoterapia. Este tipo de tratamento promove o descolamento da cicatriz dos planos profundos e destroi parcialmente a fibrose que possa ter-se instalado.
  • A massagem também tem o seu papel. A massagem clássica (do tipo deslizamento) está contra-indicada na fase inflamatória por promover o aumento da vascularização. Neste período somente está indicada a massagem do tipo compressivo, como a transversa profunda; o objectivo é comprimir os vasos arteriais e impedir a organização de fibrose.
  • Paralelamente a estes cuidados na luta contra a hipertrofia, por vezes há necessidade de recorrer aos tratamentos de cinesiterapia e/ou aos tratamentos em terapia ocupacional. (Figura 9).
  • O tratamento em estâncias termais (crenoterapia) com especialização para tratamentos de sequelas de queimaduras é eficaz, embora de elevado custo.

FIGURA 7. Fato compressivo (pressoterapia)

FIGURA 8. Placas de silicone sobre cicatrizes hipertróficas em fase inflamatória

FIGURA 9. Sequência de tratamentos de mãos queimadas em terapia ocupacional

GLOSSÁRIO

Pressoterapia > Método de tratamento utlizado classicamente nas perturbações circulatórias dos membros através de dispositivo mecânico de compressão e descompressão. No caso das queimaduras, o princípio baseia-se na compressão.

Vacuoterapia > Método de tratamento que consiste no descolamento de cicatrizes aderentes através de aparelho eléctrico com dispositivo colocado sobre aquelas, através do vácuo provocado (~sucção).

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Importância do problema

Os problemas clínicos relacionados com mordeduras e picadas por animais chamados venenosos são, não só pouco frequentes em crianças e adolescentes vivendo no meio urbano, como comportam baixa morbilidade e mortalidade. No que respeita às mordeduras, as situações mais prevalentes são, dum modo geral, as produzidas por animais domésticos, especialmente cães (a maioria ~80%) e gatos (~5%). As mordeduras produzidas por animais não domésticos (ratos, coelhos, répteis, etc.), assim como as lesões ou picadas por animais marinhos e insectos venenosos, constituem uma minoria (~1-2% conforme o meio em que a criança vive ou frequenta). No nosso meio é pouco comum ter primatas como animais de companhia.

Dum modo geral as lesões por mordedura de animais localizam-se nas extremidades; as lesões na face observam-se quase invariavelmente em crianças pequenas.

Neste capítulo é dada ênfase às lesões por mordedura de cão, gato, primata e réptil venenoso, assim como às lesões e picadas por animais marinhos e insectos venenosos.

1. MORDEDURA POR CÃO

Manifestações clínicas e factores etiológicos infecciosos

As lesões resultantes deste tipo de mordedura são variáveis, quer em extensão, quer em profundidade: entre feridas simples (punctiformes ou lineares) ou feridas múltiplas (lacerações e abrasões) e até amputações. Poderão ser atingidos, para além da pele, outras estruturas como vasos, nervos, músculos e tendões, deduzindo-se destas circunstâncias as implicações em termos de manifestações clínicas, as quais também dependem da localização.

Surgem frequentemente infecções de localização muito diversa como complicação, sobretudo por anaeróbios; tal depende das condições ambientais em que se verificou a lesão, do microbioma bucal do animal e do tempo decorrido entre a ocorrência e o início do tratamento.

Existe risco de infecção da pele e tecidos moles por S. viridans, S. aureus, Pasteurella multocida, Bacteróides sp, Fusobacterium sp, e Capnocytophaga canimorsus (DF-2). Este último agente pode dar origem a septicémia com CID em doentes asplénicos.

Tratamento

Como cuidados gerais iniciais, deve lavar-se a ferida com soro fisiológico estéril, de preferência com seringa, dirigindo o soro em jacto; em alternativa, com povidona iodada (Betadine®) diluída a 1%. De facto, uma lesão deste tipo deve ser sempre considerada ferida suja ou contaminada. Poderá haver necessidade de proceder a excisão de tecidos desvitalizados.

No âmbito dos cuidados iniciais, hospitalares ou em centro médico-cirúrgico, sob anestesia local ou no bloco operatório, deve proceder-se à excisão dos tecidos desvitalizados, retirando eventuais corpos estranhos. Como regra geral, é prudente não realizar suturas pelo risco de infecção, sobretudo se o tempo decorrido for > 8 horas após a mordedura. Tratando-se de lesão num membro, poderá estar indicada a imobilização do mesmo durante 3-5 dias.

Medidas profilácticas

A antibioticoterapia profiláctica está indicada sempre que a mordedura tenha ocorrido há mais de 8 horas, em feridas da face, profundas e em pacientes imunodeprimidos (amoxicilina+ácido clavulânico na dose de 40 mg/kg da primeira, por via oral durante 7 dias; ou ceftriaxona – 80 mg/kg IM em dose única); ou doxicilina PO em doentes com > 8 anos (dose inicial: 4 mg/kg; doses seguintes: 2 mg/kg em 1-2 doses). Em casos especiais poderá estar indicado proceder a exames culturais da ferida.

Está indicada a profilaxia da raiva nos cães não vacinados e reforço de 1 dose de vacina antitetânica – 0,5 mL por via IM.

Nos casos de feridas sujas (raros no panorama actual no nosso país – eventualmente cidadãos estrangeiros) não previamente vacinados, está indicada imunoglobulina antitetânica seguida de vacinação. Nos casos de ferida limpa, deve iniciar-se a vacinação.

No que respeita à profilaxia da raiva, cabe referir que a mesma está indicada se o estado de saúde do animal (que deve ser capturado e observado durante 10 dias) o justificar com base na decisão do delegado de saúde e autoridade veterinária. Em Portugal não há casos notificados de raiva na espécie humana desde há mais de meio século.

2. MORDEDURA/ARRANHÃO POR GATO

Manifestações clínicas

Frequentemente o gato origina mordeduras perfurantes nos membros, pescoço, tronco, fronte e face; outro tipo de lesão é o arranhão.

As complicações mais frequentes são as infecções da pele e tecidos moles (celulite, tenossinovite, linfangite) por Staphylococcus aureus, Streptococcus beta hemolítico do grupo A, Capnocytophaga canimorsus, Pasteurella multocida e Bartonella hensalae. Relativamente a este último germe microbiano é feita referência especial em capítulo próprio na Parte sobre Infecciologia.

Tratamento e medidas profilácticas

Aplicam-se os mesmo princípios gerais enunciados a propósito da mordedura por cão.

3. MORDEDURA POR RATO

Como resultado da mordedura do rato poderão surgir infecçõs da pele e tecidos moles, possivelmente causadas por Streptobacillus moniliformis ou Spirillum minus.

Em termos profilácticos, têm indicação as medidas locais referidas a propósito da mordedura por cão e gato.

Surgindo infecções da pele e tecidos moles, os antibióticos de primeira escolha são: penicilina G IM ou amoxicilina/clavulanato durante 10 dias. Como alternativa pode empregar-se doxiciclina em idades > 8 anos.

4. MORDEDURA POR PRIMATA

Embora no nosso meio, como se disse, não seja habitual a convivência com macacos, importa referir uma particularidade relacionada com o risco de transmissão de agentes como S. viridans, S. aureus, S. pyogenes, Eikenella corrodens, Bacteróides sp, Fusobacterium sp e vírus herpes.

Está indicada investigação serológica sobre VIH, VHB, VHC e Vírus herpes, dados os riscos de contrair infecções por estes agentes.

No caso de agentes bacterianos é possível o surgimento de infecções da pele e tecidos moles. Nesta perspectiva, para além doutras medidas de profilaxia abordadas na Parte sobre Infecciologia, caso surjam infecções da pele e tecidos moles, a antibioticoterapia de eleição contempla a amoxicilina-clavulanato (dose de amoxicilina: 30-60 mg/kg/dia PO ou IV em 3 doses); como alternativa: cefoxitina IV ou IM (75-200 mg/kg/dia em 3-4 doses), ou clindamicina IV, IM ou PO (15-40 mg/kg/dia em 3-4 doses) + cotrimoxazol (PO ou IV na dose de sulfametoxazol de 40-100 mg/kg/dia em 2-4 vezes, ou ciprofloxacina PO se > 18 anos: 10-30 mg/kg/dia; duração da antibioticoterapia -10 dias.

Deve proceder-se à lavagem da ferida ou feridas com água e sabão durante 3-5 minutos e nos primeiros minutos após o evento.

Para além da profilaxia da raiva, poderá ser necessária a limpeza cirúrgica da ferida e desinfecção com soluto iodado. No caso do globo ocular, se afectado, para além da indicação de observação por oftalmologista, como primeiros cuidados citam-se irrigação com soro fisiológico durante 15 minutos dado o risco de transmissão do vírus herpes; se não existir soro fisiológico, deve utilizar-se água corrente.

Está também indicada, como profilaxia, a administração de aciclovir PO quando as lesões são profundas, em crianças com > 6 anos durante 5 dias na dose de 800 mg de 4-4 horas, 5 vezes/dia.

5. MORDEDURA POR SERPENTE VENENOSA

Etiopatogénese e importância do problema

As serpentes venenosas existentes no nosso país e na Europa pertencem fundamentalmente a três espécies: Vipera aspis, Vipera latasti (víboras) e a Macroprotodon cuccullatus; esta última raramente inocula veneno porque tem dentes muito posteriores.

As víboras distinguem-se das restantes serpentes pelas seguintes características:

  • comprimento em geral inferior a 1 metro; versus maior;
  • cabeça achatada, larga e triangular; versus arredondada/ovóide;
  • pupilas elípticas; versus circulares;
  • apêndice nasal em forma de chifre; versus ausente;
  • dentes ou colmilhos em forma de garra aguçada, anteriores; versus

O veneno destes animais é proteolítico e coagulante em pequena dose; se inoculado em grande dose tem efeito hemolítico e anticoagulante. Não há casos registados de mortes por picada de víboras no nosso país. Tratando-se de um veneno hemotóxico, poderão surgir fenómenos hemorrágicos e trombóticos.

Manifestações clínicas e exames complementares

As manifestações clínicas variam em função do tamanho do animal, da idade e estado de saúde da criança, assim como do local da picada; a gravidade é tanto maior quanto maior o tamanho do animal e mais proximal o local da agressão.

A picada identifica-se por duas pequenas marcas ou orifícios separados entre 6 e 10 mm, sendo também possível identificar a marca de um colmilho ou mais de uma mordedura. Nos minutos que se seguem à mordedura, verifica-se inflamação localizada, com dor e edema variáveis. Se nos 30 minutos seguintes não se verificar reacção inflamatória local, é provável que a inoculação do veneno tenha sido escassa.

Para além dos fenómenos locais descritos, outros como flictenas, necrose, linfangite e tromboflebite poderão surgir. No caso de inoculação sistémica importante poderão surgir náuseas, vómitos, CID, choque, HTA, IRA, anemia hemolítica, convulsões, choque anafiláctico, rabdomiólise, etc.. São critérios de gravidade idade < 5 anos e lesões na face, pescoço e tronco.

Como prioridade, para além de ser fundamental proceder a colheita de sangue para hemograma e estudo da coagulação, o quadro descrito implica monitorização do doente durante um período ~24 horas, e evacuação para UCIP no caso de surgirem sinais de doença sistémica com disfunção multiorgânica.

Tratamento inicial

Imediatamente após a mordedura são estabelecidas as seguintes medidas gerais:

  • imobilização do membro afectado, colocando-o em posição inferior ao tronco;
  • arrefecimento local moderado (saco de água fria separado da pele com toalha);
  • limpeza da ferida com água e sabão e, posteriormente, com peróxido de hidrogénio;
  • analgésicos (paracetamol, ibuprofeno) – o ácido acetilsalicílico, hoje só utilizado em situações especiais, pode potenciar o efeito do veneno;
  • antibioticoterapia (ceftriaxona – 80 mg/kg em dose única IV);
  • profilaxia antitetânica, inclusivamente nos doentes vacinados (1 dose de reforço).

Tratamento hospitalar (UCIP)

  • limpeza da ferida com excisão dos tecidos no caso de necrose;
  • imobilização e (agora) elevação do membro;
  • sedação com diazepam se houver agitação;
  • heparinoterapia se existir CIVD;
  • fasciotomia se existir edema compressivo (síndroma compartimental);
  • soro anti-ofídio com indicações muito precisas dado o risco de choque anafiláctico; por outro lado, o efeito é duvidoso, sendo que os corticóides e os anti-histamínicos não modificam a evolução do processo.

Nota: Não se deve garrotar o membro atingido nem fazer incisão no local da mordedura por aumentar o risco de disseminação do veneno; também o socorrista não deverá proceder à sucção da ferida.

6. LESÕES E PICADAS POR ANIMAIS MARINHOS

Nesta alínea é dada ênfase à picada pelo peixe-aranha e às lesões por medusa, anémona e hidra.

Etiopatogénese

O peixe-aranha, com duas variedades principais – uma de menor comprimento ~15 cm, e outra com cerca de 55 cm tem espinhos venenosos numa das duas barbatanas dorsais, e em torno dos opérculos branquiais. Podendo estar enterrado na areia da praia, ao ser pisado inocula o veneno neurotóxico, não deixando habitualmente o espinho; ao ser manuseado ou pisado depois de morto, sua picada continua a ser venenosa.

No caso da medusa, anémona e hidra, o veneno, actuando por contacto, é libertado por determinadas células chamadas nematocistos, as quais funcionam como reservatório do veneno.

Manifestações clínicas

No caso do peixe-aranha, a picada localizada nas mãos ou pés provoca dor intensíssima e edema duro de dimensões varáveis; poderão surgir sintomas e sinais gerais como hipertermia, náuseas, vómitos, ansiedade, cefaleia, cãibras, dificuldade respiratória, sudação, vertigens, etc..

Tratando-se dos problemas provocados por medusa, anémona e hidra há a particularizar o aparecimento de lesões de tipo urticária com disposição grosseiramente linear.

Tratamento

Nas picadas por peixe-aranha recomenda-se:

  • desinfecção local e eventual extracção do espinho se partido ou espetado;
  • imersão imediata (nos primeiros 30 minutos para garantir eficácia) em água a 45º durante cerca de 30-60 minutos, uma vez que o veneno é termolábil;
  • analgésicos (paracetamol, ibuprofeno, eventualmente opiáceos);
  • infiltração com lidocaína em situações não respondentes às medidas anteriores;
  • profilaxia antitetânica;
  • antibioticoterapia profiláctica durante 3 dias (amoxicilina + ácido clavulânico).

Nas lesões por medusa, anémona ou hidra:

  • lavagem suave, sem exercer pressão, da zona da lesão com água salgada – e não com água doce pela possibilidade de ruptura das células contendo o veneno, o que poderá libertar mais tóxico, agravando a situação;
  • limpeza de seguida com vinagre (ácido acético a 5%) durante 30 minutos;
  • extracção de eventuais restos aderentes do animal com luvas;
  • corticóides tópicos;
  • analgésicos (paracetamol, ibuprofeno);
  • antibiótico tópico.

Não estão indicadas aplicação de penso oclusivo nem antibioticoterapia profiláctica sistémica.

7. PICADAS POR INSECTOS VENENOSOS

Etiopatogénese e importância do problema

Além dos himenópteros (englobando abelhas, vespas e formigas), outros insectos poderão estar implicados, como mosca, certos aracnídeos (carraça e lacrau, e um tipo de aranha conhecida como viúva negra).

A viúva negra, que produz uma potente neurotoxina (a alfa-latrotoxina) – distingue-se doutras pelo corpo esferóide, preto brilhante, com uma marca vermelha “em vidro de relógio” no abdómen. A referida neurotoxina liga-se às membranas neuronais pré-sinápticas causando libertação de acetilcolina e nor-adrenalina ao nível da junção neuromuscular. Como resultado da libertação destes neurotransmissores, surge despolarização muscular excessiva e hiperactividade do sistema autónomo.

A carraça produz também uma neurotoxina. Quanto aos lacraus cabe referir que a variedade negra não produz veneno tóxico, ao contrário da amarela.

Manifestações clínicas

A picada por himenópteros em geral origina reacção local com aparecimento de pápulas pruriginosas. Poderão surgir reacções de hipersensibilidade ao veneno traduzidas por choque anafiláctico e, em casos menos graves, de forma retardada sob a forma de urticária papular. Como regra, pode considerar-se que quanto mais curto é o intervalo entre a picada e o início dos sintomas, mais exuberante é a reacção.

No caso da picada por carraça poderá surgir paralisia flácida do tipo Guillain-Barré por inoculação de neurotoxina, sendo tal quadro clínico reversível com a extracção do aracnídeo.

Nas picadas de moscas, aparentemente irrelevantes, está indicado apenas tratamento sintomático. A picada por lacrau origina dor local muito intensa, edema e linfangite; a mesma tem maior relevância em crianças mais pequenas pela possibilidade de taquicárdia, arritmia e edema agudo do pulmão.

A picada da viúva negra origina reacções locais e sistémicas; na sua forma típica é indolor na primeira hora; ao cabo deste tempo surge dor local que rapidamente se generaliza pelo corpo, acompanhada de rigidez muscular regional, cefaleia, HTA, cãibras musculares e sinais muscarínicos (sialorreia, miose, hipersudorese e bradicárdia), náuseas, vómitos, irritabilidade, etc.. Em picadas nas extremidades poderão surgir lesões de necrose. Para decisão terapêutica é importante entrar em conta com quatro sintomas/sinais-chave: dor abdominal, HTA, mialgias e agitação/irritabilidade. (ver adiante)

Uma das formas de apresentação com dor abdominal, dor abdominal e rigidez muscular tipo “ventre em tábua” pode simular quadro de abdómen agudo relacionável com apendicite aguda ou peritonite. Na literatura antiga estão descritos casos fatais relacionados com laparotomia intempestiva, realizada no pressuposto de diagnóstico de apendicite aguda.

Tratamento

Nas picadas por himenópteros aplica-se tratamento que se pode generalizar a todas as picadas de insectos:

  • extracção imediata do ferrão (com pinça e não espremendo);
  • lavagem/limpeza da ferida;
  • arrefecimento com compressas geladas e elevação do membro (caso se trate de membro afectado) para combater o edema;
  • anti-histamínicos e analgésicos.

Nas reacções sistémicas, com internamento em UCIP, podem estar indicados:

  • adrenalina a 1/1.000 via SC na dose de 0,01 mL/kg;
  • corticóides sitémicos;
  • beta-agonistas se se verificar broncospasmo;
  • dopamina e cristalóides em caso de choque/hipotensão.

Nas picadas por carraça recomenda-se a extracção mediante impregnação com éter ou cloreto de etilo. Não está indicada antibioticoterapia profiláctica da febre escaronodular.

Nas picadas por lacrau deve aplicar-se gelo e, eventualmente proceder-se a infiltração de anestésico local quando a dor é muito intensa.

Nos casos de picada por viúva-negra:

  • tratamento sintomático, recomendando-se atropina se surgir síndroma muscarínica e gluconato de cálcio se surgirem cãibras;
  • a verificação de 3 ou menos dos sinais-chave anteriormente referidos com duração inferior a 12 horas estabelece indicação para tratamento conservador com benzodiazepinas e/ou opióides;
  • a verificação de 4 ou mais dos sinais-chave ou a hipótese anterior > 12 horas obrigam à utilização de soro antiveneno específico após prova intradérmica prévia a fim de avaliar risco de anafilaxia (em geral inferior a 1%).

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Introdução

Ao abordar o tema sobre “Imunizações”, importa rever algumas definições relacionadas, para melhor compreensão.

 Antigénio – substância (geralmente uma molécula complexa de proteína ou de polissacárido) que, introduzida no organismo, provoca a formação de um anticorpo específico suscetível de a neutralizar. Os antigénios têm proveniência diversa (bactérias, vírus, células ou proteínas estranhas, substâncias tóxicas, etc.).

Anticorpo – classe de proteínas presentes naturalmente, ou produzidas no organismo sob a acção de um antigénio, com este reagindo especificamente in vitro ou in vivo. Existem 5 classes de anticorpos: IgG, IgA, IgM, IgD, e IgE, podendo alguns destes apresentar subclasses.

Controlo ou contenção de uma doença evitável pela vacinação – significa que se verifica a existência de casos, embora não constituindo problema significativo de saúde pública. Exemplifica-se com o tétano, doença com reservatório ambiental, em que não existe imunidade de grupo e a protecção depende da vacinação individual.

Eliminação – este termo significa supressão da doença localmente, sem erradicação global do microrganismo causal. Exemplificando: nalgumas regiões verifica-se um progresso significativo na eliminação do sarampo, com inexistência de circulação endémica do vírus, sendo que a importação do vírus não resulta em cadeias de transmissão na comunidade, como é o caso de Portugal. Este objectivo é atingido com uma taxa de cobertura vacinal superior a 95% e num regime de duas doses. Para doenças com reservatório ambiental, como o tétano, a erradicação não é possível, mas a eliminação está ao nosso alcance se a vacinação individual incluir todas as pessoas.

Erradicação – significa supressão total de uma doença com erradicação global do microrganismo causal. Somente se pode considerar a erradicação relativamente a doenças de contágio exclusivamente inter-humano. De salientar que a erradicação implica a aplicação, à escala global, duma vacina efectiva, a verificação de altos níveis de imunidade contra a doença por um período de tempo prolongado, e a existência de apoio laboratorial específico que permita uma vigilância epidemiológica eficaz e mantida. Pressupõe-se que um microrganismo erradicado não pode reemergir, excepto se houver algum reservatório ou uma introdução por bioterrorismo.

Embora a erradicação seja teoricamente possível para outras doenças evitáveis pela vacinação, apenas a varíola foi até hoje erradicada (OMS, 1980). A erradicação de uma doença por acção do Homem foi por muitos considerada o feito mais importante da história da Medicina. Como disse Margaret Chan, da OMS, na comemoração dos 30 anos da erradicação da varíola (2010): …esta foi a prova do poder da acção colectiva na melhoria da condição humana

As próximas doenças-alvo para a erradicação são a poliomielite e o sarampo.

Imunidade (do latim immunitas) – significa a capacidade congénita ou adquirida para resistir ou permanecer isento de doença provocada pela exposição a microrganismos ou toxinas. A imunidade para uma doença infecciosa específica pode ser adquirida após contacto com um microrganismo, com ou sem manifestações de doença, ou após imunização (ver adiante); deve-se na maior parte das vezes à presença de anticorpos para um microrganismo específico.

Imunidade de grupo – a imunidade de grupo, entendida como a protecção de não vacinados, ocorre quando uma proporção suficiente de indivíduos está imunizada numa determinada comunidade. O declínio da incidência da doença é maior do que a proporção de indivíduos vacinados, pois a vacinação reduz a disseminação do agente infeccioso. A imunidade de grupo explica a ausência da doença em determinada área geográfica sem se ter atingido 100% da cobertura vacinal contra essa doença.

O conceito de imunidade de grupo não se aplica às doenças com reservatório ambiental, como o tétano, em que a protecção só é atingida com a vacinação individual.

Imunogenicidade – capacidade de determinada molécula antigénica, ou determinada fracção de um antigénio, suscitar uma reacção imunitária.

Imunogénio – substância com capacidade de provocar reacção imunitária; na maior parte dos casos trata-se dum antigénio. Certos antigénios, como as háptenas, estrutura antigénica de muito baixo peso molecular, não têm capacidade para induzir resposta imunitária devido às reduzidas dimensões; contudo, enxertadas numa molécula maior (chamada portadora ou carrier) passa a ter tal capacidade.

Imunização – acção pela qual se confere imunidade:

  • Imunização activa – administração de antigénios que estimulam o sistema imunitário, o que se traduz na produção de anticorpos e/ou ativação de células de memória; a protecção é habitualmente de longa duração. Em geral, emprega-se o termo “imunização activa” como sinónimo de vacinação, mas imunização activa pode também ser obtida de forma natural através da exposição a determinadas doenças.
  • Imunização passiva – injecção de anticorpos, o que permite protecção imediata, embora de menor duração do que a conferida pela imunização activa; tal duração depende da vida média dos anticorpos injectados: semanas ou meses. A imunidade adquirida pelo feto, pela passagem de anticorpos maternos através da placenta é também uma forma de imunização passiva (ver adiante).

Microbioma – em complemento da definição explanada no Glossário geral, importa salientar que as “comunidades microbianas” simile “exércitos” (células em número 10 vezes superior ao das células totais do organismo humano, e comportando genes em número 100 vezes superior ao número de genes humanos), interagem com o ambiente e influenciam significativamente a função imunológica e metabólica.

Pré-exposição – em regra, as vacinas são eficazes se aplicadas antes do contacto com a doença infecciosa em causa. Daí a fundamentação dos programas de vacinação em que a administração precoce de vários antigénios pode ainda permitir uma protecção contra doenças maioritariamente adquiridas na infância.

Primo-vacinação ou imunização primária – série de doses de uma mesma vacina a administrar a uma pessoa susceptível para que se consiga uma imunidade adequada e duradoura frente à infecção que se quer prevenir.

Pós-exposição – algumas vacinas podem conferir protecção quando administradas em situações de pós-exposição, nomeadamente as vacinas contra hepatite B, hepatite A, sarampo e varicela. Neste contexto, as vacinas podem ser utilizadas na protecção individual ou no controlo de surtos.

Toxina – substância simultaneamente tóxica e antigénica elaborada por certas bactérias, nomeadamente Clostridium tetani, Corynebacterium difteriae e Bordetella pertussis.

Toxóide (sinónimo de anatoxina) – substância preparada a partir duma toxina bacteriana pela acção simultânea do formol e do calor, a qual perdeu o seu poder tóxico (toxina modificada), conservando, embora, as suas propriedades imunizantes.

Vacina – produto preparado a partir de microrganismos (do todo ou de componentes estruturais do mesmo), com propriedades antigénicas, suscitando no indivíduo em que é aplicado, uma resposta imunitária protectora contra a doença provocada pelo microrganismo correspondente. Os microrganismos em causa podem ser mortos ou inactivados, ou vivos, embora atenuados por passagens num hospedeiro não natural, ou por um meio desfavorável (formol, outra substância ou calor).

Mais recentemente, a chamada vacinologia reversa veio permitir o fabrico de vacinas utilizando alguns genes do microrganismo. A vacina contra Neisseria meningitidis do serogrupo B (MenB), já comercializada, foi a primeira desenvolvida por esta técnica.

Imunização passiva

Principais indicações

A imunização passiva consiste na transferência de anticorpos pré-formados, de origem humana ou animal, conferindo uma imunidade temporariamente limitada contra algumas infecções (semanas ou meses, dependendo da velocidade de degradação dos anticorpos).

As principais indicações na prevenção de doenças evitáveis pela vacinação são:

  1. Exposição ou risco de exposição a determinadas doenças sem que haja tempo suficiente para se desenvolver imunidade activa através de vacinação, como por ex. sarampo, hepatite A, hepatite B, tétano;
  2. Vacinação da grávida contra a tosse convulsa para prevenção da tosse convulsa no lactente até aos 2 meses de idade através da passagem transplacentar de anticorpos da mãe para o filho. (ver adiante)

As principais origens de anticorpos para imunização passiva, no âmbito das doenças evitáveis pela vacinação, são a imunoglobulina humana, a imunoglobulina humana específica (hiperimune) e o soro heterólogo (de origem animal) hiperimune.

Imunoglobulina humana (homóloga)

Em Portugal apenas está disponível a imunoglobulina humana para administração endovenosa (IGIV). A imunoglobulina humana é policlonal, contendo vários tipos de anticorpos, predominantemente IgG, obtidos a partir do plasma de adultos. É usada principalmente na profilaxia pré e pós-exposição a hepatite A e sarampo, em pessoas incompletamente vacinadas, com contraindicação para a vacinação, ou cuja doença de base não permite uma resposta adequada à vacinação (imunossupressão).

 Imunoglobulina humana específica (hiperimune)

As globulinas hiperimunes são preparados de IG obtidos de dadores com títulos elevados de anticorpos contra agentes específicos, nomeadamente hepatite B, raiva, tétano, varicela-zóster, citomegalovírus, botulismo e varíola.

Soro heterólogo hiperimune (antitoxina ou anti-soro hiperimune)

Também chamada antitoxina, é uma solução de anticorpos contra uma toxina bacteriana. O soro, obtido a partir de animais habitualmente de origem equina, contém anticorpos contra um único antigénio.

Existem disponíveis os seguintes preparados para utilizar na espécie humana: antitoxina diftérica e antitoxina botulínica trivalente (A, B, E) e bivalente (A, B).

As potenciais reacções adversas exigem precauções antes da administração (teste de sensibilidade, dessensibilização) e tratamento enérgico quando surge febre, anafilaxia e doença do soro).

Imunização activa

A este propósito, importa relevar certos factos considerados histórico-científicos (I e II).

I – A palavra “vacina” deriva de vacínia, doença vesiculosa dos bovinos, também chamada varíola das vacas (cowpox), provocada por um vírus do mesmo grupo do vírus da varíola humana (smallpox). As pessoas com história de vacínia (nomeadamente as leiteiras) não eram contagiadas pela varíola. Com base nesta constatação, em 1796 Edward Jenner inoculou James Phipps, de 8 anos (filho do seu jardineiro) com material das lesões de vacínia das mãos da Sarah Nelmes (leiteira), o que desencadeou uma reacção febril transitória na criança. Cerca de dois meses mais tarde Jenner voltou a inocular James Phipps com material de lesões de varíola, não tendo a criança desenvolvido doença. Jenner demonstrou assim o papel protector do vírus mais “fraco”, descobrindo a primeira vacina. Esta experiência seria actualmente inaceitável pelas questões éticas que levanta.

Cerca de 80 anos depois, Louis Pasteur verificou que a inoculação de microrganismos previamente expostos ao ar ou ao tratamento químico provocava uma doença atenuada.

Nasceu assim um novo conceito de prevenção de doenças infecciosas fundamentada na capacidade natural de resposta ou de reacção do organismo à inoculação de um agente similar ao agente microbiano “agressor” ou a um “produto” seu derivado, resposta ou reacção que conferem protecção por um período habitualmente longo.

As primeiras vacinas englobavam todo o microrganismo contra o qual se pretendia a protecção (ver adiante). Um passo importante foi o isolamento dos componentes essenciais dos microrganismos (geralmente determinantes da virulência), surgindo as vacinas de subunidades (ver adiante). Esta tecnologia foi usada pela primeira vez para as vacinas contra a difteria e o tétano, doenças cujas manifestações se devem às toxinas produzidas pelas bactérias. As vacinas iniciais (toxóides) eram toxinas quimicamente inactivadas.

Inicialmente, o desenvolvimento das vacinas ocorreu de forma quase empírica”, com grande desconhecimento dos complexos mecanismos imunológicos do agente e do hospedeiro subjacentes à protecção conferida pelas vacinas.

II – A compreensão cada vez maior da resposta imunológica e o desenvolvimento da biotecnologia têm permitido um aperfeiçoamento constante com vacinas mais seguras e eficazes:

  1. A cultura de células permitiu o desenvolvimento de vacinas vivas antivíricas, designadamente contra a poliomielite, sarampo, parotidite, rubéola e varicela;

  2. A engenharia genética permitiu a produção, por leveduras, Escherichia coli e báculo-vírus, de proteínas estruturais, potencialmente imunogénicas, culminando com a produção de vacinas seguras e altamente imunogénicas contra a hepatite B, o vírus do papiloma humano e rotavírus;

  3. A tecnologia da conjugação química de proteínas a polissacáridos permitiu a elaboração de vacinas polissacarídeas imunogénicas para administrar abaixo dos dois anos; são exemplos as vacinas conjugadas contra Haemophilus influenza b, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis C; *

*Relativamente a Neisseria meningitidis em geral, importa referir certos pormenores.

O meningococo é um diplococo Gram-negativo aeróbio, oxidase-positivo e produtor de catalase. Possui um invólucro com 3 camadas (membrana citoplásmica, parede celular de peptidoglicano, e membrana externa com fosfolípidos, proteínas e lipo-oligossacárido); tal invólucro está rodeado por uma cápsula polissacarídea.

As características estruturais da cápsula determinam a existência de, pelo menos, 12 (anteriormente considerados em número de 13) serogrupos (a que correspondem diversas variantes antigénicas) de meningococo, dos quais 6 – A, B, C, W (anteriormente designada W135) X e Y – são os responsáveis pela maioria dos casos da doença sistémica. Surtos responsáveis pelo serogrupo X têm sido identificados em África.

Cada serogrupo divide-se em serótipos e subtipos em função das proteínas porinas da membrana externa (porA e porB, respectivamente) que contribuem para a virulência do microrganismo. O imunotipo é definido pela estrutura do lipo-oligossacárido/LOS ou endotoxina, crucial na cascata inflamatória activada através do receptor Toll-like 4 (TLR4).

A cápsula de polissacáridos tem capacidade para resistir à fagocitose e à acção de depuração com a participação do ferro através da lactoferrina e transferrina.

Através de técnicas genéticas concluiu-se que existem sete linhagens hiperinvasivas, causadoras da maior parte dos casos de doença meningocócica invasiva.

De salientar a maior prevalência dos serogrupos B e C nos países industrializados (com incidência ~1-3/100.00 nas duas últimas décadas), e a do serogrupo A nos países em desenvolvimento, os quais têm registado incidência anual de ~25 casos/100.000 (ver adiante e capítulo sobre Doença Meningocócica).

 

  1. Novos adjuvantes estão a ser investigados. Para além do adjuvante clássico, – o alumínio, usado há mais de 80 anos, há referir actualmente:
    • o MPL (lípido A monofosforil), já aprovado;
    • a combinação de alumínio e MPL (AS04), utilizada numa vacina contra o papiloma vírus humano (vacina HPV bivalente Cervarix®); e
    • o MF59, utilizado numa vacina contra a gripe (Fluad®).

    Estes novos compostos permitem aumentar a magnitude e qualidade da resposta imunológica em função de cada doença-alvo e utilizar menor dose de antigénio.

  2. A vacinologia reversa, decorrente da capacidade de sequenciação do genoma dos microrganismos permite a investigação do seu repertório antigénico potencial e a escolha dos genes mais adequados para a vacina.A vacina contra N. meningitidis B (MenB) foi a primeira em que se utilizou esta técnica. Não era possível uma vacina de subunidades, quer pela semelhança entre a sua cápsula polissacarídica da N. meningitidis B e um self-antigénio, quer pela grande variabilidade dos antigénios proteicos da membrana externa. Bexsero®, a primeira vacina com cobertura alargada para MenB, foi aprovada pela Comissão Europeia em Janeiro de 2013;
  3. O desenvolvimento de técnicas de estimulação da imunidade celular veio mudar o paradigma da vacinologia cujo investimento científico se tem centrado na protecção decorrente da imunidade humoral, traduzida pela produção de anticorpos específicos. Partindo da constatação de que as vacinas vivas induzem respostas associadas à imunidade celular, a utilização de um vector (poxvírus aviário, BCG, e mutantes do adenovírus), no qual são incorporados genes do agente contra o qual se pretende imunizar, induzirá forte resposta da imunidade celular. Esta tecnologia é um desafio para os investigadores, dadas as perspectivas de concretização de vacina contra o vírus da imunodeficiência humana (VIH) e citomegalovírus (CMV);
  4. A utilização do genoma microbiano para a codificação de proteínas protectoras vai permitir a utilização de vacinas para além das doenças infecciosas, com potencial na contracepção, cessação tabágica e na prevenção da cárie dentária;
  5. Por fim, uma referência à pesquisa quanto à administração das vacinas no sentido de ultrapassar a necessidade de seringa e agulha, que cada vez mais são um obstáculo à adesão aos programas de vacinação. A via intranasal já é usada na vacina viva contra a gripe, encontrando-se em investigação outras vias, nomeadamente a via transcutânea, a via oral, e por aerossóis.

Importância das vacinas

Aspectos epidemiológicos

A imunização activa através da aplicação de vacinas é considerada, entre todas as medidas de saúde pública, a que melhor relação custo-benefício tem evidenciado. A história das vacinas é uma história de sucesso: a sua aplicação sistematizada sob a forma de programas ao longo de décadas e as campanhas de vacinação coordenadas pela OMS contribuíram para melhorar o panorama da saúde a nível global com diminuição significativa da taxa de mortalidade, principalmente a mortalidade infantil por varíola, difteria, poliomielite, tétano, sarampo e tosse convulsa. Estima-se que as vacinas previnem cerca de seis milhões de óbitos anualmente (OMS).

A erradicação é um objectivo futuro para algumas doenças de transmissão inter-humana exclusiva e para as quais existem vacinas comprovadamente efectivas. Até à data só a varíola foi eliminada (OMS, 1980), permitindo a descontinuidade da vacinação a nível global.

A próxima doença-alvo da erradicação é a poliomielite. Se bem que as coberturas vacinais elevadas com a vacina oral (OPV) tenham permitido a erradicação do vírus da poliomielite tipo 2, a transmissão dos tipos 1 e 3 mantém-se ainda (2016) no Paquistão e no Afeganistão.

A OMS/UNICEF pretende a eliminação progressiva do sarampo em todas as regiões do globo (e posterior erradicação), o que implica 95% de cobertura vacinal de um esquema com duas doses da vacina contra o sarampo. Portugal é um país com certificação (OMS- Europa 2015) da eliminação do sarampo. Contudo, a eliminação não remove o risco de reintrodução da doença, sendo crucial garantir a vigilância epidemiológica e coberturas vacinais elevadas para as duas doses.

Para doenças de reservatório ambiental, como o tétano, a erradicação nunca será possível, sendo o controlo da doença dependente da vacinação do maior número possível de pessoas e da sua protecção individual.

Benefícios para a sociedade

Os programas de vacinação requerem recursos económicos para infraestruturas (por ex. cadeia do frio), compra de vacinas e recursos humanos. No entanto, a mortalidade e morbilidade prevenidas pela vacinação traduzem-se a longo prazo em economia de custos e crescimento económico.

A introdução de vacinas combinadas nos programas de vacinação, com administração simultânea de vários antigénios, trouxe benefícios adicionais, nomeadamente a potencial maior adesão e maior facilidade na introdução de novos antigénios, permitindo manter os esquemas vacinais. As vacinas geram ganhos em saúde essencialmente através da protecção pré-exposição, base dos programas de vacinação. Algumas vacinas podem proteger em situações de pós-exposição, como é, por exemplo, o caso das vacinas contra o sarampo e contra a hepatite B.

Diminuição de complicações de doenças evitáveis

Este tópico aplica-se de modo significativo a diversas formas de morbilidade como síndroma de rubéola congénita, cirrose hepática, cancro por hepatite B crónica, lesões neurológicas causadas por vírus do sarampo ou meningite por Haemophilus influenza b e Neisseria meningitidis serogrupo C. Em comparação com a doença aguda, estas complicações têm um maior impacte a longo prazo. A inclusão recente de outras vacinas, como a vacina conjugada contra Streptococcus pneumoniae vai permitir incrementar os ganhos em saúde.

Imunidade de grupo

As vacinas (com excepção da vacina contra o tétano) não protegem apenas os vacinados, mas reduzem também a incidência da doença nos não vacinados através da “imunidade de grupo”. A imunidade de grupo permite a eliminação de várias doenças com uma cobertura vacinal inferior a 100% porque a vacinação reduz a disseminação do microrganismo alvo da vacinação, anulando ou diminuindo significativamente a probabilidade de colonização e transmissão.

Prevenção do cancro

Os agentes infecciosos podem causar cancro. Tal é o caso das associações hepatite B crónica – carcinoma hepatocelular, do vírus HPV – carcinoma do colo do útero (e também da vulva, vagina, ânus, pénis, cervical). A diminuição do carcinoma hepatocelular em consequência da vacinação contra a hepatite B já foi demonstrada em Taiwan, China. A redução da incidência do carcinoma do colo do útero é expectável com a vacinação contra HPV, esperando-se maiores ganhos em saúde com a substituição, no PNV 2017, da vacina tetravalente pela vacina nonavalente.

 Prevenção do desenvolvimento da resistência antibiótica

Ao reduzir os casos de doença e a consequente necessidade de antibióticos, a vacina conjugada contra Streptococcus pneumoniae é um instrumento de diminuição da prevalência de estirpes resistentes aos antibióticos. A título de exemplo, nos EUA a introdução da vacina conjugada contra Streptococcus pneumoniae heptavalente para vacinação na infância no ano 2000 condicionou, numa avaliação efectuada em 2004, uma redução de 57% na doença invasiva causada por estirpes resistentes à penicilina, e 59% de redução na doença invasiva por estirpes multirresistentes. Esta redução, maior nos grupos-alvo da vacinação, estendeu-se a todos os grupos etários apesar de a vacina ser inicialmente recomendada apenas na infância.

 Protecção contra doenças associadas

Algumas vacinas conferem também protecção contra doenças associadas à doença-alvo da vacinação, aumentando os ganhos em saúde decorrentes da vacinação. A vacina contra a gripe sazonal, cujo objectivo principal é a proteção contra a gripe, protege adicionalmente contra complicações bacterianas associadas, nomeadamente pneumonia; a vacina conjugada contra S. pneumoniae, dirigida primariamente à protecção contra a doença invasiva, protege também contra a doença não invasiva, como otite e pneumonia não bacteriémica.

Mecanismos de acção das vacinas

A acção das vacinas assenta na activação dos mecanismos imunológicos protectores do receptor da vacina, nomeadamente:

  • Estimulação da formação de anticorpos, da imunidade celular, ou de ambas;
  • A protecção conferida pela maioria das vacinas é mediada primariamente por linfócitos B, requerendo na maioria, a cooperação dos linfócitos T, células CD4 Helper. Estas respostas, dependentes de linfócitos T ou células-T dependentes, tendem a induzir memória imunológica e níveis elevados de anticorpos;
  • As vacinas dependentes de linfócitos T, que incluem antigénios proteicos, induzem respostas imunológicas eficazes em crianças de idade inferior a 2 anos;
  • As vacinas de antigénios polissacarídeos induzem respostas pelos linfócitos B independentes (sem a cooperação de linfócitos T) com fraca resposta imunológica em crianças de idade inferior a 2 anos, sendo a imunidade conferida de curta duração;
  • Os anticorpos produzidos podem inactivar toxinas, neutralizar vírus, prevenir a sua ligação a receptores celulares, facilitar a fagocitose e destruição bacteriana, interagir com o complemento promovendo a lise bacteriana e prevenir a sua adesão às superfícies das mucosas.

A avaliação da resposta imunológica à maioria das vacinas inclui a medição do nível de anticorpos séricos. Embora a detecção de determinado nível sérico se possa considerar protectora e indique imunidade após vacinação, a diminuição ao longo do tempo não significa necessariamente susceptibilidade à doença respectiva. Com efeito, a maioria das vacinas induz memória imunológica, pelo que uma nova administração do antigénio, ou uma resposta anamnéstica após exposição, garante protecção contra a doença.

Tipos de vacinas

Vacinas vivas (atenuadas)

Contêm estirpes modificadas de um agente patogénico (bactéria ou vírus) que foram enfraquecidas (atenuadas) por passagens por um hospedeiro não natural ou por um meio desfavorável. Mantêm a capacidade de se multiplicar no hospedeiro e induzem uma forte resposta imunitária.

A base das vacinas vivas atenuadas reporta-se aos primórdios da história da vacinação com o procedimento realizado por Jenner atrás referido; no entanto, a vacina contra a varíola foi a única vacina viva produzida a partir de estirpes que são patogénicas em animais, mas não em pessoas (vacina heteróloga).

Como exemplos de vacinas vivas citam-se: BCG, VASPR (vacina contra sarampo, parotidite epidémica e rubéola), vacina contra a varicela e contra rotavírus e a vacina oral viva contra a poliomielite (VAP) substituída em 2006 pela vacina inactivada injetável (VIP).

Vacinas inactivadas

A utilização de microrganismos inactivados (mortos) foi desenvolvida por Daniel Salmon e Theobald Smith (1886). As técnicas de inactivação utilizam o calor, o formol, o formaldeído e outras substâncias.

As vacinas inactivadas podem ser:

  • constituídas pelo microrganismo na totalidade; são exemplos a vacina inactivada contra a poliomielite, a hepatite A ou a vacina de célula completa contra a tosse convulsa (substituída pela vacina acelular no PNV de 2006); ou
  • constituídas por fracções ou subunidades do agente infeccioso (vacinas subunitárias) de que são exemplos a vacina acelular contra a tosse convulsa, a vacina contra o papiloma vírus humano (HPV), e a vacina contra a hepatite B (VHB). Algumas vacinas utilizam os polissacáridos da cápsula bacteriana, de que é exemplo a vacina pneumocócica polissacarídea 23-valente.

Toxóides (vacinas contra o tétano e difteria)

Induzem protecção através da produção de anticorpos que inactivam as respectivas toxinas.

Vacinas conjugadas

Utilizam os polissacáridos da cápsula bacteriana em ligação covalente com proteínas transportadoras, o que rendibiliza a imunogenicidade (estimulação das células T e memória imunológica em crianças com idade inferior a 2 anos). Como foi referido antes, são exemplos as vacinas conjugadas contra Haemophilus influenza b, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis C. A vacina antipneumocócica Pn 13 (Prevenar 13Ò) é um exemplo de vacina conjugada polissacarídica contra 13 serótipos (ver adiante siglas e esquemas vacinais).

Vacinas obtidas por vacinologia reversa

Tal com foi descrito antes, trata-se de vacinas obtidas utilizando técnica de sequenciação do genoma, investigação do repertório antigénico potencial e a escolha dos antigénios mais adequados para a vacina. A vacina contra N. meningitidis B (MenB) foi a primeira (e única comercializada até à data) em que se utilizou esta técnica.

Vacinas combinadas

Estas vacinas incorporam simultaneamente vários antigénios (independentemente de se tratar de vacinas vivas ou inactivadas). As primeiras vacinas utilizadas com estas características foram a DTP (vacina contra difteria, tétano e tosse convulsa) e, muito mais tarde (década de 80) a VASPR (vacina contra sarampo, parotidite epidémica e rubéola). Posteriormente, as vacinas tetra (DTPa-Hib, DTPa-VIP), penta (DTPa-VIP/Hib) e hexavalentes (DTPa-VIP-VHB/Hib) permitiram reduzir significativamente o número de injecções nos programas de vacinação de rotina, contribuindo para maior humanização e adesão e facilitaram a concepção dos programas possibilitando a introdução de maior número de antigénios. A vacina antipneumocócica Pn 23 (PneumovaxÒ) é um exemplo de vacina polissacarídica combinada contra 23 serótipos, indicada a partir dos 2 anos por ser deficientemente imunogénica antes desta idade. (ver adiante siglas e esquemas vacinais)

Componentes não antigénicos das vacinas

Os referidos componentes incluem: os fluidos como veículos, os agentes que preservam e estabilizam os antigénios, e os adjuvantes.

Os fluidos, funcionando como veículos, podem ser água ou soro fisiológico estéril, ou fluidos em cuja composição entram proteínas em baixa concentração.

Os agentes preservativos, estabilizadores e antimicrobianos são acrescentados com a finalidade de inibir o crescimento bacteriano e prevenir a degradação do antigénio (por exemplo, gelatina, 2-fenoxietanol e determinados antimicrobianos etc.).

Desde há mais de uma década, as vacinas utilizadas nos programas de vacinação dos países desenvolvidos deixaram de conter, como preservativo, um composto mercurial, o timerossal. Esta foi uma medida de precaução, apesar de não estar demonstrado qualquer risco de toxicidade na sua utilização. Actualmente, este composto é utilizado apenas nalgumas vacinas multidose. Em Portugal, a única vacina multidose utilizada é a vacina BCG liofilizada, estirpe BCG Tokyo 172, produzida no Japão, que não contém timerossal. Esta vacina começou a utilizar-se em 2016, na sequência da cessação de fabrico da vacina unidose produzida na Europa (SSI, Dinamarca).

Os adjuvantes são incorporados em algumas vacinas para incrementar a resposta imunológica (inata e adaptativa) e poupar a quantidade de antigénio inoculado. Os adjuvantes mais utilizados, desde há mais de 80 anos, são os sais de alumínio.

As vacinas de fracções ou subunidades do agente infeccioso desencadeiam uma resposta imunológica de menor magnitude que as vacinas de microrganismos completos (vivas/inactivadas), pelo que a necessidade de adjuvantes é cada vez maior.

As vacinas com adjuvantes devem ser administradas em injeção IM profunda para evitar irritação local, formação de granuloma e necrose.

Eficácia, efectividade e falência das vacinas

Tal como qualquer outro fármaco, nenhuma vacina é 100% eficaz, 100% efectiva ou 100% segura. Definem-se a seguir tais características.

Eficácia vacinal

É a redução percentual da incidência de doença num grupo de pessoas vacinada contra essa doença, em comparação com um grupo de pessoas não vacinadas, em condições ideais de avaliação. A eficácia é determinada em ensaios clínicos, geralmente na fase de pré-licenciamento.

Efectividade vacinal

É a capacidade de a vacina se comportar no “mundo real” em relação a critérios de avaliação definidos, como por exemplo, a capacidade de prevenir a infecção, a capacidade de prevenir a doença, a capacidade de prevenir a doença grave ou ainda a capacidade de desencadear uma resposta imunológica eficaz e duradoura. Há autores que definem efectividade de uma vacina de um modo mais simples: a proporção de carga da doença que é evitável pela aplicação de determinada vacina em condições de “mundo real”.

A efetividade de uma vacina depende de vários fatores, nomeadamente:

  • Fatores do hospedeiro (receptor da vacina), como por exemplo: idade, co- morbilidades, exposição prévia ao agente para o qual a vacina protege, tempo decorrido desde a vacinação;
  • Características da vacina, como por exemplo: modo de administração, vacina viva versus inactivada, composição da vacina (por ex. adição de adjuvante);
  • Concordância da vacina com as estirpes, genótipos e serótipos circulantes.

Também é importante o conceito de custo-efetividade: a qualquer custo de uma vacina, quanto maior for a carga da doença e quanto maior a sua proporção evitável pela vacinação, mais custo-efectiva será a vacinação.

Falência vacinal

A falência vacinal é considerada uma reacção adversa à vacinação, sendo obrigatória a sua notificação ao Sistema Nacional de Farmacovigilância. (ver adiante)

É importante realçar que quando a doença ocorre em pessoas previamente vacinadas, quer por falência vacinal primária, quer por falência vacinal secundária (ver adiante), é regra geral mais benigna que nos não vacinados. Tal é o caso da vacina contra a tosse convulsa e da vacina contra o sarampo.

A falência vacinal pode ser definida em função do objectivo clínico de cada vacina per se, ou seja, o que se pretende proteger (infecção versus doença versus doença grave), dificultando uma definição abrangente para todas as vacinas. A falência vacinal pode também ser definida em função de critérios imunológicos quando existem marcadores serológicos de protecção. Apesar destas dificuldades, podem ser consideradas as seguintes definições:

  • Falência vacinal confirmada – ocorrência de uma doença evitável pela vacinação numa pessoa que está correcta e completamente vacinada, tendo em consideração o período de incubação da doença e o período que decorre entre a vacinação e a protecção contra essa doença. Esta definição requere confirmação clínica, laboratorial (ou link epidemiológico com um caso confirmado) de que a doença é evitável pela vacinação (incluindo, quando aplicável, a identificação do serogrupo, serótipo, genótipo);
  • Falência vacinal suspeita – ocorrência de doença evitável pela vacinação numa pessoa que está correcta e completamente vacinada, mas não há demonstração de que a doença seja evitável pela vacina (por ex. doença pneumocócica de serótipo desconhecido numa pessoa com vacinação pneumocócica completa);
  • Falência imunológica – não desenvolvimento, para determinada vacina, de um nível de anticorpos que seja considerado protector, o que implica a avaliação serológica do vacinado num intervalo de tempo apropriado após terminar a vacinação. Há que distinguir entre a falência vacinal primária, em que logo após a vacinação completa não existe seroconversão, e a falência vacinal secundária, com diminuição progressiva dos anticorpos protectores (waning immunity) ao longo do tempo. Na falência vacinal primária há falha na resposta imunológica à vacinação, o que acontece em 5% a 10% das crianças vacinadas com a vacina VASPR aos 12 meses. A maioria das pessoas que não responde à primeira dose responderá à segunda. A segunda dose da vacina VASPR aos 5 anos não é um reforço, mas sim uma segunda oportunidade de imunização. A falência vacinal secundária (waning immunity) ocorre raramente com a vacina VASPR, não tendo um papel significativo na transmissão e nos surtos de sarampo. Pelo contrário, parece ser um factor determinante na ocorrência de tosse convulsa em crianças vacinadas, adolescentes e adultos.

A falência vacinal depende de vários factores, nomeadamente:

  • Factores do hospedeiro (receptor da vacina):
    • Imunodeficiência ou terapêutica imunossupressora, por resposta imunitária diminuída ou ausente após a vacinação;
    • Idade, quer a maturação imunológica do crescimento, quer a imuno-senescência com diminuição da resposta imunitária, mais notória a partir dos 65 anos de idade;
    • Resposta imunológica diminuída (em receptor não imunodeficiente) a um ou mais componentes antigénicos da vacina, estirpes vacinais ou serotipos;
    • Interferência devido a outros agentes infecciosos (por ex. a infecção por enterovírus pode interferir com a resposta imunológica à vacina oral contra a poliomielite, OPV, não incluída no PNV de Portugal desde 2006, quando foi substituída pela vacina inactivada VIP);
    • Diminuição progressiva dos anticorpos protectores;
    • Interferência imunológica, por exemplo: anticorpos maternos e resposta do lactente à primovacinação (significado clínico em estudo), administração de imunoglobulinas e resposta à VASPR;
    • Infecção pré-existente (por ex. genótipo de HPV incluído na vacina) ou vacinação durante o período de incubação (por ex. em situações de pós-exposição);
    • Estado de saúde debilitado (por ex. subnutrição).
  • Características da vacina
    • Cobertura incompleta para estirpes, serótipos, genótipos, variantes antigénicas, mutantes de escape, que podem causar a doença;
    • Interferência antigénica ou interacções entre vacinas;
    • Relacionadas com o fabrico (variação de lote).
  • Esquema vacinal e administração
    • Erro de administração (via, dose inadequada);
    • Não cumprimento do esquema vacinal (ex. sem respeitar intervalos mínimos, séries primárias incompletas, ausência dos reforços recomendados). Estes casos configuram uma “falência da vacinação”, não uma “falência vacinal” propriamente dita;
    • Erros de armazenamento, relacionados com a cadeia do frio;
    • Administração para além do prazo de validade.

Segurança das vacinas e reacções adversas

Para as vacinas são exigidos padrões de segurança mais rigorosos do que para os outros fármacos porque, ao contrário destes, destinados a pessoas doentes, as vacinas são aplicadas a pessoas saudáveis para prevenção de doenças. De facto, a tolerância da sociedade às reacções adversas a produtos administrados a pessoas saudáveis, especialmente lactentes e crianças, é muito baixa.

Avaliação e monitorização da segurança das vacinas

A comercialização e inclusão de uma vacina num programa de vacinação são resultado de um trabalho de anos de desenvolvimento científico e tecnológico. Só uma pequena percentagem de “potenciais candidatos” a vacinas chegam ao licenciamento. Os custos da pesquisa e desenvolvimento de vacinas são extremamente elevados.

As vacinas são submetidas a avaliações de segurança e eficácia muito rigorosas:

  1. Desenvolvimento pré-clínico – inclui a identificação dos antigénios relevantes para a vacina e testes de eficácia em tubo e em animais de laboratório.
  2. Desenvolvimento clínico – inicia-se com os primeiros testes em humanos, segundo princípios éticos rigorosos e consentimento informado.
    Fase I – Ensaios clínicos em pequena escala, com 20 a 100 voluntários para avaliar a segurança (detecção de reacções adversas graves) e o tipo de resposta imunológica.
    Fase II – Ensaios clínicos de maior amplitude, com algumas centenas de voluntários, e mais prolongados (alguns meses até três anos) para avaliar a eficácia contra a infecção artificial e a doença clínica, e determinar a melhor dose e o número de doses necessárias para que o “produto candidato a vacina” seja efectivo e seguro.
    Fase IIIEnsaios clínicos de larga escala, com centenas a alguns milhares de voluntários, que podem durar alguns anos e decorrem geralmente em diversos locais. Têm por objectivo avaliar a eficácia em condições naturais, determinando a sua efectividade e segurança. Em função dos resultados, a vacina pode ser licenciada/comercializada.
    Fase IVTambém chamada vigilância post-marketing; tem por objectivo detectar reacções adversas raras, reacções retardadas ou em subpopulações, que não tenham sido detectadas antes do licenciamento.

Reacções adversas

Se bem que a quase totalidade das reacções adversas associadas às vacinas seja de importância minor, predominantemente reacções locais e autolimitadas, há referência a eventos graves ocorrendo muito raramente, pelo que a notificação de tais eventos é muito importante. A avaliação atempada permite distinguir entre verdadeiras reacções às vacinas e eventos coincidentes ou temporalmente associados, mas não relacionados com a vacinação. A investigação dos eventos que ocorrem após a vacinação e a avaliação contínua dos riscos/benefícios de cada vacina são muito importantes para aferir e ajustar as recomendações, como aconteceu em 2012 com a substituição, no PNV, da vacina viva atenuada e oral contra a poliomielite (VAP) por uma vacina inactivada injectável (VAP). Esta alteração teve como objectivo a eliminação do risco muito baixo de ocorrência de um caso de poliomielite provocado pelo vírus vacinal (por administração da vacina viva), uma vez que estava disponível uma vacina mais segura (a vacina inactivada VIP) e que a doença por vírus selvagem estava eliminada na Região Europeia.

As reações adversas podem ser classificadas:

  1. Quanto à frequência (casos de reacções adversas por número de pessoas vacinadas) – as reacções adversas notificadas são listadas de acordo com as seguintes categorias: Muito frequentes (≥1/10); Frequentes (≥1/100 a <1/10); Pouco frequentes (≥1/1.000 a <1/100); Raras (≥1/10.000 a <1/1.000); Muito raras (<1/10.000).
  2. Quanto à gravidade – ocorrência que leva a óbito, ou que põe em risco a vida, ou que resulta em internamento/prolongamento de internamento hospitalar, ou que determina incapacidade significativa permanente.
  3. Quanto à causalidade – na avaliação da causalidade são utilizados os graus de probabilidade definidos pela OMS: Definitiva; Provável; Possível; Improvável; Condicional/Não Classificada; Não classificável.
  4. Quanto à possibilidade de prevençãosituações intrínsecas à vacina: por exemplo, defeito de produção ou defeito de administração da vacina.

Notificação de reacções adversas

A notificação das reacções adversas às vacinas é dirigida ao Sistema Nacional de Farmacovigilância (SNF), coordenado pelo INFARMED. Monitoriza a segurança dos medicamentos com autorização de introdução no mercado (AIM) nacional, através da avaliação dos problemas relacionados com reacções adversas aos medicamentos (RAM) e implementação de medidas de segurança, sempre que necessário.

  1. Quando notificar uma reação adversa? Basta que exista uma suspeita, devendo a informação disponível ser enviada ao INFARMED logo que possível.
  2. Quem pode notificar uma reação adversa? As suspeitas de reacções adversas podem ser notificadas por profissionais de saúde como médicos, farmacêuticos, enfermeiros, médicos dentistas ou técnicos de farmácia, e por utentes.
  3. Para que serve a notificação? Permite a monitorização contínua da segurança dos medicamentos existentes no mercado, permitindo identificar potenciais reacções adversas novas, quantificar e/ou melhor caracterizar reações adversas previamente identificadas, e implementar medidas que permitam minorar o risco da sua ocorrência.
  4. Como notificar uma reacção adversa?
    On line no Portal RAM, com acesso através de → farmacovigilancia@infarmed.pt – Notificação de Reacções Adversas ao Medicamento ou Por preenchimento no Portal RAM, com acesso através de àfarmacovigilancia@infarmed.pt, e envio de formulário específico e adequado a cada caso, ao INFARMED, IP ou às Unidades Regionais de Farmacovigilância: Ficha de notificação para profissionais de saúde ou Ficha de notificação para utentes.

Por se tratar de medicamentos biológicos, nas notificações relativas a vacinas é fundamental que os profissionais de saúde e os utentes identifiquem o nome comercial da vacina bem como o respectivo número de lote.

A reacção adversa também deve ser comunicada ao médico assistente e ao responsável pela vacinação.

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Generalidades sobre Programas de Vacinação

Em Portugal, na primeira metade do século XX, apesar de algum êxito no controlo da varíola, as estatísticas de morbilidade e mortalidade, nomeadamente respeitantes ao tétano e à difteria mostravam o insucesso de algumas campanhas de vacinação, afastando os indicadores nacionais dos da maioria dos países europeus.

Impondo-se, pois, um programa de vacinação com características adaptadas à realidade nacional, foi criado o chamado Programa Nacional de Vacinação (PNV), o qual foi possível concretizar a partir de Outubro de 1965. De salientar que ao longo do tempo têm surgido diversas versões quanto a Programas. (ver adiante)

Características

Descrevem-se as seguintes:

  1. Universal – até 2017 aplicava-se às pessoas presentes em Portugal, de idade entre os 0 e os <18 anos e durante toda a vida para a vacina Td (ver adiante), se bem que esquemas iniciados antes dos 18 anos pudessem ser completados depois desta idade, excepto quando são estabelecidos limites etários máximos. O PNV 2017 começa in utero; com efeito, é recomendada a vacinação da grávida contra a tosse convulsa com o objectivo de garantir a protecção do bebé nos primeiros 2 meses de vida;
  2. Gratuito para o utilizador, pois é financiado pelo orçamento do Estado;
  3. Descentralizado a nível nacional, permitindo a administração das mesmas vacinas em todo o país;
  4. Aplicado sobretudo pela rede pública de serviços (Centros de Saúde e Hospitais) e administrado por enfermeiros;
  5. As vacinas que integram o PNV são eficazes e seguras, e da sua aplicação obtêm-se os maiores ganhos em saúde. Os ganhos em saúde são o critério principal de inclusão no PNV, e a demonstração deste facto explica o lapso de tempo que se verifica entre a entrada de determinadas vacinas no circuito comercial e a sua inclusão no PNV;
  6. As vacinas aplicam-se segundo um esquema/calendário vacinal recomendado que constitui uma receita universal, não necessitando de prescrição médica (havendo algumas excepções em relação a alguns grupos de risco). Um dos objectivos do PNV é obter a melhor protecção, na idade mais adequada e o mais precocemente possível, contra o maior número possível de doenças, com um esquema de primovacinação que permite, no primeiro ano de vida, a protecção contra a maioria das doenças-alvo do programa;
  7. Os esquemas cronológicos de recurso destinam-se a crianças e jovens sem qualquer dose de uma ou mais vacinas ou com doses em falta em relação ao esquema recomendado e incluem:
    • o esquema em atraso para crianças de idade < 7 anos; e
    • o esquema tardio para crianças e jovens dos 7 aos 18 anos de idade, exclusive.

Em suma, o PNV é um programa dinâmico, transparente e efectivo (aspectos que se desenvolvem de seguida).

Evolução

O chamado PNV é um programa dinâmico.

Com efeito, desde 1965 foi progressivamente actualizado com a introdução progressiva de vacinas, determinada por factores epidemiológicos, pela evidência científica e pela evolução tecnológica com disponibilidade de novas e melhores vacinas. Durante os 51 anos da sua existência foi apenas retirada a vacina contra a varíola, após a erradicação da doença (OMS, 1980) e a BCG passou, em 2016, a ser recomendada apenas a grupos de risco.

A introdução de algumas vacinas no PNV fez-se simultaneamente com a concretização de campanhas. O PNV iniciou-se com uma campanha contra a poliomielite (1965-1966). Posteriormente houve campanhas com a introdução da vacina contra o sarampo (1973-1977 e nova campanha em 1998-2000), da vacina contra doença invasiva por N. meningitidis C (2006-2007), e da vacina contra HPV (2009-2011).

Avaliação

O PNV é um programa transparente submetido a avaliação interna regional e nacional anual, e a avaliação externa internacional anual (ECDC e OMS). Esta avaliação é feita pela análise das coberturas vacinais, dos dados serológicos e do impacte nas doenças-alvo.

Cobertura vacinal

As coberturas vacinais determinam-se em coortes de nascimento (relativas a idades-chave) para cada uma das vacinas que integram o PNV. Ao longo dos seus 51 anos, o desempenho do Pro­grama Nacional de Vacinação (PNV) tem sido notável, atingindo-se, anualmente elevadas coberturas vacinais (≥ 95% para as vacinas em geral e ≥ 85% para a vacina HPV) tanto na vacinação de rotina como vacinação integrada nas campanhas de vacinação.

A avaliação realizada em Dezembro de 2015 revelou:

  • Cerca de 95% das crianças com 1, 2, 7 e 14 anos de idade em 2015 tinham o PNV cumprido para cada vacina avaliada;
  • Na vacinação de adultos, em 76% dos que completaram 65 anos em 2015 (coorte de 1950) a vacinação com Td estava actualizada;
  • Das crianças com 8 a 18 anos de idade em 2015, 95% a 98% estavam vacinadas com 2 doses da vacina VASPR, cumprindo-se um dos objectivos do Programa Na­cional de Eliminação do Sarampo e os requisitos da OMS relativos à eliminação do sarampo e da rubéola;
  • 84% a 92% das ra­parigas com idades entre os 15 e os 23 anos, esta­vam vacinadas com o esquema de 3 doses da vacina HPV4, valores exemplares a nível mundial.

Dados serológicos

O 3º Inquérito Serológico Nacional 2016 revelou que a maioria da população está imunizada contra as doenças-alvo do PNV.

Impacte nas doenças-alvo

No que se refere ao impacte global do PNV, entre a década anterior ao PNV (1956-1965) e a década de 2006-2015 houve menos cerca de 40.000 casos de doença e 5.200 óbitos por tétano, difteria, tosse convulsa e poliomielite. O PNV foi determinante na diminuição da taxa de mortalidade infantil.

  • A redução da incidência das doenças evitáveis pela vacinação verificou-se rapidamente, como aconte­ceu com a poliomielite. O último caso de poliomielite aguda por vírus selvagem em Portugal ocorreu em 1986;
  • O paradigma do sucesso do PNV é o caso do tétano, doença que não se transmite de pessoa a pessoa e que não confere imunidade. O controlo da doença depende única e exclusivamente da vacinação de cada um. Houve uma descida progressiva do número de casos a partir dos anos 70. Os 2 últimos casos de tétano neonatal foram notificados em 1996; e nos últimos anos ocorreram apenas casos esporádicos (0 a 3 casos por ano, desde 2010) em adultos não vacinados;
  • A vacinação organizada contra o sarampo iniciou-se em 1973, com uma campanha de vacinação até 1977. Em 1990 foi introduzida a segunda dose. A estratégia de vacinação foi sendo actualizada, resultando no controlo/eliminação do sarampo. Em 2015, a OMS-Europa emitiu para Portugal os certificados da eliminação do sarampo e da rubéola.

Os PNV têm características de efectividade pois permitiram: erradicar a varíola; eliminar a poliomielite, difteria, sarampo, rubéola e tétano neonatal; controlar o tétano, a doença invasiva por N. meningitidis C e H. influenzae b, hepatite B, parotidite epidémica, tosse convulsa, e formas graves de tuberculose. No futuro é expectável o controlo do cancro do colo do útero (relacionado com infecção por HPV) e da doença por S. pneumoniae.

Programa Nacional de Vacinação de 2017 (alargado em 2018-2019)

I. Siglas das vacinas e procedimentos

As siglas referentes às vacinas incluídas nos referidos PNV são descritas no Quadro 1.

Com base no esquema de vacinação aconselhado e antes de se proceder à vacinação, importa identificar eventuais contraindicações das vacinas e seguir eventuais procedimentos. (ver adiante)

Para evitar eventuais traumatismos por queda, a vacinação deve ser efectuada com as pessoas em posição sentada ou deitada. Após a injecção deve ser respeitado um tempo de vigilância de cerca de 30 minutos.

Qualquer alteração individual aos esquemas cronológicos aconselhados no PNV deve ser devidamente fundamentada pelo médico assistente através de prescrição que deve ficar arquivada no local de vacinação.

Em circunstâncias excepcionais a DGS e a Autoridade de Saúde podem também decidir alteração dos esquemas aconselhados.

QUADRO 1 – PNV 2017-2019: vacinas e respectivas siglas

Adaptado de DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017

Notas:
Tdpa – vacina contra tétano, difteria e pertussis. A maiúscula significa vacina em dose não reduzida. As minúsculas significam doses reduzidas (difteria e pertussis). A letra “a” significa acelular. As doses reduzidas utilizam-se a partir dos 7 anos, período a partir do qual se verifica maior imunogenicidade. Até à referida idade, doses não reduzidas.
→  GR- Para grupos de risco.
→  Contenção Laboratorial – Noção relacionada com a segurança laboratorial, restrição de manuseamento e retransporte/transferência do agente microbiano, tratando-se de uma doença em processo de erradicação.

SiglaVacina
BCGVacina contra a tuberculose (Bacilo de Calmette e Guérin)* GR
DTPaVacina contra difteria, tétano e tosse convulsa acelular, doses pediátricas
DTPa HibVacina tetravalente contra difteria, tétano, tosse convulsa e doença invasiva por Haemophilus influenzae do serótipo b
DTPa Hib VIPVacina pentavalente contra difteria, tétano, tosse convulsa, doença invasiva por Haemophilus influenzae do serótipo b e poliomielite
DTPa Hib VIP VHBVacina hexavalente contra difteria, o tétano e a tosse convulsa, doença invasiva por Haemophilus influenzae do serótipo b, poliomielite e hepatite B
HibVacina contra doença invasiva por Haemophilus influenzae do serótipo b
HPV4Vacina contra infecções por vírus do Papiloma Humano de 4 genótipos
HPV9Vacina contra infecções por vírus do Papiloma Humano de 9 genótipos
MenC e Men BVacinas contra doença invasiva por Neisseria meningitidis serogrupos C e B
Pn13 e Pn23Vacinas polissacarídicas → Pn13 (conjugada) contra 13 serótipos de Streptococcus pneumoniae (qualquer idade)
→ Pn23 (combinada) contra 23 serótipos (a partir dos 2 anos)
TdVacina contra tétano, (e difteria em doses reduzidas)
TdpaVacina contra tétano, (e difteria e tosse convulsa em doses reduzidas); “a” significa “acelular”
VASPRVacina contra sarampo, parotidite epidémica e rubéola
VHBVacina contra hepatite B
VIPVacina inactivada contra a poliomielite
VRVVacina contra RotaVírus * GR

II. PNV 2017 → Esquema vacinal

O esquema geral de vacinação recomendado, conjugando as designações das vacinas com as idades cronológicas (Quadro 2), tem como objectivo obter a melhor protecção, na idade mais adequada e o mais precocemente possível.

QUADRO 2 – PNV 2017: ESQUEMA VACINAL

    1. Aplicável apenas a raparigas, com esquema: duas doses, separadas 6 meses.
    2. Aplicável apenas a mulheres grávidas. Uma dose em cada gravidez.
    3. As idades referidas são indicativas. De acordo com a idade da pessoa, devem ser aplicados os intervalos recomendados entre doses, tendo como referência a data de administração da dose anterior. A partir dos 65 anos, recomenda-se a vacinação de todas as pessoas que tenham feito a última dose de Td há ≥10 anos; as doses seguintes são administradas de 10 em 10 anos.
    4. Salienta-se que as vacinas são imunogénicas no recém-nascido (RN) (incluindo nos pré-termo, nas idades cronológicas (pós-natais) consideradas para os RN de termo).
      Fonte: DGS- Norma 016/2016. Programa Nacional de Vacinação 2017.
    5. A numeração em dígitos associados às siglas diz respeito à numeração das doses (1= 1ª dose; 2= 2ª dose, etc.).
Idade
Vacina|Doença 0
meses
2
meses
4
meses
6
meses
12
meses
18
meses
5
anos
10
anos
25
anos
45
anos
65
anos
10/10
anos
Hepatite B VHB 1 VHB 2   VHB 3                
Haemophilus influenzae b   Hib 1 Hib 2 Hib 3   Hib 4            
Difteria, tétano, tosse convulsa   DTPa 1 DTPa 2 DTPa 3   DTPa 4 DTPa 5          
Poliomielite   VIP 1 VIP 2 VIP 3   VIP 4 VIP 5          
Streptococcus pneumoniae   Pn13 1 Pn13 2   Pn13 3              
Neisseria meningitidis C         MenC 1              
Sarampo, parotidite epidémica, rubéola         VASPR 1   VASPR 2          
Vírus Papiloma humano1               HPV 1,2        
Tétano, difteria e tosse convulsa2                 Tdpa – grávidas    
Tétano e difteria3               Td Td Td Td Td
  • Aos 2 meses de idade, recomenda-se:
    • A 1ª dose das vacinas contra a difteria, tétano e tosse convulsa (DTPa), doença invasiva por Haemophilus influenzae b (Hib), poliomielite (VIP) e a 2ª dose de VHB – vacina hexavalente DTPaHibVIPVHB;
    • A 1ª dose da vacina conjugada contra Streptococcus pneumoniae de 13 serótipos (Pn13).
  • Aos 4 meses de idade, recomenda-se:
    • A 2ª dose de DTPa, Hib e VIP – vacina pentavalente DTPaHibVIP;
    • A 2ª dose de Pn13.
  • Aos 6 meses de idade, recomenda-se:
    • A 3ª dose de DTPa, Hib, VIP e VHB – vacina hexavalente DTPaHibVIPVHB.
  • Aos 12 meses de idade, recomenda-se:
    • A 3ª dose da Pn13;
    • A vacina contra a doença invasiva por Neisseria meningitidis C – MenC (dose única);
    • A 1ª dose da vacina contra o sarampo, parotidite epidémica e rubéola – VASPR.
  • Aos 18 meses de idade, recomenda-se:
    • O 1º reforço de DTPa (4ª dose) e de VIP (4ª dose) e o único reforço de Hib (4ª dose) – vacina pentavalente DTPaHibVIP.
  • Aos 5 anos de idade, recomenda-se:
    • O 2º reforço (5ª dose) de DTPa e de VIP – vacina tetravalente DTPaVIP
    • A 2ª dose de VASPR
  • Aos 10 anos de idade, recomenda-se:
    • O reforço da vacina contra o tétano e difteria – Td;
    • 2 doses da vacina contra infecções por vírus do Papiloma humano de 9 genótipos – HPV9 (esquema 0, 6 meses), administradas apenas a raparigas.
  • Durante toda a vida, recomenda-se:
    Reforços das vacinas contra o tétano e difteria – Td, aos 10, 25, 45, 65 anos de idade e, posteriormente, de 10 em 10 anos.
    De acordo com a idade, devem ser aplicados os intervalos recomendados entre doses, tendo como referência a data de administração da dose anterior. Aos 65 anos, recomenda-se a vacinação de todas as pessoas em que tenha sido aplicada a última dose há ≥10 anos; as doses seguintes devem ser administradas de 10 em 10 anos.

Nota: às mulheres grávidas recomenda-se: vacina contra o tétano, difteria e tosse convulsa – Tdpa (dose única em cada gravidez).
De acordo com o Quadro 2-A são especificadas particularidades respeitantes ao grupo etário neonatal:

  • No recém-nascido recomenda-se a primeira dose da vacina contra a hepatite B (VHB). A vacina é administrada na maternidade. Quando tal não ocorrer, deve ser administrada o mais brevemente possível no período neonatal/primeiras 4 semanas de vida.

QUADRO 2-A – PNV 2017: Vacinação VHB do recém-nascido e lactente em função do peso ao nascer, da idade cronológica e da serologia materna

a) 1ª dose do esquema recomendado em 2; b) Imunoglobulina humana específica anti-VHB
Peso ao nascer < 2.000 g Peso ao nascer ≥ 2.000 g

A – Mãe Ag HBs negativo

    1. Aguardar até 1 mês de idade ou até atingir 2.000 g (o que se verificar primeiro)
    2. Vacinação – Esquema de 3 doses:
      • 1ª dose – quando se verificarem condições de 
      • 2ª dose – aos 2 meses de idade, respeitando o intervalo mínimo de 4 semanas entre 1ª e 2ª dose
      • 3ª dose – aos 6 meses de idade
D – Mãe Ag HBs negativo

Vacinação – Esquema PNV aos 0, 2, 6 meses de idade

B – Mãe Ag HBs positivo

    1. Primeiras 12 h de vida – Vacinaa) e IgG anti-VHBb)
    2. Vacinação – Esquema de 4 doses:
      • Aos 0, 1, 2 e 6 meses de idade

E – Mãe Ag HBs positivo

    1. Primeiras 12 h de vida – Vacinaa) e IgG anti-VHB
    2. Vacinação – Esquema de 3 doses:
      • Aos 0, 1 e 6 meses de idade

C – Mãe Ag HBs desconhecido
Investigar imediatamente serologia materna:

    1. Mãe Ag HBs negativo – igual a A
    2. Mãe Ag HBs positivo – igual a B
    3. Se não for possível estudo serológico, ou se os resultados continuarem desconhecidos até às 12 horas de vida, proceder como no caso de mãe Ag HBs positivo – igual a B

F – Mãe Ag HBs desconhecido
Estudo serológico materno imediato:

    1. Mãe Ag HBs negativo – igual a D
    2. Mãe Ag HBs positivo – igual a E
    3. Se não for possível estudo serológico ou se os resultados continuarem desconhecidos até às 12 horas de vida, proceder como no caso de mãe Ag HBs positivo – igual a E

No que se refere ao esquema recomendado (PNV 2017), as principais alterações relativamente ao PNV 2012 são as seguintes:

→ Aos 2 e 6 meses idade – Vacina combinada hexavalente DTPaHibVIPVHB, para reduzir o número de injecções e obter melhor aceitação do esquema recomendado;

→ Aos 18 meses – reforços com vacina combinada pentavalente DTPaHibVIP, em vez da vacina tetravalente DTPaHib;

→ Idades fixas para vacinação – nomeadamente aos 5 anos e aos 10 anos, em vez dos intervalos previstos no PNV 2012 (5-6 anos e 10-13 anos).

O PNV 2017 reflecte também a evolução que foi sendo feita entre 2012 e 2017. Neste período o PNV sofreu algumas atualizações, nomeadamente em relação às vacinas HPV4 (2014), Pn13 (2015), BCG (2016) e vacinação da grávida contra a tosse convulsa (2016).

III. PNV 2018-2019 <> Esquema vacinal do PNV 2017 alargado

No que se refere ao esquema recomendado (PNV 2018-2019 – Quadro 2-B), as principais alterações relativamente ao PNV 2017 dizem respeito aos seguintes aspectos:

Alargamento ao sexo masculino, aos 10 anos de idade, da vacinação contra infeçcões por Vírus do Papiloma Humano (vacina HPV), incluindo os genótipos causadores de condilomas anogenitais;

Introdução a todas as crianças, aos 2, 4 e 12 meses de idade, da vacinação contra doença invasiva por Neisseria meningitidis do grupo B (vacina MenB).

 Introdução da vacina contra Rotavírus (vacina Rota/VRV) para grupos de risco, a definir em Norma da Direcção-Geral da Saúde.

 Ênfase à vacinação de RN pré-termo a realizar em idades cronológicas idênticas às do RN de termo.

O alargamento relativamente a HPV é aplicável aos nascidos a partir de 1 de Janeiro de 2009, podendo o esquema de vacinação ser iniciado ou completado, de acordo com a história vacinal individual.

O alargamento relativamente a MenB é aplicável aos nascidos a partir de 1 de Janeiro de 2019, podendo o esquema de vacinação ser iniciado ou completado, de acordo com a história vacinal individual. (Quadro 2-B)

Quanto à vacinação em RN pré-termo, importa anotar algumas particularidades:

Diversos estudos demonstram que as vacinas são imunogénicas nos RN pré-termo. A magnitude da resposta imunológica poderá ser menor para algumas vacinas, mas está provado que se atingem respostas protectoras e duradouras com a primovacinação.

No caso de, na idade cronológica/pós-natal indicada, tais pré-termo ainda estarem hospitalizados, e dada a probabilidade de ocorrência de eventos cardiorrespiratórios (apneia, bradicardia, diminuição da saturação em O2, hipotensão, etc.) poderá haver a necessidade de monitorização dos parâmetros vitais no acto da vacinação ou durante período variável em função de cada caso clínico.

Em suma, os lactentes pré-termo, clinicamente estáveis, devem ser vacinados de acordo com o esquema recomendado no PNV, com as mesmas doses e na mesma idade cronológica que as crianças de termo. Relativamente à vacina VHB, o Quadro 2-A é elucidativo.

Relembra-se que a administração do anticorpo monoclonal específico palivizumab não interfere com a resposta imunitária às vacinas.

QUADRO 2-B – PNV 2018-2019: esquema vacinal

(a) Men B: aplicável aos nascidos ≥ 2019
(b) HPV: aplicável também ao sexo masculino, aos nascidos ≥ 2019. Esquema 0, 6 meses
(c) Tdpa: aplicável apenas a mulheres grávidas. Uma dose em cada gravidez
(d) Td: de acordo com a idade, devem ser aplicados os intervalos recomendados entre doses, tendo como referência a data de administração da dose anterior. A partir dos 65 anos de idade, recomenda-se a vacinação se a última dose de Td tiver ocorrido há ≥ 10 anos; as doses seguintes são administradas de 10 em 10 anos
(e) A numeração em dígitos associados às siglas diz respeito à numeração das doses (1= 1ª dose; 2= 2ª dose, etc..)

Nota: De acordo com o despacho do DR, pressupõe-se que este esquema entra em vigor a partir de 1 de Outubro de 2020.
Idade
Vacinas|Doenças Nasci-mento 2
meses
4
meses
6
meses
12
meses
18
meses
5
anos
10
anos
25
anos
45
anos
65
anos
10/10
anos
Hepatite B VHB 1 VHB 2   VHB 3                
Haemophilus influenzae b   Hib 1 Hib 2 Hib 3   Hib 4            
Difteria, tétano, tosse convulsa   DTPa 1 DTPa 2 DTPa 3   DTPa 4 DTPa 5          
Poliomielite   VIP 1 VIP 2 VIP 3   VIP 4 VIP 5          
Streptococcus pneumoniae   Pn13 1 Pn13 2   Pn13 3              
Neisseria meningitidis B (a)   MenB MenB   MenB              
Neisseria meningitidis C         MenC 1              
Sarampo, parotidite epidémica, rubéola         VASPR 1   VASPR 2          
Vírus Papiloma humano (b)               HPV 1,2        
Tétano, difteria e tosse convulsa (c)                 Tdpa – grávidas    
Tétano e difteria (d)               Td 6 Td 7 Td 8 Td 9 Td 10…

Aspectos epidemiológicos e particularidades de algumas vacinas

1. BCG

A vacina BCG previne as formas graves de reactivação endógena: miliar, meníngea (eficácia até 80%), mas não tem qualquer acção no controlo e eliminação da tuberculose: não previne a infecção exógena nem a evolução para tuberculose activa resultante da transmissão exógena.

Desde Junho de 2016 (Despacho n.º 8264/2016 – Diário da República n.º 120/2016, Série II, 24/06/2016) a vacina BCG deixou de ser recomendada de forma universal, passando a incorporar uma estratégia de vacinação de grupos de risco (DGS, Norma nº 006/2016 de 29/06/2016). Esta alteração reflecte a evolução epidemiológica da tuberculose em Portugal:

  • Redução consistente da incidência de tuberculose (DGS): 2013-21,1/100.000; 2014-20,0/100.000; 2015-19,2/100.000;
  • Cumprimento dos critérios da OMS para passagem à vacinação dos grupos de risco apenas: vigilância eficaz e incidência anual de meningite tuberculosa em crianças de idade inferior 5 anos <1:10.000.000 nos últimos 5 anos;
  • Mais de 50% dos casos pertencem a grupos de risco bem identificados (população estrangeira, infecção por VIH, dependências de álcool e drogas, reclusos);
  • Número de casos de infecção disseminada por BCG equivalente ao causado por tuberculosis em crianças de idade inferior 5 anos nos últimos 5 anos (nomeadamente crianças com ulterior diagnóstico de Imunodeficiência primária);
  • Capacidade de assegurar a manutenção da vacinação das crianças de risco.
1.1 A vacinação com BCG dos grupos de risco permite
  • adequar a estratégia vacinal à epidemiologia da doença;
  • tornar a vacinação contra a tuberculose mais custo-efectiva;
  • reduzir o número de reacções adversas graves à BCG; e ainda
  • equiparar a estratégia nacional à da maioria dos outros países europeus com características epidemiológicas semelhantes.
1.2 Recomendação para vacinação com BCG em grupos de risco
  • crianças com idade < 6 anos (5 anos e 364 dias) pertencentes aos grupos de risco definidos no Quadro 3 e ainda não vacinadas com BCG (sem registo da vacina ou cicatriz vacinal) devem ser activamente identificadas e encaminhadas para vacinação.

QUADRO 3 – Crianças de idade inferior a 6 anos, elegíveis para vacinação com BCG – Grupos de risco(a)

(a) A partir dos 12 meses de idade há indicação para realização de prova tuberculínica ou de IGRA antes da vacinação com BCG. Se houver antecedentes de contacto com caso de tuberculose activa (possível ou confirmada), ou outras circunstâncias que levem a suspeitar que a criança teve ou tem uma probabilidade elevada de ter contraído infecção, deve ser submetida a rastreio em articulação com o PNT. Após teste tuberculínico/IGRA negativo, a vacina BCG pode ser administrada nos 3 meses seguintes.
(b) Dependendo de uma avaliação do risco, caso a caso.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017.
Crianças sem registo de BCG/ sem cicatriz vacinal e: Situações abrangidas
Provenientes de países com elevada incidência de tuberculose
Que terminaram o processo de rastreio de contactos e/ou esquema de profilaxia
    • A avaliar pelas Unidades de Saúde Pública em articulação com os Coordenadores Regionais do Programa Nacional para a Tuberculose (PNT) e Centros de Diagnóstico Pneumológico (CDP)
Cujos pais, outros coabitantes ou conviventes apresentem →
    • Infecção por VIH/SIDA, após exclusão de infecção VIH na criança, no caso de mãe VIH+
    • Dependência de álcool ou de drogas
    • Naturalidade de país com elevada incidência de tuberculose (TB) (ver anexo II) (b)
    • Antecedentes de tuberculose
Pertencentes a comunidades com risco elevado de tuberculose
    • A avaliar pelas Unidades de Saúde Pública em articulação com os Coordenadores Regionais do Programa Nacional para a Tuberculose e CDP
Viajantes para países com elevada incidência de tuberculose(b)
1.3 Esquema vacinal
  • dose única, o mais cedo possível após o nascimento (vacina BCG do Japan BCG Laboratory).

A BCG pode ser administrada em simultâneo, antes, ou depois da administração de produtos contendo imunoglobulinas.

1.4 Prova tuberculínica (prova de Mantoux)/prova de libertação do interferão gama (IGRA)
  • as crianças com idade inferior a 12 meses não necessitam de prova tuberculínica/IGRA anteriormente à vacinação (excepto se se comprovar história de contacto directo com casos de tuberculose activa, situação estabelece a indicação de rastreio). A BCG pode ser administrada até 3 meses após prova tuberculínica/IGRA negativo.

A VASPR pode interferir com a resposta à prova de Mantoux ou a IGRA, podendo causar um resultado falso negativo. A prova tuberculínica/IGRA deve ser efetuada antes da VASPR, administrando-se a VASPR após a leitura. A administração de BCG, se aplicável, pode ser feita no mesmo dia.

1.5 Contraindicações da vacina BCG em grupos de risco
  • recém-nascidos com peso de nascimento < 2.000 g independentemente da idade gestacional, adiando-se tal vacinação até ser atingido o peso recomendado;
  • lactentes de mães VIH+ (até à exclusão da infecção na criança);
  • recém-nascidos familiares directos de doente com suspeita ou confirmação de imunodeficiência primária (até exclusão de imunodeficiência na criança);
  • imunodeficiência celular, congénita ou adquirida;
  • tratamentos imunossupressores;
  • infecção por VIH;
  • pré e pós-transplante de órgãos ou de medula;
  • doença sistémica grave;
  • doença aguda grave, com ou sem febre;
  • doença cutânea generalizada;
  • antibioticoterapia com tuberculostáticos;
  • tuberculose activa/prova tuberculínica positiva;
  • subnutrição grave.

2. Vacina Pn13

Tendo em conta que:

  • a doença invasiva pneumocócica (DIP) não era uma doença de Declaração Obrigatória (DDO); os serótipos de pneumococos na DIP não eram determinados por rotina; não havia registo das sequelas a nível nacional, não havia vigilância integrada clínica/laboratorial e não existiam dados de custo-benefício, a demonstração dos ganhos em saúde para inclusão da vacina pneumocócica conjugada no PNV não foi possível logo após a comercialização da vacina de 7 valências (2001).

Em 2008, a comparação entre o período pré e pós-vacinal (com Pn7) demonstrou:

  • diminuição da concordância dos serótipos causadores de doença invasiva pneumocócica (DIP) com os serótipos vacinais – de 67% para 20%;
  • não variação significativa nos internamentos por meningites pneumocócicas (GDH), nomeadamente no grupo abaixo de 1 ano de idade;
  • manutenção da percentagem de portadores de pneumococos em alguns infantários do distrito de Lisboa;
  • substituição de serótipos vacinais por serótipos não vacinais na população vacinada, não sendo possível prever as consequências, nomeadamente o aparecimento de doença de substituição.

Em 2010, a concordância entre os serótipos responsáveis por DIP e os serótipos vacinais era de 80,4% para as vacinas de 13 valências (Pn13) e 50,4% para as vacinas de 10 valências (Pn10), entretanto comercializadas. Numa perspetiva de protecção individual imediata foi elaborada uma circular normativa para vacinação gratuita de crianças e adolescentes pertencentes a grupos de risco.

Em 2014 foram estimados os potenciais ganhos em saúde com a introdução da vacina no PNV através do cálculo das mortes e internamentos evitáveis, dos efeitos indirectos da vacinação (protecção de grupos etários não abrangidos pela vacinação) e do impacte adicional na otite média aguda, causa mais frequente da prescrição de antibióticos em idade pediátrica.

Os benefícios da introdução da vacina no PNV foram calculados comparativamente à situação em 2012, quando a vacina já estava implementada fora do PNV, mas com cobertura não negligenciável. Nesta perspectiva, concluiu-se ser expectável um impacte positivo na Saúde Pública.

Em 2015, a vacina foi incluída no PNV (norma DGS 008/2015 de 01/06/2015) abrangendo todas as crianças nascidas a partir de 1 de Janeiro de 2015, num esquema de 3 doses, aos 2, 4 e 12 meses de idade.

Simultaneamente foram emitidas as orientações para a Vacinação contra infecções por Streptococcus pneumoniae de:

  • grupos com alto risco de doença invasiva pneumocócica (DIP) na idade pediátrica (Norma 012/2015) (Quadro 4); e de
  • grupos com alto risco de doença invasiva pneumocócica (DIP) na idade adulta (≥18 anos de idade).

As crianças e os jovens englobados na situação de alto risco DIP serão vacinados mediante apresentação de declaração médica, especificando a identificação do risco.

QUADRO 4 – Vacinação contra infecções por Streptococcus pneumoniae em grupos de alto risco de DIP na idade pediátrica (<18 anos de idade)

A – Imunocompetente
Condição: Situações abrangidas:
Doença cardíaca crónica
    • Cardiopatias congénitas com repercussão hemodinâmica ou cianóticas
    • Insuficiência cardíaca crónica
    • Hipertensão arterial com repercussão cardíaca
    • Hipertensão arterial pulmonar
Doença hepática crónica  
Insuficiência renal crónica  
Doença respiratória crónica
    • Bronquiectasias
    • Doença intersticial pulmonar – Asma brônquica (sob corticoterapia sistémica(a))
    • Fibrose quística – Doenças neuromusculares
    • Insuficiência respiratória crónica
Pré-transplantação de órgão  
Dador de medula óssea (antes da doação)  
Fístulas de LCR  
Implantes cocleares (candidatos e portadores)  
Diabetes mellitus  
B – Imunocomprometidos
Condição: Condições abrangidas:
Asplenia ou disfunção esplénica
    • Asplenia congénita ou adquirida
    • Doença de células falciformes
    • Outras hemoglobinopatias com disfunção esplénica
Imunodeficiência primária(b)  
Infecção por VIH  
Receptor de transplante
    • Células precursoras hematopoiéticas
    • Órgãos sólidos
Doença neoplásica ativa
    • Doenças linfoproliferativas
    • Outros tumores malignos
Imunossupressão iatrogénica(a)
    • Terapêutica com fármacos biológicos ou DMARDs (Disease Modifying AntiRheumatic Drugs)
    • Corticoterapia sistémica
    • Quimioterapia
    • Radioterapia
Síndroma de Down  
Síndroma nefrótica  
(a) Corticosteróides sistémicos:
    • Peso < 10 Kg: ≥ 2 mg/Kg de peso/dia de prednisona ou equivalente, diário, durante 14 ou mais dias
    • Peso ≥ 10 Kg: ≥ 20 mg/dia de prednisona ou equivalente, diário, durante 14 ou mais dias
    • Metotrexato em dose superior a 0,4 mg/Kg/semana;
    • Azatioprina em dose superior a 3 mg/Kg/dia;
    • Exemplos de outros fármacos imunossupressores: Leflunomida, Micofenolato de Mofetil, Ciclofosfamida, Ciclosporina e Tacrolimus, fármacos biológicos ou DMARDs (Disease-Modifying AntiRheumatic Drugs utilizados, nomeadamente, na Artrite Reumatóide, Lúpus Eritematoso Sistémico, Síndroma de Sjögren e Doenças Inflamatórias Intestinais), por exemplo Anti-TNF (Infliximab, Etanercept, Adalimumab, Golimumab, Certolizumab); Anti-CD20 (Rituximab); Anti-IL6 (Tocilizumab); CTLA-4-Ig (Abatacept); Anti-BLYS (Belimumab); Anti-IL12 e Anti-IL23 (Ustekinumab); Antagonista do Receptor da IL1 (Anakirna).
(b) Exclui défice isolado de IgA e doentes em terapêutica de substituição com imunoglobulinas sem função B residual.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017.

 

  1. Esquema vacinal dos grupos de risco, idade pediátrica, para nascidos depois de 1 de Janeiro de 2015
    • Pn13 aos 2, 4 e 12 meses de idade (PNV);
    • Pn23 aos 24 meses de idade.
  2. Esquema vacinal dos grupos de risco em idade pediátrica para nascidos antes de 1 de Janeiro de 2015 (<18 anos de idade)
    • Esquema vacinal de recurso para a vacina Pn131. (Quadro 5)
    • Todos os esquemas vacinais devem ser completados com 1 dose de Pn23, a partir dos 24 meses de idade.

QUADRO 5 – Vacina Pn13 – em grupos de risco em idade pediátrica e para nascidos antes de 1 de Janeiro de 2015

1 Intervalo de 8 semanas entre doses, podendo, se necessário, aplicar-se os intervalos mínimos.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017.
Idade de início Primovacinação Idade do reforço único
6 semanas – 9 meses 2 doses ≥12 meses
10-11 meses 1 dose ≥12 meses
12-23 meses 1 dose >12 meses
>23 meses e <5 anos 1 dose Não recomendado


Mesmo quando o indivíduo já está vacinado (criança ou jovem) com um esquema completo com Pn7 e/ou Pn10 e Pn23, recomenda-se 1 dose de Pn13 se ainda não tiver sido administrada.

Nas situações de asplenia ou disfunção esplénica, imunodeficiência primária, infecção por VIH, imunossupressão iatrogénica, insuficiência renal crónica, síndroma nefrótica, recomenda-se uma 2ª dose de Pn23, pelo menos 5 anos após a 1ª dose.

3. Vacina contra HPV

O Papilomavírus humano (HPV) tem vários tipos em função de proteínas estruturais que funcionam como antigénios imunodominantes que levam a respostas imunes; tal resposta imune traduz-se pela produção de anticorpos neutralizantes, os quais são determinantes para a eficácia na prevenção da infecção persistente.

Descrevem-se mais de 100 tipos que tipicamente podem causar doença (diferentes variedades de lesões cutaneomucosas em locais específicos (orofaríngeas, anais, genitais, em geral benignas nas crianças e adolescentes. Cerca de 30 tipos relacionam-se com lesões no tracto genital.qq

A prevalência da infecção por HPV é elevada e constante ao longo da vida. Nos EUA estima-se que cerca de setenta e quatro por cento de 6,2 milhões de novas infecções em cada ano ocorre em indivíduos entre idades de 15 e 24 anos. Embora na maioria dos casos se trate de infecções assintomáticas e autolimitadas, a infecção persistente pode originar, não só condilomas genitais, como cancro anogenital e colo do útero. De salientar que os tipos de HPV 16 e 18 explicam 70% dos casos de cancro do colo do útero.

Como regra geral, a vacina HPV é recomendada (em esquema de duas ou três doses) a todos os adolescentes, de ambos os sexos.

Existem 3 tipos de vacinas HPV:

  • Bivalente (2vHPV) contendo os tipos 16 e 18;
  • Tetravalente (4vHPV contendo os tipos 6, 11, 16 e 18 – sendo Gardasil 4® uma das marcas comercializadas), com bom perfil de segurança e demonstrada eficácia elevada na redução de verrugas genitais e de lesões precursoras de cancros genitais e anais em ambos os sexos. Contudo, esta vacina tem um potencial de prevenção mais significativo, das lesões que atingem o sexo masculino;
  • Vacina HPV 9-valente (9vHPV)-Gardasil 9® incluindo os tipos 6, 11, 16, 18, 31, 33, 45, 52 e 58 é recomendada em ambos os sexos dos 9 aos 26 anos para prevenção do cancro vulvar, vaginal, cervical e anal, assim como dos condilomas anogenitais (condyloma acuminata) e de lesões displásicas pré-cancerosas.

Os dados de imunogenicidade, demonstrando que o esquema de 3 doses não é mais eficaz que o de 2 doses em jovens até aos 14 anos, determinaram a adopção deste último em 2014 – duas doses com 6 meses de intervalo (esquema tipo 0,6).

Segundo o PNV 2017 foi adoptado o seguinte esquema:

  • Recomendadas 2 doses na vacinação iniciada entre os 10 e os 15 anos;
  • Recomendada de preferência a vacinação aos 10 anos (idade fixa) porque a imunogenicidade é tanto maior quanto mais cedo for iniciada a vacinação;
  • Na vacinação iniciada a partir dos 15 anos de idade recomenda-se um esquema de 3 doses, respectivamente intervalos mínimos de 2 e 6 meses (esquema tipo 0, 2, 6).

Provou-se que os homens beneficiam da imunidade de grupo se a taxa de cobertura vacinal nas raparigas for muito elevada, como é o caso de Portugal. No entanto, as viagens para zonas de baixa cobertura vacinal, ou onde a vacina não é utilizada, podem colocar em risco os não vacinados.

Uma vez que a vacina se encontra no circuito comercial poderão vacinar-se, a título individual, os adolescentes do sexo masculino.

4. Vacinação dos adultos com vacina Td

As alterações à vacina Td baseiam-se no facto de se ter demonstrado cientificamente que a vacina Td confere protecção duradoura de, pelo menos 20 anos, em pessoas que completaram a vacinação na infância.

4.1 Assim, os reforços de Td passam a ser recomendados aos 10, 25, 45 e 65 anos. Após os 65 anos de idade, em virtude da imuno-senescência, a vacina passa a ser administrada de 10 em 10 anos.
A vacina combinada bivalente contém: toxóide tetânico adsorvido (T); toxóide diftérico adsorvido, em dose reduzida (d). No âmbito do PNV utiliza-se em adolescentes e adultos para minorar o risco de reacções adversas ao componente diftérico.

4.2 Outras indicações, ainda no âmbito do PNV, incluem: grávidas não correctamente vacinadas contra o tétano, para prevenção do tétano neonatal e do puerpério; e profilaxia do tétano, na presença de ferimentos.

5. Vacinação da grávida com a vacina contra a tosse convulsa (Tdpa)

A vacinação na grávida, numa base de prescrição individual foi recomendada em Julho de 2016 e introduzida no PNV em Janeiro de 2017. Como foi referido antes, quanto a datas/idades de administração, o PNV 2017 “começa in utero”, uma vez que recomenda a vacinação da grávida contra a tosse convulsa com o objectivo de conferir a protecção do bebé nos primeiros 2 meses de vida.

Em Portugal, a tosse convulsa é alvo de vigilância universal, passiva e clínica, integrando a lista de Doenças de Declaração Obrigatória (DDO) desde 1950. A vacina contra a tosse convulsa de célula completa (Pw) foi incluída no primeiro Programa Nacional de Vacinação de 1965. Em 2006 a vacina Pw, mais reactogénica, foi substituída pela vacina acelular (Pa).

A cobertura vacinal pela vacinação contra a tosse convulsa (DTP) aos 12 meses e aos 7 anos de idade é da ordem dos 95%, há pelo menos duas décadas.

Após a inclusão da vacina no PNV assistiu-se a um progressivo controlo da doença, mas com um padrão de endemicidade residual, apesar da elevada cobertura vacinal, tal como se verificou noutros países. Entre 2000 e 2011 registaram-se 370 casos (uma média de 31 casos/ano) e 5 óbitos.

Em 2012, 2013, 2014 e 2015 foram declarados 677 casos (237, 106, 74 e 260 casos, respectivamente) e ocorreram 8 óbitos (4, 2 e 2 óbitos respectivamente em 2012, 2013 e 2015). A maior incidência da doença ocorreu em crianças com idade inferior a 2 meses (42% dos casos) – ou seja, em crianças que não tinham iniciado ainda a primovacinação, – seguida do grupo etário 2 a 5 meses (32%). Na grande maioria dos casos verificados com <1 ano de idade (95%) houve necessidade de hospitalização, nalgumas situações em cuidados intensivos. Os óbitos ocorreram apenas em lactentes de idade inferior a 2 meses, ainda sem idade para vacinação.

A situação epidemiológica portuguesa tem, em paralelo com a maioria dos outros países, a maior carga da doença no grupo etário dos <2 meses, incidindo a letalidade quase exclusivamente neste grupo.

Entre as causas prováveis mais importantes do aumento da incidência da tosse convulsa estão a diminuição rápida da imunidade conferida pela vacina acelular e o aparecimento crescente de mutantes de escape vacinal, ou seja, variantes da bactéria que, devido à pressão selectiva vacinal, apresentam antigénios divergindo dos incluídos na vacina.

Na ausência de novas vacinas mais eficazes concluiu-se que importava aplicar estratégias adicionais de controlo da tosse convulsa com o objectivo prioritário de reduzir a carga da doença em lactentes de idade inferior a 2 meses, o grupo etário com doença mais grave e maior letalidade. De entre estas, a que tem demonstrado maior efectividade é a vacinação da grávida, a qual se baseia na passagem transplacentária de anticorpos da mãe para o filho, conferindo, a este, protecção passiva até ao início da vacinação, aos 2 meses de vida.

O Reino Unido, em 2012, foi o primeiro país a utilizar esta estratégia. Neste País, os estudos caso-controlo mostraram que a efectividade da vacinação da grávida na prevenção da tosse convulsa no filho foi superior a 90%.

No âmbito do PNV foram estabelecidas as seguintes recomendações:

  • Vacinação na gravidez com uma dose de vacina combinada contra a tosse convulsa, o tétano, e a difteria, em doses reduzidas (Tdpa), entre as 20 e as 36 semanas de gestação, idealmente até às 32 semanas;
  • A vacinação deve ocorrer após a ecografia morfológica (recomendada entre as 20 e as 22 semanas + 6 dias), para evitar eventuais associações entre a detecção de eventual anomalia congénita e a vacina;
  • A vacinação deve ser repetida em cada gravidez;
  • Após as 36 semanas de gestação, a Tdpa confere apenas protecção indirecta do recém-nascido e lactente através da prevenção da doença na mãe. Nesta situação a vacina é administrada, gratuitamente, mediante prescrição médica.

A idade gestacional é comprovada através de apresentação do Boletim de Saúde da Grávida, de declaração médica ou por consulta da informação clínica. A vacina deve ser registada no Boletim de Saúde da Grávida, no Boletim Individual de Saúde (BIS).

Por se tratar de uma vacina inactivada, a Tdpa pode ser administrada em simultâneo, antes ou depois de produtos contendo imunoglobulinas, tal como a imunoglobulina anti-D, desde que em locais anatómicos diferentes.

Notas importantes:

  • Os estudos efectuados demonstram que a vacinação da grávida é segura, nomeadamente sem risco aumentado de morte fetal, aborto espontâneo, prematuridade, pré-eclampsia ou eclampsia.
  • Para além da vacinação da grávida, atrás referida, e desde que haja disponibilidade da vacina Tdpa, poderá ser considerada a vacinação de progenitores e conviventes que desejem reduzir o risco de infecção para si e para os recém-nascidos com quem residem (estratégia de cocooning). Com a vacinação de adolescentes e adultos não se evidenciou efectividade quanto à redução da incidência da doença no lactente até aos dois meses, aceitando-se apenas como medida de protecção individual.

6. Vacina contra Neisseria meningitidis serogrupo B

Após o controlo da doença invasiva meningocócica (DIM) C, fruto da vacinação universal, o grupo B é actualmente predominante (mais de 70% dos casos de DIM em Portugal).

Está disponível uma vacina de 4 componentes (antigénios) contra MenB (Bexsero®), segura e eficaz para cerca de 68% das estirpes circulantes em Portugal (dados do estudo MATS, efectuado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge e pelo laboratório da GSK em Sienna.

Embora a DIM possa ocorrer em qualquer pessoa, existe um grupo de situações, relativamente restrito, com mais elevado risco de contrair a doença, de ter vários episódios, ou de ter uma forma de doença particularmente grave, motivo pelo qual se recomenda a vacinação:

  • Asplenia anatómica ou funcional e hipoesplenismo;
  • Défice congénito de complemento;
  • Terapêutica com inibidores do complemento (Eculizumab).

A vacina pode ser administrada no Serviço Nacional de Saúde, em cuidados de saúde primários e hospitais.

  • De forma a obter-se protecção o mais precocemente possível. O esquema recomendado para a vacina MenB é: 2, 4, 6 e 12-15 meses de idade; pode ser administrada em simultâneo com as vacinas do PNV. Para reduzir o número de inoculações e efeitos secundários numa mesma visita, poderá ser considerado o esquema 3, 5 e 7 meses para a imunização primária. (Quadro 2-B)

No entanto, o esquema de vacinação depende da idade de início da vacinação (Quadro 6). Até aos 24 meses de idade, recomenda-se a administração de paracetamol na dose recomendada para a idade, prévia à administração de MenB, com o objectivo de prevenir ou diminuir a febre possivelmente associada a esta vacina.

Notas importantes:

  • O meningococo é um diplococo Gram-negativo aeróbio, oxidase positivo e produtor de catalase. Possui um invólucro com 3 camadas (membrana citoplásmica, parede celular de peptidoglicano, e membrana externa com fosfolípidos, proteínas e lipo-oligossacárido); tal invólucro está rodeado por uma cápsula polissacarídea.
  • As características estruturais da cápsula determinam a existência de, pelo menos, 12 (anteriormente considerados em número de 13) serogrupos (a que correspondem diversas variantes antigénicas) de meningococo, dos quais 6 – A, B, C, W (anteriormente designada W135) X e Y– são os responsáveis pela maioria dos casos da doença sistémica. Surtos responsáveis pelo serogrupo X têm sido identificados em África.
  • De salientar a maior prevalência dos serogrupos B e C nos países industrializados (com incidência ~1-3/100.00 nas duas últimas décadas), e a do serogrupo A nos países em desenvolvimento.
  • Reitera-se que em Portugal as vacinas meningocócicas C (Men C) e B (Men B) fazem parte do actual PNV – esta última, a partir de 2018-2019.
  • Existem também comercializadas vacinas polissacarídicas anti-N. meningitidis dos grupos A, C, W e Y (Men ACWY), designadamente para indivíduos que façam viagens para áreas endémicas.
  • A Comissão de Vacinas da Sociedade Portuguesa de Infecciologia Pediátrica, ramo da Sociedade Portuguesa de Pediatria (CV-SPP/SIP) recomenda igualmente a administração da referida vacina conjugada nas seguintes situações: a crianças e adolescentes com asplenia anatómica ou funcional, hiposplenismo, défice congénito do complemento e submetidas a tratamento com inibidores do complemento (Eculizamab).
  • Segundo a referida CV, a administração duma dose de Men ACWY aos 12 meses de idade dispensa a administração da Men C incluída no PNV. A mesma pode ser administrada a partir das 6 semanas de idade.

QUADRO 6 Esquema de vacinação (MenB) contra doença invasiva meningocócica do grupo B, recomendado em situações de alto risco, em idades <18 anos

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Idade de início da vacinação Vacinação primária
(doses)
Intervalo entre doses
da vacinação primária (meses)
Reforço
2-5 meses 3 ≥2 Sim (aos 12-15 meses)
6-11 meses 2 ≥2 Sim (2º ano de vida; ≥2 meses após 2ª dose)
12-23 meses 2 ≥2 Sim (12 a 23 meses após 2ª dose)
2-10 anos 2 ≥2
>10 anos 2 ≥2

 

7. Vacina contra Rotavírus (RV)

O agente rotavírus (RV) é uma causa muito frequente de gastrenterite aguda (GEA) em todo o mundo. Nos países de clima temperado, a GEA devida a RV predomina no Inverno e na Primavera. Podendo atingir qualquer criança, a quase totalidade destas, aos cinco anos de idade, já terá tido pelo menos um episódio, ocorrendo mais frequentemente entre os seis e os 24 meses. Na história natural da diarreia por RV, as infecções subsequentes por diferentes tipos são frequentes, mas de menor gravidade. Globalmente os tipos G1-G4 e G9 estão associados à maioria das infecções.

Em Portugal, desde 2006, estão comercializadas duas vacinas, com estrutura e esquemas posológicos diferentes (Quadro 7)

De acordo com estudos recentes, uma nova vacina a administrar por via parentérica está em investigação avançada.

 

QUADRO 7 – Características das vacinas contra Rotavírus e esquema vacinal aprovado pela EMA para as vacinas RotaTeq® e Rotarix®

Fonte – Recomendações sobre vacinas extra-Programa Nacional de Vacinação, atualização 2015/2016. Sociedade Portuguesa de Pediatria/Sociedade de Infecciologia Pediátrica. Abreviatura: EMA – Agência Europeia do Medicamento
  RotaTeq®, SPMSD Rotarix®, GSK
Tipo Viva, oral Viva, oral
Composição Reagrupamento bovino-humano G1, G2, G3, G4; P[8] Humana atenuada G1; P[8]
Número de doses 3 2
Primeira dose A partir das 6S e nunca depois das 12S A partir das 6S
Dose(s) subsequente(s) O esquema de vacinação deve estar concluído preferencialmente às 20-22S. Se necessário, 3ª dose pode ser administrada até às 32S O esquema de vacinação deve preferencialmente ser administrado antes das 16S, mas deve estar completo pelas 24S
Intervalo entre doses Mínimo de 4 semanas Mínimo de 4 semanas
Administração simultânea com as outras vacinas do PNV Sim Sim
Administração ao pré-termo ≥25S idade gestacional >27S idade gestacional


Não há informação quanto à utilização de diferentes vacinas anti-RV na mesma criança, pelo que esta prática não é recomendada. A amamentação não altera a eficácia da vacina, não sendo necessária a sua interrupção.

A vacinação do prematuro deverá ser efectuada no mesmo esquema, de acordo com a idade cronológica, sempre que clinicamente estável.

Contraindicações e precauções
  • Porque os estudos da vacina foram efectuados em lactentes saudáveis, não há actualmente prova científica suficiente para que sejam feitas recomendações específicas para lactentes com patologia subjacente, tais como anomalias congénitas gastrintestinais, invaginação intestinal prévia ou status pós-cirurgia abdominal;
  • Pelo risco de efeitos secundários a vacina não deve ser administrada a lactentes imunocomprometidos ou potencialmente imunocomprometidos;
  • A administração da vacina deve ser adiada em crianças com diarreia aguda ou vómitos;
  • Porque há possibilidade de eliminação do vírus vacinal nas fezes, as vacinas devem ser administradas com precaução a crianças que se encontram em contacto próximo com pessoas que apresentam imunodeficiência.

Em ambas as vacinas existe risco pequeno, mas mensurável, de invaginação intestinal. Parece existir uma correlação entre invaginação intestinal e idade de administração da primeira dose, a qual deve ser administrada o mais precocemente possível.

Esquemas vacinais de recurso

Para além do esquema recomendado no âmbito do PNV, existem os chamados esquemas vacinais de recurso.

Este conceito engloba as seguintes situações:

  • ausência de registo de vacinação;
  • ausência de qualquer dose anterior de uma ou mais vacinas (atraso);
  • esquema vacinal tardio;
  • esquema vacinal incompleto;
  • esquema vacinal diferente do recomendado.

Em termos práticos, os esquemas de recurso incluem apenas o número de doses de cada vacina, necessário para os completar de acordo com a idade.

Nesta perspectiva, devem ser sempre respeitados os limites máximos para administração das vacinas no âmbito do PNV, as idades mínimas recomendadas para cada dose, os intervalos entre doses para cada vacina (Quadro 8) e os intervalos entre a administração de vacinas diferentes. (Quadro 9)

QUADRO 8 – PNV: Idade mínima para iniciar a vacinação e intervalos mínimos entre doses sequenciais da mesma vacina

1 VHB – Idade mínima para a VHB: 6 meses. A vacina hexavalente contendo VHB não deve ser administrada antes das 6 semanas de idade devido aos outros componentes (DTPa, Hib e VIP).
2 Hib – Recomendada <5 anos de idade (excepto em pessoas com alterações imunitárias. O número de doses em esquemas de recurso depende da idade de administração da 1ª dose. A última dose é administrada ≥12 meses de idade, pelo menos 8 semanas após a anterior.
3 DTPa – Recomendada <7 anos de idade. Após essa idade deve ser utilizada Tdpa (<10 anos de idade) ou Td (≥10 anos de idade). A idade mínima para DTPa 4 é de 12 meses. Se DTPa 4 for administrada ≥4 anos de idade não se recomenda a administração de DTPa 5. Excepcionalmente, pode ser aceite um intervalo de 4 meses entre DTPa 3 e DTPa 4. Em situação de surto, a idade mínima para DTPa 1 pode ser de 4 semanas, com prescrição médica, caso exista vacina trivalente. Em crianças com contra-indicação absoluta de Pa, a Td pode ser administrada em idade <7 anos de idade, com prescrição médica.
4 VIP – Se <7 anos de idade e a 4ª dose de VIP for administrada ≥4 anos de idade, considera-se o esquema completo, desde que o intervalo entre a penúltima e a última dose da VIP seja de, pelo menos, 6 meses. Se ≥7 anos de idade e a 3ª ou 4ª dose de VIP forem administradas ≥4 anos de idade, considera-se o esquema completo, desde que o intervalo entre a penúltima e a última dose da VIP seja de, pelo menos, 6 meses. Pessoas com esquema misto VAP e VIP devem receber 4 doses, mesmo que a 3ª tenha sido administrada ≥4 anos de idade.
5 Pn13 – Recomendada <5 anos de idade (excepto em grupos de risco). O número de doses a administrar em esquemas de recurso depende da idade em que for administrada a 1ª dose. A última dose é administrada ≥12 meses de idade, pelo menos 8 semanas após a anterior.
6 MenC – Pode ser administrada a partir das 6 semanas de idade, apenas em contexto de vacinação pós-exposição, recomendando-se uma dose ≥12 meses de idade.
7 VASPR – Se for necessária protecção mais precoce, a 1ª dose de VASPR pode ser antecipada para os 6 meses de idade. As crianças vacinadas durante o primeiro ano de vida devem ser revacinadas, com VASPR 1, aos 12 meses de idade. O intervalo mínimo entre as 2 doses de VASPR é de 4 semanas.
8 HPV9 – Esquema iniciado <15 anos de idade: 2 doses (0, 6 meses). Esquema iniciado ≥15 anos de idade: 3 doses (0, 1, 6 meses). Intervalo mínimo entre a 1ª e a 3ª dose: 6 meses. Aplica-se o mesmo critério relativamente a HPV4.
9 Tdpa – Recomendada ≥7 e <10 anos de idade.
10 Td – Recomendada, no âmbito do PNV ≥10 anos de idade. Em ≥10 anos de idade, a primovacinação é constituída por 3 doses de Td.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
   Intervalos mínimos
Vacina Idade mínima para a 1ª dose Entre a 1ª e a 2ª dose Entre a 2ª e a 3ª dose Entre a 3ª e a 4ª dose Entre a 4ª e a 5ª dose
VHB1 nascimento 4 semanas 8 semanas
Hib2 6 semanas 4 semanas 4 semanas 8 semanas
DTPa3 6 semanas 4 semanas 4 semanas 6 meses 6 meses
VIP4 6 semanas 4 semanas 4 semanas 6 meses 6 meses
Pn135 6 semanas 4 semanas 8 semanas
MenC6 6 semanas 8 semanas
VASPR7 12 meses 4 semanas
HPV98 9 anos 5 meses
Tdpa9 7 anos 4 semanas 4 semanas 6 meses
Td10 7 anos 4 semanas 6-12 meses

QUADRO 9 – PNV: Intervalos entre a administração de vacinas diferentes

Nota – A administração simultânea das vacinas contra a febre amarela e VASPR parece condicionar, principalmente nas crianças, taxas de seroconversão mais baixas em contexto de rubéola, parotidite epidémica e febre amarela. Sempre que possível, deverá ser respeitado um intervalo de 4 semanas entre as duas vacinas.

Adaptado de: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Tipos de vacina Intervalo mínimo recomendado entre doses
≥2 inativadas Podem ser administradas no mesmo dia ou com qualquer intervalo entre as doses
≥2 vivas orais Podem ser administradas no mesmo dia ou com qualquer intervalo entre as doses
≥2 vivas injetáveis Podem ser administradas no mesmo dia1 ou com intervalo entre as doses de pelo menos, 4 semanas
≥1 inativada + ≥1 viva oral Podem ser administradas no mesmo dia ou com intervalo entre as doses de pelo menos, 4 semanas
≥1 inativada + ≥1 viva injetável Podem ser administradas no mesmo dia ou com qualquer intervalo entre as doses, desde que respeitando um intervalo de 4 semanas em relação a outra vacina viva injetável administrada antes ou depois
≥1 viva oral + ≥1 viva injetável Podem ser administradas no mesmo dia ou com qualquer intervalo entre as doses, desde que respeitando um intervalo de 4 semanas em relação a outra vacina viva injetável administrada antes ou depois

 

Algumas circunstâncias especiais

Vacinas e imunoglobulinas

A interacção entre imunoglobulinas (Ig) e vacinas inactivadas é reduzida, pelo que estas podem ser administradas em simultâneo, antes ou depois da administração de produtos contendo imunoglobulinas, desde que em locais anatómicos diferentes.

Os produtos contendo imunoglobulinas interferem potencialmente com o desenvolvimento da imunidade às vacinas víricas vivas do PNV.

O intervalo de tempo a respeitar até à vacinação com VASPR varia entre 3 e 11 meses e depende da dose de Ig e do produto administrado (Quadro 10).

 

QUADRO 10 – PNV: Intervalos mínimos entre a administração de produtos contendo imunoglobulinas e VASPR

1Considerada dose de 10 mL/Kg
Adaptado de: American Academy of Pediatrics. Red Book: 2015 Report of the Committee on Infectious Diseases. American Academy of Pediatrics; 2015

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Produto Intervalo (meses)
Ig específica tétano 3
Profilaxia hepatite A 3
Ig específica hepatite B 3
Ig específica raiva 4
Ig específica varicela 5
Profilaxia sarampo
Imunocompetente 40 mg/Kg
Imunocomprometido 80 mg/Kg

5
6
Imunoglobulina humana contra o antigénio D 3
Transfusão concentrado eritrocitário lavado1 0
Transfusão concentrado de eritrócitos1 5
Transfusão sangue total1 6
Transfusão plasma ou plaquetas1 8
Terapêutica de substituição ou imunomoduladora (Ig EV ou subcutânea)
400 mg IgG/Kg
1000 mg IgG/Kg
≥1600 mg IgG/Kg


8
10
11

Vacinas e alterações imunitárias

A vacinação de pessoas com alterações imunitárias deve ser efectuada sob orientação e prescrição do médico assistente.

As vacinas inactivadas não apresentam contraindicações. As vacinas vivas podem estar contraindicadas em situações particulares devido ao risco de doença provocada pelas estirpes vacinais. (Quadro 11)

Quando é previsível um declínio do estado imunitário a vacinação deve ser antecipada, recorrendo-se a esquemas acelerados. As vacinas inactivadas devem ser administradas até 15 dias antes da intervenção imunossupressora, e as vacinas vivas até 4 semanas antes.

A eficácia e efectividade da vacinação podem estar diminuídas nalguns casos de imunodeficiência, o que pode justificar a administração de um maior número de doses de uma vacina.

Pessoas com imunodeficiência devem ser sempre consideradas potencialmente susceptíveis às doenças evitáveis pela vacinação, mesmo que tenham o esquema vacinal actualizado. Em caso de exposição, deve ser considerada a administração de imunoprofilaxia passiva (imunoglobulina humana normal ou imunoglobulina humana específica) e/ou de quimioprofilaxia.

Como medida adicional de protecção, os conviventes com pessoas afectadas com imunodeficiência devem estar vacinados de acordo com o PNV e, anualmente, com a vacina contra a gripe (no âmbito da Orientação emitida pela DGS). A vacinação com vacinas vivas de conviventes de pessoas com imunodeficiência pode exigir precauções especiais. A vacina oral contra a poliomielite viva atenuada (VAP) está contraindicada, e a vacina contra a varicela pode ser administrada, mas, nas 6 semanas após a vacinação, deve ser evitado o contacto próximo com pessoas susceptíveis de alto risco.

As vacinas VASPR, BCG e contra Rotavírus podem ser administradas aos contactos próximos de pessoas com imunodeficiência.

QUADRO 11 – PNV: Vacinas com contraindicação absoluta e relativa em diferentes tipos de imunodeficiência

1Apesar de não fazer parte do PNV a administração da VAP está prevista em circunstâncias especiais (controlo de surtos)

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Tipo de imunodeficiência Contraindicação absoluta Contraindicação relativa Observações
Primárias Alterações dos linfócitos B (imunidade humoral comprometida) BCG
VAP1
VASPR
A vacina pode não estar indicada, por não haver resposta imunitária, devido à terapêutica regular com imunoglobulinas
A deficiência selectiva de IgA e de subclasses de IgG não é contraindicação para as vacinas vivas
Alterações dos linfócitos T (imunidade humoral e celular comprometidas) Vacinas vivas Nenhuma Nos defeitos completos (ex. SCID) as vacinas podem ser ineficazes
Alterações do complemento Nenhuma Nenhuma
Alterações da função fagocitária BCG Nenhuma
Adquiridas Infecção por VIH BCG VASPR A VASPR só está contraindicada se houver imunossupressão grave
Cancro, transplante ou terapêutica imunossupressora Vacinas vivas (dependendo do estado imunitário) Nenhuma A efectividade das vacinas depende do grau de imunossupressão

Contraindicações, precauções e falsas contraindicações das vacinas do PNV

As contraindicações das vacinas, raras, podem ser permanentes ou transitórias.

As precauções, não contraindicações, exigem, contudo, prescrição médica.

Excepto quando existe uma contraindicação verdadeira, a decisão de não vacinar, por razões médicas, deve ser sempre cuidadosamente ponderada e é da responsabilidade do médico assistente, considerando os benefícios da prevenção da doença e as raras situações adversas, cronologicamente relacionadas com as vacinas.

É importante lembrar que qualquer adiamento da vacinação com base em falsa contraindicação (Quadro 12) constitui uma oportunidade perdida de vacinação.

QUADRO 12 – Falsas contraindicações das vacinas do PNV

. Reacções locais, ligeiras a moderadas, a uma dose anterior da vacina
Doença ligeira aguda, com ou sem febre (exemplo: infecção das vias respiratórias superiores, diarreia)
Terapêutica antibiótica concomitante (excepto os tuberculostáticos para a BCG)
. Imunoterapia concomitante com extractos de alergénios
Antecedentes pessoais ou familiares de alergia (por ex. a: ovos, penicilina, febre dos fenos, rinite)
Dermatoses, eczema, asma ou manifestações de atopia em geral
Doenças crónicas cardíaca, pulmonar, renal ou hepática
Doenças neurológicas não evolutivas, como a paralisia cerebral
Síndroma de Down ou outras cromossomopatias
Prematuridade
Peso de nascimento <2000 g (excepto para a VHB e a BCG – ver “Vacinação em Circunstâncias Especiais”)
Aleitamento materno
História de icterícia neonatal
Subnutrição
Antecedentes de sarampo, parotidite epidémica, rubéola ou outra doença alvo de uma vacina
Exposição recente a uma doença infecciosa
Convalescença de doença aguda
História familiar de reacções adversas graves à mesma vacina ou a outras vacinas
História familiar de síndroma da morte súbita do lactente
História familiar de convulsões, etc.



No que se refere à administração da vacina VASPR reforça-se:

  • Não é boa prática recomendar como requisito prévio à administração da VASPR quer a introdução alimentar do ovo, quer o teste cutâneo com a vacina diluída (que não é preditivo de uma reacção alérgica à vacinação);
  • Todas as crianças elegíveis para receber a VASPR devem ser vacinadas, tenham ou não ingerido ovo previamente;
  • Nas crianças com alergia não grave ao ovo, a VASPR deve ser administrada no serviço de vacinação habitual, não estando recomendada a referenciação hospitalar ou a realização de testes cutâneos anteriormente à administração da vacina;
  • Nos casos muito raros de história pessoal clinicamente documentada de reacção anafiláctica ao ovo, a administração da VASPR deverá ser feita em meio hospitalar;
  • Nas crianças com asma não controlada e com história documentada de alergia de qualquer tipo ou gravidade a uma dose prévia da vacina ou ao ovo, a administração da VASPR não deve ser adiada, embora deva ser feita em meio hospitalar.

A vacinação no âmbito de Programas da OMS

Programa Nacional de Erradicação da Poliomielite – Plano de Acção Pós-Eliminação

Os objectivos gerais deste programa são: manter a ausência de circulação do vírus da poliomielite em Portugal e o estatuto nacional de eliminação da poliomielite (Polio-free country), segundo os critérios da OMS.

As estratégias principais para manter a eliminação da poliomielite em Portugal são: a vacinação, a vigilância, a contenção laboratorial e a resposta à eventual importação do vírus da poliomielite.

A vacinação, com utilização exclusiva da vacina inactivada contra a poliomielite, inclui:

  • Vacinação de rotina no âmbito do PNV – universal, gratuita, acessível a todas as pessoas presentes em Portugal e não necessitando de prescrição médica;
  • Vacinação em circunstâncias especiais
    • Viajantes, profissionais de saúde e outros profissionais de risco (Quadro 13);
    • Bolsas de população susceptível;
    • Instituições colectivas;
    • Grupos de imigrantes de países de risco;
    • Resposta a casos importados.

QUADRO 13 – Vacinação contra a poliomielite (VIP) se houver risco de exposição1

1Vacinar apenas as pessoas que não possuam o número de doses recomendado neste quadro.
2Esquema mínimo de 4 doses. A última dose deve ser em ≥4 anos de idade.
3Esquema mínimo de 3 doses. A última dose deve se rem ≥4 anos de idade. Verificando-se ter sido aplicado um esquema misto com VAP e VIP são necessárias 4 doses.
4Se a exposição ao risco se mantiver, deve proceder-se a um reforço 6 a 12 meses depois da 3ª dose, para completar o esquema.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Idade Estado vacinal Número total de doses de VIP recomendadas1 Intervalo mínimo entre as doses
≥6 semanas e <7 anos Não vacinado ou incompletamente vacinado Fazer ou completar o esquema de 4 ou 5 doses2 4 semanas
(6 meses entre a penúltima e a última)
≥7 e <18 anos Não vacinado ou incompletamente vacinado Fazer ou completar o esquema de 3 doses3 4 semanas
(6 meses entre a penúltima e a última)
≥18 anos <3 doses Fazer ou completar o esquema de 3 doses
Esquema recomendado: 0, 1, 7-13 meses
Esquema acelerado: 0, 1, 2 meses4
4 semanas
(6 meses entre a penúltima e a última)
≥18 anos Com esquema vacinal completo para a idade 1 dose
(reforço único, válido para toda a vida)
≥10 anos depois da dose anterior

 

Programa Nacional de Eliminação do Sarampo, Integrado no Programa Nacional de Eliminação do Sarampo e da Rubéola

Os objectivos gerais deste programa são: manter a ausência de circulação do vírus do sarampo em Portugal e o estatuto nacional de eliminação do sarampo segundo os critérios da OMS.

As estratégias principais para manter a eliminação do sarampo em Portugal são: a vacinação, a vigilância clínica, laboratorial e epidemiológica, a gestão de casos e de surtos, e a comunicação.

A vacinação, com utilização da vacina VASPR, inclui:

  • Vacinação de rotina no âmbito do PNV – universal, gratuita, acessível a todas as pessoas presentes em Portugal e não necessitando de prescrição médica
  • Vacinação em circunstâncias especiais (Quadro14):
    • Viajantes, profissionais de saúde
      Nas crianças que viajem para áreas de risco para sarampo ou rubéola[1] a VASPR pode ser administrada a partir dos 6 meses de idade. No entanto, quando é administrada antes dos 12 meses de idade, esta dose não é válida (dose “zero”) e a criança deve ser vacinada (VASPR 1) aos 12 meses de idade, desde que respeitado o intervalo mínimo de 4 semanas entre as doses
  • Actividades adicionais de vacinação para diminuição de bolsas de susceptíveis
[1] Áreas de risco atualizadas em: http://www.who.int/immunization/monitoring_surveillance/burden/vpd/surveillance_type/active/measles_monthlydata/en/; http://measlesrubellainitiative.org/


QUADRO 14 – Vacinação recomendada contra o sarampo (VASPR), se houver risco de exposição1

1Vacinar apenas as pessoas sem história credível de sarampo e que não tenham o número de doses recomendado.
2Por indicação expressa da DGS, da Autoridade de Saúde ou prescrição do médico assistente.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Idade Número de doses de VASPR recomendadas1
≥6 meses e <12 meses Considerada dose “zero”, devendo ser administrada a VASPR 1 aos 12 meses de idade
≥12 meses e <18 anos Antecipar a VASPR 2, se necessário (intervalo ≥4 semanas entre as doses)
≥18 anos
(independentemente do ano de nascimento)
1 dose
Profissional de saúde: 2 doses

Recomendações sobre vacinas não incluídas no PNV

Algumas vacinas são recomendadas apenas para grupos de risco ou em circunstâncias especiais; outras vacinas comercializadas, mas não incluídas no PNV, poderão ser recomendadas no âmbito da protecção individual e administradas nos serviços do SNS mediante prescrição médica (incluindo o esquema vacinal), com registo no respectivo serviço de vacinação.

Vacina contra a gripe sazonal

O método mais efectivo para a prevenção e controlo da gripe sazonal é a vacinação. As vacinas licenciadas são actualizadas todos os anos de acordo com as recomendações da OMS sobre a composição das vacinas para a próxima época gripal. Esta recomendação baseia-se na vigilância epidemiológica, laboratorial e clínica.

Existem 2 tipos de vacinas: inactivadas (incluindo vacinas recombinantes) e vacinas vivas atenuadas, estas não disponíveis em Portugal. As vacinas trivalentes contêm antigénios dos subtipos de vírus influenza A (H1N1 e H3N2) e Influenza B (linhagem dominante em circulação). As vacinas tetravalentes, com duas linhagens B não estão disponíveis em Portugal.

Pelo menos dois factores intervêm na efectividade da vacina:

  • as características do vacinado (ex. a resposta imunológica é menor no idoso, tendo em consideração a imuno-senescência; e no imunocomprometido); e
  • a concordância da vacina com as estirpes circulantes, que varia de ano para ano.

Na Europa, as recomendações para a vacinação anual e as coberturas vacinais variam de país para país, recomendando-se a vacinação das pessoas em maior risco de desenvolverem complicações: idosos, mulheres grávidas, doentes crónicas, residentes em lares e profissionais de saúde.

Nos Estados Unidos da América do Norte utiliza-se uma estratégia de vacinação universal: recomendação para todas as pessoas a partir dos seis meses de idade.

Para além da prevenção do alto risco de desenvolvimento de complicações, a vacinação da grávida é também o mecanismo primário de protecção do bebé nos primeiros meses de vida, uma vez que a vacina não está licenciada para utilização abaixo dos 6 meses de idade. No entanto, a adesão a esta medida tem sido difícil por dúvidas quanto à segurança da vacina na gravidez. Vários estudos demonstraram não haver incremento de reações adversas na mãe e no feto.

Anualmente, a DGS emite as recomendações para a vacinação, cuja administração se inicia no mês de Outubro, podendo ser prolongada durante toda a chamada época gripal. O Quadro 15 especifica as recomendações para a época 2016/2017.

QUADRO 15 – Grupos alvo prioritários para os quais se recomenda a vacinação antigripal

1. Pessoas com risco de complicações durante ou após infecção gripal
    • Idade igual ou superior a 65 anos (1), particularmente se residentes em lares ou outras instituições
    • Residentes ou internados por períodos prolongados em instituições prestadoras de cuidados de saúde (por ex: deficientes, utilizadores de centros de reabilitação), desde que com idade superior a 6 meses
    • Grávidas, para prevenir evolução grave da gripe durante a gravidez e para proteger os seus filhos durante os primeiros meses de vida (imunização passiva)
    • Doentes com idade superior a 6 meses (incluindo grávidas e mulheres a amamentar) com doenças crónicas cardiovasculares, pulmonares, renais, hepáticas, hematológicas, metabólicas, neuromusculares ou imunitárias
2. Pessoas com maior probabilidade de contrair e transmitir o vírus às pessoas consideradas no ponto 1
    • Coabitantes e prestadores de cuidados a pessoas consideradas no ponto 1: Quando estas não possam ser vacinadas (idade <6 meses) ou tenham imunodepressão moderada ou grave
3. Saúde ocupacional
    • Pessoal dos serviços de saúde (públicos e privados) e de outros serviços prestadores de cuidados com contacto directo com as pessoas consideradas no ponto 1., mesmo que estas estejam vacinadas
    • Pessoal de infantários, creches e equiparados

 

Vacina contra varicela

A vacina contra varicela é composta pelo vírus varicela-zóster (VVZ) vivo atenuado (estirpe Oka). Em Portugal está disponível na forma monovalente; nalguns países existe também em combinação com a vacina contra sarampo, papeira e rubéola. Em Portugal as duas vacinas monovalentes Varilrix® e Varivax® estão disponíveis apenas no mercado privado (Quadro 16). Em ambas foram demonstradas imunogenicidade, segurança e eficácia.

No mês seguinte à imunização, em adultos e crianças (respectivamente 10% e 5%) desenvolve-se erupção cutânea associada à vacina, localizada à área da injecção ou generalizada. A transmissão secundária do vírus vacinal a contactos próximos susceptíveis tem sido documentada, mas o risco é muito baixo. Não foi descrita transmissão na ausência de erupção pós-vacinação. A varicela pós-vacinal é habitualmente ligeira, observando-se uma protecção significativa contra a sobre-infecção cutânea.

A vacina pode ser administrada concomitantemente com outras vacinas do PNV.

QUADRO 16 – Características das vacinas contra varicela (esquema vacinal aprovado pela EMA)

Fonte – Recomendações sobre vacinas extra Programa Nacional de Vacinação atualização 2015/2016. Sociedade Portuguesa de Pediatria/Sociedade de Infecciologia Pediátrica
  Varilrix®, GSK (9) Varivax®, SPMSD (10)
Tipo Viva, atenuada Viva, atenuada
Via de administração Subcutânea Intramuscular ou subcutânea
Local de administração Região deltoide Zona anterolateral da coxa em crianças pequenas, e região deltoide em crianças mais velhas e adolescentes
Número de doses 2 2
Primeira dose ≥12 meses ≥12 meses; em circunstâncias especiais (ex. surtos) pode ser administrada a lactentes >9 meses
Intervalo entre doses Preferencialmente a 2ª dose deve ser administrada pelo menos 6 semanas após a 1ª dose 12M-12 anos: mínimo de 4 semanas

≥13 anos: 4-8 semanas
Administração simultânea com as outras vacinas do PNV Sim Sim
Contraindicações e precauções

A vacina não deve ser administrada:

  • a imunodeprimidos, grávidas, menores de 1 ano de idade;
  • em situações de hipersensibilidade a algum dos componentes da vacina; e
  • em indivíduos submetidos a terapêutica com salicilatos (potencial associação com síndroma de Reye, à semelhança do que foi descrito com a infecção por vírus selvagem), terapêutica que deve ser evitada nas seis semanas após a vacinação.

A vacina deve ser adiada:

  • após administração de plasma, sangue ou imunoglobulina humana, durante um mínimo de três a cinco meses.
Notas importantes
  • A administração de produtos sanguíneos contendo anticorpos contra o VVZ pode reduzir a resposta à vacina e a sua eficácia protectora. Por isso, sempre que possível, a administração de qualquer destes produtos deve ser evitada durante o mês seguinte à administração da vacina.
  • Nos doentes de alto risco, a vacina não deve ser administrada concomitantemente com outras vacinas vivas atenuadas.
Utilização da vacina na profilaxia pós-contacto

O Advisory Committee on Immunization Practices (ACIP) dos Estados Unidos da América, país em que a vacinação universal se iniciou em 1995, recomenda a vacinação após exposição a varicela ou herpes-zóster das pessoas sem evidência de imunidade: a vacina deve ser administrada até 3 a 5 dias pós-exposição, o que poderá prevenir a doença ou diminuir a sua gravidade.

Vacina contra a hepatite A

A vacina contra a hepatite A é uma vacina de vírus inactivado, segura, com elevado grau de imunogenicidade. Confere protecção duradoura e não interfere com as outras vacinas.

Utilização da vacina na profilaxia pré-exposição

O maior interesse desta vacina é a vacinação pré-exposição de crianças e adolescentes:

  • Que viajem para países com endemicidade intermédia ou alta;
  • Com patologia hepática crónica;
  • Hemofílicos e que recebam hemoderivados;
  • Candidatos a transplante de órgão;
  • Infectados por VIH;
  • Que pertençam a comunidade onde seja detectado um surto.

Para uma resposta de anticorpos óptima, a imunização deverá ser efectuada de preferência 4 semanas (no mínimo 2 semanas) antes da esperada exposição ao vírus da hepatite A.

Utilização da vacina na profilaxia pós-contacto

A vacina da hepatite A pode ainda ser usada na profilaxia pós-exposição, para controlo de casos e surtos. Deverá ser efectuada em indivíduos susceptíveis nos 14 dias seguintes após contacto.

Hesitação em vacinar – algumas considerações

Os movimentos e posturas antivacinas existem historicamente, desde os tempos em que surgiu a 1ª vacina, a contra a varíola. E acontece curiosamente que a varíola foi a 1ª doença infecciosa a ser erradicada, o que por muitos é considerado o feito mais importante da História da Medicina, e a prova inequívoca do poder da acção colectiva na melhoria da condição humana segundo Margaret Chan, diretora da OMS.

Conceito de hesitação em vacinar

A aceitação da vacinação é a norma, havendo, contudo, algumas pessoas que aceitam a vacinação com algumas dúvidas. No outro extremo há pessoas que recusam todas as vacinas, havendo ainda outras que recusam, mas com dúvidas. A hesitação em vacinar é o continuum entre a aceitação sem dúvidas e a recusa sem dúvidas, grupo muito heterogéneo em que se encontram pessoas que aceitam mas duvidam, que aceitam algumas vacinas recusando outras, que atrasam as vacinas num calendário vacinal próprio que vai ter efeitos na imunidade de grupo, ou que recusam sem convicção.

Em Portugal, as coberturas vacinais elevadas indicam que a vacinação é uma medida de saúde pública muito bem aceite, mas mesmo alguns dos pais que vacinam os filhos têm dúvidas e têm medos, o que significa que a hesitação em vacinar também pode existir entre nós; ou seja, as coberturas vacinais não são um indicador directo do nível de hesitação.

A hesitação em vacinar depende, de facto, de múltiplos factores. Nesta perspectiva, foram desenvolvidos modelos para ajudar a entender e a lidar com tal comportamento.

O modelo mais simples é o chamado modelo dos 3 C, que incorpora 3 critérios principais: confiança, conveniência e complacência.

Por confiança, factor positivo na aceitação, entende-se acreditar na efectividade e segurança das vacinas, no sistema que as disponibiliza, na competência dos serviços e profissionais, e nas motivações dos decisores sobre as vacinas que são necessárias.

A conveniência é um factor que tem a ver com:

  • A qualidade dos serviços (real ou percebida), respeito pelo contexto cultural, conforto, acessibilidade, aspectos económicos, acções para a aplicação atempada das vacinas;
  • A capacidade do utilizador: disponibilidade para pagar (nem que seja os transportes em tempo de crise), literacia em saúde, entendimento da língua; este factor, extremamente importante para o sucesso do PNV, pode ser positivo se a qualidade dos serviços e a capacidade do utilizador forem boas, e negativo se tal não acontecer.

A complacência existe quando a percepção de risco sobre as doenças evitáveis pela vacinação é baixa, ou seja, a vacinação não é percebida como uma medida preventiva necessária e a sua segurança é questionada; uma das causas de complacência é o próprio sucesso dos programas de vacinação, com o controlo das doenças infecciosas. Surgem depois os mitos e a inversão da percepção de risco, passando-se ao cenário de mais medo da vacina do que da doença.

Para ajudar a perceber as causas mais profundas da hesitação em vacinar, que pode estar relacionada com vários determinantes ao mesmo tempo, o grupo de trabalho da OMS sobre este tópico desenvolveu um 2º modelo, integrando a chamada matriz de determinantes.

Esta matriz assenta em 3 grupos de determinantes:

  • O 1º grupo de determinantes tem origem em influências de contexto, nomeadamente o ambiente histórico e sociocultural, as características do sistema de saúde e factores políticos e económicos;
  • O 2º grupo de determinantes tem origem em influências individuais e de grupo, e inclui por exemplo a percepção sobre o risco/benefício da vacinação, e a noção da segurança das vacinas, um tema muito actual;
  • E, por fim, o 3º grupo, o dos determinantes que dependem de especificidades da vacina ou da vacinação.

Influências de contexto

Normas sociais

Nas influências de contexto, as normas sociais são muito importantes: não se vacina porque ninguém vacina ou vacina-se porque em determinada comunidade todos os pais vacinam os seus filhos; é talvez isto que se passa um pouco em Portugal.

Mas o que se pretende é que os indivíduos e as comunidades entendam o valor das vacinas e as procurem como um direito e com responsabilidade. E este é um objectivo estratégico da OMS definido em 2012, que está também consagrado no nosso Programa Nacional de Saúde.

Razões religiosas e filosóficas

Sem grande relevo em Portugal, mas com expressão a nível europeu referem-se as razões religiosas ou as razões filosóficas como a antroposofia, havendo em Portugal várias escolas de educação Waldorf que assentam nesta filosofia. Um dado importante é a tendência para a formação de bolsas, isto é, os não vacinados distribuem-se em grupos, não se distribuem homogeneamente na população, pelo que a probabilidade de ocorrência de surtos nessas comunidades é muito maior.

Influência dos líderes de opinião

Em relação à influência dos líderes de opinião, refere-se o caso Wakefield, que publicou na revista Lancet em 1998 um artigo que associava a vacina VASPR a colite e autismo. Este artigo teve ampla divulgação e, como consequência a cobertura vacinal desceu, e em 2003 começaram a registar-se surtos de sarampo no Reino Unido, que rapidamente se estenderam a outros países da Europa.

Em 2004 demonstrou-se que o artigo padecia de erros graves na amostra e na análise estatística; muitos estudos posteriores não demonstraram a associação. Foi também demonstrado que havia grandes conflitos de interesse. Em 2004 a Lancet retirou o artigo dos arquivos e em 2010 Andrew Wakefield foi excluído do General Medical Council.

Em 2013, na região europeia da OMS houve 29.000 casos de sarampo, a maioria em pessoas não vacinadas. Na Europa os objectivos de eliminação do sarampo têm sido sucessivamente adiados, havendo muitos países em que a doença ainda é endémica, como a Espanha, a Suíça e o Reino Unido. Também nos Estados Unidos, em 2015 houve uma grande epidemia com origem na Disneylandia.

Entre 1980 e 2008 a redução das mortes por sarampo correspondeu a 23% da redução da mortalidade infantil, a nível global.

Contactos sociais, comunicação social e internet

A importância do papel dos contactos sociais, da comunicação social e da internet é cada vez maior.

Em relação aos contactos sociais, de acordo com um estudo de 2013 verificou-se que os pais que não cumpriam o esquema recomendado tinham uma rede de contactos muito mais alargada do que os cumpridores. Em relação à comunicação social, verificou-se que a probabilidade de terem lido ou ouvido informação negativa sobre a vacinação era muito maior nos pais que atrasavam a vacinação do que nos pais que cumpriam o esquema recomendado. Verificou-se ainda que a probabilidade de confiar na informação dada pelos profissionais de saúde é menor nos pais que procuram informação sobre vacinas na Internet.

Influências individuais e de grupo

Nos países desenvolvidos, as atitudes antivacinais estão habitualmente associadas a um maior nível económico. Mas, ao contrário dos determinantes sociais da Saúde, os determinantes da hesitação em vacinar como a educação ou o status socioeconómico não influenciam numa única direcção, ou seja, mais educação e cultura podem estar associados a níveis elevados ou baixos de aceitação. Como defensor da vacinação há que citar o exemplo de Bill Gates, como antivacinal o exemplo de Robert Kennedy Junior ou alguns actores como Jim Carrey.

Há grupos com uma visão particular do mundo no que refere à saúde, em que as pessoas optam pela medicina não convencional, preferem a “imunidade natural” conferida pelos alimentos, defendem que a boa higiene e os hábitos de vida tornam a vacinação desnecessária ou que as doenças evitáveis pela vacinação são necessárias para um sistema imunitário forte.

Mesmo nas pessoas que aderem à vacinação uma dúvida frequente é a sobrecarga do sistema imunitário com tantas vacinas nos programas de vacinação. No PNV, entre 1965 e 1980, só com a vacina antivariólica e a vacina de célula completa contra a tosse convulsa (Pw) eram inoculados cerca de 3200 antigénios, carga substancialmente superior à actual, apesar de muito mais vacinas agora incluídas no PNV.

Uma outra situação bastante frequente é a chamada culpa antecipada: por um lado, o medo da possibilidade de uma criança contrair uma doença evitável pela vacinação e, por outro, o medo de uma reacção adversa, o que é gerador de grande ansiedade e ambivalência em relação à vacinação.

Especificidades da vacina ou da vacinação

Uma dúvida crescente refere-se à dor na vacinação. A OMS emitiu, em Setembro de 2015, um documento recomendando medidas simples de combate à dor numa perspetiva de diminuir a hesitação em vacinar, medidas que já são usadas em muitos dos nossos centros de vacinação.

O esquema vacinal com a administração simultânea de múltiplas vacinas tem sido problemático nalguns países, levando a recorrer a esquemas alternativos, o que pode adiar a protecção e comprometer a imunidade de grupo. Apesar de se pretender obter protecção o mais precocemente possível para o maior número possível de doenças e para o maior número possível de pessoas, muitos pais discordam da necessidade de um esquema tão sobrecarregado.

Todos os estudos apontam para que os profissionais de saúde representam ainda a maior fonte de aconselhamento sobre vacinas, mas que o seu papel tem diminuído ao longo dos anos em favor dos familiares, amigos e internet. Um estudo realizado na Holanda demonstrou que a confiança na objectividade do profissional tem grande impacte na decisão dos pais, que alguns pais acham que os profissionais só informam sobre as vantagens e não sobre as reacções adversas e que os pais duvidam do conhecimento dos profissionais sobre as reacções adversas.

Dinâmicas subjacentes à hesitação em vacinar

Crenças e mitos

As dinâmicas subjacentes à hesitação em vacinar, ou seja, de que forma a interacção dos determinantes vai pesar para a pró- ou para a antivacinação, estão intimamente ligadas às estruturas sociais, às representações e às mentalidades.

Apesar de vacinas mais seguras e efectivas, do aumento da vigilância dos eventos adversos, os argumentos da antivacinação mantêm-se desde há 2 séculos, o que significa que existem crenças e mitos profundamente enraizados:

  • As vacinas são ineficazes, causam doenças, têm em vista o lucro, contêm substâncias perigosas;
  • As lesões causadas pelas vacinas são escondidas pelas autoridades;
  • A imunidade natural é melhor que a conferida pelas vacinas;
  • As intervenções “naturais” (ex. Homeopatia) são superiores às vacinas na prevenção das doenças.

No entanto, há diferenças assinaláveis entre os antigos opositores e os actuais. Enquanto no passado a liderança antivacinação era feita por proletários opondo-se à intervenção do Estado no seu corpo, actualmente a liderança nos países ocidentais é feita por diferenciados, classe média ou alta, pais de crianças “lesadas” pelas vacinas, exigindo compensação da indústria ou do estado, ou ainda, praticantes de terapêuticas não convencionais. Existe uma estratégia de marketing bem definida através da internet em que os opositores se assumem como não sendo antivacinas, mas a favor de “vacinas seguras”, “decisão informada”, “vacinas verdes” e utilizam nomes neutros, que parecem websites de informação sobre vacinas: Vaccination News, The Association of American Phisicians and Surgeons ou National Vaccine Information Center.

Vivemos num aparente paradoxo:

  • Assistiu-se, por um lado, a uma diminuição das doenças evitáveis pela vacinação simultaneamente com a disponibilidade de cada vez maior número de novas vacinas que sobrecarregam os esquemas vacinais, levando a questionar a necessidade de mais vacinas, qual a sua segurança e riscos, ou ainda quais os objectivos ocultos entre companhias farmacêuticas e estados (teoria da conspiração);
  • Por outro lado, há uma alteração das relações de poder médico-doente: os médicos deixaram de ser os únicos a tomar decisões e os doentes querem ser sujeitos activos e participar das decisões referentes à sua saúde, capacitação essa que é objectivo, quer da OMS, quer do Plano Nacional de Saúde.

E, finalmente, a internet, em que a informação baseada na experiência individual (experience-based) ganhou legitimidade e credibilidade semelhante à informação científica (evidence-based). A disseminação da internet, principalmente a partir do ano 2000, representou uma oportunidade soberana para a difusão de mensagens antivacinas a muito maior audiência, e a capacidade de poucas pessoas gerarem grande quantidade de conteúdos, muitas vezes com informação inadequada. Mas também os artigos científicos, nomeadamente os estudos de segurança das vacinas, se tornarem acessíveis possibilitando interpretações descontextualizadas e conclusões antivacinais.

A consulta de plataformas veiculando conteúdos antivacinas tem um impacte particularmente significativo na percepção de maiores riscos da vacinação e na diminuição da intenção de vacinar, em comparação com plataformas ditas oficiais.

Mecanismos psicológicos

Do ponto de vista psicológico, foram identificados alguns factores que, de algum modo, podem explicar a hesitação em vacinar e o seu aumento nos últimos anos.

  1. Vieses de omissão, ou seja, as pessoas têm maior relutância ao risco da acção (fazer uma vacina possivelmente “não segura”) do que ao risco da inacção (ter uma doença evitável pela vacinação, que as plataformas consultadas dizem ser rara e benigna).
  2. Propensão para atribuir qualquer evento após a vacinação à(s) vacina(s) recebida(s). Por e coincidência de situações como morte súbita, doenças neurológicas que se manifestam no 1º ano de vida com a data da primovacinação. Os argumentos antivacinas podem convencer os pais porque são simples de perceber e dão explicações etiológicas para doenças que a ciência e a medicina não conseguem explicar completamente.
  3. Vieses de disponibilidade, como ver conteúdos antivacinas aumenta a noção do risco das vacinas.
  4. O apelo à emoção, ao apresentar histórias (narrativas) de pais que acreditam que o seu filho foi gravemente lesado pela vacinação. As narrativas são extremamente poderosas porque causam uma enorme sensação de ameaça pelas vacinas. As estatísticas e probabilidades usadas na comunicação em saúde pública não têm definitivamente o mesmo impacte porque não interferem com as emoções.
  5. É muito difícil o entendimento da vacinação como um direito, mas também como um dever de contribuir para a imunidade de grupo. Os pais pensam no risco para os seus filhos mais do que numa abordagem de saúde pública.

Intervenções para diminuir a hesitação em vacinar

Poucas ou nenhumas estratégias de saúde pública tiveram sucesso no combate às posições antivacinas. Antes pelo contrário, a hesitação em vacinar foi aumentando tornando cada vez maior o contingente dos que aceitam, mas duvidam e dos que recusam, mas duvidam. O modelo da Educação e Informação não dirigidas (Knowledge deficit model) não resultou porque desvalorizava os efeitos da luta antivacinas no meio social, não identificava os diferentes determinantes causadores da hesitação em vacinar e era de certo modo uma atitude paternalista baseada na assunção de que as pessoas hesitavam porque “não sabiam”.

Neste momento há que evoluir para modelos inovadores, percebendo as causas e os contextos, de modo a alimentar a confiança dos que conscientemente aceitam todas as vacinas recomendadas, prevenir a evolução para a recusa dos que aceitam, mas com dúvidas, tornar possível reverter a posição dos que recusam, mas com dúvidas. É importante nunca considerar os oponentes da vacinação como ignorantes, pois isso é desvalorizar o significado e consequências da sua luta no meio social.

Os profissionais de saúde são ainda aqueles em que os pais mais confiam para receber informações sobre vacinas e de quem esperam respostas esclarecedoras. Os profissionais têm de estar capacitados para saber responder às dúvidas e aconselhar, permitindo uma decisão informada e consciente, mantendo a relação com o seu doente, mesmo em situação de desacordo, que poderá ser modificada se puder manter-se a capacidade de diálogo. Deverá haver um grande empenho na formação nesta área específica e no debate do tema no seio da comunidade científica.

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Conceitos fundamentais  

A Microbiologia é a ciência que estuda os seres vivos de dimensões microscópicas. O seu nome deriva de três vocábulos gregos: mikrós (pequeno), bios (vida) e logos (ciência).

A vastidão do mundo microbiano inclui bactérias, microalgas, fungos e parasitas, nomeadamente protozoários, e ainda, vírus.

Assim, os micróbios (mais modernamente preferindo-se a designação de microrganismos) são estudados em diversas áreas científicas: Bacteriologia (sobre bactérias), Micologia (sobre fungos), Parasitologia (sobre determinados parasitas), Ficologia ou Algologia (sobre diversos tipos de algas) e Virologia (sobre os vírus, parasitas obrigatórios das células), podendo afectar todos os seres vivos, incluindo bactérias. A todos os microrganismos foram dados nomes para classificação e identificação.

Relativamente à Virologia, importa uma referência especial, pois, de facto, os vírus não são definidos como seres vivos: não possuindo células, apresentam-se como matéria inerte fora das células onde obrigatoriamente replicam, afastando-se assim do conceito clássico para definir os seres vivos.

A Parasitologia, outra área da Microbiologia, também merece um comentário: incluindo seres vivos no estado adulto visíveis a olho nu, são também consideradas como critério de inclusão as dimensões microscópicas dos seus ovos ou das suas formas larvares.

Tendo em conta que tais microrganismos/micróbios exercem efeito patogénico potencialmente fatal (infecção), ao longo da História, e especialmente na segunda metade do século XX, a Ciência promoveu o desenvolvimento de diversas “armas” contra o efeito patogénico dos micróbios (agentes antimicrobianos no sentido lato), com o objectivo de prevenção ou cura de diversas enfermidades. Citam-se, como exemplos, os soros, as vacinas e determinadas substâncias ou compostos químicos.

Nesta perspectiva importa referir alguns factos históricos para o enquadramento do título deste capítulo.

Factos históricos

No século XVI o médico Paracelsus usou compostos de antimónio no tratamento geral das infecções e derivados de mercúrio no tratamento da sífilis.

No século XVII Thomas Sydenham usou casca de chinchona no tratamento da malária, descobrindo-se mais tarde, em 1920, que a mesma casca continha um princípio activo, a quinina.

Em 1876, Robert Koch criou as bases científicas para o conhecimento das doenças provocadas por micróbios (doenças infecciosas), conhecidas por postulados de Koch, demonstrando que o microrganismo designado por Bacillus anthracis provocava o carbúnculo.

Em 1928, um acontecimento acidental veio revolucionar o tratamento das doenças infecciosas. Alexander Fleming, microbiólogo de um hospital em Londres, descobriu numa placa de Petri com colónias do microrganismo Staphylococcus aureus, a presença dum fungo contaminante chamado Penicillium notatum, o qual excretava uma substância antagonizando o crescimento e a vida do Staphylococcus (substância antimicrobina, neste caso, anti-estafilocócica) que mais tarde veio a chamar-se penicilina.

Em 1935, Gerhard Domagk, tendo usado um composto químico chamado prontosil (azo-sulfanilamida) no tratamento de ratos infectados, verificou que da hidrólise daquele resultava um princípio biologicamente activo que se designou sulfonamida.

Pode pois afirmar-se que, no sentido genérico, tinha nascido a quimioterapia (administração de uma substância química com a finalidade de curar uma doença ou de impedir a sua progressão).

Definições e nomenclatura

Relatados certos factos históricos, importa uma referência a certas noções relacionadas com a taxonomia e com a terapêutica anti-infecciosa em pleno século XXI. (consultar Glossário geral)

O nome geral de “quimioterapia” é dado ao tratamento de doenças infecciosas e das doenças malignas por meio de agentes químicos – os agentes quimioterapêuticos.

Reportando-nos à descoberta de Fleming (e que corresponde à descoberta do “primeiro antibiótico”), importa, no entanto, salientar que o termo “antibiótico” foi proposto pela primeira vez em 1942 por Waksman, definindo-o como substância produzida por microrganismos que antagonizam o crescimento ou a vida doutros microrganismos.

Na actualidade discute-se se se deve fazer a destrinça entre antibióticos e agentes quimioterapêuticos. A diferença reside no modo como são produzidos e não na sua acção. Conceptualmente os antibióticos são substâncias produzidas por microrganismos, enquanto os agentes quimioterapêuticos são produzidos sinteticamente e não ocorrem na natureza. De facto, hoje em dia não há uma distinção absoluta entre as duas classes de compostos. Nesta perspectiva, são classificados como antibióticos, quer substâncias obtidas por modificações semi-sintéticas da estrutura dum antibiótico, quer compostos que eram originalmente obtidos como metabólitos de microrganismos, mas actualmente sintetizados.  

 Eis o que acontece na prática, traduzindo alguma sobreposição de conceitos:

  • Na generalidade os agentes quimioterapêuticos são usados para combater o cancro e parasitas (englobando bactérias, vírus, fungos, protozoários, vermes);
  • Na generalidade os antibióticos destinam-se ao tratamento de infecções bacterianas.

Como excepções, cabe citar:

  • Número escasso de antibióticos usado no tratamento de micoses (por ex. griseofulvina), de doenças por protozoários (por ex. macrólidos, tetraciclinas), de doenças por nemátodos (por ex. avermectinas), de doenças oncológicas (por ex. mitomicina, daunorrubicina).

Em suma, no decorrer do texto que integra este capítulo, de acordo com a literatura científica consultada, e em função do contexto de cada situação clínica, pareceu-nos lícito empregar, por vezes indistintamente, os termos “antibiótico, agente quimioterapêutico, agente antimicrobiano e agente antibacteriano”.

Os antibacterianos, o grupo dos antimicrobianos mais investigado, constituem o tópico central abordado neste capítulo. Noutros capítulos deste livro são abordados, em relação com situações clínicas específicas, outros antimicrobianos.

Classificação

Os antibacterianos podem ser classificados de acordo com diversos critérios: estrutura, acção biológica, espectro e mecanismo de acção. No quadro 1 apresenta-se a sua classificação organizada por grupos.

QUADRO 1 – Classificação de antibacterianos por grupos

1Não disponível em Portugal; 2Sem avaliação em Pediatria; 3Profilaxia em Cirurgia; 4Tópico; 5Antimalária; 6Antituberculose; 7Antilepra
CLASSIFICAÇÃO DE ANTIBACTERIANOS
β-LactâmicosPenicilinasBenzilpenicilinasBenzatínica, Procaínica, Fenoximetilpenicilina
AminopenicilinasAmoxicilina, Ampicilina
Isoxazolilpenicilinas (resistentes às penicilinases)Flucloxacilina, Dicloxacilina1, Oxacilina1, Nafcilina1, Meticilina1
Anti-PseudomonasUreidopenicilinasPiperacilina, Azlocilina1, Mezlocilina1
CarboxipenicilinasTemocilina1, Ticarcilina1, Carbenicilina1
AmidinopenicilinasPivmecilinam2
Cefalosporinas1ª geraçãoCefazolina3, Cefatrizina, Cefradina, Cefadroxil1, Cefalexina1
2ª geraçãoCefuroxima, Cefoxitina, Cefaclor, Cefprozil, Cefotetano1, Cefmetazol1
3ª geraçãoCefotaxima, Ceftriaxona, Ceftazidima, Cefixima,
4ª geraçãoCefepime
5ª geraçãoCeftarolina fosamil, Ceftolozano2, Ceftobiprole1
CarbapenemesErtapenem, Imipenem, Meropenem, Doripenem1
MonobactâmicosAztreonam
Inibidores das b-lactamasesÁcido Clavulânico, Tazobactam, Sulbactam1, Avibactam1, Vaborbactam1
Associações com Inibidores das b-lactamasesAmoxicilina + Ácido Clavulânico, Piperacilina + Tazobactam, Ceftolozano + Tazobactam1
MacrólidosAzalídeosAzitromicina
CetólidosTelitromicina1
Claritromicina, Eritromicina, Espiramicina
AminoglicosídeosAmicacina, Gentamicina, Tobramicina, Neomicina4, Estreptomicina6, Netilmicina, Espectomicina, Canamicina1
QuinolonasCiprofloxacina, Levofloxacina, Moxifloxacina, Norfloxacina, Ofloxacina4, Prulifloxacina1, Gemifloxacina1, Gatifloxacina1
SulfonamidasSulfametoxazol + Trimetropim, Suldadiazina, Sulfadiazina de Prata4, Sulfadoxina + Pirimetamina1,5, Sulfasalazina, Sulfacetamida5, Mafenide1,4
GlicopeptídeosVancomicina, Teicoplanina
Cloranfenicol e TetraciclinasCloranfenicol, Doxiciclina, Minociclina
LincosamidasClindamicina, Lincomicina
PéptidosBacitracina4, Polimixinas, Tirotricina
RifamicinasRifamicina6, Rifampicina6, Rifabutina6
OxazolidinonasLinezolide
GlicilciclinasTigeciclina
NitroimidazólicosMetronidazol
OutrosÁcido fusídico4, Mupirocina, Colistimetato de sódio, Daptomicina, Fidaxomicina2, Fosfomicina, Rifaximina, Tinidazol, Isoniazida6, Etambutol6, Pirazinamida6, Capreomicina6, Etionamida6, Ácido aminossalicílico6, Cicloserina6, Dapsona7, Etionamida6

Espectro, mecanismo de acção e efeito

Em Microbiologia considera-se espectro de acção a extensão ou número de microrganismos que um antibiótico inibe ou destrói. De realçar que este pode alterar-se de acordo com a aquisição de resistências, como será discutido adiante.

De acordo com o seu espectro, os antibióticos classificam-se em:

  • Espectro de acção largo: acção contra Gram-positivos e Gram-negativos. Exemplo: tetraciclinas, fluoroquinolonas, cefalosporinas 3ª, 4ª e 5ª gerações e cloranfenicol;
  • Espectro de acção estreito: acção limitada a determinadas espécies de microrganismos. Exemplo: aminoglicosídeos, sulfonamidas, glicopéptidos, bacitracina, polimixinas, nitroimidazóis.

Relativamente à acção biológica (ou efeito), os antibióticos antibacterianos classificam-se em:

  • Bactericidas: quando originam a destruição das bactérias. Exemplo: aminoglicosídeos, cefalosporinas, penicilinas e quinolonas;
  • Bacteriostáticos: quando inibem ou retardam o crescimento e a replicação bacterianas. Exemplo: tetraciclinas, sulfonamidas e macrólidos.

Alguns antibióticos podem apresentar ambas as acções, dependendo da dose, duração, exposição e o estado das bactérias invasoras. Assim, os antibióticos bactericidas em doses baixas podem funcionar como bacteriostáticos; e os antibióticos bacteriostáticos em concentrações elevadas podem ter acção bactericida. Por exemplo, a acção bactericida aumenta a par da concentração dos aminoglicosídeos, fluoroquinolonas e metronidazol.

O mecanismo de acção dos antibióticos varia em função da estrutura da célula bacteriana atingida, isto é, segundo os alvos morfológicos atingidos. Contudo, para o mesmo antibiótico, o alvo a atingir poderá variar em função de determinados factores, como a respectiva concentração. Sistematizando, são descritos 5 grupos:

  • Inibidores da síntese da parede celular: inibem a síntese de um dos constituintes da parede celular bacteriana – os peptidoglicanos. Os antibióticos que actuam neste alvo, podem ser bactericidas ou bacteriostáticos. Exemplo: beta-lactâmicos, glicopeptídeos e bacitracina;
  • Inibidores da síntese da membrana celular: a membrana celular é uma barreira importante na secreção e regulação do fluxo intra e extracelular de substâncias. Os antibióticos deste grupo são pouco selectivos e apresentam elevada toxicidade sistémica; por isso, a sua utilização é fundamentalmente tópica. Exemplo: polimixina B e colistina;
  • Inibidores da síntese proteica: actuam nas subunidades 30S e 50S dos ribossomas intracelulares, levando à disrupção do metabolismo celular da bactéria. Exemplo: aminoglicosídeos, tetraciclinas, cloranfenicol, macrólidos, clindamicina, linezolida;
  • Inibidores da síntese de ácidos nucleicos: bloqueiam componentes envolvidos na síntese de DNA ou RNA, o que impede a multiplicação e sobrevivência das bactérias. Exemplo: quinolonas, rifampicina e metronidazol;
  • Inibidores de processos metabólicos: actuam em determinados processos celulares essenciais para a sobrevivência da bactéria. Exemplo: interrupção da produção de ácido fólico no trimetropim, essencial para síntese de DNA, bloqueio de enzimas, etc..

Farmacocinética dos antibacterianos na idade pediátrica

  • O objectivo principal da administração de um antibacteriano é obter uma concentração óptima no local da infecção, parâmetro dependente da capacidade de difusão do fármaco.
  • O pico de concentração plasmática do antibacteriano correlaciona-se inversamente com o seu volume de distribuição (volume de líquido necessário para conter a quantidade total do fármaco no organismo na mesma concentração presente no plasma).
  • Na maioria dos antibacterianos, o compartimento extracelular (plasma, líquido intersticial e linfa) representa uma parte significativa no seu volume de distribuição, assistindo-se ao longo do crescimento, a uma diminuição do seu volume e da sua percentagem no peso corporal. Assim, por exemplo no RN, são necessárias doses mais elevadas por kg de peso corporal do que no adulto, para atingir concentrações plasmáticas e teciduais comparáveis. De uma forma geral, as doses por kg de peso corporal vão diminuindo à medida que a criança cresce.
  • O RN tem uma concentração total de proteínas plasmáticas de cerca de 86% da do adulto, o que leva à maior circulação de fracções livres, com maior probabilidade de penetração em compartimentos teciduais.
  • A Concentração Inibitória Mínima (CIM, ou sigla MIC em inglês) é a concentração mínima do antibacteriano requerida para inibir o crescimento do microrganismo. Idealmente, a dose de antibacteriano administrada deverá ser a suficiente para permitir que a concentração do antibacteriano no local de infecção seja superior à sua CIM.
  • A Concentração Bactericida Mínima (CBM ou sigla MBC em inglês) é a concentração mínima do antibacteriano capaz de destruir o microrganismo. Uma CBM quatro vezes superior à CIM é indicadora de tolerância bacteriana.
  • As concentrações de antibacterianos são mais elevadas em órgãos mais perfundidos (por ex. fígado e pulmões) do que nos menos perfundidos e menos acessíveis (ossos, olhos, meninges, cavidades de abcessos, etc.). Contudo, a existência de um processo inflamatório num local habitualmente menos perfundido, pode levar a um aumento da concentração local do fármaco.
  • A semivida de um antibacteriano – tempo necessário para que a sua quantidade total ou a sua concentração no plasma diminuam para metade – constitui um parâmetro útil para estabelecer o intervalo óptimo entre as administrações; no geral, este deverá ser igual ou inferior à semivida dos fármacos.

Actuação prática

Aspectos gerais

Apesar de os antibióticos utilizados em idade pediátrica serem similares aos dos adultos, a sua escolha, dosagem e modo de administração estão condicionados pelas particularidades desta faixa etária.

A selecção da antibioticoterapia deverá ser efectuada com base nos resultados culturais. Na maioria das situações, tal não é possível a priori, pelo que se deverá optar por uma terapêutica designada empírica, isto é, fundamentada no agente ou grupo de agentes etiológicos mais prováveis de acordo com as características do doente, e quadro clínico, laboratorial e imagiológico disponíveis.

Perante a possibilidade da existência de vários agentes responsáveis pela infecção, deve optar-se por uma antibioticoterapia empírica de espectro largo, garantindo a cobertura dos agentes bacterianos mais prováveis. Logo que possível, esta terapêutica deverá ser alterada para uma de espectro mais curto, dirigida aos agentes identificados nos exames culturais.

Para a selecção do antibacteriano mais adequado, é imperativo ter em conta as características do fármaco, do doente, da sua família e do panorama microbiológico, especialmente no que se refere às resistências ao fármaco. (ver adiante)

Só a prescrição racional dos antibacterianos permitirá minorar a probabilidade de resistências.

Os antibióticos mais prescritos em Pediatria são os beta-lactâmicos. Exceptuando algumas situações particulares, a prescrição da antibioticoterapia deverá seguir os seguintes princípios:

  • Optar pela monoterapia, de espectro o mais curto possível;
  • Dosagem de acordo com o peso corporal, tendo em conta a dose máxima;
  • A escolha da via de administração deverá ser realizada de acordo com as características do doente/família, quadro clínico, localização e gravidade da infecção;
  • A duração deverá ser a mais curta possível, de modo a proporcionar melhor adesão, menos efeitos colaterais, menos custos e maior satisfação do doente e prestadores de cuidados. Deverá, contudo, ser suficientemente prolongada para debelar a infecção.

Os antibacterianos podem também ser utilizados em profilaxia primária – evitar o aparecimento de uma infecção – ou secundária – prevenir a progressão de uma infecção já existente. Nas duas vertentes, são verificados melhores resultados quando o antibacteriano utilizado é dirigido a um microrganismo específico.

A falência terapêutica exige uma reavaliação da situação clínica, bem como a reformulação diagnóstica.

De realçar que a prescrição de um antibiótico não tem apenas impacte a nível individual; por isso, deverão sempre ser tidos em conta os aspectos de Saúde Pública inerentes.

Por fim, são referidas dez regras importantes a ter em conta na prática clínica na circunstância de ser realizada antibioticoterapia (o Decálogo da antibioticoterapia, da autoria de J Pascoal Duarte, 1996).

  1. “Não me uses em vão.”
  2. “Usa-me sozinho sempre que possível.”
  3. “Se não me podes usar, usa o meu parente mais próximo.”
  4. “Usa primeiro o meu irmão de espectro mais estreito e de primeira linha. Não tenhas vergonha de receitar muitas vezes o mesmo antibiótico.”
  5. “Usa-me de acordo com o local a que estou destinado e pela via em que sou mais eficaz.”
  6. “Usa-me apenas durante o tempo necessário e na dose mais adequada. Só me deves usar profilacticamente em situações bem definidas.”
  7. “Não me troques por outro, só por ser mais novo.”
  8. “Não uses o mais caro se podes usar o mais barato com a mesma eficácia.”
  9. “Não esqueças os meus efeitos colaterais e acessórios. Deves conhecer bem a minha vida.”
  10. “Escolhe-me sempre de acordo com o doente, a doença, e se possível com o antibiograma; mas, acima de tudo, usa o teu bom senso.”

Associação de antibióticos

Em determinadas situações clínicas está indicada a associação ou combinação de antibióticos com o objectivo fundamental de alargar o espectro de actividade face à gravidade de determinado quadro clínico. Contudo, importa relevar que tal associação ou combinação se reserva quase exclusivamente à prática hospitalar.

Ao associar antibióticos – facto que pode contribuir para diminuir o desenvolvimento de resistências – há que ter em conta determinadas noções básicas com implicações importantes na clínica:

  • dois antibióticos, administrados concomitantemente para actuarem sobre uma mesma bactéria (ou uma mesma estirpe bacteriana), tanto o podem fazer simultaneamente ou sequencialmente;
  • ocorre antagonismo quando a actividade da combinação é menor que a do componente mais activo (1+2 <2);
  • ocorre adição quando a actividade da associação é igual à soma da actividade de cada um dos componentes (1+1=2);
  • ocorre indiferença quando a actividade da associação é igual à do componente mais activo (1+2=2);
  • ocorre sinergismo (ou potenciação) quando a actividade da associação é superior à soma das actividades de cada um dos componentes (1+1=4); trata-se duma verdadeira “cooperação” que pode ser tipificada pela associação de beta-lactâmico (actuando ao nível da membrana da bactéria, como que a “fragilizando”), o que facilita a “entrada de outro antimicrobiano, por ex. aminoglicosídeo (cuja acção se verifica no citoplasma).

As principais indicações para a associação de antibióticos são as seguintes:

  • infecções graves com focos de localização múltipla (sépsis);
  • infecções mistas;
  • infecções em doentes com síndromas de imunodeficiência congénita ou adquirida;
  • infecções sitémicas no RN, leucemias, síndromas de má-nutrição e infecção, situações clínicas implicando terapêutica com imunossupressores, etc.;
  • endocardites;
  • infecções associadas a corpos estranhos;
  • tratamento inicial de base empírica em situações com risco vital.

Quimioprofilaxia antibacteriana

A quimioprofilaxia (antibacteriana) é a prevenção de doença infecciosa através da administração de fármaco (antibacteriano). A utilização de antibacteriano com este fim deverá ser criteriosa, tendo em conta a emergência de estirpes resistentes, a toxicidade e efeitos secundários dos fármacos, a diminuição inadvertida da vigilância e dos cuidados de que o doente necessita por falsa sensação de segurança e os custos associados.

Com a finalidade descrita têm sido utilizados antibióticos nas seguintes situações:

  • Protecção contra um único microrganismo por um curto período de tempo. Exemplo: eliminação do estado de portador nos contactos íntimos dos doentes com doença meningocócica invasiva;
  • Protecção contra um único microrganismo por períodos longos de tempo. Exemplo: prevenção de infecção estreptocócica nos doentes com febre reumática prévia;
  • Protecção contra vários microrganismos por um período curto. Exemplo: prevenção de endocardite em doentes susceptíveis em contexto de procedimentos invasivos;
  • Protecção contra vários microrganismos por longos períodos de tempo; esta prática é muito controversa, por ser em geral ineficaz e por envolver riscos para o doente e para a comunidade.

Em diversos capítulos do livro são descritos esquemas de quimioprofilaxia aplicáveis em situações clínicas específicas.

O protocolo da quimioprofilaxia em cirurgia deve ser elaborado em cada instituição hospitalar, de acordo com a experiência local e o conhecimento actualizado da prevalência dos patogénios em cada serviço.

Segundo o esquema descrito a seguir, são classificados os actos operatórios de acordo com o risco previsível de infecção:

  1. Cirurgia “limpa” – apenas quando as consequências de uma eventual infecção são muito graves, como é o caso de implantação de próteses, doentes imunocomprometidos ou cirurgia cardíaca. (risco < 2%);
  2. Cirurgia “limpa/contaminada” – somente quando há grande risco de contaminação e infecção, como na cirurgia do tracto digestivo alto, tracto biliar com icterícia obstrutiva e cirurgia, ou instrumentação do tracto urinário em presença de bacteriúria ou uropatia obstrutiva. (risco < 10%);
  3. Cirurgia “contaminada” – designadamente nas seguintes circunstâncias: extravasão ao nível do tracto gastrintestinal, entrada no lume biliar ou génito-urinário, lesão traumática com menos de 4 horas, etc.. (risco 20%);
  4. Cirurgia “suja” – perante presença de pus, perfuração dos tractos respiratório, gastrintestinal ou génito-urinário. (risco 40%)
    Idealmente um agente antibacteriano para profilaxia em cirurgia deve:
    • prevenir a infecção do local cirúrgico;
    • prevenir morbimortalidade relacionada com a infecção do local cirúrgico;
    • reduzir a duração e os custos dos cuidados de saúde;
    • apresentar escassos efeitos adversos;
    • não afectar o microbioma do doente nem o ecossistema do local/instituição.

Assim, o agente seleccionado deverá ser:

  • activo contra os agentes patogénicos com maior probabilidade de contaminar o local cirúrgico;
  • administrado na dose e momento correctos (cefazolina, 2 horas antes do procedimento), de forma a garantir concentrações séricas e teciduais adequadas durante o período de potencial contaminação;
  • seguro;
  • administrado no período de tempo mais curto possível, de modo a minorar os efeitos adversos, o desenvolvimento de resistências e os custos. Para a maioria dos procedimentos cirúrgicos admite-se que a duração deverá ser menor do que 24 h.

Para a maioria dos procedimentos, a cefazolina é o fármaco de eleição para a profilaxia cirúrgica, dado que apresenta uma duração de acção desejável, espectro de acção contra os microrganismos mais frequentemente envolvidos na cirurgia, seguro e de baixo custo.

Resistência bacteriana a antibióticos

Definições e importância do problema

A resistência das bactérias aos antimicrobianos, isto é, a capacidade de um microrganismo resistir ao efeito de um fármaco, é um problema crescente a nível mundial com elevado impacte ao nível da morbimortalidade, prolongamento dos internamentos e aumento dos custos associados aos cuidados de saúde.

A resistência bacteriana aos antibióticos pode ser natural ou adquirida.

A resistência natural (ou mais correctamente, insensibilidade), que corresponde a uma propriedade intrínseca da bactéria, observa-se em todos os membros de uma espécie ou género, independentemente do seu local de isolamento.

O consumo frequente de antibióticos constitui o factor mais importante no desenvolvimento de resistências. Assim, as bactérias resistentes são mais comuns nos locais ou em ambientes em que o uso dos referidos fármacos é frequente, como os hospitais. E, a propósito do uso frequente de antibióticos na idade pediátrica, importa citar publicações recentes (ver Bibliografia) alertando para o risco elevado de obesidade em tal circunstância.

De facto, desde a introdução dos antibióticos, tem-se assistido a uma evolução das bactérias para a resistência, sendo as bactérias sensíveis substituídas por bactérias multirresistentes; salienta-se que já têm sido isoladas estirpes bacterianas resistentes a todos os antibióticos disponíveis, e até, bactérias “toxicodependentes” que só crescem na presença de determinado antibiótico.

As bactérias resistentes podem circular entre humanos, animais, alimentos, água, ambiente, podendo a sua transmissão ser influenciada pelas deslocações, viagens e migrações. Desta forma, torna-se imperativo o estabelecimento de políticas de combate à emergência e crescimento de resistências aos antibióticos, contando com a colaboração de todos os sectores da sociedade, em particular dos relacionados com a medicina humana, a medicina veterinária e a agricultura.

Bases genéticas dos mecanismos de resistência

A resistência adquirida ocorre numa proporção variável de isolados de uma espécie ou género, sendo também variável ao longo do tempo, e resulta da aquisição de um ou mais mecanismos de resistência.

Mutações em genes:
  • específicos ou a aquisição horizontal de genes localizados em cromossomas, e
  • no ADN móvel em plasmídeos e transposões, constituem as bases genéticas dos mecanismos de resistência adquirida (respectivamente nas proporções de 20%/80%).

De salientar que:

  • os genes contidos nos plasmídeos e transposões (nestes últimos, chamados também “genes saltitantes”), mais móveis que os dos cromossomas, podem ser adquiridos doutras bactérias, ou das células bacterianas mães às células bacterianas filhas;
  • numa mesma bactéria podem coexistir vários plasmídeos e transposões, movendo-se no genoma dum local para outro;
  • vários transposões podem aglomerar-se no mesmo plasmídeo. Movendo-se do cromossoma para os plasmídeos, permitem uma rápida disseminação de genes cromossómicos;
  • os integrões são estruturas genéticas mais recentemente reconhecidas, adquiridas através do ADN móvel. Embora não possuam mobilidade própria, encontram-se habitualmente inseridas em transposões e plasmídeos, e conferindo resistência a determinados compostos antibacterianos (por ex. compostos de amónio quaternário e sulfonamidas). Para facilidade de compreensão, têm sido comparados a “cassetes” ou “blocos” albergando genes de resistência.

Em suma, esta forma peculiar de colocação e de mobilidade de genes na célula bacteriana (quer seja eucariótica, quer procariótica – ver Glossário geral) permite a disseminação e manutenção, em simultâneo, de resistência a antibióticos de famílias independentes e com mecanismos de resistência totalmente diferentes. Este facto permite, por outro lado, compreender que uma bactéria se comporte como resistente a um antibiótico que nunca foi usado pelo paciente.

O processo de transferência horizontal de genes pode fazer-se dos seguintes modos:

  • Conjugação: processo requerendo contacto directo entre células bacterianas, com transferência de genes por intermédio de plasmídeos;
  • Transformação: processo em que a célula bacteriana integra partes do ADN do meio envolvente, englobando-as no seu genoma;
  • Transdução: processo de transferência de genes de resistência, de bactéria para outra bactéria, por acção de bacteriófagos (vírus parasitando bactérias) (ver Glossário).

Mecanismos de resistência adquirida

Os mecanismos de resistência adquirida são esquematicamente descritos no Quadro 2.

No mesmo quadro consideram-se fundamentalmente o mecanismo básico (numerado de 1. a 6.) e o modo como o mesmo actua. Para cada alínea são dados exemplos práticos.

Importa relevar, de modo genérico, por ordem decrescente, os mecanismos mais frequentemente observados:

  • inactivação enzimática do antibiótico (3. e 4.);
  • redução na quantidade de antibiótico que atinge o alvo, por impermeabilidade ou efluxo (1. e 2.);
  • modificação da bactéria-alvo do antibiótico (6.).

Sobre os mecanismos de resistência (3. e 4.), para além dos exemplos citados no Quadro, acrescentam-se os seguintes:

  • as penicilinas e as cefalosporinas, possuindo na sua estrutura molecular um anel Beta-lactâmico, sobre o qual actuam as Beta-lactamases; o resultado é a formação dum derivado inactivo – o ácido peniciloico;
  • num microrganismo (Gram-positivo ou Gram-negativo) que produza três ou quatro Beta-lactamases em pequeníssimas quantidades, estas enzimas podem inactivar, por hidrólise, milhões de moléculas do antibiótico possuindo anel Beta-lactâmico;
  • importa referir também que poderá haver transferência de Beta-lactamases duma bactéria ou estirpe, para outra (por ex. Klebsiella pneumoniae e Enterobacteriaceae).

QUADRO 2 – Mecanismos de resistência adquirida a antibióticos

MECANISMO MODO EXEMPLO
1. Restrição da entrada do antibiótico Alteração da permeabilidade da parede celular (alteração nas porinas) As bactérias Gram-negativas possuem uma membrana externa protectora que pode ser utilizada para impedir a entrada do antibiótico
2. Eliminação do antibiótico Utilização de bombas de efluxo ao nível da parede celular para remover o antibiótico do interior da célula Algumas estirpes de Pseudomonas produzem bombas para eliminar diferentes antibióticos como as fluoroquinolonas, Beta-lactâmicos, cloranfenicol e trimetroprim
3. Destruição do antibiótico Produção de enzimas que hidrolisam o antibiótico Klebsiella pneumoniae produzindo carbapenemases tornam a bactéria resistente aos carbapenemes e muitos outros Beta-lactâmicos
4. Alteração do antibiótico Utilização de enzimas que diminuem a eficácia do antibiótico Estirpes de Staphylococcus aureus adicionando determinados componentes aos aminogicosídeos, alteram a função destes
5. Contorno dos efeitos do antibiótico Desenvolvimento de vias metabólicas acessórias que substituem as afectadas pelo antibiótico Algumas estirpes de Staphylococcus aureus podem compensar os efeitos do trimetropim
6. Modificação do alvo do antibiótico Alteração da estrutura do alvo específico, o que diminui ou inibe a afinidade do antibiótico com o alvo Mutações nos genes que codificam a girase podem condicionar a actividade das fluoroquinolonas

Notas finais

Tratando este capítulo da abordagem de um tema complexo, importa chamar a atenção do clínico prático para as seguintes notas:

  1. Os antibióticos podem matar bactérias, mas não tratam doenças.
  2. Os antibióticos não substituem a necessidade de correcção de anomalias na respiração, oxigenação, volémia, equilíbrio hidoelectrolítico, de drenagem cirúrgica, etc..
  3. Os microrganismos são seres vivos que evoluem a um ritmo muito rápido e, havendo vias possíveis para rodear as defesas naturais, descobrem-nas e tiram vantagens delas.
  4. Todo o ser vivo pode adquirir resistência a agentes agressores, mas nada na natureza iguala a resistência que as bactérias podem desenvolver em relação aos antibióticos.
  5. A ineficácia da antibioticoterapia poderá ser explicada não somente pela resistência bacteriana; outros factores poderão estar em causa, como o estado metabólico do organismo ou a capacidade de as bactérias produzirem um biofilme permitindo a sobrevivência frente a antimicrobianos activos e escapando à acção dos neutrófilos. (Pita Groz Dias & Paula Valente, 2000)

GLOSSÁRIO  

 Bacteriófago ou Fago > Qualquer vírus que infecta as bactérias e as pode destruir (bacteriólise). Os bacteriófagos apresentam uma grande especificidade não só para determinado grupo de bactérias, mas também para uma espécie ou mesmo uma estirpe de bactérias.

Farmacocinética > Parte da Farmacologia relacionada com a “mobilidade e o trajecto” do fármaco no organismo (absorção, distribuição, metabolismo associado ao papel de enzimas, e excreção); trata-se de processo dependente de genes. 

Farmacodinâmica > Parte da Farmacologia que tem por objecto o estudo da acção exercida pelos agentes medicinais sobre o organismo são. 

Farmacogenética > Estudo das variações interindividuais na sequência do ADN com as quais se relacionam diversas respostas a determinados fármacos.

Farmacogenómica > Termo mais lato que Farmacogenética designando o modo como as determinantes genéticas afectam a resposta individual à medicação.

Microbiologia > No sentido lato, Ciência que estuda os seres vivos de dimensões microscópicas. Compreende diversas áreas como a Taxonomia (ou Sistemática) que aborda aspectos da classificação, nomenclatura e identificação dos microrganismos. (ver Glossário Geral)

Plasmido ou plasmídeo > Molécula circular de ADN que se replica independentemente do cromossoma e cujos genes codificam várias funções, inclusivamente a resistência aos antibióticos. Os genes dos plasmídeos são mais móveis que os genes dos cromossomas e mais facilmente transferidos entre bactérias da mesma espécie e de espécies diferentes.

Prevenção > Conjunto de meios médicos, médico-sociais e ambientais para salvaguardar a saúde dos indivíduos sãos, evitando doença (prevenção primária), impedindo um agravamento (prevenção secundária), ou evitando sequelas tardias (prevenção terciária) de modo a propiciar, tanto quanto possível, vida próxima do normal. Trata-se de um conceito mais lato que o de profilaxia.

Profilaxia > Método de prevenção ou protecção dirigido contra uma doença através do emprego de substância (por ex. fármacos, vacinas, imunoglobulinas, etc.). Trata-se dum conceito mais restrito que o de prevenção.

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Importância do problema e definições

No âmbito da clínica pediátrica hospitalar ou extra-hospitalar, a prevenção, vigilância e contenção (ou controlo) das infecções constituem um objectivo fundamental, implicando o envolvimento de todos os profissionais de saúde e familiares (e a responsabilidade de cada um). Para tal, torna-se imprescindível que exista um sistema de saúde pública eficaz, eficiente e efectivo, um programa de imunizações universal, e um plano (nacional e institucional) que permita prevenir a transmissão de infecções de criança a criança, de criança a adulto, e de adulto a criança, quer nas instituições hospitalares, quer noutras unidades de saúde.

Daqui nasce a noção de infecções associadas à prestação de cuidados de saúde (sigla corrente: IACS) que se refere às infecções adquiridas durante o internamento em hospital ou no decurso da prestação de cuidados numa instituição de saúde extra-hospitalar.

Como existe maior probabilidade de determinado doente adquirir infecção em ambiente hospitalar, habitualmente utiliza-se como sinónimo de IACS o termo no sentido estrito – infecção nosocomial, que significa hospitalar (palavra derivada do grego nosokómos ou hospital); tal pressupõe que, na data de admissão, determinada doença infecciosa não estava presente, nem em período de incubação. Infecções adquiridas na comunidade são as que se verificam na data de internamento hospitalar (isto é, adquiridas anteriormente à observação do doente em unidade de saúde, hospitalar ou não).

De acordo com estudos epidemiológicos, calcula-se que cerca de 3-5% de crianças internadas em hospitais adquirem infecções nosocomiais (IN) (ver adiante). O problema adquire maior importância pela maior incidência, nas unidades de cuidados intensivos; contudo, e de acordo com a noção antes expressa, as infecções podem também surgir após permanência em serviços de urgência, nos gabinetes de consulta intra e extra-hospitalares, assim como em unidades de cuidados continuados e, até em ambiente domiciliário (por exemplo doentes submetidos a nutrição parentérica e a tratamentos por via IV com cateter, submetidos a ventilação domiciliária, a tratamentos com aerossóis, etc.).

No âmbito deste tipo de infecções são englobadas as infecções ocupacionais nos profissionais de saúde.

Definido o conceito de IACS, cabe especificar que a infecção poderá:

  • ser localizada ou sistémica;
  • resultar de reacção adversa à presença de agente(s) infeccioso(s) ou da(s) sua(s) toxina(s);
  • ser eventualmente detectada após alta de instituição hospitalar ou extra-hospitalar;
  • ser admitida como hipótese se surgir > 48 horas após a admissão hospitalar.
  • ser endémica (mais comum, de ocorrência expectável na instituição); ou
  • ser epidémica (ocorrendo sob a forma de surtos, definidos como um aumento, acima da taxa média de incidência, de determinada infecção ou de determinado microrganismo infectante).

Não é considerada IACS:

  • a colonização (presença de microrganismos na pele ou mucosas, feridas abertas ou secreções) não associada a sintomas ou sinais clínicos adversos);
  • a inflamação (resposta tecidual à lesão ou estimulação por agentes não infecciosos, como químicos ou físicos).

Em suma, as IACS constituem um problema de saúde pública que importa prevenir, tendo em conta, nomeadamente, a morbilidade e mortalidade que comportam, e o impacte económico e social pelos custos acrescidos em relação com a necessidade de prestação de cuidados mais prolongada, e pelo absentismo laboral dos prestadores de cuidados. Quanto menor a frequência daquelas, mais precária se considera a qualidade dos cuidados de saúde prestados à comunidade.

Nota importante: neste capítulo são empregues indiferentemente as siglas IN e IACS.

Etiopatogénese

No âmbito da prestação de cuidados de saúde, em regime hospitalar ou extra-hospitalar, vários factores podem ser determinantes de infecção: factores de susceptibilidade do hospedeiro (lesões da pele congénitas ou adquiridas, queimaduras, úlceras e escaras de decúbito, má-nutrição, etc.), manobras invasivas, antibioticoterapia, utilização de cateteres ou outro equipamento, e exposição: – a outros doentes; – a pessoas que visitam os doentes; – a profissionais de saúde; ou – a prestadores de cuidados, incluindo familiares, portadores de doenças infecciosas, adquiridas na instituição de saúde e não na comunidade. Especificando alguns pontos importantes:

  • determinadas doenças subjacentes e terapias várias podem alterar a imunidade, predispondo a infecção;
  • as manobras invasivas permitem o acesso de patogénios vários à corrente sanguínea e, por outro lado, alteram as barreiras mecânicas de defesa natural contra aqueles;
  • determinados “corpos estranhos” para o organismo, tais como sondas de drenagem, cateteres e dispositivos de bypass constituem local de atracção e adesão para microrganismos, podendo obstruir orifícios naturais como as trompas de Eustáquio;
  • os antibióticos podem alterar o microbioma intestinal, facilitar a colonização por agentes microbianos resistentes e comprometer a função hematopoiética.

No que respeita à transmissão de microrganismos, a mesma pode fazer-se por diversas vias, sendo as mãos a mais frequente e mais importante.

Tratando-se de IACS, são as mãos não correctamente lavadas dos prestadores de cuidados, das visitas, ou doutras crianças, que podem veicular o patogénio hospitalar ou institucional para o doente assistido.

Outros possíveis transmissores, reservatórios de bactérias, são: equipamento médico (estetoscópio, otoscópio, termómetro contactando com mucosas), bata e gravata, anéis, brinquedos não submetidos a lavagem e desinfecção, equipamento manuseado pelos prestadores ou visitas, como o rato do computador, livros em geral, lista telefónica, telefones, etc..

Alguns microrganismos são transmitidos por via aérea, como vírus da varicela, do sarampo, e Mycobacterium tuberculosis. A água e alimentos podem também ser agentes de transmissão.

Os agentes infecciosos mais comuns de IACS, diversos dos que originam infecções na comunidade, são: vírus sazonais [na época de Inverno, vírus respiratórios (influenza, parainfluenza, VSR) e, durante o Verão, enterovírus], Staphylococcus e bacilos gram-negativos. Fungos, parasitas e bactérias resistentes são causas frequentes de infecção em casos de doentes com imunodeficiência congénita ou adquirida, submetidos a terapia intensiva e requerendo internamento prolongado. Staphylococcus coagulase negativo (SCN) e Enterococcus, mais frequentes na idade pediátrica do que em adultos, são agentes prevalentes em unidades de hemato-oncologia e UCIN, geralmente em relação com cateteres centrais. Nas UCIP, Streptococcus viridans, Gram-negativos entéricos e não entéricos, Bacillus spp, SCN e S. aureus são os principais agentes.

De acordo com estudos epidemiológicos recentes em UCIP, considerando a resistência aos antimicrobianos, a proporção de estirpes Staphylococcus aureus meticilina-resistente (SAMR) é menor na população pediátrica; contudo, a resistência de SCN e a multirresistência dos bacilos gram-negativos são semelhantes às observadas em adultos.

As infecções fúngicas (particularmente por Candida spp e Aspergilus spp) embora menos frequentes, constituem um problema crescente.

Aspectos epidemiológicos

Em unidades de cuidados intensivos (UCI), considerando todas as idades, a frequência de IN varia entre 5-10%. Em clínica pediátrica, considerando as infecções nosocomiais propriamente ditas, a incidência global de IN varia entre 2 e 12%, com uma grande discrepância em relação à idade (7-9% no 1º ano de vida, contra 1,5-4% após 10 anos de idade) e tipo de unidade de internamento (3-26% em UCI contra 1-4% em enfermarias de pediatria geral). No período neonatal, o baixo peso de nascimento e o sexo masculino (relação M/F de 1,7/1) estão associados a um risco aumentado de IN.

Na idade pediátrica, os problemas clínicos mais comuns relacionados com IACS são: infecções respiratórias, gastrintestinais, infecções urinárias, infecções da pele e, designadamente, de ferida operatória, e bacteriémia (esta última,

geralmente associada a cateter venoso central). De acordo com dados da literatura, as gastrenterites, sobretudo por rotavírus, correspondem a ~10% dos casos de IN em enfermarias de pediatria geral.

Relativamente a Portugal, num inquérito nacional de prevalência, realizado em Maio de 2003, envolvendo 67 hospitais e 16.373 doentes, identificou uma prevalência de 8,4% de doentes com IACS e uma prevalência de 22,7% de doentes com infecção adquirida na comunidade (taxas semelhantes às verificadas na maioria dos estudos internacionais).

Considerando os casos internados em UCIP, surgem como mais frequentes: – pneumonia (casos submetidos a ventilação mecânica); – infecção urinária (associadas a algaliação); – infecção de ferida operatória; – rinossinusite em crianças com entubação traqueal ou nasogástrica); – flebite e endocardite associadas a cateterismo venoso; e – bacteriémia (mais frequente em RN e doentes hemato-oncológicos).

Manifestações clínicas e políticas de vigilância

Em todos os doentes hospitalizados por doença não febril, nos quais surja quadro febril, deverá proceder-se a investigação no sentido de detectar eventual IN. Nesta perspectiva, há que ter em atenção:

  • ao aparecimento de determinados sinais e sintomas podendo indiciar infecção sistémica: febre, taquicárdia, taquipneia, exantema, prostração (no lactente: febre ou hipotermia, episódios de apneia, bradicárdia, letargia ou vómitos);
  • à possível relação entre os antecedentes/tipo de procedimento recentemente efectuado, sintomatologia, e resultados de exames complementares realizados em função desta; por ex. disúria/piúria, algaliação;
  • à urocultura positiva por Candida spp – infecção urinária; cateterismo venoso central – febre;
  • à hemocultura positiva – bacteriémia; febre e sinais auscultatórios de alveolite – entubação traqueal – sinais radiológicos de condensação pulmonar, baixa saturação tc em oxigénio – pneumonia, etc..

Tendo em consideração a probabilidade de surgimento de IACS em doentes assistidos nos hospitais, numa perspectiva preventiva de vigilância das infecções, foram criados:

  • a nível nacional, o chamado Programa Nacional de Controlo da Infecção; e
  • nos hospitais, Comissões de Controlo da Infecção (CCI). Estas (CCI) são grupos multidisciplinares institucionais que definem políticas de prevenção, procedem à colheita de dados epidemiológicos que são discutidos e avaliados, e investigam as circunstâncias e factores de eventuais surtos surgidos;
  • idealmente, as mesmas devem debruçar-se também sobre a vigilância de âmbito extra-hospitalar da área de influência do hospital em causa.

De acordo com os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) são utilizados determinados critérios na vigilância epidemiológica das IACS; os mesmos baseiam-se em parâmetros clínicos e biológicos permitindo identificar aproximadamente 50 potenciais locais de infecção. Os critérios simplificados para as infecções mais comuns apresentam-se no Quadro 1.

QUADRO 1 – Critérios simplificados para a vigilância de IACS

Tipo de infecção nosocomial  Critérios simplificados
(Adaptado de Ducel G, et al, 2002)
Infecção de IACS Qualquer exsudado, abcesso ou celulite em expansão no local de intervenção cirúrgica, durante o primeiro mês após a mesma
Infecção urinária Urocultura positiva (≤2 estirpes) com, pelo menos, 105 bactérias/mL, com ou sem sintomas
Infecção respiratória Dois ou mais sinais de disfunção respiratória surgindo durante o internamento: tosse, expectoração purulenta, infiltrado de novo na radiografia do tórax compatível com infecção
Infecção do cateter vascular Inflamação, linfangite ou exsudado no local de inserção do cateter
Sépsis Febre ou calafrio em associação a pelo menos, 1 hemocultura positiva

Tratamento

O tratamento inclui fundamentalmente:

  • administração empírica de antibióticos de largo espectro (de acordo com padrões de resistência locais, se possível), de antivíricos e/ou de antifúngicos;
  • tratamento das complicações (como choque, insuficiência respiratória, disfunção multiorgânica, etc.), muitas vezes com necessidade de internamento em UCIP, o que implica apoio multidisciplinar;
  • remoção/substituição de material potencialmente contaminado (cirúrgico, cateter central, algália, entre outros) quando possível.

Nota importante: Nas UCIP em que existe elevada prevalência de microrganismos resistentes, na data de admissão de qualquer doente é rotina proceder ao rastreio de SAMR, através de colheitas de produtos e culturas nos seguintes locais: narinas, feridas ou lesões cutâneas, cateteres e sondas de traqueostomias (e região umbilical no RN). Se se demonstrar que o doente está colonizado com SAMR, o mesmo deverá ficar em área de isolamento e submetido a tratamento para erradicar a colonização. Esta estratégia pode ser aplicada a outros microrganismos em idêntica circunstância.

Prevenção

A prevenção das IACS assenta numa abordagem multidisciplinar e integrada, com o objectivo de limitar a transmissão de microrganismos. A propósito das manifestações clínicas, chamou-se já a atenção do papel das CCI na vigilância.

Como pontos fundamentais das estratégias utilizadas, salientam-se:

  • lavagem adequada das mãos e utilização de luvas descartáveis por todos prestadores de cuidados (profissionais de saúde, familiares, voluntários, outras pessoas, etc.);
  • utilização de barreiras (bata, máscara, óculos de protecção);
  • cuidados de assepsia, designadamente nos locais de penetração ou contacto de material estranho e nos cuidados com as feridas operatórias;
  • desinfecção e esterilização do material utilizado;
  • protecção do doente através de nutrição adequada, imunização e utilização de antibioticoterapia profiláctica, quando houver indicação;
  • isolamento do doente infectado com os objectivos de evitar a disseminação da doença, e de simultaneamente o proteger doutras infecções;
  • limitação do risco de infecção endógena (da microbiota do próprio doente), seleccionando criteriosamente a antibioticoterapia;
  • redução ao mínimo indispensável os procedimentos invasivos;
  • prevenção da infecção nos profissionais de saúde (e voluntários) – rastreios periódicos, imunização, etc.;
  • aplicação de boas práticas de prevenção da infecção através de acções sistemáticas e periódicas de formação contínua dirigidas a prestadores de cuidados (profissionais de saúde ou não).

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Definição e etiopatogénese

Exantema define-se como uma erupção cutânea, localizada ou generalizada, que pode surgir num vasto leque de doenças de etiopatogénese diversa (infecciosa, alérgica ou autoimune). Contudo, em Pediatria, quando nos referimos a doenças exantemáticas falamos de um grupo relativamente restrito de doenças infecciosas que se manifestam, na maioria das vezes, por exantema associado a febre (exantema febril). As doenças exantemáticas “clássicas”, descritas no início do século XX, são o sarampo, a escarlatina, a rubéola, o eritema infeccioso e o exantema súbito. No entanto, muitos outros agentes infecciosos são causa frequente de exantema, tais como enterovírus, adenovírus, vírus da varicela, VEB, Staphylococcus aureus e Rickettsia spp.

Algumas destas doenças têm um carácter sazonal mais ou menos acentuado. As infecções por enterovírus são mais comuns no Verão e início de Outono; por vírus da varicela-zóster no Inverno e Primavera; por parvovírus B19 no fim do Inverno e Primavera; por Rickettsia spp na Primavera e Verão. As infecções por VEB e HHV 6 e 7 ocorrem durante todo o ano. Antes do uso generalizado da vacina os surtos de sarampo e rubéola eram mais comuns na Primavera.

As lesões podem ser resultantes de infecção da derme (sarampo, varicela, doença por enterovírus), de lesão do endotélio vascular (riquetsiose), de efeitos de toxinas circulantes (S. pyogenes, S. aureus), de resposta imunológica do hospedeiro (parvovírus B19) ou da combinação de vários factores.

Os exantemas, o problema de expressão cutânea mais frequente na idade pediátrica, são na sua maioria causados por infecções víricas, de transmissão horizontal, pessoa a pessoa.

Aspectos epidemiológicos

Estudos de seroprevalência mostram que a grande maioria destas infecções ocorre até ao final da adolescência. Em Portugal, a ampla cobertura vacinal contra o sarampo e a rubéola levou a um quase desaparecimento da sua incidência. No que respeita a Doenças de Declaração Obrigatória, nos anos de 2009 a 2012 foram notificados à DGS, até aos 15 anos de idade, seis casos de rubéola, dois casos confirmados de rubéola congénita, cinco casos de sarampo (importados de outros países) e 208 casos de febre escaro-nodular.

Quanto a outras doenças como varicela, enterovírus ou infecção por parvovírus B19, não de declaração obrigatória, não existem estudos representativos da população nacional para avaliar a sua incidência em função da idade. No entanto, no inquérito serológico nacional efectuado em 2002, 94% dos indivíduos dos 15 aos 19 anos apresentavam evidência serológica de infecção anterior por varicela. Na Europa e nos Estados Unidos nos últimos têm ocorrido vários surtos de sarampo sobretudo em populações não vacinadas.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Na avaliação da criança previamente saudável com exantema febril, a abordagem clínica com base na anamnese e exame objectivo é fundamental para se estabelecer o diagnóstico etiológico. Este tem implicações óbvias na atitude terapêutica a tomar e, nalguns casos, igualmente de extrema importância na programação de medidas atempadas de controlo epidemiológico.

No contexto epidemiológico importam: a idade, o estado vacinal (por ex. podendo apoiar a exclusão de diagnóstico de sarampo ou rubéola); o contacto com animais (febre escaro-nodular); contacto familiar ou na escola com casos de doença já diagnosticada (escarlatina, adenovírus, enterovírus); história de viagens, doença exantemática prévia, etc..

Quanto à história da doença actual, determinados aspectos devem ser inquiridos e/ou observados com rigor: O exantema foi precedido por um pródromo febril de alguns dias? Foi a primeira manifestação da doença (rubéola, escarlatina) ou surgiu após o desaparecimento da febre (exantema súbito)? Estão presentes sinais patognomónicos ou sugestivos da etiologia (manchas de Koplik no sarampo, tache noire na febre escaro-nodular, amigdalite eritemato-pultácea na escarlatina ou mononucleose infecciosa)? A natureza da lesão elementar: mácula – sem relevo na superfície cutânea; pápula – com relevo e sem conteúdo líquido; vesícula, bolha ou pústula – com relevo e com conteúdo líquido; petéquias ou sufusões hemorrágicas. Na presença de exantema maculopapular é útil verificar se existe um fundo eritematoso que atinge toda a superfície cutânea da zona afectada (escarlatiniforme); se as manchas são confluentes e de tom vermelho escuro (morbiliforme), ou róseo, discreto e não confluente (rubeoliforme). Por sua vez, na febre escaro-nodular, as lesões são mais dispersas e algumas são nodulares. A topografia das lesões: atingimento do couro cabeludo e mucosas na varicela ou das palmas e plantas na febre escaro-nodular e enterovírus. A presença de prurido (eritema infeccioso, rubéola no adolescente e o exantema vírico por enterovírus e adenovírus) e a descamação ulterior ao exantema (furfurácea no sarampo, em dedos de luva na escarlatina e doença de Kawasaki) são elementos importantes.

Os exames complementares têm interesse limitado uma vez que o diagnóstico é essencialmente clínico. No entanto, por vezes podem dar-nos algumas indicações (leucocitose com neutrofilia na escarlatina, neutropenia no exantema súbito, presença de linfócitos atípicos na mononucleose infecciosa).

As serologias têm interesse para a confirmação do diagnóstico, sobretudo nas situações em que tal é importante por motivos epidemiológicos ou pela presença de complicações. Nos últimos anos, a utilização mais generalizada das técnicas de biologia molecular contribuiu para a confirmação do diagnóstico etiológico em situações menos típicas e/ou de maior relevância clínica.

O Quadro 1 sintetiza as principais características clínicas e biológicas de doenças exantemáticas surgindo classicamente em idade pediátrica, algumas das quais são objecto de abordagem em capítulos próprios. No Quadro 2 são descritos os tipos de exantema associados a doenças infecciosas e a outras situações não infecciosas. Nas Figuras 1 e 2 são exemplificados aspectos de exantema petequial e morbiliforme.

Tratamento e medidas de controlo epidemiológico

Apenas na escarlatina e na febre escaro-nodular é necessária antibioticoterapia. Com a escarlatina, o sarampo e a rubéola existe risco de contágio, obrigando por isso a evicção escolar. A febre escaro-nodular, o sarampo e a rubéola são doenças de declaração obrigatória. (Consultar Anexos)

QUADRO 1 – Doenças exantemáticas – Características clínicas.

PI – período de incubação; PCR – reacção de polimerase em cadeia/técnica molecular

Doença/AgenteClínicaExantemaDiagnósticoComplicações
Sarampo
Paramixovírus
Febre alta, tosse, coriza e conjuntivite; manchas de Koplik na mucosa oral antes do início do exantemaAo 4º/5º dia de doença; maculopapular confluente com progressão cefalo-caudal; descamação furfurácea e coloração acobreadaClínico; Serologia; PCROtite, pneumonia, laringotraqueíte, encefalite, panencefalite esclerosante subaguda, morte
Rubéola
Togavírus
Febre baixa ou ausente, adenopatia cervical posterior ou occipitalPrimeira manifestação, macular discreto, não confluente, fugaz, progressão cefalocaudal pode ser pruriginosoClínico; SerologiaSíndroma da rubéola congénita, encefalite, poliartralgia, artrite
Escarlatina
Streptococcus β-hemolítico do grupo A
Febre alta com amigdalite eritemato-pultácea e enantema do palato, língua saburrosa e adenomegalias cervicaisInício simultâneo com a febre, eritematoso, puntiforme, sem intervalos de pele sã, áspero, mais intenso nas pregas cutâneas, palidez peribucal; descamação foliácea dos dedos na 2ª ou 3ª semanaCultura de exsudado faríngeo; Pesquisa de antigénioAbcesso retro amigdalino; sépsis, miocardite, febre reumática; glomerulonefrite aguda
Exantema súbito
Herpes vírus 6
Herpes vírus 7
Mais frequente no lactente, febre alta por 3-4 dias antes do exantemaInício após normalizar a temperatura, macular ou maculopapular, róseo, centrífugo, dois a três dias de duraçãoClínico, serologia e PCRConvulsões febris; doença disseminada em imunocomprometidos
Eritema infeccioso
Parvovírus B19
Sintomas gerais; por vezes dois a três dias de febre e intervalo livre de sete diasExantema eritematoso da face, geográfico da superfície extensora dos membros; pode recorrer por várias semanasClínico, serologia e PCRHidropisia fetal, artrite; crise aplásica, infeção crónica em imunocomprometidos
EnterovírusFebre, faringiteMaculopapular, morbiliforme ou petequial; pode atingir palmas e plantas (Coxsackie)Clínico, serologia, PCRMeningite, miocardite
Vírus Epstein-BarrFebre, cefaleias, edema palpebral, amigdalite exsudativa, adenomegalias, hepatosplenomegaliaMaculopapular ou urticariforme; atinge mais o troncoClínico, serologia, PCRObstrução respiratória, ruptura esplénica, síndroma hemofagocítica; associado a linfoma
VaricelaFebreTipicamente com máculas, pápulas, vesículas, pústulas e crostas, pruriginoso, progressão cefalocaudal, atinge couro cabeludo e mucosasClínico, serologia, PCRSobre infecção bacteriana das lesões, piomiosite, fascite, encefalite, cerebelite
Febre escaro-nodular
Rickettsia conorii
Contacto com cães, febre alta com mialgias e mal-estar geral“Tache noire”; exantema nodular disperso; não poupa plantas e palmasClínico; SerologiaPneumonia, flebite; encefalite, miocardite

QUADRO 2 – Tipos de exantema em doenças infecciosas e não infecciosas.

Nota: Outras situações como infecções por Mycoplasma, sífilis, blastomicose, dengue, doença de inclusões citomegálicas, dermatomicoses, etc. podem estar associadas a erupção, a qual está enquadrada em sintomatologia mais relevante.
Erupção maculopapular ou punctiforme
    • Infecciosa: sarampo, rubéola, exantema súbito, eritema infeccioso, escarlatina, riquetsioses, doença meningocócica, toxoplasmose, infecções por enterovírus, mononucleose infecciosa
    • Não infecciosa: queimadura solar, miliária, eritema tóxico, erupções por fármacos
Erupção pápulo-vesicular
    • Infecciosa: varicela-zóster, herpes simplex, varíola, eczema herpeticum, eczema vacinatum, infecções por enterovírus, riquetsioses, impétigo, molusco contagioso, dermatite herpetiforme.
    • Não infecciosa: picada de insecto, estrófulo, erupções por fármacos.

FIGURA 1. Aspecto de exantemas: A – máculo-papuloso; B – petequial. (NIHDE)

FIGURA 2. Aspecto de exantema morbiliforme (caso de sarampo). (NIHDE)

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Definições e aspectos epidemiológicos

Na idade pediátrica a febre é uma das causas mais frequentes de recurso aos serviços de saúde (10-30% das visitas a consultas e 25-30% das visitas aos serviços de urgência). Os episódios febris são mais frequentes entre os 3 e os 36 meses. Neste período, a média de episódios febris agudos oscila entre 4 a 6 por ano. Não há diferenças significativas relativamente ao sexo ou condição económica. As doenças febris em crianças são causadas na sua maioria por vírus; porém, estima-se que em 5% dos casos a causa poderá ser uma infecção bacteriana.

Nos últimos anos, com a introdução das vacinas conjugadas contra Haemophilus influenzae tipo b (Hib), Neisseria meningitidis do serogrupo C e Streptococcus pneumoniae (para 13 serótipos), o panorama geral relacionado com quadros febris em crianças pequenas (sobretudo entre os 3 e 36 meses) requerendo actuação especial melhorou substancialmente.

A este respeito importa definir um conjunto de conceitos:

  1. A febre surge como resposta a um estímulo patológico com produção de pirogénios endógenos que actuam no centro termorregulador.
    Existem várias definições de febre; segundo a mais consensual, febre é o aumento da temperatura corporal acima da variação da temperatura normal diária de um indivíduo. Depreende-se assim que o valor da temperatura corporal a partir do qual se considera febre pode ser variável; concretizando, na prática diz-se que o paciente tem febre quando a temperatura rectal é > 38ºC, auricular > 38,2ºC ou axilar > 37,5ºC.
  2. O termo febre sem foco (de infecção localizável) refere-se às situações de febre com duração inferior ou igual a 7 dias numa criança sem evidenciar sinais compatíveis com sépsis, e em que a anamnese ou o exame físico não permitem detectar a sua etiologia.
  3. A bacteriémia oculta é um processo febril em que a criança não evidencia clinicamente sinais de gravidade compatíveis com sépsis, mas em que se detecta crescimento de bactérias no sangue.
  4. A designação de febre de origem indeterminada refere-se à presença de febre com duração superior a 3 semanas, sem etiologia identificável após realização de anamnese, exame objectivo e exames complementares de diagnóstico ou após uma semana de hospitalização e avaliação.

Em cerca de 20% dos casos com quadro febril agudo, não é possível identificar um foco infeccioso após cuidado exame objectivo. Neste sentido, perante uma criança febril a principal atitude é excluir uma infecção bacteriana potencialmente grave (sépsis, pneumonia, artrite séptica, osteomielite, celulite, pielonefrite, meningite, gastrenterite aguda bacteriana), tendo em conta a sua idade e o seu estado de imunização.

Neste grupo de crianças, as infecções do tracto urinário representam a infecção bacteriana mais frequente, com uma prevalência que varia entre 5% a 7%.

O número de casos de meningite bacteriana também tem diminuído, muito devido à generalização da vacinação (anteriormente referida) contra o Hib, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis (serogrupos C e B). O mesmo aconteceu com as bacteriémias ocultas em crianças febris entre os 3 e 36 meses de idade (diminuição de 5% para 1%.

A pneumonia sem sintomas ou sinais respiratórios é causa pouco provável de febre sem foco, embora existam estudos demonstrando que nos lactentes com febre > 39ºC e leucocitose ~20 000/μL, a incidência de pneumonia poderá atingir o valor de 19%.

Este capítulo incide sobre as crianças com febre sem foco de idades entre os 3 e 36 meses, grupo etário que comporta maior risco de infecção bacteriana potencialmente grave. Excluem-se desta análise as crianças que necessitam de uma abordagem individualizada – crianças com sinais compatíveis com sépsis, recém-nascidos com sépsis neonatal precoce, e crianças com imunodeficiências primárias ou adquiridas, ou com doenças crónicas.

Etiopatogénese

O aparecimento de febre resulta da libertação de pirogénios endógenos para a circulação como resultado, na maioria das vezes, de infecções; uma proporção mais restrita poderá resultar de causas não infecciosas, tais como disfunção do SNC, febre neoplásica, condições inflamatórias crónicas, febre medicamentosa ou recções às imunizações. Na presença de uma infecção, os agentes e toxinas microbianos actuam como pirogénios exógenos; estes estimulam a libertação de pirogénios endógenos (citocinas) a partir de monócitos, macrófagos, células mesangiais, células gliais, células epiteliais, e linfócitos B: interleucina-1(IL-1), IL-6, factor de necrose tumoral (TNF) e interferões vários. Quer a proteína C reactiva (PCR), quer a procalcitonina (PCT), como reagentes da fase aguda inflamatória, são produzidos no fígado como resposta às citocinas.

Os pirogénios endógenos, atingindo o hipotálamo, promovem a libertação de ácido araquidónico que, transformado em prostaglandina E2, actua no centro termorregulador. Os antipiréticos (paracetamol, ibuprofeno, ácido acetilsalicílico), inibindo a cicloxigenase hipotalâmica, inibem a produção de prostaglandina E2.

A razão pela qual os lactentes têm um risco aumentado de infecção bacteriana grave deve-se essencialmente à imaturidade do seu sistema imunológico. Nos primeiros meses de vida existe um défice na opsonização e da função dos macrófagos e da actividade dos neutrófilos. A imunidade celular e humoral também é extremamente imatura, nomeadamente a produção de IgG específicas contra bactérias capsuladas.

A etiologia dos quadros febris infecciosos varia consoante a idade da criança.

Nos recém-nascidos (idade até 28 dias/4 semanas completas), os agentes mais prevalentes são: Streptococcus do grupo B, Escherichia coli, Listeria monocytogenes, se bem que possam também surgir infecções por agentes que surgem com maior frequência noutros grupos etários, nomeadamente Neisseria meningitidis e Streptococcus pneumoniae.

Entre os 29 dias e os 3 meses de idade estão habitualmente implicados: Streptococcus pneumoniae, Neisseria meningitidis, Salmonella spp, Haemophilus influenzae. No entanto, poderão também estar em causa germes que infectam habitualmente o RN.

Após os 90 dias e até aos 36 meses (3 anos): Streptococcus pneumoniae, Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Neisseria meningitidis, Salmonella spp, e Haemophilus influenzae.

Abordagem clínica

Por definição, a febre sem foco não se acompanha de qualquer sinal ou sintoma de localização (infecção das vias respiratórias superiores ou inferiores, infecção gastrintestinal, infecção urinária, infecção osteoarticular, infecção do SNC); por outro lado, na grande maioria das crianças existe bom estado geral. Por isso, o grande desafio do clínico é identificar quais os pacientes que comportam maior risco de infecção bacteriana potencialmente grave.

Para tentar identificar as crianças com uma infecção bacteriana potencialmente grave é imprescindível a realização de história clínica pormenorizada, incluindo anamnese e exame objectivo minuciosos.

Nas crianças mais pequenas, a anamnese propicia dados mais escassos e o exame objectivo é mais difícil. Nesta perspectiva, tentando de modo estruturado quantificar/estratificar o risco de infecção bacteriana potencialmente grave nas situações de febre sem foco, foram desenvolvidas escalas de avaliação associando critérios clínicos e valores analíticos. São exemplos as escalas de YOS (Young Infant Observation– para crianças com menos de 3 meses), Rochester, Boston, Yale ou Philadelphia. De acordo com os resultados de estudos, salienta-se que a sensibilidade e a especificidade de tais critérios é baixa.

A anamnese relativamente à criança febril deve ser sempre pormenorizada, incluindo inquirir, designadamente sobre:

  • Parto de termo ou pré-termo;
  • Doenças anteriores;
  • Imunizações (quais e quando);
  • Contexto epidemiológico, como contactos de doentes conhecidos e eventual frequência de escola ou infantário;
  • Características da febre;
  • Nível de actividade da criança desde o início da febre;
  • Repercussão eventual sobre o apetite.

O risco de haver uma infecção bacteriana potencialmente grave é menor nas crianças que nasceram de termo e previamente saudáveis. É importante caracterizar a febre: existe um maior risco de bacteriémia com temperatura mais elevada, mas não há relação com a duração da febre; a facilidade de resposta a antipiréticos também não permite distinguir quadros bacterianos de víricos.

São manifestações de possível infecção sistémica e, como tal, sugestivas de gravidade clínica, prostração e recusa alimentar.

O exame objectivo deve ser pormenorizado, valorizando, designadamente:

  • Mau estado geral compatível com quadro séptico;
  • Presença de foco infeccioso;
  • Sinais respiratórios;
  • Existência de exantema.

O estado geral da criança é um importante indicador clínico. A criança com aspecto geral séptico, nomeadamente com prostração, pouco reactiva, com bradipneia ou hiper ou taquipneia, que não estabelece contacto ocular e não sorri, tem maior probabilidade de ter uma doença grave do que a criança que evidencia bom estado geral. A má perfusão periférica, a pele marmoreada e cianose são também indicadores de maior gravidade.

A existência de exantema é importante: lesões petequiais ou purpúricas surgem na sépsis meningocócica e, mais raramente, em infecções por Haemophilus influenzae. O exantema macular que surge precocemente em relação ao início da febre pode igualmente ser sinal de sépsis; por isso, torna-se obrigatório determinar a cronologia do aparecimento das lesões cutâneas.

A pneumonia pode manifestar-se apenas por taquipneia ou sinais de hipoxémia; por conseguinte, não deve excluir-se infecção das vias respiratórias inferiores pela ausência de sinais de dificuldade respiratória ou de ruídos adventícios através da auscultação pulmonar.

O exame objectivo completo deve incluir a medição da frequência respiratória e a determinação da saturação transcutânea em O2 (SpO2), especialmente nos recém-nascidos e pequenos lactentes.

A observação deve identificar possíveis focos infecciosos. A presença de sinais sugestivos de infecção vírica diminui a probabilidade de existir uma doença bacteriana grave subjacente. No entanto, tal não se aplica a recém-nascidos e pequenos lactentes: efectivamente, diversos estudos revelaram igual incidência de doença bacteriana com e sem infecção vírica concomitante.

De salientar que taxas de bacteriémia são semelhantes em crianças febris com e sem otite média aguda, sem outro foco infeccioso aparente; por isso, tal achado não deve ser sobrevalorizado.

Actuação prática e exames complementares

Como regra geral pode estabelecer-se que uma criança com febre e sinais sistémicos graves deve ser imediatamente hospitalizada.

Com vista à actuação prática, específica, as crianças são classicamente divididas de acordo com a sua idade:

  1. Recém-nascidos;
  2. Lactentes com idades entre os 29 dias e os 3 meses; e
  3. Crianças com idades entre >3 e 36 meses.

     

I. Recém-nascidos

A imaturidade imunológica dos recém-nascidos constitui um factor de maior vulnerabilidade a agentes infecciosos, o que determina maior probabilidade de evolução desfavorável da doença.

Com base na avaliação estritamente clínica, em geral torna-se difícil identificar as situações de possível doença bacteriana grave. Assim, nesta faixa etária, todo o paciente deve ser abordado, até prova em contrário, como tendo uma doença bacteriana grave e sujeito a avaliação diagnóstica completa, sendo obrigatório proceder ao internamento hospitalar e à realização dos seguintes exames complementares:

  • Hemograma completo;
  • Doseamento da proteína C reactiva (PCR) e da procalcitonina (PCT);
  • Hemocultura;
  • Análise sumária de urina e urocultura;
  • Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto ou alterações na auscultação pulmonar;
  • Punção lombar, sempre que o estado clínico 
da criança o permita, para análise citoquímica, coloração Gram e exame cultural do líquido céfalo-raquidiano (LCR); pesquisa específica de diversos vírus por técnica molecular/PCR se suspeita de meningite vírica e/ou em função da clínica;
  • ALT, AST, GGT, PT, aPTT, LDH (eventualmente em função da clínica);
  • Coproculturas, se houver história de diarreia, ou de sangue ou muco nas fezes. 


Em regra, devido à elevada incidência de doença bacteriana grave e a sua elevada taxa de mortalidade se não for tratada, após a realização destes exames deve ser instituída terapêutica antibiótica empírica. Habitualmente, o tratamento inclui ampicilina e gentamicina e/ou uma cefalosporina de terceira geração (designadamente cefotaxima, sobretudo se houver sinais de doença grave ou evidência de meningite, tendo como base o resultado do exame citoquímico do LCR.

Embora o tratamento empírico com aciclovir não seja usado por rotina, a sua utilização deve ser considerada na presença de factores de risco de infecção por vírus Herpes simplex (história materna de infecção por vírus Herpes simplex, ruptura prolongada de membranas, presença de vesículas mucocutâneas, orais ou oculares, sinais neurológicos focais, falência da antibioticoterapia passadas 48 horas, elevação dos valores das enzimas hepáticas (indicadores precoce de infecção disseminada por VHS em recém-nascidos com < 2 semanas de vida) ou pleiocitose no LCR

II. Crianças com idades entre 29 dias e 3 meses

Apesar de nesta faixa etária já ser mais habitual haver sinais indiciando foco localizado de infecção, ainda é muito difícil prever se a criança tem uma doença potencialmente grave. Nesta idade, uma infecção vírica não diminui a probabilidade de doença bacteriana grave concomitante.

Porém, com a introdução de novas vacinas, nomeadamente com a vacina anti-pneumocócica conjugada, verificou-se uma diminuição da prevalência de bacteriémia oculta, tornando-se assim controversa a necessidade de hospitalização e terapêutica antibiótica em todos os lactentes nesta faixa etária. Os critérios de observação clínica mais difundidos e que não utilizam a punção lombar para estratificação do risco são os critérios de Rochester (Quadro 1). Estes critérios tentam identificar as crianças com baixo risco de infecção bacteriana, o que permite uma abordagem menos agressiva nas crianças que cumprem todos os critérios. Para uma infecção bacteriana grave, estes critérios apresentam um valor preditivo negativo de 98,9% e, para o risco de bacteriémia, um valor preditivo negativo de 99,5%.

Assim, uma vez realizados a anamnese e o exame objectivo, está indicada a realização dos seguintes exames complementares:

  • Hemograma completo
  •  Doseamento de PCR e PCT;
  •  Hemocultura;
  • Análise sumária de urina e urocultura;
  • Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto, alterações na auscultação pulmonar ou leucocitos > 20.000/mmc;
  • Punção lombar – na criança com aspecto geral séptico, não cumprimento dos critérios de Rochester ou antes de iniciar antibioticoterapia.

 

Nota

    • PCR com valor limitado para identificar lactente febril com risco de bacteriémia oculta;
    • PCT com valor > 0,5 ng/mL aumenta a probabilidade de infecção bacteriana potencialmente grave.

Assim, numa criança cumprindo todos os critérios de baixo risco ou com o diagnóstico estabelecido de pielonefrite pode protelar-se a realização da punção lombar e o início de antibioticoterapia, vigiando a evolução do quadro febril (sendo a criança obrigatoriamente reavaliada dentro de 24 horas, ou antes, se houver agravamento clínico). Contudo, é essencial avaliar previamente se os pais e/ou familiares estão capacitados para identificar eventual agravamento do estado clínico da criança, e se existe fácil acesso à instituição de saúde.

Se a investigação levada a cabo não permitir a identificação do foco e se a criança não cumprir todos os critérios de baixo risco, a mesma deverá ser submetida a punção lombar e hospitalizada para antibioticoterapia empírica, por existir, nestas circunstâncias, risco elevado de bacteriémia oculta. O esquema de tratamento é ampicilina + cefotaxima. Deve considerar-se a administração de aciclovir caso o lactente tenha estado em contacto com algum indivíduo com infecção herpética.

A actuação nos casos de lactente vigiado em ambulatório sem antibioticoterapia instituída previamente, e cuja hemocultura é positiva, é a seguinte: – deve repetir-se a avaliação analítica; – deve proceder-se à hospitalização para antibioticoterapia endovenosa de acordo com o antibiograma.

QUADRO 1 – Critérios de Rochester

Parâmetros a avaliar
    • Bom estado geral
    • Previamente saudável (idade gestacional > 37 semanas; sem tratamento antibiótico perinatal; sem tratamento para hiperbilirrubinémia neonatal de etiologia desconhecida, sem hospitalização ou antibioticoterapia prévia, sem doença crónica conhecida)
    • Sem sinais de foco infeccioso (pele, tecido subcutâneo, osso, articulações ou ouvidos)
    • Valores laboratoriais
      • Leucócitos 5.000-15.000/mmc; relação do número absoluto neutrófilos imatutos/número absoluto de neutrófilos totais ou NANI/NANT < 0,2
      • Bastonetes no sangue periférico < 1.500/mmc
      • Sedimento urinário: < 10 leucócitos/campo
      • Se diarreia: < 5 leucócitos fecais/campo

 

III. Crianças com idades entre > 3 e 36 meses

Neste período etário será possível identificar um número significante de infecções através da anamnese e do exame objectivo; no entanto, existe ainda a possibilidade de determinados casos corresponderem a infecções ocultas: entre estas, como mais frequentes e potencialmente mais graves, citam-se a infecção urinária, a pneumonia e a bacteriémia oculta.

Neste grupo de doentes, a abordagem divide-se consoante a idade e estado de imunização:

  • Crianças com idade > 6 meses e estado vacinal actualizado (três doses de vacina anti-Hib e, pelo menos, duas doses de vacina antipneumocócica): o risco de bacteriémia é inferior a 1% sendo, por isso, recomendadas a avaliação analítica nem a antibioticoterapia empírica. Porém, porque o risco de infecção do tracto urinário se mantém, nestas crianças estão indicados: – Exame sumário da urina e urocultura (sobretudo nas raparigas com < 24 meses, nos rapazes não circuncidados com menos de 12 meses ou naqueles submetidos a circuncisão com idade inferior a 6 meses).
  • Crianças com estado vacinal desactualizado ou com idade < 6 meses: o risco de bacteriémia oculta pode ser superior a 5%, embora actualmente (após introdução da vacina anti-pneumocócica) este valor possa ser menor devido ao efeito da imunização de grupo. Nestes casos recomenda-se a realização dos seguintes exames:
    • Hemograma completo;
    • PCR e PCT;
    • Hemocultura;
    • Exame sumário de urina e urocultura (sobretudo nas raparigas com < 24 meses, nos rapazes não com idade < 12 meses, ou naqueles submetidos a circuncisão com idade < 6 meses);
    • Radiografia de tórax se leucócitos > 20.000/mmc.

Perante o diagnóstico de infecção urinária ou pneumonia, a decisão de proceder a tratamento antibiótico em regime de internamento ou em regime ambulatório dependerá de vários factores: idade da criança, estado geral, tolerância da via oral, e capacidade de os pais ou representantes assegurarem o cumprimento terapêutico.

Na hipótese de bacteriémia oculta (ausência de foco e de aspecto séptico e valor de leucócitos > 15.000/mmc, é fortemente recomendado iniciar antibioticoterapia com ceftriaxona intramuscular e reavaliar após 24 horas, uma vez que vários estudos têm demonstrado que a utilização de antibioticoterapia empírica, nas crianças não imunizadas e no contexto de febre sem foco, poderá evitar a progressão da bacteriémia para a focalização, especialmente meningite.

O resultado da hemocultura, que virá estabelecer o diagnóstico, poderá obrigar à alteração do antimicrobiano escolhido antes empiricamente, de acordo com o antibiograma relativo ao agente isolado.

Outra situação possível é a obtenção de resultado positivo da hemocultura numa criança relativamente à qual se optou inicialmente por abstenção de antibioticoterapia. A atitude neste caso é a seguinte:

  • Hemocultura positiva para S. pneumoniae: no caso de febre persistente, deve proceder-se a avaliação analítica, incluindo punção lombar. Se se verificar meningite a criança deverá ser hospitalizada e medicada com cefalosporina de 3ª geração (associada a vancomicina até confirmação da inexistência de resistência elevada à penicilina e cefalosporinas de 3ª geração). Se o LCR for estéril, pode proceder-se a antibioticoterapia oral (amoxicilina 90 mg/kg/dia) durante 7 a 10 dias em ambulatório; em caso de apirexia, há indicação para antibioticoterapia oral em ambulatório (amoxicilina 90 mg/kg/dia);
  • Hemocultura positiva para N. meningitidis ou H. influenzae tipo B: a criança deve ser hospitalizada, realizando-se avaliação analítica, incluindo punção lombar e iniciando-se antibioticoterapia endovenosa com ceftriaxona.

O tratamento das situações em que tenham sido isoladas outras bactérias, como Salmonella spp, Streptococcus – hemolítico grupo A, Staphylococcus spp, Moraxella spp e Haemophilus influenzae não-B, está menos bem definido; contudo, poderá adoptar-se o procedimento referido a propósito dos casos com isolamento de Streptococcus pneumoniae, valorizando sempre o estado clínico. Apesar de os resultados das hemoculturas serem conhecidos regra geral 24-48 horas após a colheita, é de salientar que muitas vezes o resultado, quando positivo, poderá não ter relação com o agente causal, situação que corresponde a contaminação da colheita.

Tratamento antipirético

Embora não altere a evolução da doença infecciosa de base, justifica-se o tratamento sintomático da febre alta (temperatura rectal > 38ºC), sobretudo se associada a mal-estar evidenciado por sintomatologia como gemido, prostração, hiporreactividade, etc.. Por outro lado, o abaixamento da temperatura:

  1. reduz as necessidades metabólicas;
  2. permite que a criança esteja mais desperta e com maior propensão para comer e beber líquidos – cuja ingestão deve ser estimulada – prevenindo a desidratação;
  3. diminui a probabilidade de convulsões em crianças de risco neurológico.

Com a criança despida, procede-se à passagem pelo corpo de esponja embebida em água tépida (não álcool) a temperatura < 3-4ºC relativamente à temperatura corporal, ao mesmo tempo que se administra como primeira prioridade paracetamol (oral ou rectal) na dose de 10-15 mg/kg/dose, 3 a 4 vezes por dia até máximo de 80 mg/kg/dia.

Como segunda prioridade utiliza-se o ibuprofeno (oral) na dose de 5-10 mg/kg/dose, 3 a 4 vezes por dia até máximo de 20 mg/kg/dia. Salienta-se que o decréscimo da temperatura corporal após tratamento antipirético não permite distinguir doença bacteriana grave de doença vírica menos grave.

O AAS não é recomendado na idade pediátrica como antipirético pela possibilidade de desencadear síndroma de Reye.

QUADRO 2 – Síntese da abordagem

FEBRE SEM FOCO DE INFECÇÃO LOCALIZÁVEL
Idade*Abordagem diagnóstica e terapêutica
< 1 mês
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura, punção lombar; RX do tórax e coprocultura se indicado
    • Hospitalização
    • Antibioticoterapia empírica: ampicilina 200 mg/kg/dia + gentamicina 3-5 mg/kg/dia ou ampicilina 200 mg/kg/dia + cefotaxima 200 mg/kg/dia
    • Considerar aciclovir 20 mg/kg/dose de 8/8h se suspeita de infecção por vírus Herpes simplex
1-3 meses
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura; Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto, alterações na auscultação pulmonar ou leucócitos > 20 000/mmc; Punção lombar – considerada na criança com aspecto geral séptico ou não cumprimento de factores de baixo risco para infecção bacteriana potencialmente grave
    • Avaliação clínica e/ou analítica – critérios Rochester
    • Baixo risco – Vigilância em internamento ou em ambulatório (reavaliação após 24 horas de evolução)
    • Alto risco – Vigilância em internamento e início de antibioticoterapia empírica: ampicilina 200 mg/kg/dia + gentamicina 3-5 mg/kg/dia ou cefotaxime 50 mg/kg/dia
    • Considerar aciclovir 20 mg/kg/dose de 8-8h se suspeita de infecção por vírus Herpes simplex
> 3 meses a
36 meses
Criança sem aspecto séptico, com idade > 6 meses e com vacinas actualizadas (incluido 2 doses vacina anti-pneumocócica)
    • Exame sumário de urina
    • Vigilância em ambulatório apenas com tratamento sintomático. Reavaliar às 24h
 Crianças sem estado vacinal actualizado e com idade inferior a 6 meses
    • Exame sumário de urina
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, hemocultura.
    • Considerar antibioticoterapia se leucócitos ≥ 15.000/mmc ou vigilância em internamento sem antibioticoterapia
 Crianças com aspecto séptico
    • Abordagem ABCDE
    • Tratar o choque, se indicado
    • Avaliação analítica: hemograma, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura, punção lombar (excepto se instabilidade clínica, alteração do estado de consciência ou sinais neurológicos focais); RX do tórax e coprocultura se indicado
    • Internamento
* Neste quadro, para fins práticos, procedeu-se a um arredondamento quanto à divisão em idades inicialmente estabelecida  

Conclusão

O quadro clínico designado por febre sem foco (FSF) de infecção localizável constitui uma realidade cada vez mais frequente na prática clínica pediátrica. Apesar de se ter registado uma diminuição do número absoluto de casos de bacteriémias ocultas, torna-se premente conseguir identificar e tratar precocemente tais crianças.

Para cumprir tal objectivo, ao longo do tempo têm sido elaboradas inúmeras grelhas de critérios para estratificar, caso a caso, o risco de doença bacteriana potencialmente grave. Tais critérios, contudo, vieram a revelar-se insuficientes pela introdução de novas vacinas, contribuindo para uma diminuição do risco de doença bacteriana grave no contexto do quadro de FSF.

Em suma, a decisão de investigar e, posteriormente, de tratar ou não, é do médico que observa cada criança, sabendo-se à partida que não há sinal, sintoma ou resultado laboratorial que seja por si só diagnóstico. Há, pois, necessidade de actuar com bom senso, conjugando várias circunstâncias presentes. Da acção combinada dos profissionais de saúde e dos familiares, será possível reduzir-se ao mínimo as agressões iatrogénicas às crianças.

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Definição e importância do problema

Por meningite entende-se a inflamação das membranas (meninges) que cobrem o encéfalo e a medula espinhal. A inflamação meníngea é habitualmente o resultado de infecção vírica ou bacteriana, e mais raramente fúngica; outras etiologias pouco frequentes são as neoplasias, drogas ou doenças autoimunes. Neste capítulo não será abordada a meningite crónica, nem a encefalite (inflamação do encéfalo), em que o processo inflamatório ultrapassa as meninges e atinge o tecido encefálico.

Apesar dos progressos realizados no que respeita a medidas gerais de suporte e a terapêutica antimicrobiana, as infecções do sistema nervoso central são ainda na actualidade uma importante causa de morbilidade e mortalidade na criança, sobretudo nos primeiros 3 anos de vida, período de maior incidência da doença.

Aspectos epidemiológicos

A meningite bacteriana aguda tem uma incidência global anual de 2-5 casos por 100.000 habitantes nos países ocidentais. Vários microrganismos podem ser responsáveis pela doença, sendo que o agente mais provável pode ser inferido de acordo com a idade (Quadro 1), assim como da presença de factores de risco, co-morbilidades e estado imunológico.

Nos últimos anos, verificou-se uma mudança frequente na epidemiologia das meningites bacterianas, à custa de medidas preventivas como o rastreio e tratamento de mães portadoras de Streptococcus agalactiae ou do grupo B (SGB) e a introdução de vacinas contra Haemophilus influenzae b, Streptococcus pneumoniae (vacina conjugada pneumocócica 13-valente, VCP13) e Neisseria meningitidis do serogrupo C (e recentemente do serogrupo B).

Actualmente, Neisseria meningitidis e Streptococcus pneumoniae são responsáveis por 80% dos casos em crianças imunocompetentes com mais de 4 semanas de vida. Os bacilos gram negativos (Escherichia coli, Klebsiella, Enterobacter) são responsáveis por menos de 10% dos casos.

A meningite neonatal está habitualmente relacionada com os agentes que colonizam o tracto intestinal ou genital da mãe e com a imaturidade e inexperiência imunológicas do recém-nascido (ver Parte sobre Perinatologia/Neonatologia). No entanto, as bactérias adquiridas por contacto ambiental, típicas do lactente e criança, podem também originar meningite no recém-nascido. Neste grupo etário E. coli e SGB são os agentes mais frequentes, podendo também ocorrer infecção por Listeria monocytogenes em 5-10% dos casos, segundo alguns autores.

Entre os 30 e 90 dias, os principais agentes são Streptococcus do grupo B (SGB), Neisseria meningitidis e Streptococcus pneumoniae, seguidos de microrganismos entéricos gram-negativos. Segundo os dados mais recentes publicados (Neto MT et al., 2008), entre 2001-2005 registaram-se 46 casos (19%) de meningite por SGB a nível nacional, verificando-se uma incidência de 0,54 casos de doença invasiva por SGB por cada 1000 nascimentos, sendo esta mais frequente nos primeiros 7 dias de vida (81%).

Após os 3 meses, N. meningitidis é o agente mais frequente em Portugal, sobretudo após a comercialização da vacina conjugada polissacarídea 13 valente (VCP13) contra S. pneumoniae. A nível europeu os serogrupos mais prevalentes responsáveis por doença invasiva meningocócica são o B, C e Y. Em Portugal, desde 2007, o serogrupo B é responsável pela maioria dos casos de doença invasiva meningocócica (49-92%), a qual apresenta uma incidência anual de 6,3 casos por 100.000 habitantes em crianças com idade compreendida entre 1-4 anos (20,2 casos/100.000 habitantes em menores de 1 ano de idade), entre 2003-2012, segundo Simões MJ (2014). Desde 2014 está disponível para compra a vacina de 4 componentes contra a N. meningitidis do serogrupo B.

Relativamente à doença invasiva pneumocócica, no período entre 2010-2012 registou-se uma incidência global 12,33/100.000 crianças até aos 5 anos, a qual tem vindo a diminuir, sendo mais frequente abaixo dos 2 anos (20,9/100.000). A meningite bacteriana de etiologia pneumocócica, verificou-se em 18% dos casos, sendo que em metade dos casos não havia antecedentes de VCP13.

Após a introdução da vacina contra Haemophilus influenzae b, a meningite por este agente é excepcional nos países que a introduziram nos seus programas de vacinação, tal como aconteceu em Portugal. Existem, no entanto, alguns casos esporádicos (em crianças que não tenham cumprido a primovacinação, ou com falência vacinal) em contactos com indivíduos colonizados.

Uma forma hoje rara, mas grave, de meningite bacteriana é causada por Mycobacterium tuberculosis, microrganismo que pode afectar todas as idades; a patogénese é insidiosa, condicionando em geral apresentação clínica atípica (ver capítulo respectivo).

 QUADRO 1 – Distribuição de agentes de meningite pós-neonatal por faixa etária.

Grupo etário Causas
Recém-nascidos S. agalactiae, E. coli, L. monocytogenes
1-3 meses Agentes neonatais, S. pneumoniae, N. meningitidis, H. influenzae b
3 meses – 5 anos S. pneumoniae, N. meningitidis, H. influenzae b
6 anos – adolescentes N. meningitidis, S. pneumoniae

Etiopatogénese

Os agentes responsáveis pela meningite bacteriana podem atingir as leptomeninges por:

  • via hematogénica, a mais frequente, em que as bactérias atingem as meninges através da corrente sanguínea; a mais frequente corresponde à bacteriémia com origem nasofaríngea, adquirida por contacto com portador assintomático;
  • extensão contígua de local de infecção extracerebral (por exemplo, otite média, mastoidite ou sinusite);
  • implantação bacteriana directa como complicação de intervenção neurocirúrgica na cabeça e pescoço, lesão penetrante na cabeça, fractura de crânio com fístula de LCR ou erosão osteomielítica. Nestas circunstâncias há risco acrescido de meningite recorrente, sendo que o primeiro episódio poderá não ter uma relação temporal com o traumatismo;
  • anomalias congénitas, nomeadamente defeitos de encerramento da linha média, como quistos dermóides intracranianos (associados a seio dérmico com fístula para a pele e meningite por agentes menos habituais como Staphylococcus epidermidis).

As bactérias mais frequentemente associadas a meningite (N. meningitidis, S. pneumoniae, H. influenzae) contêm uma cápsula de polissacáridos, o que permite a colonização da nasofaringe das crianças saudáveis. Uma infecção vírica intercorrente pode facilitar a penetração da bactéria através do epitélio nasofaríngeo. Atingida a corrente sanguínea, o polissacárido capsular confere resistência à opsonização pela via clássica do complemento, com consequente inibição da fagocitose, criando-se condições para bacteriémia e acesso às meninges.

A parede celular das bactérias Gram-positivas e Gram-negativas contém componentes que desencadeiam resposta inflamatória. Nas bactérias Gram-positivas o ácido lipotecóico e o peptidoglicano, e nas Gram-negativas o lipopolissacárido ou as endotoxinas, são considerados os componentes patogénicos principais. Os mediadores da resposta inflamatória incluem citocinas (TNF, IL-1, 6, 8, 10), PAF (factor activador das plaquetas), óxido nítrico, prostaglandinas e leucotrienos. Numa segunda fase, a resposta pró-inflamatória provoca lesão do espaço subaracnoideu e, posteriormente, verifica-se aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica, edema cerebral e presença de leucócitos e mediadores tóxicos no líquido céfalo-raquidiano (LCR). Uma vez lesada a barreira hematoencefálica, os microrganismos invadem o LCR.

Através do LCR há extensão do exsudado para as cisternas basais com consequente:

  1. lesão dos nervos cranianos (nomeadamente VII par, podendo condicionar surdez neuro-sensorial);
  2. obstrução da drenagem do LCR (causando hidrocefalia obstrutiva);
  3. vasculite (sendo as células endoteliais dos capilares o local principal da lesão na meningite bacteriana) e tromboflebite secundárias, responsáveis por áreas de isquémia localizadas.

À medida que aumenta a pressão intracraniana pelo edema cerebral, o fluxo sanguíneo cerebral diminui, provocando alteração do estado de consciência. Sem intervenção terapêutica, o ciclo de diminuição do fluxo sanguíneo cerebral, intensificação do edema e aumento da pressão intracraniana mantém-se, condicionando maior lesão endotelial com vasospasmo e trombose, maior compromisso do fluxo sanguíneo cerebral e estenose dos grandes e pequenos vasos; ulteriormente surge, como consequência, hipotensão sistémica (choque séptico) e lesão difusa do sistema nervoso central.

Os componentes ou produtos patogénicos bacterianos são libertados no LCR, não só no decurso da multiplicação bacteriana, mas especialmente quando há lesão destrutiva da parede celular, sendo que a terapêutica antimicrobiana leva a libertação significativa de mediadores de resposta inflamatória.

 Factores de risco

  • Idades inferior a 5 anos, e principalmente inferior a 2 anos.
  • Na criança de idade inferior a 5 anos são factores de risco acrescido: diabetes mellitus, insuficiência renal ou suprarrenal, hipoparatiroidismo, fibrose quística, desnutrição.
  • Defeitos imunitários congénitos.
  • imunossupressão (maior risco de infecção por agentes oportunistas, podendo não evidenciar os sinais clássicos de febre e irritação meníngea).
  • Status pós-esplenectomia, asplenia congénita, drepanocitose e talassémia major (maior risco de infecção por microrganismos capsulados).
  • Infeção contígua (por ex. sinusite), fístula de LCR ou outras alterações traumáticas, cirúrgicas ou congénitas, atrás referidas.
  • Dependência de drogas endovenosas.
  • Endocardite bacteriana.
  • Derivação ventriculoperitoneal (infecção por Staphylococcus, Streptococcus e enterobacteriáceas são mais frequentes).
  • Co-habitação de grande número de indivíduos (risco aumentado de surtos de meningite meningocócica).
  • Exposição recente a outros casos de meningite, com ou sem profilaxia.

Manifestações clínicas

Na criança, os sinais e sintomas são, regra geral, dependentes da idade. Muitas vezes é referida infecção das vias respiratórias superiores nos dias precedentes, coexistindo eventualmente com o quadro descrito (por ex. sinusite e/ou otite média).

Os sintomas clássicos em lactentes são: recusa alimentar, vómito, irritabilidade, gemido, choro gritado, prostração, febre ou hipotermia, fontanela hipertensa, por vezes convulsões, dificuldade respiratória, episódios de apneia ou cianose. Os sinais de irritação meníngea poderão não estar presentes no primeiro ano de vida.

Em crianças de idade superior a 1 ano são habituais náusea e vómitos, cefaleia, fotofobia, febre ou hipotermia, prostração. Em 75% dos casos estão presentes os sinais clássicos de irritação meníngea: rigidez da nuca, sinal de Kernig (impossibilidade de extensão completa dos membros inferiores após flexão a 90º da coxa sobre a anca) e sinal de Brudzinski (flexão automática dos joelhos com a flexão do pescoço.

Outros sinais de compromisso neurológico que poderão ser verificados são: alteração do estado de consciência, convulsões, sinais neurológicos focais e alterações dos pares cranianos III, IV, VI, VII. O edema da papila surge em cerca de um terço dos doentes com meningite, demorando cerca de 24 a 48 horas a estabelecer-se. As convulsões, generalizadas ou focais, podem surgir em cerca de 30% dos doentes, sendo duas vezes mais comuns na meningite por S. pneumoniae e Hib do que na meningite meningocócica.

O choque por endotoxinas com colapso vascular é característico da infecção grave por N. meningitidis. Apesar de o exantema generalizado, máculo-papular, petequial ou purpúrico ser habitualmente associado à meningite/sépsis meningocócica, pode surgir igualmente nas infecções por H. influenzae e por S. pnemoniae. Um exantema petequial precoce (concomitante com a febre) deve ser sempre considerado indicador muito provável de infecção bacteriana, e um exantema macular com aparecimento precoce em relação à febre deve sempre evocar uma infecção meningocócica.

A hipertensão intracraniana pode evoluir para herniação cerebral, com alteração dos movimentos oculares, bradicardia, hipertensão, descorticação/descerebração e apneia.

A artrite, quando surge, é sugestiva de infecção por Neisseria meningitidis. Se ocorrer nos primeiros dias de doença é muitas vezes piogénica; se mais tarde, corresponderá a forma reactiva, curando, regra geral, sem sequelas.

Diagnóstico

Exame do LCR

A análise do LCR através de punção lombar (PL) é fundamental para o diagnóstico, devendo ser realizada sempre excepto em caso de contraindicação.

Tipicamente há marcada pleiocitose (>1000 células/mm3; até aos 3 meses de idade considera-se normal a presença de até 6 células/mm3) com predomínio polimorfonuclear, elevação das proteínas (100-200 mg/dL) e diminuição da concentração da glucose (ratio LCR/soro < 0,4). (Quadros 2 e 3)

QUADRO 2 – Valores de referência no LCR.

LCRPré-termoRN1-12 meses> 12 meses
Leucócitos (/mm3)0-320-290-10< 10
Proteínas (mg/dL)65-15020-170< 60< 40
Glucose (mg/dL)55-10545-150> 50% glicémia

QUADRO 3 – Etiologia sugestiva de acordo com exame citoquímico e citológico LCR.

  Mais comumMenos comum
Glicorráquia (mg/dL)< 10Bacteriana e micobacterianaFúngica
10 – 45 Sífilis, vírus
Proteinorráquia (mg/dL)50 – 250Vírica, Borrelia 
> 1000BacterianaParotidite
Contagem celular (/mm3)100-1000Bacteriana, vírica, micobacteriana 
5 – 100Bacteriana (fase inicial), vírica, micobacteriana, sífilis 

 

A identificação do agente habitualmente é obtida por coloração de Gram e por exame cultural (considerado “padrão de ouro”, embora com sensibilidade 50-90%); estes parâmetros devem ser sempre realizados.

Para identificação específica de agente pode ser realizado teste rápido de aglutinação de antigénios (sensibilidade 60-90%; especificidade 90-100%; valor preditivo negativo 80-95%) e/ou identificação molecular por técnica de reação em cadeia da polimerase/PCR (sensibilidade 87-100%; especificidade 98-100%). De referir que os testes rápidos de aglutinação têm caído em desuso pela maior sensibilidade e especificidade da PCR e também pela diminuição de casos de meningite por Hib, situação em que eram mais úteis. A PCR é particularmente útil nas situações em que a criança já estava sob antibioticoterapia no momento da PL e nos casos de PL traumática. Uma desvantagem desta técnica em relação à cultura é não fornecer sensibilidade do microrganismo aos antibióticos.

Em caso de evolução clínica favorável a PL não é repetida, excepto nas seguintes situações: diagnóstico incerto; evolução desfavorável na ausência de outras causas; meningite por bacilo gram-negativo; doentes tratados com vancomicina e dexametasona; meningite em doente com derivação ventriculo-peritoneal e submetido a antibioticoterapia intratecal.

São consideradas contraindicações para realização de PL:

  • Hipertensão intracraniana (depressão do estado de consciência ou deterioração rápida; sinais neurológicos focais; edema da papila; após convulsão prolongada – duração superior a 30 minutos; hipertensão com bradicardia – tríade de Cushing);
  • Choque ou instabilidade hemodinâmica;
  • Alterações dos reflexos pupilares, midríase ou anisocória;
  • Postura de descerebração ou de descorticação;
  • Infecções da pele e tecidos moles no local da punção;
  • Alterações anatómicas locais, como escoliose grave ou mielomeningocele;
  • Alterações da coagulação (sendo a trombocitopénia contraindicação relativa).

Notas:

    1. Em caso de suspeita clínica e insucesso na realização de punção lombar, não deve ser protelado o início de terapêutica empírica para meningite;
    2. Se a PL for traumática e se se verificar LCR hemorrágico, a interpretação de resultados deve ser cuidadosa, só podendo ser valorizada a glicorráquia e a coloração de gram. O diagnóstico definitivo dependerá sempre da identificação do agente por meio cultural ou molecular;
    3. Um resultado positivo de PCR no sangue para S. pneumoniae não significa que seja este o agente responsável pelo processo meníngeo; poderá apenas reflectir colonização nasofaríngea. Em relação a N. meningitidis, alguns autores referem que a PCR quantitativa no sangue periférico se correlaciona com o prognóstico e que a carga bacteriana máxima tem sido observada em crianças que vieram a falecer.

 

Hemocultura e outros exames culturais

Em todos os casos de suspeita de meningite deve proceder-se a hemocultura antes de se iniciar antibioticoterapia, a qual poderá identificar o agente em 50-80% dos casos (cerca de 80% dos casos provocados por H. influenza b e S. pneumoniae, mas apenas em 50% dos casos de meningite por Neisseria meningitidis).

Outros exames laboratoriais

Para avaliação global do doente, tratando-se duma doença sistémica, são realizados os seguintes exames, a ponderar racionalmente caso a caso:

  • Hemograma e estudo da coagulação;
  • Proteína C reactiva (negativa em 90% dos casos de meningite vírica);
  • Ionograma sérico (avaliação do equilíbrio hidroelectrolítico, estado de hidratação e detecção de eventual hiponatrémia (de diluição) compatível com síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética – SIADH);
  • Glicémia;
  • Ureia, creatinina e enzimas hepáticas (para detecção de eventual disfunção de órgãos e correcção terapêutica);
  • Gasometria arterial (pode haver acidose metabólica e elevação de lactato);
  • Ionograma urinário, suspeitando-se de SIADH.

Exames imagiológicos

Os exames imagiológicos (TAC e RM) poderão estar indicados nas seguintes situações:

  • Doentes com evidência de traumatismo craniano, alteração do estado de consciência ou sinais focais;
  • Doentes com edema da papila ou outras contra-indicações para punção lombar;
  • Avaliação de complicações da meningite (enfarte, hidrocefalia, ventriculite, empiema e abcesso cerebral, trombose do seio venoso);
  • Situações de difícil diagnóstico diferencial (ver adiante).

A TAC é um exame rápido e útil para excluir contra-indicações à realização de PL, enquanto a RM é mais sensível na determinação do envolvimento do SNC. Ambos podem ser normais, numa fase inicial, ou revelar reforço leptomeníngeo, dilatação ventricular, apagamento dos sulcos cerebrais na convexidade e acentuação da hiperdensidade relativa da substância cinzenta. Sinais mais tardios incluem enfarte venoso e hidrocefalia comunicante.

Diagnóstico diferencial

  • Outros agentes de meningite/meningoencefalite aguda não bacteriana: víricos; fúngicos (Histoplasma e Blastomyces; nos imunocomprometidos Candida, Cryptococcus, Aspegillus), tuberculose.
  • Infecções focais do SNC [abcesso cerebral, abcesso parameníngeo (empiema subdural, abcesso epidural espinhal e craniano, osteomielite)].
  • Meningite de causa não infecciosa: medicamentos (AINE, imunoglobulina endovenosa, trimpetropim-sulfametoxazol, isoniazida, metronidazol), vasculites (LES, Doença de Behçet, Sarcoidose, Febre Familiar do Mediterrâneo), tumores e hemorragia do SNC.

Tratamento

Princípios gerais

Nas formas agudas, rapidamente progressivas, que surgem em menos de 24 horas, e na ausência de sinais de hipertensão intracraniana (HIC), deve ser iniciada de imediato antibioticoterapia segundo esquema empírico, após PL.

Verificando-se sinais de HIC ou sinais neurológicos focais, a antibioticoterapia deverá ser iniciada sem proceder a PL e antes de realizar TAC; a HIC deve ser tratada simultaneamente, tal como a disfunção multiorgânica e/ou choque e SDR.

Apesar de o início da antibioticoterapia antes da realização de PL estar associado frequentemente a um exame cultural de LCR negativo, habitualmente não provoca alteração do número de células nem da concentração de proteínas, mesmo que efectuado durante 44-68 horas. Nestes casos, a presença de pleiocitose e proteinorráquia permitem inferir como provável o diagnóstico, podendo o agente ser identificado por hemocultura e exames não-culturais.

Medidas de suporte

  • Monitorização dos sinais vitais, de manifestações neurológicas e do balanço hídrico.
  • Cabeceira elevada a 30º.
  • Suprimento hídrico endovenoso para 2/3 das necessidades, para prevenção do edema cerebral de forma a obter pressão arterial sistólica em valores cerca de 80 mmHg, diurese cerca de 500 mL/m2/dia e perfusão tecidual adequada.
  • Dopamina e outros agentes inotrópicos: poderão estar indicados com o objectivo de manter uma pressão arterial adequada.

Antibioticoterapia

1. Empírica (Quadro 4)

A terapêutica inicial da meningite bacteriana aguda deve cobrir os dois agentes mais frequentes (S. pneumoniae e N. meningitidis), com o objectivo de obter níveis bactericidas no LCR. Actualmente, as cefalosporinas de terceira geração são recomendadas como primeira linha da terapêutica empírica, excepto nos recém-nascidos, não só pelo seu bom e abrangente perfil bactericida no LCR, mas também pela emergência de estirpes de pneumococos resistentes às penicilinas. Dentro do grupo, são recomendados cefotaxima (225-300 mg/kg/dia, 8/8h ou 6/6h) ou ceftriaxona (100 mg/kg/dia, 12/12 ou 24/24h) (Quadro 4). Com a emergência de estirpes de pneumococos resistentes às penicilinas e às cefalosporinas, muitos autores, bem como a Academia Americana de Pediatria, defendem o uso associado de vancomicina no tratamento empírico (60 mg/kg/dia, 6/6h, máximo 4 g/dia, de forma a obter valor sérico em vale superior a 10-15 mcg/mL). Listeria é intrinsecamente resistente às cefalosporinas pelo que, na suspeita de meningite por este agente deve ser usada ampicilina (2 g 4/4h) ou amoxicilina, por via endovenosa, em doses altas, associada a gentamicina nos primeiros 7 dias de terapêutica.

QUADRO 4 – Esquemas de antibioticoterapia empírica de acordo com idade.

Idade Esquemas em 1ª escolha
1-3 meses
    • Ampicilina (400 mg/kg/dia, máx.12 g/dia) + Cefotaxima (200-300 mg/kg/dia, máx.12 g/dia) ou Ceftriaxona (100 mg/kg/dia, máx. 4 g/dia)
    • Ampicilina + Gentamicina
    • Ampicilina + Cefotaxima + Vancomicina
> 3 meses Ceftriaxona (100 mg/kg/dia, máx. 4 g/dia) ou Cefotaxima (200-300 mg/kg/dia, máx. 12 g/dia) + Vancomicina (60 mg/kg/dia)

 

O resultado da coloração de Gram pode orientar na escolha terapêutica:

  • Gram-negativo (provável N. meningitidis): cefalosporina de 3ª geração, cefotaxima IV (200-300 mg/kg/dia em 4 doses) ou ceftriaxona IV (100 mg/kg/dia) em dose única diária (sendo em duas doses com intervalo de 12 horas nas primeiras 24 horas de terapêutica).
    Alguns autores propõem, mesmo nos casos com resultado conhecido da coloração de Gram, a associação empírica inicial com vancomicina (ver abaixo) de modo a cobrir H. influenzae do tipo b, resistente às b-lactamases;
  • Gram-positivo (provável S. pneumoniae): cefalosporina de 3ª geração, cefotaxima IV (200-300 mg/kg/dia em 4 doses) ou ceftriaxona IV (100 mg/kg/dia) em dose única diária (após duas doses com intervalo de 12 horas nas primeiras 24 horas de terapêutica), associada a vancomicina IV (60 mg/kg/dia em 4 doses);
  • Desconhecendo-se o resultado da coloração de Gram, e em crianças de idade inferior a 2 anos, ou com factores de risco de doença pneumocócica invasiva, a terapêutica empírica inicial deverá incluir uma cefalosporina de 3ª geração e vancomicina (ver atrás). Em crianças com idade superior a 2 anos e sem factores de risco referidos, a terapêutica empírica inicial deverá incluir apenas uma cefalosporina de 3ª geração.

No caso de situações especiais, a terapêutica empírica deve ser ajustada à situação clínica subjacente. (Quadro 5)

QUADRO 5 – Antibioticoterapia.

FACTOR DE RISCOETIOLOGIAANTIBIOTICOTERAPIA
NeurocirurgiaStaphylococcus (CN e aureus)
Pseudomonas aeruginosa
Outros Bacilos G-
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G +-
Aminoglicosídeo
Fístula LCRStreptococcus pneumoniae
Haemophilus influenzae
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Derivação Ventriculoperitoneal (VP)Staphylococcus (CN e aureus)
Streptococcus pneumoniae
Haemophilus influenzae
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Sinus dermóide
Mielomeningocele
Staphylococcus (CN e aureus)
Bacilos G-
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G +-
Aminoglicosídeo
Infecção por VIH
Hipogamaglobulinémia
Patologia ORL
Streptococcus pneumoniae
Haemophilus influenzae
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Asplenia
Drepanocitose
Streptococcus pneumoniae
Neisseria meningitidis
Salmonella
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Défices do complementoNeisseria meningitidisCefalosporina 3ª G
2. Terapêutica dirigida e duração

S. pneumoniae:

  • Sensível à penicilina (~75% dos casos): substituir cefalosporina por penicilina G aquosa IV (400.000U/kg/dia em 4 a 6 doses);
  • Sensível às cefalosporinas de 3ª geração (concentração inibitória mínima < 0,06 mcg/mL): interromper a vancomicina e manter ceftriaxona ou cefotaxima.

Se CIM para cefotaxima elevada (~ 2 mcg/mL), deve utilizar-se uma dose mais elevada da mesma (300 mg/kg/dia) ou ceftriaxona (200 mg/kg/dia), em associação a vancomicina (60 mg/kg/dia). Nos casos raros de resistência às cefalosporinas de 3ª geração (~25%), a monoterapia com vancomicina, antibiótico com penetração deficiente no SNC, poderá não ser adequada para uma rápida esterilização do LCR, razão pela qual deve ser adicionada rifampicina (600 mg 12/12 h). Estudos recentes sugerem que a terapêutica com carbapenemes (meropenem ou imipenem) ou com linezoline, combinada com rifampicina, pode ser uma opção nestes casos;

  • Duração: 10-14 dias.

N. meningitidis:

  • Penicilina G aquosa IV (400.000U/kg/dia em 4 a 6 doses) ou ceftriaxona ou cefotaxima;
  • Duração: 5-7 dias para casos não complicados.

H. influenzae:

  • Cefotaxima ou ceftriaxona, conforme doses indicadas previamente. Em alternativa: ampicilina/amoxicilina ou cloranfenicol;
  • Duração: 7-14 dias.

L. monocytogenes:

  • Ampicilina IV (200 mg/kg/dia) em 4 doses diárias, à qual se pode associar, nos primeiros 7-10 dias, gentamicina. Em alternativa: trimetoprim-sulfametoxazol IV (10-20 mg/kg 6-12 h).
  • Duração: 21 dias.

Staphylococcus aureus:

  • Flucloxacilina 2 g 6/6h ou vancomicina, à qual se poderá associar rifampicina. Em casos de SAMR, o linezoline é uma boa alternativa.
  • Duração: 14 dias.

Bacilos Gram-negativos (E. coli, Pseudomonas aeruginosa, Klebisella pneumoniae):

  • Cefalosporinas de 3ª geração (ceftriaxona, ceftazidima, cefotaxima) ou, em alternativa, meropenem;  aeruginosa: ceftazidima (maioria é sensível). Em alternativa, meropenem com gentamicina;
  • Duração: 21-27 dias ou 2 semanas após esterilização do LCR (o que pode acontecer entre 2-10 dias depois do início do tratamento).

Corticoterapia

O efeito anti-inflamatório dos corticóides na meningite bacteriana tem sido explorado nos últimos anos, contudo a sua utilização continua a considerar-se controversa devido a diferenças entre estudos relativamente a metodologia, gravidade da doença, co-morbilidades, agentes bacterianos e antibioticoterapia efectuada. No entanto, foi demonstrada uma diminuição das sequelas auditivas ligeiras com o uso da dexametasona antes do início da antibioticoterapia (0,15 mg/kg cerca de 15-20 minutos antes e depois de 6 em 6 horas durante 4 dias) na meningite por H. influenzae b (se iniciada até uma hora após a administração do antibiótico).

Em relação às meningites pneumocócica e meningocócica, de acordo com múltiplos estudos efectuados, não foi demonstrada vantagem na diminuição de sequelas.

O uso de corticóides não está associado a diminuição da mortalidade, independentemente do agente.

Actuação nos casos de hipertensão intracraniana

  • Elevação da cabeceira a 30º, cabeça na linha média, minorar estímulos externos, hipotermia normal a moderada e evitar hipercápnia.
  • Manitol 20% – Nos casos de hipertensão intracraniana está indicada a administração precoce de manitol (0,25-1 g/kg/dose IV durante 20-30 minutos, podendo ser repetida a administração 0,25 g/kg/dose em intervalos 2-3 h ou 1 g/kg/dose em intervalos 4-6 h); o mesmo produz efeito diurético osmótico que, ao aumentar transitoriamente a osmolalidade do espaço intravascular, condiciona um movimento de água dos tecidos cerebrais para o espaço intravascular.
  • Acetazolamida e furosemido – a sua eficácia em doentes com meningite bacteriana não foi demonstrada em estudos controlados.

Actuação em caso de convulsões

As convulsões são frequentes na meningite bacteriana, estando associadas a maior mortalidade.

Durante a convulsão, assegurando-se a permeabilidade da via aérea (ressucitação ABC), devem ser administradas de imediato drogas anticonvulsantes por via endovenosa. A terapêutica inicia-se, preferencialmente, por diazepam IV (0,2-0,5 mg/kg/dose). Após paragem da convulsão deve iniciar-se fenitoína (dose de impregnação de 15-20 mg/kg, seguida de dose de manutenção de 5 mg/kg/dia) a fim de evitar recorrência. A fenitoína, obrigando a monitorização sérica, é preferível ao fenobarbital pela menor probabilidade de depressão respiratória: os níveis séricos deverão ser mantidos entre 10-20 mcg/mL. Neste contexto haverá também que proceder ao doseamento sérico de glucose, cálcio e sódio.

Complicações, sequelas e prognóstico

O prognóstico da meningite está directamente relacionado com: – a idade (pior no período neonatal); – com a precocidade da antibioticoterapia (melhor quando iniciada nas primeiras 48 horas de doença); – com o agente e número de colónias (mau prognóstico se associado a mais de 10 UFC/mL); e – com comorbilidades.

São factores de mau prognóstico:

  • Atraso no diagnóstico e início do tratamento;
  • Recém-nascidos e lactentes com < 6 meses; imunodeprimidos;
  • Meningite por Gram-negativo, por pneumoniae e por microrganismo multirresistente aos antimicrobianos;
  • LCR: glicorráquia < 20 mg/dL na admissão e elevado número de células;
  • Sinais neurológicos focais ou coma na admissão;
  • Convulsões tardias (> 72 h após início da antibioticoterapia);
  • Factores do meio ambiente: más condições socioeconómicas, sobrepopulação.

Globalmente, a meningite bacteriana aguda tem uma mortalidade inferior a 10%, sendo esta mais elevada no período neonatal e nos casos de etiologia pneumocócica.

Em relação à evolução clínica no decurso do internamento, as convulsões nos primeiros 3 dias de internamento têm, regra geral, valor prognóstico irrelevante. Contudo, convulsões difíceis de controlar, que persistem ao 4º dia de internamento ou que surgem tardiamente (após 72 h), estão geralmente relacionadas com uma evolução complicada e sequelas graves, as quais são mais frequentes no contexto de convulsões focais do que no de generalizadas. Nestes casos deve proceder-se a EEG.

A febre prolongada (persistente ao 8º dia de antibioticoterapia) pode estar associada a resposta terapêutica desfavorável, designadamente por complicações supurativas da meningite (abcesso cerebral, empiema subdural ou pleural, artrite séptica, pericardite), intercorrência vírica ou infecções associadas a dispositivos implantados.

As sequelas a longo prazo variam conforme o agente etiológico, a idade do doente, os sinais clínicos iniciais e o atraso no diagnóstico.

Assim, estas crianças devem ter uma vigilância mantida após o internamento, para detecção precoce das sequelas e tentativa de minorar consequências. Ainda que na maioria dos casos as sequelas neurológicas sejam subtis e dificilmente detectáveis, nomeadamente a dificuldade na aprendizagem que pode ter etiopatogénese multifactorial, nalguns doentes surgem sequelas graves: surdez neurossensorial em 33,6% (S. pneumoniae ≤ 30%, por N. meningitidis 10% e Hib 85-40%), epilepsia (12,6%), hemi/tetraparésia, ataxia, atraso do desenvolvimento psicomotor (9%), hidrocefalia obstrutiva (7%), atrofia cerebral e cegueira (6%).

O défice da audição pode ser precoce ou tardio e a sua detecção permitirá medidas que têm como objectivo a recuperação precoce.

As sequelas motoras, neurológicas ou por amputação (nomeadamente nalguns dos casos de sépsis meningocócica que se manifestam por coagulação intravascular disseminada e choque por endotoxinas) implicarão um trabalho de reabilitação, de terapia ocupacional e de apoio psicológico de modo a rendibilizar, ao máximo, a função de cada doente com a utilização de todas as suas potencialidades.

Prevenção

A quimioprofilaxia utiliza-se nos casos de doença invasiva por N. meningitidis e H. influenzae. A quimiprofilaxia no âmbito da comunidade deve ser decidida pela Autoridade de Saúde local. Na doença invasiva por S. pneumoniae a quimioprofilaxia não tem qualquer interesse, uma vez que a colonização nasofaríngea é muito frequente e existe uma grande variabilidade de serótipos.

1- N. meningitidis se:

→ contacto prolongado (> 8 horas) e próximo (< 1 metro) com o doente ou que tenham sido expostos às secreções orais do doente nos sete dias anteriores ao início dos sintomas ou até 24 horas após o início de terapêutica eficaz;

→ conviventes no domicílio do doente, pessoas que tenham partilhado o mesmo quarto, assim como quaisquer pessoas expostas às suas secreções orais, nomeadamente através dos beijos, partilha de escovas de dentes ou utensílios de mesa;

→ adultos e crianças que, mesmo não tendo qualquer relação de proximidade com o doente, tenham frequentado as mesmas creches, amas ou jardins de infância;

→ viajantes que tenham tido contacto directo com as secreções respiratórias do doente ou que tenham estado sentados ao lado do doente num vôo prolongado (> 8 horas);

→ indivíduos que tenham tido contacto estreito e frequente com o doente, em escolas do ensino básico e secundário; em geral, não se consideram contactos íntimos os casos de colegas cuja única relação com o doente frequentarem a mesma sala;

→ indivíduos que tenham sido expostos a secreções orais: ressuscitação boca-a-boca, intubação endotraqueal; relativamente à maioria dos trabalhadores da área da saúde somente se consideram contactos íntimos os casos associados a exposição directa às secreções respiratórias (aspiração ou entubação, por exemplo).

As opções disponíveis estão resumidas no Quadro 6.

QUADRO 6 – Esquemas de quimioprofilaxia

Fármaco Idade Dose Duração
Rifampicina < 1 mês 5 mg/kg de 12/12 horas 2 dias
> 1 mês 10 mg/kg de 12/12 horas 2 dias
Adultos 600 mg 12/12h 2 dias
Ceftriaxona < 15 anos 125 mg Toma única
Adultos 250 mg Toma única
Ciprofloxacina Adultos 500 mg Toma única
2- H. influenzae b em todos os contactos íntimos domiciliários nas seguintes circunstâncias:

→ existência de 1 contacto com idade < 4 anos que não tenha recebido o número preconizado de doses da vacina contra Hib. A criança susceptível deverá receber uma dose de vacina, planeando-se entretanto a aplicação das restantes doses, se for caso disso;

→ existência de contacto com criança imunocomprometida, independentemente do seu estado vacinal e da idade.

A profilaxia deve ser feita com rifampicina, de acordo com a idade e o peso:

  • Idade < 1 mês à 10 mg/kg, por via oral, de 24 em 24 horas, durante quatro dias;
  • Idade >1 mês à 20 mg/kg, até ao máximo de 600 mg por dose, por via oral, de 24 em 24 horas, durante quatro dias;
  • Adultos à 600 mg, por via oral, de 24 em 24 horas, durante quatro dias.

Deverá ser preenchido e enviado o impresso de Notificação das Doenças de Declaração Obrigatória quando estiver indicado. De salientar que a meningite por N. meningitidis, H. influenzae do tipo b e S. pneumoniae são de declaração obrigatória.

Adicionalmente, é obrigatória a notificação laboratorial de doença invasiva pneumocócica e meningocócica para o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge para caracterização molecular.

Vacinas

A melhor forma de prevenção contra a doença invasiva é através da vacinação. Actualmente estão incluídas no Programa Nacional de Vacinação as vacinas pneumocócica 13-valente, a vacina contra H. influenzae b e a vacina contra N. meningitidis serogrupo C. De referir ainda a introdução recente no mercado da vacina contra N. meningitidis do serogrupo B.

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Definição e importância do problema

A meningoencefalite (ME) é um processo inflamatório das meninges e, em grau variável, do encéfalo. Trata-se dum quadro clínico causado por agentes vários, na maioria das vezes autolimitado, podendo, no entanto, ser fatal ou provocar sequelas neurológicas importantes.

Sendo numerosas as situações clínicas, infecciosas ou não, que se podem apresentar de início com um quadro que se pode sobrepor ao da ME (febre, alteração do estado de consciência, cefaleias e sinais neurológicos focais), torna-se, por isso, premente que no âmbito do raciocínio clínico exista elevado índice de suspeita.

Aspectos epidemiológicos

O padrão epidemiológico da ME, na maior parte das vezes de origem vírica, está por sua vez relacionado com a prevalência da infecção por enterovírus, o agente etiológico mais comum.

A infecção por enterovírus dissemina-se rapidamente de pessoa a pessoa, com um período de incubação variando entre 4 e 6 dias. Nos climas temperados ocorre com mais frequência no Verão e Outono.

Etiopatogénese

Os enterovírus (com mais de 70 serótipos) são os agentes responsáveis por ME em > 90% dos casos. Podendo surgir epidemias nos períodos atrás referidos, a via fecal-oral constitui a forma mais frequente de transmissão. Salienta-se o papel importante do enterovírus humano 68, associado a paralisia flácida, assim como dos parechovirus, com manifestações semelhantes às dos enterovírus.

A ME também pode ser provocada por diversos membros da família Herpes. O HVS do tipo 1 actua mais tipicamente nas crianças mais velhas e pode ocorrer durante a primo-infecção ou por reactivação do vírus, latente no gânglio do trigémio. Causa doença focal que atinge preferencialmente o lobo temporal; quando não tratada, comporta mortalidade elevada (> 70%) sem tratamento. A infecção pelo VHS do tipo 2 predomina no período neonatal, sendo adquirida intraparto. Neste caso, o SNC é atingido de forma difusa e apresenta um melhor prognóstico. Uma forma mais ligeira e transitória (na maioria por VHS do tipo 2) pode acompanhar a infecção por herpes genital em adolescentes sexualmente activos.

O vírus da varicela-zóster (VVZ) pode causar infecção do SNC em estreita relação temporal com o período eruptivo da varicela (os sinais neurológicos ocorrem geralmente 2 a 6 dias após o início das manifestações cutâneas, mas podem surgir durante o período de incubação ou após cicatrização das vesículas). A manifestação mais comum de compromisso do SNC é a ataxia cerebelosa, e a encefalite aguda a forma mais grave.

Após infecção primária, VVZ permanece latente nas raízes e gânglios dos nervos cranianos e espinhais, podendo mais tarde originar quadro de herpes-zóster acompanhado de meningoencefalite ligeira. A reactivação na forma de herpes-zóster pode ser acompanhada de meningoencefalite ligeira.

Os arbovírus (abreviatura do inglês: arthropod-borne-virus) constituem um grupo de vírus com ARN transmitidos pela picada de artrópodes, incluindo grande número de tipos patogénicos para o homem. Os astrovírus, englobados nos arbovírus e provocando classicamente gastrenterite, são a causa mais comum de encefalite epidémica nalgumas áreas geográficas dos Estados Unidos da América, China, Sudoeste Asiático e Índia. Destacam-se a encefalite japonesa, a encefalite de Saint Louis e a encefalite pelo vírus do Nilo (WNV ou West Nile vírus), entre outros. Não há casos descritos em Portugal. Os mosquitos e as carraças são os principais vectores, transmitindo a doença ao Homem e outros animais vertebrados após picada de pássaros e de outros pequenos animais infectados. O WNV pode também ser transmitido por transfusão de sangue ou derivados, em transplantes de órgãos, e por via transplacentar.

Outras doenças provocadas por vírus como o sarampo, a raiva, a papeira, a rubéola, a infecção congénita por CMV ou mesmo infecções por vírus respiratórios, como o adenovírus e o VRS, podem provocar meningoencefalite.

Os vírus podem atingir o SNC por via hematogénica ou intraneural. A disseminação hematogénica é característica dos arbovírus e enterovírus. Estes, após inoculação através do vector ou transmissão fecal-oral respectivamente, replicam-se localmente e, após virémia transitória, alojam-se no sistema reticuloendotelial e tecido muscular. A replicação nestes tecidos promove uma segunda virémia com invasão de outros órgãos, incluindo o SNC. O VHS, o vírus da raiva e, possivelmente, os poliovírus atingem o SNC por via axonal retrógada.

A lesão do SNC explica-se por invasão directa, com replicação do vírus, ou por reacção do hospedeiro aos antigénios dos vírus. A resposta imunológica do hospedeiro é responsável por desmielinização e por destruição vascular e perivascular. O estudo histológico revela sinais de congestão meníngea com infiltração linfocitária e mononuclear envolvendo “em manga” os vasos. Outros achados incluem ruptura neuronal, neuronofagia e proliferação ou necrose endoteliais.

O achado histopatológico de certo grau de desmielinização, com preservação de neurónios e seus axónios, é considerado representativo do quadro de encefalite pós-infecciosa ou alérgica. O córtex cerebral, especialmente o lobo temporal, é frequentemente afectado pelo VHS; os arbovírus tendem a afectar de modo generalizado o encéfalo, e o vírus da raiva as estruturas da base. O compromisso da espinhal medula, raízes nervosas e nervos periféricos é variável.

Manifestações clínicas

Como regra, pode estabelecer-se que o início da doença é geralmente agudo, sendo os sinais e sintomas relacionados com infecção do SNC, designadamente meningite associada a encefalite.

Classicamente é considerada a tríade febre, cefaleias e alteração do estado da consciência, valorizando-se igualmente a existência de eventual exantema (por ex. nas infecções por enterovírus, sarampo, rubéola, etc.) ou sinais inespecíficos durando alguns dias. Nas crianças mais velhas os sinais de apresentação incluem cefaleias e hiperestesia; nos lactentes, sobretudo irritabilidade ou letargia. O exantema prévio pode prolongar-se, a par das manifestações neurológicas.

Outros achados incluem sonolência, desorientação, náuseas, vómitos, fotofobia, cervicalgias, dorsalgias, perturbações comportamentais ou da fala. Poderão surgir rigidez da nuca, e sinais neurológicos como hemiparésia, convulsões, ou movimentos anómalos bizarros. Os sinais neurológicos podem ser mantidos, progressivos ou flutuantes.

Tendo como base os sinais e sintomas referidos apontando para compromisso das meninges e encéfalo (áreas anatómicas não estanques e em continuidade com o tronco cerebral e a espinhal medula) em termos de raciocínio clínico, com utilidade para o diagnóstico diferencial, importa salientar sucintamente os sinais e sintomas de infecção do tronco cerebral (febre, cefaleias, letargia, estado confusional, convulsões), e de mielite (retenção urinária, dor dorsolombar, parestesias/disestesias, fraqueza muscular, alterações do trânsito intestinal e vesical, e sinais de disfunção autonómica.

Diagnóstico

O diagnóstico provisório de meningoencefalite por vírus é, em geral, sugerido pela verificação de sinais prodrómicos inespecíficos seguidos por sintomatologia progressiva do SNC. A este propósito, é importante reforçar a noção de que é a anamnese e o exame físico/neurológico rigorosos que deverão fundamentar a realização de exames complementares.

Alguns achados sugerem uma etiologia específica: dor e parestesias das extremidades devem levantar a suspeita de ME pelo vírus da raiva ou por enterovírus não-pólio.

Achados focais, como a paralisia ou a afasia, apontam para probabilidade de ME por VHS, sem, no entanto, se poder excluir ME por VEB, ou CMV. Formas específicas de ME ou complicações incluem a síndroma de Guillain-Barré, a mielite transversa aguda, a hemiplegia aguda, e a ataxia cerebelar aguda.

Face à hipótese diagnóstica, torna-se prioritário proceder a PL para exame do LCR, excluídas as contra-indicações clássicas. Em contexto de ME por vírus verifica-se, em geral:

  • pleiocitose linfocítica (10 a 1000 células/mm3 até, por vezes, 8000 células/mm3); pleiocitose acentuada poderá ser epifenómeno de destruição extensa, tal como acontece nos casos de infecção por VHS;
  • proteínas em valor normal ou elevado (geralmente, 50-200 mg/dL); e
  • glicose geralmente normal (> 40 mg/dL), ou hipoglicorráquia discreta.

Estes parâmetros podem, no entanto, variar, sendo que o resultado do exame do LCR pode ser normal nos estádios iniciais da doença, ou evidenciar elevação dos polimorfonucleares antecedendo a pleiocitose linfocítica.

Quanto à pressão intracraniana, nas situações de infecção bacterina meníngea aguda em geral é elevada, sendo normal ou ligeiramente elevada nas de causa vírica.

O LCR deverá ser submetido a exames culturais para vírus, bactérias, fungos, e micobactérias; em determinado contexto clínico poderá haver necessidade de proceder a exames especiais para detecção de protozoários, Mycoplasma e outros patogénios. Sendo fortemente sugestiva a implicação de vírus no quadro de ME, deverá fazer-se a sua pesquisa igualmente noutros locais, como secreções da orofaringe, fezes, urina, etc..

A detecção do DNA ou RNA víricos por método molecular PCR/reacção em cadeia da polimerase no LCR, respectivamente para VHS, parechovírus, e enterovírus tornou-se o método diagnóstico de escolha (especificidade ~ 100%), sendo positivo nas primeiras 24 horas de doença e durante a primeira semana de terapêutica. O estudo serológico no LCR constitui o método de escolha para WNV.

Outros exames a efectuar para avaliação dos doentes com suspeita de ME são o EEG e os exames de neuroimagem.

No caso do EEG, na situação presente, ou se verifica normalidade, ou inespecificidade dos traçados, com actividade lenta difusa. A presença de complexos de ondas lentas ou de sinais de descargas epileptiformes laterais periódicas (PLED) nas regiões temporal e fronto-temporal é muito sugestiva de ME por VHS.

Quanto aos estudos de neuroimagem (TAC ou RM) podem ser detectados sinais de edema cerebral ou sinais focais.

A verificação de convulsões focais, e de sinais focais no EEG e nos estudos de neuroimagem – especialmente nos lobos temporais – apontam para ME por VHS.

No início da doença deve proceder-se a colheita de sangue para estudo serológico. Nos casos de as culturas de vírus serem negativas na fase precoce da doença, o estudo serológico repetido 2-3 semanas depois da primeira colheita poderá ter grande utilidade para verificar eventual subida de títulos. O estudo serológico para enterovírus não tem, contudo, utilidade por haver muitos serótipos.

Diagnóstico diferencial

Grande número de situações poderá ter manifestações clínicas semelhantes às da ME. As mesmas podem ser sistematizadas do seguinte modo:

  • meningite bacteriana;
  • outras infecções bacterianas (abcesso cerebral, empiema subdural ou epidural);
  • infecções por M. tuberculosis, T. pallidum, B. Burgdorferi /doença de Lyme, Bartonella henselae/ doença do arranhão do gato;
  • infecções por fungos, riquétsias, Mycoplasma, protozoários, e outros parasitas;
  • infecções humanas por vírus lentos (panencefalite esclerosante subaguda, encefalopatia espongiforme/doença de Creutzfeldt-Jakob, VIH, leucoencefalopatia multifocal progressiva, etc.);
  • várias situações não infecciosas (encefalopatia urémica, hepática, doenças hereditárias do metabolismo);
  • doenças tóxicas (intoxicações medicamentosas acidentais, acção tóxica percutânea de chumbo, hexaclorofeno, mercúrio, síndroma de Reye);
  • miscelânea (tumores intracranianos, hemorragias subaracnoideias, embolias por endocardite bacteriana, doenças desmielinizantes agudas, status epilepticus; doenças para – infecciosas (pós-infecciosas e alérgicas) associadas a vírus, riquétsias, Mycoplasma, vacinas, etc.).

Em suma, tendo em conta esta vasta lista de quadros clínicos, importa salientar:

  • várias situações não infecciosas poder estar associadas a inflamação do SNC e evidenciar sinais e sintomas que se sobrepõem aos da ME. São exemplos: doenças do foro oncológico, doenças autoimunes e hemorragia intracraniana;
  • encefalite autoimune devida a anticorpos anti-receptor do N-metil-D-aspartato é uma importante causa de encefalite de causa não infecciosa na idade pediátrica; este diagnóstico pode ser confirmado pela detecção dos referidos anticorpos no LCR;
  • a encefalomielite aguda disseminada também pode ser confundida na fase inicial com encefalite.

Tratamento

Exceptuando os casos de ME por VHS para os quais existe tratamento específico anti-vírico, dum modo geral as medidas a aplicar são sintomáticas e de suporte: analgésicos (desde paracetamol a codeína e morfina), ambiente calmo com diminuição do ruído e da luminosidade, anti-eméticos, fluidoterapia IV para compensar as dificuldades de alimentação oral, tratamento das convulsões, oxigenoterapia, etc..

Nas formas mais graves está indicado o internamento em UCIP para tratamento do coma, edema cerebral, estado de mal epiléptico, choque, monitorização da pressão intracraniana, correcção de desequilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base, alterações metabólicas, síndroma de secreção inapropriada da hormona anti-diurética/SIADH, etc..

No que respeita ao tratamento das infecções por VHS, administra-se aciclovir IV na dose de 10 mg/kg de 8-8 horas (20 mg/kg nos recém-nascidos) durante 14-21 dias. Verificando-se resistência ao aciclovir, o foscarnet constitui uma alternativa.

Nos casos de ME por VVZ utiliza-se aciclovir IV; a associação de ganciclovir com foscarnet é utilizada quando o agente etiológico é o CMV.

Prognóstico

O prognóstico depende essencialmente da idade, do nível de consciência na data de internamento e do agente etiológico. A idade inferior a um ano, a diminuição do estado de consciência, a ocorrência de convulsões e o isolamento do HVS como agente etiológico são factores de mau prognóstico. As crianças com um ou mais destes factores de risco comportam maior taxa de mortalidade e de sequelas graves. Nos casos em que nenhum destes factores está presente, a recuperação é geralmente total.

Todas as crianças com o diagnóstico de meningoencefalite devem ser acompanhadas por uma equipa multidisciplinar na perspectiva de intervenção precoce para minorar possíveis défices. Tal acompanhamento deverá manter-se pelo menos durante dois anos e, idealmente, até ao ingresso na escola, período em que determinados problemas auditivos ou cognitivos se poderão tornar mais evidentes.

Prevenção

Os aspectos principais da prevenção podem ser assim sintetizados:

  • aplicação de vacinas anti-víricas desde a idade pediátrica; de salientar algumas dificuldades ainda verificadas na confecção de vacinas anti-arbovírus;
  • aplicação de vacinas em animais domésticos (o exemplo da vacina antirrábica é paradigmático);
  • actuação contra os insectos vectores através de produtos aplicados sob a forma de spray;
  • utilização de repelentes de insectos;
  • uso de roupa que proteja eficazmente a pele das picadas dos insectos.

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Definição e importância do problema

As infecções de pele e tecidos moles são processos inflamatórios que podem atingir todas as camadas da pele (epiderme, derme, folículos pilosos, hipoderme* e tecido celular subcutâneo).

Trata-se de patologia frequente em todas as idades pediátricas, correspondendo a cerca de 25% dos motivos de recurso aos serviços de urgência e de ambulatório. O diagnóstico precoce é fundamental, pois sem tratamento a morbilidade e mortalidade associadas são elevadas. Globalmente, Staphylococcus aureus e Streptococcus pyogenes são os agentes mais frequentes; no entanto, são raras as entidades clínicas exclusivamente associadas a um destes agentes.

A lista de causas de infecções bacterianas da pele é extensa; neste capítulo são focadas as situações mais comuns e apenas as infecções bacterianas, tendo em conta a localização, profundidade, agente etiológico e clínica. (Quadro 1)

* As paniculites (ou hipodermites) são quadros clinicopatológicos em que se verifica inflamação do panículo adiposo (hipoderme) de etiopatogénese diversa (infecções, doenças inflamatórias e administração de fármacos).  Por vezes associadas a vasculite, nesta obra optou-se pela inclusão de tal nosologia na Parte sobre Reumatologia.

QUADRO 1 – Infeções da pele e tecidos moles: estruturas atingidas e microrganismos envolvidos

 EstruturaMicrorganismos
ImpetigoSimplesEpidermeStaphylococcus aureus
Streptococcus pyogenes
BolhosoS. aureus
Síndroma da Pele EscaldadaSistémicoS. aureus
ÉctimaEpiderme/DermeStreptococcus pyogenes/S. aureus
Éctima gangrenosaEpiderme/DermePseudomonas aeruginosa
Dermatite perianalEpidermeS. pyogenes/S. aureus
FoliculiteFolículo piloso superficial (epiderme e derme)S. aureus
Staphylococcus coagulase negativos
Klebsiella spp
Enterobacter spp
Escherichia coli
Pseudomonas aeruginosa
Proteus spp
FurúnculoFolículo piloso profundo (derme e hipoderme)S. aureus
CarbúnculoBacillus anthracis
ErisipelaDerme
Tecido celular subcutâneo (Vasos linfáticos)
S. pyogenes
Streptococcus grupo B, C e G
S. aureus
Streptococcus pneumoniae
CeluliteHipoderme
Tecido celular subcutâneo
S. pyogenes
S. aureus
Haemophilus influenzae tipo b
Streptococcus pneumoniae
Abcesso e FleimãoDerme e hipodermeS. aureus
S. pyogenes
Fascite NecrotizanteTecido celular subcutâneo
Fáscia
S. pyogenes
S. aureus
Polimicrobiano
Gangrena GasosaHipoderme
Tecido celular subcutâneo
Clostridium perfringens
PiomiositeMúsculoS. aureus
S. pyogenes
Streptococcus pneumoniae

Aspectos semiológicos

Para melhor compreensão da terminologia relacionada com as infecções da pele e dos tecidos moles a analisar, importa ter em consideração alguns aspectos semiológicos.

Lesões cutâneas primárias

  1. Sem relevo na superfície cutânea, atingindo a epiderme e derme (mancha ou mácula).
  2. Com relevo na superfície cutânea.

a) sólidas (sem conteúdo líquido)

  • pápula (atingindo a epiderme e derme);
  • nódulo (atingindo a epiderme, derme profunda até à hipoderme);
  • tumor (semelhante ao nódulo, mas de maiores dimensões.

b) com conteúdo líquido (atingindo a epiderme ou derme e epiderme)

  • vesícula;
  • bolha ou flictena;
  • pústula.

Entre pápulas, nódulos e tumores existem principalmente diferenças quantitativas; assim sucede entre vesícula e bolha (ou flictena). A pústula refere-se à natureza do conteúdo líquido (pus).

A Figura 1 e o Quadro 1 ilustram esquematicamente as principais formas clínicas de infecção da pele e tecidos moles.  

A – Impétigo B – Éctima C – Erisipela D – Abcesso e fleimão E – Ostiofoliculite F – Foliculite G – Furúnculo H – Antraz I – Hidrosadenite J – Perioniquia

FIGURA 1. Principais formas clínicas das infeções da pele e tecidos moles.

Lesões cutâneas secundárias

  1. Escama (pequena lâmina epidérmica seca que se destaca da superfície da pele em caso de perturbação da sua queratinização).
    Conforme o tamanho e aspecto, as escamas podem ser farinosas, furfuráceas, pitiriásicas e psoriásicas).
  2. Crosta (pequena formação sólida constituída na superfície da pele ou de uma mucosa por serosidade, sangue ou pus secos.
  3. Escoriação ou erosão (perda de substância limitada às camadas superficiais da pele, de uma mucosa ou de uma membrana superficial tal como a córnea). Na pele pode ser provocada por coceira.
  4. Fenda ou fissura (solução de continuidade ou abertura estreita e linear).
  5. Ulceração (processo patológico que leva à formação de úlcera ou a própria quando está em vias de constituição); o conceito, em comparação com escoriação, implica maior profundidade e maior dificuldade de cicatrização.
  6. Cicatriz (tecido fibroso neoformado substituindo perda de substância, tecido inflamatório, ou reunindo as partes divididas duma ferida ou uma incisão operatória).
  7. Atrofia (redução das dimensões de tecido ou de lesão anterior).

Etiopatogénese

Microbiota cutânea

O termo colonização refere-se à presença de microrganismos na pele, sem sinais ou sintomas associados. As bactérias colonizadoras podem ser residentes ou comensais; raramente condicionando doença, constituem a maior parte da microbiota dita normal ou saprófita (Staphylococcus epidermidis e Propionibacterium acnes). As bactérias transitórias ou contaminantes provêm da flora patogénica do meio ambiente (S. aureus, Streptococcus spp, microrganismos entéricos gram-negativos e Candida albicans) que se multiplicam e persistem na pele por tempo variado e podem causar doença ao hospedeiro. Esta distinção tem implicações clínicas importantes na interpretação dos resultados dos exames bacteriológicos cutâneos visto que, por vezes, é difícil distinguir entre colonização e infecção secundária.

Mecanismos de defesa

A pele íntegra constitui uma barreira anatómica eficaz contra a infecção. Fissuras ou escoriações, que podem ter múltiplas causas – picada, mordedura, traumatismo, queimadura, infecções (varicela), infestações e lesões de coceira (escabiose), ou ainda dermatoses primárias (eczema ou psoríase) – são a porta de entrada para múltiplos microrganismos que predispõem a infecção. São também factores predisponentes importantes as síndromas de imunodeficiência congénita ou adquirida, prematuridade, diabetes mellitus e terapêutica imunossupressora (por ex. corticoterapia).

Para além de barreira anatómica, a pele também funciona como barreira imunológica, integrando mecanismos de imunidade inata e adaptativa. A resposta inata, a linha de defesa inicial contra os microrganismos patogénicos, é rápida, inespecífica e limitada. Os queratinócitos da epiderme produzem péptidos cutâneos microbicidas em resposta a padrões moleculares associados a patogénios (PAMP ou DAMP) e citocinas pro-inflamatórias (IL-1, IL-6, TNFa) em resposta à infecção. As células de Langerhans integram no citoplasma os microrganismos e produzem Il-1b, Il-6. Esta resposta integra ainda a produção de citocinas imunomoduladoras (IL-10, TGF-β) (que mantêm a integridade da barreira), proteínas do complemento (promovendo a opsonização de microrganismos extracelulares), células fagocitárias (neutrófilos e macrófagos), células Natural Killer e outras células “promovendo a apresentação” de antigénios.

Sendo a resposta imune inata a primeira linha de defesa, a resposta imune adaptativa é mais tardia, específica para o antigénio e com capacidade de memória. Em infecções da pele a resposta imunitária adaptativa é efectuada principalmente por células T e anticorpos IgE. Em resposta aos antigénios apresentados pelas células dendríticas, as células T activadas expandem-se e formam vários subtipos, de que se destacam as células T CD4+, Th1, Th2, Th17 e Tregs.

Patogenicidade

Sendo os agentes S. aureus e S. pyogenes os principais microrganismos responsáveis pelas infecções da pele e tecidos moles, é importante salientar os principais mecanismos de patogenicidade.

S. aureus – adere à pele e, na presença de lesão, pode invadir o epitélio, atingir os tecidos mais superficiais e estender-se aos mais profundos, causando infecção. Este patogénio tem capacidade de produção de múltiplos factores de virulência, nomeadamente diferentes toxinas – enterotoxinas, TSST-1(toxic shock syndrome toxin-1) e toxinas esfoliativas (A e B) – que funcionam como superantigénios e induzem resposta inflamatória sistémica que é responsável pelas manifestações clínicas características do processo infeccioso. A leucocidina de Panton-Valentine (LPV) é uma citotoxina particularmente virulenta que provoca destruição leucocitária e necrose tecidual; tem sido encontrada nas infeções mais graves. A resistência à meticilina – S. aureus meticilino-resistente (SAMR) – tem aumentado nos últimos anos, principalmente no âmbito dos cuidados de saúde, mas também na comunidade. Pode estar associada a um aumento de virulência relacionada com vários factores, como a produção da toxina LPV. Esta capacidade de resistência é conferida pela PBP2a (penicillin-binding protein 2a), que é codificada pelo gene mecA.

S. pyogenes adere à superfície das células do hospedeiro e invade as células epiteliais, utilizando uma variedade de estratégias para se difundir e causar infecção. A virulência deste organismo depende sobretudo da proteína M que promove a adesão, confere resistência à fagocitose e ilude a resposta inata do organismo. Com base nesta proteína de superfície, com características antigénicas, estão identificados cerca de 200 serótipos distintos, sendo que os tipos associados a infecções cutâneas raramente causam faringite. Existem outros mecanismos de evasão como a cápsula de ácido hialurónico, exotoxinas, hemolisinas estreptocócicas O e S, leucocidina, estreptoquinase, desoxirribonuclease, hialuronidase, peptidase C5a e estreptodornase – descritos noutro capítulo.

Actualmente tem surgido o conceito de reguladores da expressão de factores de virulência, os quais controlam de forma complexa a síntese destes factores ao longo do tempo e sob determinadas situações, como o designado CovRS. A transmissão de infecções estreptocócicas e estafilocócicas faz-se sobretudo por contacto direto.

Formas clínicas

1. Impetigo

Trata-se duma infecção superficial da epiderme, muito contagiosa, caracterizada por vesículas, pústulas e posteriormente crostas. É a infecção cutânea mais frequente na idade pediátrica, correspondendo a cerca de 10% de todos os problemas dermatológicos. Descrevem-se duas formas de impetigo: – o superficial simples não bolhoso, que é o mais frequente (70% dos casos); e – o impetigo bolhoso.

Impetigo não bolhoso

O impetigo superficial simples não bolhoso corresponde a uma infecção superficial da pele, com atingimento da epiderme. Tem uma incidência máxima entre os 2 e os 5 anos, sendo raro abaixo dos 2 anos.

Atinge preferencialmente crianças e jovens em condições precárias de higiene ou classe social baixa. Tem maior prevalência no verão e em climas tropicais (quente e húmido) e pode ocorrer em epidemias familiares ou em escolas e infantários.

O agente etiológico mais frequente é S. aureus, seguido por S. pyogenes. Em cerca de 15% dos casos de impetigo, estes dois microrganismos encontram-se associados.

Clinicamente estas duas entidades são de muito difícil distinção. As lesões típicas começam na face, com predomínio periorificial, ou membros inferiores, em pele previamente traumatizada; inicia-se por uma lesão maculopapular eritematosa que rapidamente evolui para vesícula e pústula com crosta do tipo “cor de mel”. Habitualmente de diâmetro inferior a 2 cm e com halo eritematoso não é dolorosa, evoluindo com prurido ocasional e sem repercussão sistémica. Na maioria dos casos pode ter associada adenopatia regional.

Ao fim de algum tempo as crostas destacam-se e, na superfície da pele, pode surgir ligeira descamação e alteração da pigmentação, sem ulterior formação de cicatriz (Figura 2). O diagnóstico é clínico e o diagnóstico diferencial inclui infecções por herpes, tinha e eczema agudizado.

FIGURA 2. Impetigo.

Impetigo bolhoso

O impetigo bolhoso tem maior incidência em lactentes e crianças pequenas. É causado quase exclusivamente por uma toxina esfoliativa produzida por S. aureus (cerca de 80% pertence ao grupo fágico II, produtor da toxina epidermolítica A e B).

Surgindo vesículas em pele previamente sã, as mesmas rapidamente aumentam de tamanho e formam bolhas transparentes, de parede fina, flácida, não dolorosas, habitualmente de diâmetro superior a 1 cm, com conteúdo amarelo claro (Figura 3) que se pode tornar turvo e purulento. A ruptura da bolha deixa uma base eritematosa e húmida que posteriormente seca e fica com um aspecto acastanhado e brilhante (Figura 4).

Tratamento

O impetigo dissemina-se a outras zonas do corpo por autoinoculação, pelo que é importante respeitar certos princípios gerais; o objectivo é evitar a propagação e recidiva, assim como limitar as probabilidades de transmissão. As lesões devem ser lavadas com água e sabão ou antissépticos, e eventualmente tapadas. O tratamento tópico é lícito nas lesões localizadas, com ácido fusídico ou mupirocina, durante 5 a 7 dias. Havendo ineficácia do tratamento tópico, lesões múltiplas e dispersas, localização periorificial (olhos e boca), ou outros casos de impetigo em familiares ou conviventes, está indicada a antibioticoterapia sistémica durante 5 a 7 dias. O antibiótico de primeira linha é a flucloxacilina oral 50-100 mg/kg/dia de 8 em 8 horas. Como tratamento de segunda linha, ou havendo suspeita de infecção por S. pyogenes, deve optar-se pela amoxicilina com ácido clavulânico, sendo 50 mg/kg/dia de amoxicilina de 8 em 8 horas. Apesar de raros, nos casos de alergia à penicilina, poderá optar-se pela clindamicina (20 a 40 mg/kg/dia), ou por uma cefalosporina de 1ª geração como a cefradina (25-100 mg/kg/dia) (este princípio também é válido para as patologias descritas adiante).

FIGURA 3. Impetigo bolhoso.

FIGURA 4. Impetigo bolhoso após ruptura da bolha.

Quando não tratado, pode curar sem sequelas ou evoluir durante semanas em surtos sucessivos. Em menos de 10% dos casos evolui para infecções mais profundas, como celulite e linfadenite. O aparecimento de glomerulonefrite está relacionado com as estirpes estreptocócicas nefritogénicas (sobretudo tipo M 2, 31, 49, 53, 55, 56, 57 e 60), surgindo 10 a 21 dias após o aparecimento do impetigo. Pelo contrário, as infecções cutâneas por Streptococcus não estão associadas a ulterior febre reumática.

O impetigo é uma doença de evicção escolar; a lesão deve ser coberta e a evicção deve ser concretizada até 24 horas após o início da antibioticoterapia.

Nos casos de impetigo recorrente deve-se considerar a pesquisa de colonização por S. aureus (ver abcessos recorrentes).

2. Síndroma da pele escaldada estafilocócica

Considerada a variante sistémica do impetigo bolhoso, é causada pelas toxinas esfoliativas A e B produzidas por S. aureus, afectando geralmente crianças até aos 5 anos. (Figura 5)

FIGURA 5. Síndroma de pele escaldada.

FIGURA 5A. Escarlatina estafilocócica.

FIGURA 6. Síndroma de Ritter. 

Tem início súbito, habitualmente, após uma infecção estafilocócica primária (umbigo, conjuntiva). Caracteriza-se por mau estado geral aparente, febre alta, prostração, eritema difuso e doloroso, tipo escarlatiniforme. Verifica-se descamação superficial da pele ao toque (sinal de Nikolsky, correspondendo à clivagem epiderme-derme, característica desta situação); a evolução é muito rápida, com aparecimento de bolhas de conteúdo claro em grandes áreas da pele; após rotura evidenciam uma base eritematosa que cicatriza com restitutio ad integrum.

No RN este quadro clínico, surge entre o 4º e 10º dia de vida, por vezes assumindo carácter epidémico nas unidades neonatais; é denominado síndroma de Ritter ou impetigo neonatal. Traduz-se por descolamento epidérmico de grandes áreas do corpo. Por vezes surge septicemia, pneumonia e meningite. (Figura 6)

Dada a gravidade clínica e possibilidade de complicações, a síndroma da pele escaldada estafilocócica exige internamento hospitalar. A pele requer os mesmos cuidados que a de um grande queimado: deve ser mantida limpa e húmida com compressas esterilizadas embebidas em soro fisiológico, e aplicação de emoliente em função do contexto clínico. A assepsia deve ser rigorosa, usando sempre material esterilizado. A antibioticoterapia sistémica IV, está sempre indicada, sendo a primeira escolha a associação de flucloxacilina, 150-200 mg/kg/dia de 6 em 6 horas, com clindamicina, 40 mg/kg/dia de 6 em 6 horas (este último antibiótico inibindo a síntese da toxina bacteriana), durante 10 a 14 dias.

Com o tratamento adequado a recuperação habitualmente é rápida; no entanto, por vezes são necessárias medidas de ressuscitação e suporte hemodinâmico. É essencial ter em atenção as complicações, nomeadamente alterações hidroelectrolíticas, perturbações da termorregulação e infecções bacterianas secundárias graves.

Nota importante: A chamada escarlatina estafilocócica tem afinidades com a síndroma de pele escaldada; com efeito, a sua etiopatogénese está também relacionada com a toxina epidermolítica estafilocócica. Manifesta-se em crianças mais velhas e com maior experiência imunológica: febre, eritrodermia difusa, dolorosa e áspera, não evidenciando – ao contrário da escarlatina estreptocócicanem “língua de fambroesa” nem petéquias no véu do paladar. Evolui para descamação em grandes retalhos. (Figura 5A)

3. Éctima

A éctima é uma infeção ulcerosa da pele, atingindo a epiderme e derme. Surgindo, sobretudo em crianças e idosos, tem como localização mais frequente os membros inferiores. É causada por S. pyogenes, sendo que o agente S. aureus também poderá actuar secundariamente com efeito sinérgico e contribuir para manutenção da infecção.

Trata-se duma situação semelhante ao impetigo, com evolução mais arrastada e erosão da epiderme, levando à ulceração e atingimento da derme. (Quadro 1) Frequentemente surge num local traumatizado, forma-se uma vesícula ou vesicopústula que se cobre de crosta dura, necrótica, elevada e aderente. Cura com formação de cicatriz, geralmente pouco evidente (Figura 7). O tratamento, semelhante ao do impetigo, deve ser sistémico.

FIGURA 7. Éctima.

A éctima deve ser distinguida da éctima gangrenosa, que tem uma apresentação mais exuberante, com bacteriémia e múltiplas lesões na pele que correspondem a vasculite necrosante bacteriana. Esta entidade tem sido associada a infecção por Pseudomonas aeruginosa e é rara em crianças saudáveis; por isso, quando presente, deve ser feito estudo para detecção de imunodeficiência primária (IDP) subjacente.

4. Dermatite perianal

É uma infeção superficial da epiderme, localizada e bem delimitada na região perianal, muito contagiosa. Mais frequente em crianças entre os 6 meses e os 10 anos, com maior frequência entre os 3 e 5 anos, e predomínio no sexo masculino (70%).

Causada classicamente por S. pyogenes, nos últimos anos tem-se verificado incremento do número de casos por S. aureus.

Clinicamente cursa com eritema perianal (90%) bem delimitado, sem induração, e confluente com o orifício anal.

Posteriormente, na ausência de tratamento, começam a aparecer fissuras dolorosas, com dejecções mucosas e placas “cor de mel” na periferia. Pode estar associada a prurido (80%), dor (50%) e, em 1/3 dos casos, pode haver fezes com sangue.

Em geral não se verifica elevação dos títulos de antiestreptolisina O, nem de DNAase B. Pode ser feita cultura da zaragatoa perianal, mas o diagnóstico é essencialmente clínico.

O diagnóstico diferencial, em função da idade e do contexto ambiental, deve ser feito com dermatite seborreica, psoríase, candidíase, doença inflamatória intestinal e abuso sexual.

O tratamento de escolha é realizado com amoxicilina (50 mg/kg/dia de 8 em 8 horas, 7 dias). Se houver suspeita de S. aureus, deve utilizar-se amoxicilina com ácido clavulânico ou flucloxacilina.

A dermatite perianal é muito contagiosa e em mais de 40% dos casos é recorrente.

5. Foliculite, furúnculo e antraz

Estas entidades representam um grupo de infecções que têm em comum a sua origem nos folículos pilosos com formação de abcessos. Factores como humidade, higiene precária e maceração da pele predispõem à infeção por S. aureus, o principal agente patogénico envolvido. Esta patologia pode ser sistematizada como se segue.

Foliculite

Infecção piogénica dos folículos pilosos com atingimento da derme e epiderme. Invade apenas a porção superficial de um único folículo e pode atingir com maior profundidade o bulbo piloso, mas com reacção tecidual mínima (Figura 8). Pode observar-se, em zonas contíguas da pele, lesões em vários estádios evolutivos.

Formam-se pápulas eritematosas que evoluem para pústulas de localização folicular. Habitualmente atinge as zonas com maior número de folículos pilosos, barba (sicose vulgar), couro cabeludo, regiões pilosas das nádegas e extremidades.

O tratamento da foliculite inclui a eliminação dos factores patogénicos e a limpeza da pele. Como medidas locais citam-se: cuidados de assepsia, protecção com pensos, limpeza da pele com cloro-hexidina e aplicação de antibioticoterapia tópica (ácido fusídico, bacitracina ou mupirocina). O uso de depilação com laser ou pinça devem ser os métodos preferidos; os métodos que utilizam cera ou lâmina agravam a foliculite, pelo que devem ser evitados. 

A foliculite é, na sua maioria, autolimitada; pode regredir com a terapêutica tópica, ou ainda, evoluir para formas mais profundas (furúnculo) e necessitar de antibioticoterapia sistémica.

FIGURA 8. Foliculite.

Furúnculo e antraz*

– Furúnculo é a inflamação estafilocócica perifolicular global. Trata-se dum processo mais profundo (derme e hipoderme) (Quadro 1) com necrose do folículo e tecidos adjacentes (Figura 9). O furúnculo da pálpebra ou terçol constitui um exemplo deste tipo de lesão, com localização particular.

– Antraz é uma lesão de maiores dimensões, profunda (derme e hipoderme), com reacção tecidual mais extensa e podendo estar associado a sintomas sistémicos. É a aglomeração de vários furúnculos separados por septos que drenam à superfície da pele por orifícios independentes e com locas que comunicam entre si. (Figura 10)

*Na linguagem em língua inglesa, a aglomeração de diversos furúnculos com tendência necrosante é designada carbuncle. Na literatura científica portuguesa clássica o referido quadro clínico-patológico é designado antraz, o que por vezes pode gerar confusão.

O termo carbúnculo, segundo a linguagem clássica portuguesa diz respeito à doença infecciosa, hoje rara, comum ao gado e à espécie humana provocada por “bactéria carbunculosa” – bacilo Gram positivo (Bacilus anthracis) – cujos esporos, muito resistentes, contaminam o solo e diversos produtos de origem animal. Esta infecção é designada na literatura de língua inglesa por anthrax. O microrganismo em causa constitui  uma arma potencial no âmbito do bioterrorismo.


Havendo tendência para localização em áreas pilosas e mais expostas a atrito (nádegas, pescoço, axilas, região da cintura), a lesão inicia-se em volta dum folículo piloso por nódulo doloroso eritematoso. Após alguns dias surge massa necrótica a que se sucede colecção purulenta central com flutuação. A ruptura dá lugar à expulsão do rolhão de tecido necrosado, com destruição do folículo piloso e cicatriz residual.

O furúnculo e o antraz comportam risco de celulite, bacteriémia, e de focos infecciosos à distância como osteomielite, endocardite e abcessos cerebrais. Os furúnculos da asa do nariz, lábio superior e canal auditivo externo podem associar-se a trombose do seio cavernoso com risco de extensão à veia angular e propagação ao cérebro.

O tratamento destas entidades consiste nas medidas gerais aplicáveis à foliculite: aplicar compressas esterilizadas húmidas e quentes (facilitando a drenagem) e evitar manipulação de lesões, nomeadamente as localizadas na face. Nas lesões mais profundas, bem localizadas e com flutuação, está indicada drenagem cirúrgica e a antibioticoterapia é habitualmente desnecessária.

Quando a drenagem não é possível, ou há sintomas sistémicos associados, utiliza-se como primeira escolha a flucloxacilina durante 5 a 10 dias. Se houver atingimento sistémico, deve iniciar-se antibioticoterapia endovenosa e, após melhoria, passar-se a oral.

Na ausência de tratamento, o que é actualmente raro, pode haver evolução por surtos, com aparecimento sucessivo de novas lesões durante semanas ou meses. Nos casos recorrentes, deve ser feita a pesquisa de colonização por SAMR ou S. aureus produtor de LPV; se presente, deve ser ponderada a descolonização adequada. A abordagem da furunculose recorrente será focada na alínea dedicada a “abcessos recorrentes”.

6. Erisipela

A erisipela é definida como inflamação superficial da pele, que envolve a camada profunda da derme e pode estender-se até à camada superficial do tecido celular subcutâneo, com atingimento dos vasos linfáticos. (Quadro 1)

É mais frequente nos extremos etários (crianças e idosos) e em imunocomprometidos. Nas crianças parece ser mais frequente no sexo masculino e, com o avançar da idade, passa a ser mais comum nas mulheres. Em 70 a 80% dos casos são os membros inferiores e superiores que estão envolvidos, sendo a face afectada em apenas 5 a 20% dos casos.

A erisipela é maioritariamente causada por S. pyogenes, sendo menos frequentes outros Streptococcus dos grupos B, C e G. Mais recentemente tem-se atribuído o envolvimento do agente S. aureus e outros microrganismos gram-negativos em cerca de 10% dos casos.

As manifestações clínicas surgem de modo aparatoso após um período de incubação de 2 a 5 dias, com sintomas sistémicos inespecíficos, febre, cefaleia, astenia e vómitos. Posteriormente, surge uma placa eritematosa, edemaciada, quente, dolorosa, circunscrita com os limites muito bem definidos e com bordo nítido, elevado, com tendência para extensão periférica. Por vezes surgem vesículas, bolhas, linfangite superficial (aspecto “casca de laranja”) e adenite satélite (Figura 11). Na fase inicial, a erisipela pode ser facilmente confundida com celulite, a diferenciação é feita com a evolução da doença.

O diagnóstico é clínico e em regra o quadro acompanha-se de leucocitose com neutrofilia e elevação do valor da PCR. O resultado do exame cultural da lesão raramente é positivo, pelo que é desnecessário para o diagnóstico.

É fundamental o repouso com elevação do membro afectado e manobras de diminuição da estase linfática. O tratamento da eventual “porta de entrada” (fissuras, dermatofitoses) é indispensável e obrigatório. Outras medidas de suporte incluem analgésicos e antipiréticos (paracetamol); localmente podem ser aplicados emolientes.

Quando a apresentação clínica é exuberante, o tratamento deve ser iniciado em internamento hospitalar.

A antibioticoterapia de primeira escolha é a penicilina G cristalina 150.000 – 200.000 UI/kg/dia IV, de 6 em 6 horas; após melhoria clínica, o tratamento antimicrobiano pode completar-se com 7 a 10 dias de antibioticoterapia no domicílio, com amoxicilina 50 mg/kg/dia PO de 8 em 8 horas. Se se suspeitar de infecção por S. aureus (aspecto geral tóxico), deve ser associada a clindamicina.

A erisipela pode apresentar recorrência em cerca de 20 a 30% dos casos em que há condições predisponentes (diabetes, linfoma, síndroma nefrótica, estase venosa e hipogamaglobulinémia). Nestas formas recidivantes poderá estar indicada a profilaxia com penicilina G benzatínica intramuscular ou amoxicilina oral.

Sem tratamento adequado a situação pode complicar-se com septicemia, focos infecciosos metastáticos (pneumonia, meningite e osteomielite), abcesso, tromboflebite, fascite necrosante ou choque tóxico.

Nota importante: A propósito da designação “erisipela” chama-se a atenção para uma entidade clínica designada erisipelóide, a qual é provocada por uma bactéria da família Corynebacteriaceae chamada Erysipelothrix rhusiopathiae. Trata-se duma infecção aguda (rara, autolimitada, localizada nos dedos das mãos, não ultrapassando a porção proximal do pulso), resultante da inoculação do microrganismo por contacto com peixes, aves ou os seus produtos contaminados. Traduz-se por edema e eritema azulado, com compromisso articular. O tratamento específico de escolha inclui eritromicina ou penicilina.

FIGURA  9. Furúnculo.

FIGURA 10. Antraz.

FIGURA 11. Erisipela.

7. Celulite

A celulite é uma inflamação aguda da hipoderme e do tecido celular subcutâneo (Quadro 1). Pode manifestar-se em qualquer idade sendo mais frequente nos membros inferiores; (39,9%), seguem-se em frequência a face e os membros superiores.

Os agentes etiológicos mais comuns são S. pyogenes e S. aureus; e mais raros, Streptococcus pneumoniae e Pseudomonas aeruginosa.

A celulite surge frequentemente como sobreinfecção de uma lesão da pele. Manifesta-se por área edematosa, vermelho vivo, quente, de propagação insidiosa, associada a dor ligeira, com limites mal definidos, ao contrário da erisipela. Concomitantemente pode aparecer febre (inconstante) e outros sinais sistémicos inespecíficos que, quando presentes, são brandos. Pode haver linfadenopatia regional associada. Nas formas mais graves podem surgir lesões bolhosas, hemorrágicas e necrose.

Após a introdução duma vacina conjugada, a celulite por Haemophilus influenzae tipo b tornou-se rara. Surgindo no decurso de bacteriémia, a observação da pele mostra zona de aspecto violáceo, por alguns considerado patognomónico. A face e o pescoço são as áreas mais afectadas.

Se idênticos sinais surgirem no RN, admite-se como hipótese mais provável, infecção por Streptococcus agalactiae ou Escherichia coli.

FIGURA 12. Celulite localizada.

FIGURA 13. Celulite com sinais sistémicos.

→ Celulite sem sinais sistémicos: mais provavelmente provocada pelo agente S. aureus, é mais localizada, mais rapidamente supurada, mas sem sinais sistémicos (Figura 12).

→ Celulite com sinais sistémicos: distribuição mais difusa, com linfangite e adenite associadas a sintomas sistémicos mais graves; o agente causal mais provável é S. pyogenes; existe elevado risco de produção de toxina necrosante. (Figura 13)

O diagnóstico é clínico; no entanto, deve proceder-se a hemocultura nos casos com sinais sistémicos mais graves, pois em cerca de 5% dos casos pode haver associação a bacteriémia.

O diagnóstico diferencial faz-se com erisipela, reação inflamatória a picadas de insetos, tromboflebite superficial e piomiosite.

Nas formas não acompanhadas de sinais sistémicos, localizadas, está indicada flucloxacilina (100-150 mg/kg/dia PO de 8 em 8 horas (no RN e lactente, via IV), durante 7 a 10 dias.

Havendo sinais sistémicos deve ser feito tratamento com penicilina G cristalina IV (100.000-200.000 UI/kg/dia) de 6 em 6 horas ou uma cefalosporina, associada a clindamicina IV. Após melhoria clínica (habitualmente três a cinco dias) o tratamento pode ser completado em ambulatório com flucloxacilina, amoxicilina ou clindamicina PO.

Na maioria dos casos de celulite não complicada pode verificar-se evolução para abcesso, osteomielite ou artrite séptica. Sem tratamento, a situação poderá evoluir para infecção mais profunda e grave, como a fascite necrosante.

8. Abcesso e fleimão

Numa perspectiva global, abcesso e fleimão são infeções purulentas com atingimento da derme e hipoderme (Quadro 1). Verifica-se acentuada destruição tecidual, com rápida propagação (sobretudo no fleimão) e possível repercussão no estado geral, por vezes grave. Nas crianças as localizações mais frequentes são mama, região perianal, glândulas sudoríparas e couro cabeludo.

Habitualmente o quadro inflamatório localizado é precedido por manifestações sistémicas: calafrio, mal-estar geral e febre.

O fleimão caracteriza-se por maior tendência para empastamento tecidual difuso e propagação da afecção para a profundidade. Surge como área de eritema que rapidamente se torna viva, adquire tumefação edematosa de bordo mal definido, no início dura, que pode evoluir para abcesso. Quando o fleimão tem localização ganglionar denomina-se adenofleimão. S. aureus e S. pyogenes são os agentes etiológicos implicados.

No abcesso, ao eritema e tumefação localizados com aumento da temperatura local seguem-se flutuação, ruptura e fistulização com consequente descarga purulenta; geralmente verifica-se adenite regional. Em causa está habitualmente o microrganismo S. aureus.

Estas duas entidades correspondem a situações clínicas de urgência; a sua evolução é por vezes grave, podendo ser ponto de partida para complicações viscerais; em consequência da metastização bacteriana poderá instalar-se quadro de sépsis.

As bases do tratamento do abcesso podem ser assim sintetizadas:

  • Incisão e drenagem – é o procedimento de primeira escolha e fundamental para evitar complicações; deve ser feita cultura do material drenado.
  • Antibioticoterapia – o uso adicional de antibiótico após drenagem não parece trazer vantagens na melhoria clínica; assim, só deve ser iniciada nos abcessos múltiplos ou com mais de 5 cm, nos abcessos persistentes após drenagem, ou se houver sinais de resposta inflamatória sistémica, risco de endocardite, celulite extensa associada, presença de comorbilidades ou imunossupressão, ou ainda, se se tratar de um lactente; o antimicrobiano de escolha é a flucloxacilina (100-200 mg/kg/dia) PO de 8 em 8 horas durante 7 dias; demonstrando-se etiologia estreptocócica, aplicam-se os princípios da antibioticoterapia referidos a propósito da erisipela.

No tratamento do fleimão aplicam-se os mesmos princípios, sendo que a duração da antibioticoterapia deverá durar, no mínimo, 10 dias.

Notas importantes:
→ À semelhança do que sucede na furunculose, quando há história de abcessos cutâneos recorrentes os doentes devem ser avaliados. Na maioria dos casos não há imunodeficiência subjacente e as medidas de higiene são suficientes. Contudo, nalguns casos pode estar subjacente quadro de IDP, pelo que a história clínica deve ser bem caracterizada. Deve inquirir-se sobre os antecedentes familiares, incluindo a presença de consanguinidade e sobre doenças concomitantes e o padrão da doença. Por exemplo os abcessos perianais são mais frequentes na doença de Crohn, o eczema na síndroma de hiperIgE ou Wiskott-Aldrich, a onfalite e a queda tardia do cordão umbilical na deficiência da adesão leucocitária (LAD) e a infecção por bactérias ou fungos habitualmente não patogénicas, nos defeitos dos neutrófilos.
→ Nos casos de impetigo, foliculite ou abcessos recorrentes deve considerar-se a pesquisa de colonização por S. aureus. Se se tratar de SAMR ou LPV positivo, deve ponderar-se descontaminação com mupirocina tópica de 8 em 8 horas durante 5 dias associada a medidas de higiene estritas: banho diário com digluconato de cloro-hexidina a 4%; uso individual de toalhas e mudança diária; mudança dos lençóis diariamente; manter a casa limpa, aspirar e lavar casa-de-banho (banheira e lavatório) com lixívia; não frequentar locais públicos como ginásio e piscina; cobrir as zonas infectadas; lavar as mãos, frequentemente, com sabão líquido; a recolonização é frequente, pelo que o número de descolonizações a fazer deve ser ponderado caso a caso; a pesquisa de S. aureus após o tratamento não é recomendada por rotina.

9. Fascite necrosante

A fascite necrosante ou “gangrena estreptocócica” é a infeção bacteriana aguda do tecido celular subcutâneo, hipoderme e fáscia, com tendência para difusão rápida e grande destruição tecidual com necrose maciça. É uma entidade rara na idade pediátrica, localizando-se principalmente no tronco e nos membros superiores ou inferiores. (Figura 14)

S. pyogenes é o agente causal mais frequente, de forma isolada ou combinado com S. aureus verificando-se efeito sinérgico (tipo 2). Muitas vezes a etiologia pode ser mista, polimicrobiana (tipo 1).

Esta infecção pode implantar-se em lesões cutâneas prévias (por ex. feridas, queimaduras, escoriações, ulcerações de diversa natureza, eczema ou mais frequentemente varicela). O uso de ibuprofeno, ou outros anti-inflamatórios não esteróides, no contexto de varicela tem sido associado a risco mais elevado de fascite necrosante; no entanto, os dados disponíveis não são consistentes.

A apresentação clínica pode ser subaguda, aguda ou fulminante. Na fase inicial pode começar como uma celulite, com sinais locais mínimos mas com dor intensa desproporcional, podendo atrasar o diagnóstico. Posteriormente surge sintomatologia sistémica, como febre, prostração, mau estado geral, por vezes choque e falência multiorgânica.

Cerca de dois a quatro dias depois, coincidindo com agravamento do estado geral, verifica-se evolução da lesão tecidual: área edematosa com rubor vivo, de bordo mal definido que fica com aspecto violáceo, extensão centrífuga rápida e aparecimento de bolhas hemorrágicas e necrose.

O diagnóstico é clínico, com tradução imagiológica. A TAC pode mostrar a referida necrose, como pode não mostrar alterações. A ressonância magnética é o exame de escolha para visualização dos tecidos moles; contudo, a impossibilidade de a realizar, não deve atrasar o início da terapêutica. No que respeita a exames complementares, cabe referir que o número de leucócitos é geralmente normal e o valor da PCR está elevado. Pode haver trombocitopenia, coagulopatia e hipoalbuminemia com hipocalcemia. Deve ser colhida hemocultura antes de se iniciar a antibioticoterapia. Mais frequentemente, o agente S. pyogenes é isolado do sangue e do líquido das bolhas. Em casos raros a etiologia é polimicrobiana, particularmente na gangrena de Fournier, ou fascite necrosante do períneo. Nestes casos, para além de S. aureus e S. pyogenes, os anaeróbios, incluindo Peptotreptococcus, Prevotella e Bacterioides fragilis estão geralmente implicados.

O diagnóstico diferencial realiza-se com outras gangrenas (designadamente, gangrena gasosa, abordada adiante). O exame histológico evidencia sinais de necrose subcutânea que se estende ao longo das fáscias com trombose e necrose fibrinóide das paredes vasculares.

A fascite necrosante é uma emergência que obriga a terapia em cuidados intensivos, com apoio da cirurgia. Muitas vezes é necessário adoptar várias medidas já descritas no tratamento de quadros de choque e sépsis, tais como expansão de volume, medidas de suporte inotrópico, sedação e analgesia.

A antibioticoterapia deve ser iniciada de forma empírica. Admitindo a etiologia por S. pyogenes deve ser iniciada, penicilina G aquosa (300.000 a 400.000 UI/kg/dia IV, de 4 em 4 ou de 6 em 6 horas) associada a clindamicina (40 mg/kg/dia IV, de 6 em 6 ou de 8 em 8 horas); deverá ponderar-se adicionar a flucloxacilina se houver suspeita de infecção por S. aureus.

Nos casos em que se suspeita de infecção polimicrobiana deve ser iniciada antibioticoterapia de largo espectro com cefotaxima, clindamicina e gentamicina. Nos doentes neutropénicos é importante a administração de antimicrobianos com actividade contra P. aeruginosa.

Verificando-se alergia à penicilina, importa adoptar o seguinte esquema: cefalosporina de 3ª geração IV – cefotaxima (150 mg/kg/dia) ou ceftriaxona (75 mg/kg/dia), em 2 doses + clindamicina IV (20 a 40 mg/kg/dia) em 3-4 doses, durante 15 a 21 dias.

A excisão cirúrgica da área afectada deve ser precoce e seriada a cada 24 a 48 horas, até haver controlo da infecção.

FIGURA 14. Fascite necrosante no contexto de varicela. TAC evidenciando sinais de necrose da hipoderme ao longo das fáscias.

Posteriormente, e quando possível, a antibioticoterapia deve ser ajustada de acordo com o TSA e manter-se até: – não ser necessário proceder a mais excisões; ou – haver melhoria clínica significativa e; – se verificar apirexia de 3 a 5 dias (mínimo: 15 dias de antibioticoterapia). O uso de imunoglobulina não é consensual e deve ser ponderado caso a caso.

Esta entidade clínica comporta morbilidade e mortalidade elevadas.

10. Gangrena gasosa ou mionecrose

A gangrena gasosa é uma infecção bacteriana aguda da hipoderme e tecido subcutâneo com evolução para necrose do tecido muscular. Em cerca de 90-95% dos casos está implicado o agente Clostridium perfringens. (Figura 15)

Na maioria dos casos, a etiopatogénese desta infecção relaciona-se com lesões traumáticas que atingem o músculo e são a forma de entrada do agente microbiano. Por outro lado, a infecção pode ter origem endógena através de agentes anaeróbios, com ponto de partida no tracto gastrintestinal e invasão da corrente sanguínea (bacteriémia).

FIGURA 15. Gangrena gasosa ou mionecrose.

Clinicamente surge quadro de mau estado geral e sépsis. O doente pode evidenciar dor intensa na área do músculo afectado, a qual se apresenta edemaciada e pálida, tornando-se posteriormente violácea. Pode ser notado odor característico, aparecendo, entretanto, bolhas de conteúdo purpúrico; à palpação da pele nota-se crepitação. Trata-se duma situação clínica muito grave, com evolução rápida para choque séptico.

Para além das medidas de terapia intensiva de suporte (ressuscitação, ventilação, estabilização hemodinâmica), a antibioticoterapia de escolha, no pressuposto de que Clostridium perfringens é o agente etiológico: penicilina G aquosa (250.000 UI/kg/dia IV, de 6 em 6 horas) associada a clindamicina (40 mg/kg/dia IV, de 8 em 8 horas) durante 15 a 21 dias.

11. Piomiosite

A piomiosite é uma infeção bacteriana primária, aguda e supurada do músculo esquelético. Relativamente comum em regiões tropicais (4% das admissões hospitalares nestes países), salienta-se que a incidência tem aumentado em climas temperados nas últimas décadas. A emergência de estirpes de S. aureus produtoras da toxina LPV e o aumento global da temperatura, têm sido factores apontados.

Surge habitualmente em crianças até então saudáveis, embora possa estar associada a imunodeficiência (por ex. VIH, diabetes) ou a infecções concomitantes em 25% dos casos.

Os músculos dos membros inferiores e cintura pélvica são os mais frequentemente atingidos.

S. aureus é o agente mais comum (95%). Em situações associadas a varicela, S. pyogenes pode ser agente causal. Agentes mais raros são: S. pneumoniae, E. coli, Salmonella typhi, Bacteroides fragilis, N. gonorroeae e Mycobacterium tuberculosis.

Na maioria dos casos surge como consequência de bacteriemia, com consequente metastização nos grandes músculos estriados; raramente, por difusão a partir de foco infeccioso contíguo ao músculo.

Sobre a patogénese, não totalmente esclarecida, admite-se que o esforço muscular, lesão muscular e status pós-hipóxia-isquémia muscular constituam factores predisponentes.

As manifestações clínicas incluem fundamentalmente febre, dores e rigidez musculares, cãibras, rubor e edema ao nível da pele suprajacente. Verifica-se leucocitose e aumento da velocidade de sedimentação que podem durar mais de duas semanas. Os aspirados musculares somente evidenciando material purulento, permitem o isolamento do agente infeccioso após formação de abcessos.

Curiosamente não se verifica adenopatia satélite.

O diagnóstico diferencial faz-se com osteoartrite, hematoma, neoplasia, polimiosite e celulite; nesta última, ao contrário da piomiosite, bacteriémia, a velocidade de sedimentação elevada e a leucocitose são raras, e as adenopatias frequentes.

A piomiosite não tratada evolui para choque séptico.

Com a progressão da infecção, os sinais de toxicidade sistémica tornam-se evidentes. Verifica-se leucocitose e aumento dos valores da PCR e da velocidade de sedimentação, podendo durar mais de duas semanas. As enzimas musculares (CK e AST) estão habitualmente com valores normais.

A hemocultura é positiva em 10 a 35% dos casos e o exame cultural após aspiração do conteúdo dos abcessos pode contribuir decisivamente para o diagnóstico. Nos primeiros estádios da doença a RM é o exame mais sensível, sendo muito útil na determinação da localização e extensão.

Para além das medidas gerais de suporte, em função da gravidade, deve ser iniciada antibioticoterapia com flucloxacilina IV 150 a 200 mg/kg/dia de 6 em 6 horas, associada a clindamicina 40 mg/kg/dia de 8 em 8 horas, até melhoria clínica, seguida de flucloxacilina oral. A duração total da terapêutica é variável, consoante a evolução clínica e analítica, sendo habitualmente de 15 dias.

12. Outras formas clínicas

O panarício ou perioniquia é uma inflamação dos tecidos periungueais, com etiologia polimicrobiana. A hidrosadenite é uma infecção rara, crónica e recidivante das glândulas sudoríparas apócrinas (derme e hipoderme) que pode surgir na adolescência. O terçol (terçolho ou hordéolo) e o calázio foram descritos na Parte sobre Oftalmologia. As infecções da pele e dos tecidos moles com ponto de partida nos dentes e tecidos envolventes (infecções odontogénicas) constam da Parte sobre Estomatologia. Às infecções relacionadas com mordeduras foi feita referência na Parte sobre Urgências e emergências.

AGRADECIMENTOS

Ao Professor F. Guerra Rodrigo co-autor do livro Dermatologia, citado na Bibliografia, o agradecimento do coordenador- editor pela cedência da Figura 1.

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Definição e importância do problema

A designação de celulite periorbitária corresponde a um processo inflamatório da hipoderme e do tecido conjuntivo subcutâneo, com ligeiro compromisso da derme, ao nível da pálpebra e tecidos periorbitários, sem proptose ou limitação do movimento ocular.

A celulite orbitária corresponde a um processo inflamatório dos tecidos da órbita com proptose, limitação dos movimentos do globo ocular, associado a edema da conjuntiva com rebordo saliente avermelhado em torno da córnea (quemose).

À primeira também se chama pré-septal (ou anterior ao septo orbitário), e à segunda, pós-septal (ou posterior ao septo orbitário), considerando-se anatomicamente o septo orbitário (folheto fibroso) como uma barreira entre os dois referidos espaços.

Na pálpebra superior, o septo tem origem no periósteo do rebordo orbitário superior, ligando-se ao bordo superior do tarso* da pálpebra (zona correspondente à zona de rebatimento da pele (concavidade circundante da respectiva pálpebra).

O septo ao nível da pálpebra inferior origina-se ao nível do periósteo do rebordo orbitário inferior, inserindo-se no bordo inferior do tarso* da pálpebra inferior (correspondente à concavidade inferior circundante da pálpebra inferior).

Estas noções anatómicas têm implicações clínicas importantes; com efeito, como se disse, o septo constitui uma barreira biológica que dificulta (não impedindo, no entanto) a difusão da infecção do espaço pré-septal para o espaço orbitário. Por outro lado, a localização pós-septal não implica necessariamente infecção prévia pré-septal.

* Recorda-se a definição de tarso palpebral: lamela de tecido conjuntivo relativamente denso, com forma semilunar, que constitui o bordo livre da pálpebra superior ou inferior.

Aspectos epidemiológicos

A celulite periorbitária é mais frequente que a celulite orbitária, sendo a primeira mais comum em crianças mais pequenas (< 5 anos); a segunda predomina em crianças mais velhas, o que é relacionável com o maior desenvolvimento dos seios perinasais nesta última circunstância.

A celulite orbitária ocorre mais frequentemente no sexo masculino (2:1), com maior incidência no final do Outono e início da Primavera, coincidindo com o pico de incidência de sinusite. A idade média na data do diagnóstico é de 7 anos.

Etiopatogénese

Os agentes patogénicos implicados são difíceis de identificar, pois as hemoculturas são maioritariamente negativas e as culturas orbitárias apenas são realizadas se estiverem indicadas intervenção cirúrgica e drenagem; de facto, demonstrou-se que os resultados de tais exames poderão não reflectir a etiologia das celulites orbitárias com precisão.

Antes da introdução da vacina conjugada anti-Haemophilus influenzae tipo b, este era o agente microbiano mais comum nas crianças de idade inferior a 2 anos. Actualmente contam-se como agentes mais frequentemente implicados os seguintes: Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae não tipável, Moraxella catarrhalis, Streptococcus pyogenes, Staphylococcus aureus meticilino-sensível, grupo S. anginosus (milleri) e anaeróbios (Bacteroides, Peptostreptococcus, Prevotella, Fusobacterium).

Nas últimas décadas, infecções por S. aureus meticilino-resistente (MRSA) têm tido incidência crescente, sobretudo no continente americano. Outros agentes etiológicos mais raros incluem Pseudomonas aeruginosa (indivíduos imunocomprometidos) e Eikenella corrodens. A infecção polimicrobiana (aeróbios e anaeróbios) surge sobretudo em crianças mais velhas.

A etiologia fúngica é rara, nomeadamente a mucormicose típica do doente diabético; a primeira, juntamente com a aspergilose são típicas nos doentes imunocomprometidos, apresentando uma evolução mais lenta ao longo de meses.

A infecção por micobactérias (sobretudo M. tuberculosis) é rara.

De acordo com o ponto de partida da infecção, podem ser consideradas diferentes etiologias, discriminadas no Quadro 1.

QUADRO 1 – Etiologias mais prováveis de acordo com o ponto de partida da infecção presumível.

PatologiaAgente mais provável
Sinusite / Infecção respiratóriaS. pneumoniae, H. influenzae não tipável, M. catarrhalis, Streptococcus spp, S. aureus, Anaeróbios
Traumatismo / Picada / Infecção cutâneaS. aureus (SAMS), S. pyogenes
HordéoloS. aureus
DacriocistiteS. pneumoniae, H. influenzae não tipável, S. pyogenes, S. aureus, P. aeruginosa
Abcesso dentárioPolimicrobiano (aeróbios e anaeróbios)
Infecção sistémica
– via hematogénica
S. pneumoniae, H. influenzae não tipável, S. pyogenes, S. aureus


A celulite pré-septal surge na sequência de três possíveis mecanismos: lesões traumáticas penetrantes (ferida, picada de insecto, mordedura); inflamações ou infecções perioculares (dacriocistite, dacrioadenite, calázio, conjuntivite, infecção cutânea); ou, menos frequentemente, difusão de microrganismos a partir de infecções dos seios perinasais ou nasofaringe para o espaço pré-septal.

A celulite pós-septal surge maioritariamente (70-90%) como consequência de sinusite, por extensão do processo infeccioso.

O seio etmoidal é o ponto de partida mais frequente; seguem-se, por ordem decrescente quanto ao referido ponto de partida, outras localizações – etmoidal > maxilar > frontal > esfenoidal-, verificando-se disseminação através da lamina papyracea.

A razão pela qual o espaço orbitário está particularmente predisposto à difusão da infecção a partir dos seios perinasais relaciona-se com particularidades anatómicas regionais: deiscências ósseas naturais nas paredes dos seios esfenoidais e etmoidais (lamina papyracea); e veias orbitárias sem válvulas, o que permite comunicação entre os seios e a órbita por via sanguínea.

Pela rapidez da evolução clínica, e pela proximidade das estruturas do SNC, sobretudo nos casos de celulite pós-septal, existe risco de lesão do globo ocular, nervo óptico, assim como de trombose do seio cavernoso, meningite e abcesso cerebral.

Frequentemente verifica-se infecção de dois seios perinasais, sendo a combinação etmoidal-maxilar a mais frequente. Outros mecanismos incluem: infecções odontogénicas; lesões penetrantes com solução de continuidade do septo orbitário (traumatismo, status pós-cirurgia ocular, etc.) ou disseminação hematogénica por bacteriémia que, sendo rara, pode ocorrer por S. pneumoniae, S. pyogenes, S. aureus ou H. influenzae não tipável.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas permitem, na maioria dos casos, estabelecer a diferença entre celulite pré-septal e pós-septal. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Diferenças clínicas entre a celulite pré-septal e pós-septal.

Celulite pré-septalCelulite pós-septal
Edema palpebral com ou sem eritema
Febre
Visão não afectadaDor ocular marcada
Dor com os movimentos oculares
Quemose
Proptose
Oftalmoplegia
Alteração da resposta pupilar
Alterações visuais


Podem ser considerados 5 estádios de evolução, salientando-se, e reiterando, que a celulite pré-septal não precede obrigatoriamente a celulite pós-septal. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Estádios da doença (adaptado de Chandler et al, 1970).

Estádio I
Celulite pré-septal
    • Edema e eritema palpebral (superior e/ou inferior)
    • Sem dor ou limitação dos movimentos oculares
    • Sem sinais sistémicos
Estádio II
Celulite pós-septal
    • Edema e eritema palpebral, quemose
    • Dor referida à órbita
    • Proptose
    • Limitação dos movimentos oculares, com dor associada nas posições extremas
    • Febre
Estádio III
Abcesso subperióstico
    • Igual ao anterior + eventual diminuição da acuidade visual e proptose
Estádio IV
Abcesso da órbita
    • Igual ao anterior + dor ocular intensa + compromisso da visão + oftalmoplegia
Estádio V
Trombose do seio cavernoso
    • Igual ao anterior. Poderão surgir sinais bilateralmente (após 24-48h), dada a inexistência de mecanismo valvular venoso no seio cavernoso.
    • Síndroma do ápex orbitário – ptose unilateral, proptose, perda de visão, oftalmoplegia intrínseca e extrínseca (midríase por paralisia do par III, e dos músculos extrínsecos por paralisia dos pares III, IV e VI), e perda da sensibilidade da região frontal até à linha média por compromisso do par V (raiz sensitiva)


As Figuras 1, 2, 3 e 4 documentam respectivamente os estádios I, II, II e IV.

FIGURA 1. Estádio I – celulite pré-septal ou periorbitária.

FIGURA 2. Estádio II – celulite pós-septal ou orbitária. Aspecto imagiológico da TAC: assimetria de estruturas/proptose do olho direito.

FIGURA 3. Estádio III – celulite pós-septal ou orbitária. Aspecto imagiológico da TAC: espaço orbitário preenchido por imagem “em meia lua” com contorno nítido (abcesso subperióstico secundário a sinusite), correspondendo ao levantamento do periósteo pela colecção purulenta; compressão do nervo óptico e do próprio globo ocular.

FIGURA 4. Estádio IV – celulite pós-septal ou orbitária. Aspecto imagiológico da TAC: espaço orbitário preenchido por imagem “em meia lua” com contorno denteado, e densidade diferente da anterior, correspondendo ao abcesso do espaço orbitário, comprimindo o nervo óptico e o próprio globo ocular.

Estabelecendo uma relação com aspectos da patogénese já descritos anteriormente, importa salientar sob o ponto de vista clínico que a evolução para abcesso subperióstico e abcesso orbitário, as complicações mais frequentes, pode ser rápida. O abcesso subperióstico surge maioritariamente por extensão de sinusite etmoidal, facilitada através da lamina papyracea.

No abcesso orbitário, o aumento da pressão intraorbitária com consequente oclusão dos vasos da retina, assim como a neurite óptica associada, podem condicionar alteração da visão. Como manifestação clássica cita-se a fixação do olhar “para baixo e para fora”. A ausência de reflexo pupilar aferente é um sinal precoce de complicação, o que implica necessidade da sua detecção com regularidade e em tempo útil. A extensão da infecção para o SNC- traduzida por empiema epidural ou subdural, meningite e abcesso cerebral-, e a trombose do seio cavernoso são as complicações mais temidas.

Exames complementares

Exames laboratoriais

Na celulite pré-septal e pós-septal pode verificar-se a presença de leucocitose, embora seja mais frequente nesta última. A bacteriémia ocorre em cerca de 33% das crianças com idade inferior a 4 anos. Por isso, deve realizar-se hemocultura antes do início da antibioticoterapia, embora o isolamento microbiano a partir do sangue seja raro. Nos casos com necessidade de intervenção cirúrgica deve proceder-se a:

  • exame bacteriológico da amostra colhida; e
  • exames micológico e para micobactérias em crianças com factores de risco como imunossupressão.

A pesquisa microbiana através de zaragatoa nasal e/ou conjuntival tem pouco interesse para o diagnóstico etiológico.

Exames imagiológicos

A tomografia axial computadorizada (TAC) da órbita e seios perinasais (de preferência com contraste intravenoso) é importante para avaliar a extensão da celulite e as complicações. Deve ser realizada em todos os casos que apresentem sintomas ou sinais sugestivos de celulite da órbita, de envolvimento do SNC (convulsões, alterações do estado de consciência), incerteza quanto ao diagnóstico (menor colaboração no exame objectivo em crianças com <1 ano) e deterioração do estado geral ou intensificação dos sinais inflamatórios locais apesar de tratamento instituído (após 24-48 horas).

A ressonância magnética (RM) é o exame de eleição na suspeita de trombose do seio cavernoso (desenvolvimento de sintomas bilaterais após um período unilateral, ou clínica sugestiva de síndroma do ápex orbitário).

Da mesma forma, na suspeita de complicações intracranianas está indicada a realização de punção lombar, sempre após TAC crânio-encefálica e na asusência de contraindicação.

Diagnóstico diferencial

O edema palpebral presente, quer na celulite pré- como pós-septal, pode ter múltiplas causas, a destacar: reacção alérgica, hipoproteinémia (edema bilateral), enfarte da parede da órbita e hematoma subperióstico (por doença de células falciformes, designadamente).

O diagnóstico diferencial de proptose inclui inúmeras patologias de origem infecciosa e não-infecciosa: trombose do seio cavernoso, pseudotumor da órbita, granulomatose de Wegener, sarcoidose, linfoma, rabdomiossarcoma, retinoblastoma, histiocitose X e doença de Graves (proptose bilateral). A síndroma do apex orbitário, que pode decorrer destas etiologias, pode ser forma de apresentação de mucormicose ou aspergilose em doentes imunocomprometidos.

Tratamento

As celulites pré e pós-septal devem ser rápida e agressivamente tratadas. A escolha de antibioticoterapia deve ser feita de acordo com o ponto de partida de infecção presumível, idade do doente, presença de co-morbilidades e complicações.

Na celulite pré-septal poderá ser considerado o tratamento em regime ambulatório e por via oral nas crianças de idade superior a 1 ano, sem doença subjacente, sem sinais sistémicos, com condições para boa adesão à terapêutica, e garantia de vigilância médica 24 horas após o início do mesmo.

A amoxicilina com ácido clavulânico ou a cefuroxima oral são boas opções terapêuticas nas crianças em que o ponto de partida aparenta ser sinusite, infecção odontogénica, conjuntivite ou mordedura de cão. Na presença de hordéolo, calázio, dacrioadenite, dacriocistite, lesão cutânea ou picada de insecto a escolha é a flucloxacilina.

A celulite pós-septal deve ser sempre tratada em regime de internamento, com vigilância rigorosa dos sinais clínicos sugestivos de extensão ou complicação do processo infeccioso. Nestes casos, as opções terapêuticas devem ser de aplicação intravenosa:

  • amoxicilina com ácido clavulânico (50 mg/kg/dose 8/8h de amoxi-) ou,
  • cefuroxima (150 mg/kg/dia 8/8h) associada ou não à clindamicina (30-40 mg/kg/dia 6/6h).

Na suspeita de bacteriémia é preferível optar por ceftriaxona (100 mg/kg/dia 24/24h) ou cefotaxima (200 mg/kg/dia 6/6h).

No abcesso subperióstico ou orbitário associa-se habitualmente a clindamicina ou o metronidazol à cefalosporina de terceira geração.

Nos doentes com suspeita de extensão intracraniana, deve optar-se por ceftriaxona ou cefotaxima (200 mg/kg/dia 6/6h) em associação à vancomicina (60 mg/kg/dia 8/8h) e metronidazol (30 mg/kg/dia 8/8h).

Nos doentes com celulite não complicada é possível a transição para terapêutica oral após 24h de apirexia, na condição de se verificar melhoria dos sinais inflamatórios locais, habitualmente após 3 a 5 dias de terapêutica intravenosa. A duração total é de 10 dias, excepto nos casos de sinusite aguda (14 dias), complicações intracranianas (4-8 semanas) e de sinusite etmoidal com destruição óssea (6-8 semanas).

Na suspeita de infecção confirmada por S. aureus meticilino-resistente (MRSA) é recomendado o uso de vancomina.

Nos casos de infecção em doentes imunocomprometidos ou com outros factores de risco (por ex. diabetes mellitus mal controlada), deve ser considerada a etiologia fúngica e ponderar-se a instituição de antifúngico.

A terapêutica adjuvante com descongestionantes nasais, por um período de 7-10 dias e nos casos em que o factor predisponente é sinusite, pode facilitar a drenagem do seio infectado e promover a resolução do quadro. O uso de corticosteróides é controverso.

Salienta-se que a celulite pós-septal implica uma abordagem multidisciplinar, incluindo obrigatoriamente otorrinolaringologista, oftalmologista e neurocirurgião.

As situações que requerem intervenção cirúrgica urgente incluem: diminuição da acuidade visual, oftalmoplegia, sinusite frontal (Pott tuffy tumor, osteíte frontal), abcesso subperióstico de grandes dimensões (>10 mm) ou não-medial, abcesso orbitário, complicações intracranianas e ausência de melhoria ou agravamento clínico após 24-48h de antibioticoterapia adequada.

A abordagem cirúrgica do abcesso subperióstico é controversa. Alguns estudos defendem iniciar antibioticoterapia em crianças pequenas (< 9 anos), seguida de cirurgia na ausência de melhoria ou agravamento, o que requer uma monitorização rigorosa; alguns autores elegem o volume como melhor critério para escolha de abordagem, considerando que um abcesso que corresponda a > 1,25 cm3 deve ser submetido a intervenção cirúrgica.

O tratamento com anticoagulante na trombose do seio cavernoso, para além da terapêutica antibiótica e doutras medidas de suporte vital, é controverso. Alguns autores defendem os seus benefícios quando iniciado precocemente em doentes sem evidência de hemorragia.

Prognóstico

O prognóstico de celulite pré-septal é favorável após instituição de terapêutica adequada.

Raramente há progressão para celulite pós-septal ou complicações. Contrariamente, a celulite pós-septal é uma situação que comporta elevado risco: pode levar a perda visual definitiva, a complicações intracranianas e, até, à morte.

Na maioria dos casos em que a abordagem terapêutica médica e/ou cirúrgica é concretizada de forma urgente e eficaz (conforme é recomendado), não se verificam sequelas.

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Definições e importância do problema

O agente Streptococcus pneumoniae ou pneumococo é uma bactéria Gram-positiva (diplococo) que tem uma estrutura e um comportamento biológico muito complexos, uma vez que na sua cápsula, fortemente antigénica, existem 93 polissacáridos química e imunologicamente diferentes, com patogenicidade e virulência variáveis. A patogenicidade e virulência traduzem-se designadamente no impedimento da fagocitose pelos polimorfonucleares do hospedeiro. Segundo a classificação actual, existem 40 serogrupos e 93 serótipos.

Os anticorpos protectores são dirigidos contra os polissacáridos capsulares e são específicos de tipo; ou seja, a imunização contra determinado serótipo não protege das infecções provocadas por outros serótipos, o que explica a possibilidade de ocorrência de múltiplas infecções por este agente.

Colonizando o tracto respiratório superior, é a causa mais frequente de infecções do tracto respiratório superior (otite média, rino-sinusite) e inferior (pneumonia), doença invasiva (pneumonia, bacteriémia, meningite) e bacteriémia no período pós-neonatal. Pode ainda causar osteomielite, artrite séptica, pericardite e peritonite. Em regra, emprega-se o termo de doença pneumocócica para designar o conjunto de infecções provocadas por este agente. Esta entidade tem forte impacte em saúde pública pelo aumento crescente de estirpes resistentes à penicilina e a outros antibióticos em todo o mundo.

Calcula-se que anualmente este micorganismo seja responsável por 1 milhão de mortes em crianças com < 5 anos de idade, sobretudo em países em vias de desenvolvimento. A imunização universal com vacinas conjugadas tem vindo a modificar a epidemiologia da infecção penumocócica, reduzindo o número de portadores na nasofaringe e a prevalência dos serótipos mais virulentos. Tal facto tem tido repercussões na redução da incidência de doença pneumocócica, não só em crianças vacinadas, como também em crianças e adultos não vacinados pelo efeito de imunidade de grupo conferida pela vacina. Nos EUA, os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) reportam que a doença pneumocócica invasiva (DIP) diminuiu de 100/100.000 casos em 1998 para 9/100.000 em 2015. Se avaliarmos apenas a doença invasiva causada pelos 13 serótipos cobertos pela vacina pneumocócica conjugada 13-valente (PVC13), então esta entidade diminuiu, entre 1998 e 2015, de 91/100.000 para 2/100.000 casos.

Em Portugal, a vacina conjugada para 7 serótipos – heptavalente (PVC7) passou a ser comercializada, extra-Programa Nacional de Vacinação/PNV em 2001 e, em 2010, subtituída pela PVC13. Neste período, em que as taxas de vacinação variaram entre 60-80%, a incidência da DIP diminui de 52/100.000 para 33/100.000 casos em crianças com menos de 12 meses de idade, com uma diminuição global da incidência em todos os grupos etários.

A PVC13 foi introduzida no PNV em Julho de 2015 no nosso País, passando a DIP a ser considerada doença de declaração obrigatória.

Aspectos epidemiológicos

Os pneumococos são ubíquos. A bactéria coloniza a nasofaringe de indivíduos saudáveis (~50% de crianças e ~8% de adultos), ocorrendo a transmissão através de gotículas de saliva. O período de contágio é desconhecido, salientando-se que se mantém enquanto a bactéria estiver presente nas secreções respiratórias. O período de incubação varia de acordo com o tipo de infecção, entre 1 a 3 dias.

A incidência da doença pneumocócica varia com grupo etário, sexo, raça e origem geográfica. A DIP é mais frequente em crianças com menos de 2 anos, em adultos com mais de 65 anos de idade, no sexo masculino, em africanos, indianos e nativos do Alasca. A incidência também é mais elevada em países em vias de desenvolvimento. Estas diferenças quanto a frequência da afecção relacionam-se com factores socioeconómicos e possivelmente também com factores genéticos.

A morbilidade e mortalidade da doença invasiva também é mais elevada em crianças com síndromas de imunodeficiência humoral (infecção por VIH, agamaglobulinémia, deficiência selectiva de subclasses de IgG), deficiência de complemento (sobretudo C1, C2, C3 e C4), disfunção dos neutrófilos ou neutropenia, deficiente ou ausente função esplénica (asplenia congénita ou cirúrgica, doença de células falciformes, outras hemoglobinopatias), síndroma nefrótica, insuficiência renal crónica, status pós-transplantação de órgão, doença oncológica, diabetes mellitus, condições associadas à diminuição do processo de depuração respiratória (asma, doença pulmonar obstrutiva crónica, bronquite crónica) e insuficiência cardíaca. Os doentes com defeitos congénitos e fístula de comunicação exterior e eliminação de LCR, fractura craniana ou submetidos a intervenção neurocirúrgica, comportam também risco mais elevado de doença invasiva pneumocócica.

A permanência em locais com aglomerados de pessoas aumenta o risco de infecção pneumocócica por haver uma maior exposição e possibilidade de transmissão do agente. As crianças que frequentam infantários, onde se combinam vários factores de risco de disseminação do pneumococo, têm também risco mais elevado de otite e doença invasiva. As infecções víricas do tracto respiratório superior são outro factor predisponente de infecções pneumocócicas, o que poderá explicar a sua maior frequência nos meses de Inverno.

Os portadores de Streptococus pneumoniae, ou seja, pessoas assintomáticas, sem doença, transmitem a bactéria a outras pessoas. As crianças, sobretudo em idade pré-escolar, constituem um importante reservatório e potencial disseminador da infecção (salientando-se, a propósito, que nos adultos as taxas de colonização são mais elevadas quando convivem com crianças).

A prevalência do estado de portador depende ainda da interacção bactéria/hospedeiro, da idade, da situação imunológica e da relação entre pneumococo e outros microrganismos da nasofaringe. Vários outros factores potenciam o estado de portador: a frequência de infantário, exposição a fumo de tabaco e uso recente e abusivo de antibióticos.

O Quadro 1 sintetiza os principais factores de risco de doença pneumocócica invasiva.

QUADRO 1 – Factores de risco de doença pneumocócica invasiva.

Alto risco (> 150 casos/100.000/ano)  
    • doença de células falciformes, asplenia congénita ou adquirida, ou disfunção esplénica
    • infecção por VIH
    • implantes cocleares
Alto risco provável
    • síndroma de imunodeficiência congénita
    • cardiopatia crónica (particularmente se cianótica)
    • doença pulmonar crónica
    • fractura do crânio, procedimento neurológico, ou fuga de LCR através de trajecto fistuloso
    • insuficiência renal crónica, síndroma nefrótica
    • doenças associadas a tratamento com imunossupressores ou radioterapia
    • diabetes
mellitus
Risco moderado (~20-150 casos/100.000/ano)
    • crianças com idades de 24-35 meses
    • crianças com idades de 36-59 meses em infantários
    • idem se etnia africana ou índia- americana/descendentes de nativos do Alasca

Etiopatogénese

Nas crianças, principalmente nas mais pequenas, ao ser adquirido um novo serótipo do pneumococo, surge doença clínica em 15% dos casos, cerca de um mês depois. A progressão do estado de colonização para o estado de doença depende habitualmente da aquisição de um serótipo para o qual o hospedeiro não está imune (ver atrás), e da existência de factores predisponentes.

Quando o pneumococo atinge a nasofaringe, a respectiva cápsula (de cuja espessura poderá depender a virulência) limita a fagocitose. Por outro lado, desencadeiam-se mecanismos locais de depuração que tentam remover o agente, ao mesmo tempo que ocorre resposta imune que inclui produção de anticorpos específicos para a cápsula do serótipo em causa, os quais influem na opsonização e fagocitose, na produção de IL-6, TNF, IL-1 e no influxo de neutrófilos para o local de infecção.

Estudos in vitro demonstraram o papel importante duma proteína A ligada à colina (CbpA) na superfície capsular que facilita a entrada do pneumococo nas células do epitélio, o que é facilitado se tiver havido uma infecção vírica prévia.

O agente infeccioso pode progredir para o ouvido médio, tracto respiratório inferior, ou corrente sanguínea e atingir órgãos e tecidos vários (por ex. articulações), espaço subaracnoideu e meninges (podendo estas últimas ser invadidas por extensão directa através do ouvido médio ou seios perinasais).

Por outro lado, foi demonstrado o papel duma toxina (pneumolisina -Ply) com acção lesiva na estrutura e função das células epiteliais brônquicas, designadamente na destruição dos cílios o que, comprometendo os mecanismos de depuração brônquica, facilita a disseminação do agente para as vias mais distais. Outra acção da Ply é a inibição da produção de citocinas pelos neutrófilos e a toxicidade para as células cocleares, o que explica a ocorrência de perda auditiva em crianças com antecedentes de doença pneumocócica.

Manifestações clínicas

Otite média aguda

Na criança a infecção mais frequente causada por Streptococcus pneumoniae é a otite média aguda (OMA). Por outro lado, o referido agente é também a causa mais frequente de otite na idade pediátrica, estimando-se que seja responsável por 40 a 60% de todos os episódios de OMA entre os 6 meses e os 2 anos de idade; a otalgia, a irritabilidade na criança mais pequena, a febre e o eritema da membrana timpânica são habitualmente mais marcados que nas otites de outra etiologia. Comparativamente a outros agentes, na otite pneumocócica a remissão espontânea na ausência de tratamento é mais rara e o aparecimento de complicações é mais frequente.

Mastoidite e sinusite

Streptococcus pneumoniae é responsável por cerca de 45% dos casos de mastoidite aguda, a complicação mais frequente da OMA; de salientar que um elevado número de casos se associa a uma incorrecta terapêutica desta última.

A verdadeira incidência da sinusite pneumocócica na criança é desconhecida, possivelmente por se tratar duma entidade clínica muitas vezes subdiagnosticada. Estima-se que o pneumococo cause 35 a 40% das sinusites bacterianas na criança.

Pneumonia

Streptococcus pneumoniae é a causa mais frequente de pneumonia adquirida na comunidade. Classicamente a febre é superior a 39ºC, com início súbito, acompanhada de tosse, prostração, vómitos, dor torácica ou abdominal, salientando-se que na criança mais pequena o quadro poderá ser menos exuberante.

Um padrão radiológico de infiltrados alveolares, com consolidação lobar em 50% dos casos, com ou sem derrame pleural, um valor de leucócitos > 15.000/mm3, de neutrófilos > 70% e de proteína C reactiva (PCR) > 6 mg/dL poderão contribuir para o diagnóstico etiológico. Se existir bacteriémia, as complicações são mais frequentes.

Bacteriémia

Streptococcus pneumoniae é responsável por cerca de 85-90% das bacteriémias na idade pediátrica. Bacteriémia oculta (BO), definida pela presença de bactérias no sangue detectada por hemocultura, em criança febril, sem foco identificado, com bom estado geral (por conseguinte, sem sinais clínicos sugestivos de sépsis), é a manifestação mais frequente de doença invasiva pneumocócica entre os 90 dias e os 3 anos de idade.

No exame objectivo não são evidenciadas alterações. Em cerca de 40% das crianças a febre tem uma duração inferior a 1 dia e em 82%, inferior a 2 dias. Valores de leucócitos > 15.000/mmc e de neutrófilos > 10.000/mmc são altamente preditivos de bacteriémia. Na maioria dos casos, a BO regride espontaneamente, conquanto ~10% desenvolvam complicações focais, e ~3-6% meningite.

Meningite

Streptococcus pneumoniae é a causa mais frequente de meningite bacteriana. As manifestações clínicas típicas de febre, vómitos, meningismo e irritabilidade têm um início súbito e evolução rápida. Em cerca de 25% dos casos ocorrem convulsões, e em cerca de 15%, alterações do estado de consciência, coma e choque séptico. A presença de febre prolongada por um período até 10 dias, ou febre recorrente após apirexia, associa-se habitualmente a complicações precoces tais como derrame subdural ou empiema. Deve considerar-se a repetição de punção lombar após 24-48 horas de terapêutica no caso de não se verificar melhoria clínica, ou de se identificar um pneumococo não susceptível à penicilina. Constitui factor de mau prognóstico valor de leucócitos no sangue periférico < 5.000/mmc.

Os achados característicos no LCR são: leucócitos > 100 a 10.000/mmc com predomínio de neutrófilos (excepto na circunstância de tratamento prévio), proteínas > 100-500 mg/dL e glicose < 40 mg/dL (ou < 50% do valor da glicémia).

O atraso do início da antibioticoterapia agrava o prognóstico. A mortalidade varia entre 10 a 20% e, a longo prazo, em cerca de 25 a 35% das crianças poderão surgir sequelas neurológicas graves como surdez, disfunção motora, epilepsia, atraso do desenvolvimento e problemas de aprendizagem ou de insucesso escolar.

Outros quadros clínicos

Streptococcus pneumoniae pode ainda (mais raramente) causar outros quadros clínicos como pneumococcemia fulminante, artrite séptica, osteomielite, celulite, peritonite, endocardite, SHU, CIVD e pericardite. Nestas situações existem habitualmente factores de risco (descritos no capítulo sobre Pneumonias).

Diagnóstico

Exames culturais

O diagnóstico definitivo baseia-se na identificação de Streptococcus pneumoniae no foco de infecção, LCR ou sangue, por exame cultural.

Embora os pneumococos possam ser detectados na nasofaringe de doentes com otite média, pneumonia, septicémia ou meningite, tal isolamento não deve ser interpretado como indicativo de infecção, uma vez que poderá tratar-se de colonização do tracto respiratório superior. Por este motivo as provas rápidas para detecção de antigénios não têm qualquer interesse e não devem ser realizadas.

O agente infeccioso pode ser identificado no LCR sem reacção celular significativa nas fases iniciais de meningite. Está indicado proceder a hemoculturas nos casos de pneumonia, meningite, artrite, osteomielite, peritonite, pericardite ou lesões gangrenosas da pele e sempre que se verifique mau estado geral ou leucocitose significativa. Actualmente os métodos laboratoriais permitem obter resposta em menos de 24 horas.

Em todos os exames culturais deve proceder-se a testes de susceptibilidade aos antimicrobianos (TSA) e determinar a concentração inibitória mínima (CIM) para a penicilina como orientação da terapêutica de cada caso e com objectivo epidemiológico.

Serotipagem

Pelas implicações clínicas, epidemiológicas e de saúde pública, torna-se fundamental proceder a esta técnica, designadamente para identificação ou exclusão de serótipos associados a doença invasiva.

Testes de biologia molecular

Na ausência de identificação do microrganismo em exames culturais, o diagnóstico etiológico deve ser realizado por técnicas de biologia molecular com pesquisa de sequências específicas de ARN ou de ADN em produtos no local da infecção.

Outros exames

Determinados achados laboratoriais, como valor de leucócitos >15.000/mm3, valor de proteína C reactiva > 6 mg/dL ou imagiológicos, como padrão radiográfico torácico de consolidação lobar ou segmentar poderão complementar os dados clínicos e orientar o diagnóstico. Salienta-se que nos casos graves de doença pneumocócica, como anteriormente referido, poderá verificar-se leucopénia com desvio à esquerda.

Tratamento

A escolha da antibioticoterapia deve basear-se no conhecimento epidemiológico e na susceptibilidade aos antimicrobianos, tendo em conta: – a localização da infecção; – o local e gravidade do quadro clínico; e – factores de risco do hospedeiro.

As resistências do pneumococo aos antibióticos constituem um problema crescente a nível mundial. As resistências à penicilina (entre 20 e 70%) e à ceftriaxona têm vindo a aumentar. Os serótipos 6B, 9A, 14, 19A, 19F e 23F, que mais frequentemente causam doença invasiva, evidenciam também resistências elevadas à penicilina.

No nosso País, o conhecimento epidemiológico das susceptibilidades (ou sensibilidades) aos antimicrobianos indica que a terapêutica de eleição das infecções pneumocócicas continua a ser a penicilina.

A este respeito convém reter algumas noções práticas:

  1. Os pneumococos são considerados como sendo susceptíveis, resistentes ou com resistência intermédia a vários antibacterianos, com base na verificação da concentração inibitória mínima (CIM), tendo como referência certos limites desta. Por exemplo, considerando-se a resistência à penicilina, na prática e em geral, a mesma é considerada intermédia se se verificar CIM entre 0,1-1µg/mL, e elevada se > 2 µg/mL.
  2. Mesmo na presença de pneumococos resistentes à penicilina (PnRP), em infecções localizadas no ouvido e aparelho respiratório, onde é possível obter concentrações mais elevadas que as CIM para o microrganismo, recomenda-se a penicilina ou a amoxicilina em doses elevadas, sendo de notar que a formulação pediátrica de penicilina por via oral não está disponível em Portugal.
  3. No LCR, cujas CIM bactericidas necessárias para a erradicação do agente são mais elevadas, na presença de PnRP deve optar-se por outros antibióticos.

A antibioticoterapia empírica deve realizar-se de acordo com as diferentes entidades clínicas da doença pneumocócica apresentadas nos Quadros 2 e 3, estando implícita a noção da necessidade de proceder à realização do TSA concomitantemente, a ponderar em função do contexto clínico.

QUADRO 2 – Antibioticoterapia nas infecções pneumocócicas.

Entidade AntibióticoDuraçãoComentário
Otite MédiaAmoxicilina5-7 diasTimpanocentese com colheita de pus para exame
cultural e TSA na otite média crónica ou refractária à terapêutica
Mastoidite Amoxicilina10 diasTimpanocentese com colheita de pus para exame
cultural e TSA
Sinusite Amoxicilina14 dias 
Pneumonia Penicilina G cristalina
ou Amoxicilina
10 diasO resultado do exame cultural das secreções pode
ser falso positivo por colonização da nasofaringe
Realizar 2 hemoculturas
Bacteriémia Amoxicilina;
Ceftriaxona (alternativa) se: Doentes de risco; Se CIM > 2 μg/mL;
Febre alta com aspecto geral de doença
7 a 10 diasRealizar 2 hemoculturas (cada colheita com 2 mL
de sangue no mínimo) com TSA/CIM
Meningite Iniciar com ceftriaxona e vancomicina até se conhecer TSA/CIMCeftriaxona+Vancomicina+ Rifampicina
Se CIM > 2 μg/mL
14 dias
21 dias se
complicações
Modificar a terapêutica de acordo com TSA/CIM
Solicitar CIM para Ceftriaxona
Abreviatura: PnPs = Pneumococo sensível à penicilina

QUADRO 3 – Doses e Intervalos de administração dos antibióticos.

Antibiótico Dose diária Dose máxima Nº de administrações
Amoxicilina 80-100 mg/Kg/dia 3 g 2-3
Penicilina 200.000-400.000 UI/Kg/dia 30.000.000 UI 4
Ceftriaxona 100 mg/Kg/dose 4 g 1-2
Vancomicina 60 mg/Kg/dia 2 g 3
Rifampicina 20 mg/Kg/dia 1,2 g 2

Prognóstico

A gravidade da doença depende de variáveis como o local da infecção, factores do hospedeiro, factores de virulência do agente e mecanismos de resistência aos antibióticos. O Quadro 1, sintetizando factores de risco de grau variável, permite compreender o resultado final.

Prevenção

Medidas não imunológicas

As medidas não imunológicas incluem a redução dos factores de risco da doença e do estado de portador, o uso criterioso de antibióticos em geral, e a modificação de alterações anatómicas predisponentes à infecção pneumocócica.

Medidas imunológicas

As vacinas conjugadas e as vacinas polissacarídicas polivalentes assumem um papel de primordial importância nas estratégias de prevenção da doença pneumocócica.

A vacina conjugada heptavalente, a primeira a ser comercializada, que conferia protecção para os serótipos 4, 6B, 9V, 14, 18C, 19F e 23F, contribuiu para a diminuição da incidência da DIP, da colonização da nasofaringe e da transmissão interpessoal em idades precoces. Actualmente a vacina conjugada para 13 serótipos inclui, para além dos anteriores, os seguintes serótipos 1, 5, 7F, 3, 6A e 19A.

Em Portugal, à semelhança de outros países em que esta vacina está incluída em PNV, espera-se diminuição significativa da doença invasiva na criança e, adicionalmente, efeito de imunidade de grupo, também no adulto.

A vacina polissacarídea confere protecção para 23 serótipos, mas a sua eficácia é bastante menor que a conferida pelas vacinas conjugadas e só pode ser admistrada a partir dos 2 anos de idade.

Crianças e adolescentes com risco aumentado de DIP devem receber a vacina VPC13 e também a vacina polissacarídea para 23 serótipos (intervalo de dois meses entre elas).

Quimioprofilaxia

Uma vez que as vacinas actuais não previnem a totalidade de infecções pneumocócicas invasivas, nas crianças com alto risco de DIP (Quadro 1), incluindo crianças com asplenia ou síndromas falciformes, é recomendada a profilaxia com penicilina G benzatínica até aos 5 anos.

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Definição e importância do problema

As infecções devidas ao microrganismo Streptococcus beta hemolítico do grupo A de Lancefield (SGA), também denominado Streptococcus pyogenes, integrando o conceito de doença estreptocócica, são dum modo geral benignas e de curta duração; no entanto, salienta-se a possibilidade, quer de formas clínicas muito graves, potencialmente letais, quer de complicações e sequelas não supuradas, tais como a febre reumática e a glomerulonefrite pós-estreptocócica.

Citam-se como exemplos de formas clínicas de doença estreptocócica (em > 90% dos casos provocadas pela espécie S. pyogenes): faringoamigdalite, escarlatina, impétigo, erisipela, bacteriémia, vaginite, dermatite perianal, pneumonia, e doença invasiva grave (como celulite e bacteriémia, fascite necrosante e síndroma de choque tóxico, etc.).

Neste capítulo, abordando aspectos globais da epidemiologia, etiopatogénese, prevenção e tratamento, é dada ênfase à entidade clínica Escarlatina tipificando historicamente uma forma clássica de infecção por Streptococcus pyogenes.

Por outro lado, faz-se referência sucinta aos critérios de diagnóstico da Síndroma de choque tóxico estreptocócico como modelo de doença invasiva; este tópico é abordado na Parte sobre Urgências e Emergências.

Outros tipos de infecções pelo agente infeccioso em causa SGA (por ex. fascite necrosante erisipela, etc.) são descritos no capítulo dedicado às infecções da pele e dos tecidos moles.

Aspectos epidemiológicos

A doença estreptocócica é uma doença endémica nas grandes cidades, sendo o ser humano, de qualquer idade, o reservatório natural de SGA, germe bacteriano muito transmissível. É mais comum nos meses de inverno e início da primavera, em crianças acima dos 3 anos de idade, particularmente entre os 5 e os 15 anos. A doença é rara em lactentes devido à transmissão de anticorpos maternos, embora possa ocorrer em situações de epidemia, nomeadamente em infantários.

O modo de transmissão da infecção faz-se principalmente através de gotículas de saliva ou secreções nasais por contacto directo com um doente, pelo que é mais frequente em meios de maior densidade populacional, como escolas, grupos de desportos de contacto e instituições militares. Durante os meses de inverno, cerca de 15% a 25% das crianças são portadores assintomáticas de SGA na faringe, mas o risco de transmissão é baixo porque a bactéria perde virulência na faringe do portador. As razões imunológicas para a persistência da bactéria nas vias respiratórias superiores ainda não estão completamente explicadas.

A transmissão pode também fazer-se indirectamente por objectos ou alimentos contaminados pelas mãos de doentes. Foram descritas epidemias de amigdalofaringite provocada por ingestão de alimentos contaminados preparados, ou refrigerados, em más condições de higiene.

O epitélio estratificado da orofaringe e a pele são as principais barreiras contra a doença invasiva por SGA, mas a faringe é o ponto de partida mais frequente em situações de bacteriémia. Por vezes a porta de entrada pode ser uma ferida, uma queimadura ou outra lesão cutânea.

Etiopatogénese

O género Streptococcus constitui um grupo heterogéneo de bactérias responsáveis por quadros clínicos diferentes dependendo de vários factores: 1 – características próprias do tipo de Streptococcus responsável; 2 – porta de entrada; 3 – características do hospedeiro, como a sua idade e situação imunitária.

Estão descritos três esquemas de classificação deste microrganismo (coco gram-positivo que se apresenta em cadeias ou pares) de acordo com:

I – propriedades serológicas – consoante o grupo de polissacáridos da parede celular, com propriedades antigénicas específicas, a bactéria classifica-se em grupos de Lancefield, discriminados de A a V.

II – características hemolíticas – de acordo com o tipo de hemólise produzida por colónias da bactéria a crescer em placas de agar. O SGA, beta-hemolítico, produz uma hemólise completa no meio de cultura.

III – propriedades bioquímicas e fisiológicas – responsáveis pela virulência da bactéria.

Na parede celular encontram-se os factores responsáveis pela gravidade do quadro clínico.

A estrutura antigénica do Streptococcus pyogenes (SGA) baseia-se na camada de peptidoglicano da parede celular. A cápsula propriamente dita não é imunogénica, mas protege a bactéria da fagocitose pelo hospedeiro. Este agente pode ser subdividido em mais do que 220 serótipos com base no antigénio designado por proteína M localizada na superfície celular e nas fímbrias que se projectam da superfície externa da parede celular da bactéria; tal proteína promove a adesão da bactéria às células epiteliais do hospedeiro, contribuindo para a resistência da bactéria à fagocitose. É a proteína associada à maior virulência do agente SGA: estirpes ricas em proteína M resistem à fagocitose e fixam-se mais facilmente às células epiteliais faríngeas e à pele, ao contrário de estirpes sem a referida proteína.

A serotipagem M – com base em técnicas moleculares através de PCR, sequenciação ADN, etc. – tem grande valor em estudos epidemiológicos; com efeito, certas doenças específicas causadas por SGA estão associadas a certos tipos de proteína M. Os tipos 1, 12, 28, 4, 3 e 2 (por esta ordem) são causa frequente de faringite não complicada e raramente associados a infecções cutâneas. Algumas estirpes infectando a faringe (por ex. M tipo 12), estão associadas a glomerulonefrite, enquanto maior número de estirpes infectando a pele (por ex, M tipos 49, 55, 57, e 60) são consideradas nefritogénicas. Vários serótipos associados a infecção da faringe, mas não da pele (por ex. M tipos 1, 3, 5, 18, 29) estão associados a febre reumática aguda.

O agente SGA/S. pyogenes produz uma variedade de enzimas, incluindo as toxinas eritrogénicas (hoje conhecidas por exotoxinas pirogénicas estreptocócicas, – no total em número de 12); as designadas pelas letras A, B e C são responsáveis pelo exantema da escarlatina. Estas últimas 3 exotoxinas estimulam a formação de anticorpos/antitoxinas que conferem imunidade contra o exantema escarlatiniforme, mas não contra outras infecções estreptocócicas. Como os anticorpos formados são específicos da toxina, um doente poderá ter mais de um episódio de exantema.

Determinadas exotoxinas estão relacionadas com a patogénese da síndroma de choque tóxico estreptocócico.

Seguidamente são descritos outros dos componentes da bactéria, dando ênfase a certas funções específicas dos mesmos.

  • proteínas simile M, e outras proteínas da superfície celular, responsáveis pela inibição da protease.
  • proteínas F, responsáveis pela adesão da bactéria às células epiteliais do hospedeiro.
  • estreptolisina S, uma hemolisina que contribui para a lise dos leucócitos, plaquetas e eritrócitos.
  • estreptolisina O, estimulando a libertação de enzimas hidrolíticas pelos lisossomas e contribuindo para a lise dos leucócitos.
  • estreptoquinase, facilitando a invasão tecidual da bactéria.
  • hialuronidase.
  • DNAases – desoxirribonucleases despolimerizando o ADN livre no pus, reduzindo a viscosidade do material abcedado e facilitando a disseminação da bactéria.
  • C5a peptidase, componente do complemento mediando a inflamação e activando as células fagocitárias.
  • exotoxinas piogénicas (SPE) – A, C, e F, funcionando como superantigénios provocando síndroma de choque tóxico.

Formas clínicas

Nesta alínea é dada ênfase a amigdalofaringite, escarlatina (mais pormenorizadamente como paradigma por razões históricas e didácticas) e síndroma de choque tóxico estreptocócico tendo em conta que outras formas clínicas como a erisipela, o impétigo a celulite e a fascite necrosante integram o capítulo seguinte. (Infecções da pele e dos tecidos moles)

Amigdalofaringite

Em complemento do que foi referido na Parte sobre Otorrinolaringologia, cabe salientar que a colonização da faringe por S. pyogenes pode produzir estado de portador assintomático ou infecção aguda. A proteína M é responsável pela virulência, já que condiciona a resistência do microrganismo à fagocitose pelos polimorfonucleares.

Como dados clínicos sugestivos de faringite estreptocócica citam-se: odinofagia de início súbito, febre, cefaleia, vómitos, eritema faríngeo acompanhado ou não de exsudado e adenopatias cervicais. Ocasionalmente pode surgir tumefacção da úvula, petéquias no palato mole e exantema escarlatiniforme.

Escarlatina

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Na sequência do que foi descrito na alínea Etiopatogénese, para que uma infecção estreptocócica se expresse clinicamente como escarlatina há que atender aos seguintes critérios: – Streptococcus infectante (dos tipos A- mais frequentemente, B ou C) produtor de exotoxina pirogénica; – ocorrência em indivíduos sem imunidade humoral antitoxina e antibacteriana.

Uma vez que a exposição a cada tipo de exotoxina somente gera imunidade específica, tal pressupõe que um paciente possa apresentar escarlatina em três ocasiões diferentes/até três vezes.

A escarlatina é actualmente menos frequente e, sobretudo com manifestações mais ligeiras do que no passado, mas tem uma incidência cíclica, dependente da prevalência das estirpes produtoras de toxina e do estado imunitário da população. A porta de entrada do Streptococcus pyogenes pode ser uma ferida na pele.

Após período de incubação de 2-4 dias, nos casos típicos a doença manifesta-se de forma aguda pela tríade: 1 – febre; 2 – faringite ou amigdalite eritemato-pultácea aguda; e 3 – exantema máculo-papular ou punctiforme, muito fino de aspecto granitado e áspero (tipo lixa) confluente, diminuindo de intensidade quando se faz pressão com o dedo.

A febre alta, máxima pelo 2º dia, persiste durante 3 a 5 dias, acompanhada de cefaleias, vómitos, odinofagia, dor abdominal e taquicardia desproporcionada em relação com a temperatura. Nos casos graves, a temperatura elevada pode ser mais prolongada e, nalguns casos, é baixa e poderá mesmo não se verificar.

Cerca de 24 a 48 horas depois do início da febre, surgindo o exantema descrito, o mesmo progride rapidamente a partir do pescoço para o tronco e extremidades (Figuras 1 e 2). É mais acentuado (por vezes associado a petéquias e hiperpigmentação) nas pregas de flexão, como as axilas, pregas do cotovelo e região inguinal (sinal de Pastia) (Figura 3). Na face, a região malar pode apresentar-se eritematosa, mas verifica-se ausência de rubor ou “palidez” relativa (sinal designado por “triângulo perioral de Pilatov”). A prova de Rumpel-Leed é positiva.

Em 4 a 8 dias, a erupção regride, surgindo descamação da pele atingida, a qual pode durar entre 1-3 semanas (intensidade e duração proporcionais à intensidade do exantema). Começa pela face em flocos finos, estendendo-se depois para o tronco e, finalmente, para as extremidades, tornando-se generalizada pela 3ª semana. No tronco faz-se em grandes lâminas, sendo visível nas mãos e pés, em geral pela 2ª-3ª semana. Os topos dos dedos mostram uma descamação característica na margem livre das unhas; a mesma descamação atinge a palma das mãos e plantas dos pés.

Na boca, observa-se um enantema com petéquias na úvula, véu do paladar e pilares anteriores das amígdalas. Para além do aspecto inflamado da faringe e amígdalas, verifica-se um exsudado amigdalino branco nacarado, mucopurulento desde o 2º dia de doença (amigdalite eritemato-pultácea). A língua tem inicialmente um aspecto saburroso, adquirindo posteriormente o aspecto típico de “língua de framboesa branca” devido à cor (inicialmente rósea e depois vermelha) e ao ingurgitamento das papilas (Figura 4). É habitual a coexistência de gânglios cervicais anteriores aumentados de volume e dolorosos, assim como de vómitos.

FIGURA 1. Escarlatina: exantema notório na face e tronco, sendo menos acentuado na região peribucal (sinal de Pilatov). (NIHDE)

FIGURA 2. Escarlatina: exantema na face e tronco. (NIHDE)

FIGURA 3. Escarlatina: sinal de Pastia. (NIHDE)

FIGURA 4. Escarlatina: língua de framboesa. (NIHDE)

Depois de um intervalo livre de 10 ou 15 dias, podem surgir como complicações, respectivamente, uma glomerulonefrite aguda ou febre reumática. A terapêutica correcta não anula o risco de complicações, mas diminui-o de forma significativa. O risco de contrair febre reumática após uma infecção estreptocócica é inferior a 1%, enquanto o risco de contrair glomerulonefrite é de cerca de 10% se a estirpe for nefritogénica.

 Complicações

As complicações supurativas, ocorrem geralmente no final da primeira semana de doença e são: adenite cervical supurada, abcessos retrofaríngeo e/ou periamigdalino. Estas complicações, resultantes da extensão da infecção a estruturas vizinhas, são actualmente raras devido ao diagnóstico atempado e ao uso correcto de terapêutica antibiótica. As complicações não supurativas, detectadas após um intervalo livre de 2 a 3 semanas, são a glomerulonefrite aguda (GNA) e a febre reumática (FR). Salienta-se que a GNA pode ocorrer após infecção por SGA das vias respiratórias ou da pele, enquanto a FR ocorre somente após infecção das vias respiratórias superiores.

Duas outras entidades nosológicas foram descritas como possível complicação de infecção por SGA:

  • Artrite reactiva pós-estreptocócica – Cerca de 10 dias após infecção aguda por SGA podem ocorrer manifestações de artrite sem critérios clínicos ou laboratoriais que preencham os critérios de Jones para o diagnóstico de FR. A artrite, tipicamente não migratória, ao contrário da FR, envolve geralmente as grandes articulações, mas também as pequenas articulações. Também, ao invés do que acontece na FR, a resposta aos AINE não é boa. A relação entre esta artrite reactiva e a FR não é clara. Todavia, como um número muito reduzido destes doentes desenvolveu mais tarde doença valvular cardíaca, recomenda-se o seu seguimento durante um a dois anos para exclusão de cardite. Alguns investigadores recomendam a profilaxia secundária de FR nestes doentes.
  • PANDAS (Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated with Streptococcus pyogenes) – Esta situação clínica, conhecida pela sigla, integra um conjunto de perturbações do foro neuropsiquiátrico (particularmente alterações obsessivas-compulsivas, tiques e síndroma de Tourette). Tais sintomas podem também surgir em doentes com coreia de Sydenham no contexto de FR. Tem sido admitida uma relação entre infecção prévia por SGA e manifestações de PANDAS por produção de autoanticorpos que atravessam a barreira hematoencefálica, mas ainda não foi provada qualquer relação causal.
Diagnóstico

No âmbito da anamnese deve ser inquirido eventual contacto com um caso bem documentado, embora a tríade atrás descrita (febre, amigdalofaringite exsudativa e exantema) sugira o diagnóstico.

Admitindo a hipótese clínica de escarlatina, a confirmação do diagnóstico por exame cultural do exsudado faríngeo, após colheita apropriada, mantém-se como prova-padrão, embora tenha a desvantagem de demorar, pelo menos, 48 horas. As provas de detecção de antigénios, igualmente realizadas por zaragatoa, constituem uma alternativa rápida e adequada. Estes testes, se a técnica de execução for correcta, têm uma especificidade superior a 95%, pelo que resultados falsos positivos são raros; a sua sensibilidade é de cerca de 80% a 90%, variando com os reagentes utilizados pelos diversos fabricantes.

A infecção estreptocócica também pode ser diagnosticada de forma retrospectiva pela determinação do título de antiestreptolisina O (TASO), ou pelo título anti-DNAase. O TASO não é específico da infecção pelo SGA, podendo ser negativo nas infecções cutâneas. O título anti-DNAase é positivo tanto nas infecções respiratórias como nas infecções da pele. Os títulos de anticorpos anti-estreptocócicos começam a aumentar 7 a 24 dias após o início da infecção, atingindo o pico sérico às 3 a 6 semanas, pelo que o seu interesse resume-se a confirmar uma infecção passada.

Diagnóstico diferencial

O exantema da escarlatina pode ser confundido com infecção estafilocócica, (escarlatina estafilocócica), toxidermias, doença de Kawasaki ou exantemas de causa vírica. Na síndroma de choque tóxico por estafilococo, verifica-se exantema semelhante ao da escarlatina estreptocócica, com a particularidade de ser mais grave nas palmas das mãos e plantas dos pés, para além de se detectar o foco de infecção estafilocócica.

Nos casos raros em que não há amigdalofaringite, uma ferida cutânea infectada, ou a coexistência de impétigo, e o exantema característico sugerem o diagnóstico, o qual deve ser confirmado por exame bacteriológico.

Nota importante: O agente Staphylococcus aureus dos grupos C e G, produzindo toxinas eritrogénicas e epidermolíticas, pode originar um quadro clínico, do qual faz parte exantema semelhante ao provocado por S. pyogenes; é a chamada “escarlatina estafilocócica”.

Prognóstico

O prognóstico da escarlatina e das infecções estreptocócicas agudas em geral, correcta e atempadamente tratadas, é excelente. Se o tratamento for levado a cabo dentro de 9 dias após o início da doença, a FR é quase sempre prevenida. Contudo, não está provado que a GNA possa ser prevenida, designadamente no contexto de infecção por estirpe de SGA nefritogénica.

Em situações especiais de síndromas de imunodeficiência de etiopatogénese diversa, ou de infecção por estirpes de grande virulência, poderá verificar-se evolução para doença invasiva, nomeadamente síndroma de choque tóxico.

Síndroma de choque tóxico estreptocócico

Definição

Um quadro clínico grave compatível com choque e exantema máculo-papular ou punctiforme de tipo escarlatiniforme, no contexto de provável etiologia infecciosa, levará a admitir a possibilidade de síndroma de choque tóxico por S. pyogenes ou por S. aureus.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

A síndroma de choque tóxico estreptocócico é um quadro clínico grave e raro em idade pediátrica. Define-se como doença aguda gerando resposta inflamatória sistémica toxinas do microrganismo por estimulação dos linfócitos T. Em mais de metade dos casos surge em crianças com menos de 5 anos, embora ultimamente tenham sido descritos casos em idades mais baixas. De acordo com dados da literatura, a percentagem de hemoculturas positivas pode atingir 60%. A mortalidade situa-se entre 30% e 70%

O Quadro 1 resume os critérios de diagnóstico da síndroma em epígrafe.

QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico da síndroma de choque tóxico por Streptococcus do Grupo A (SGA).

    1. Isolamento do SGA de local estéril (sangue, LCR, líquido peritoneal, tecido de biópsia)
    2.  Isolamento do SGA de local não estéril (faringe, expectoração, vagina, ferida cirúrgica, ou lesão superficial da pele)
    3. Hipotensão sistólica (< percentil 5 para a idade)
    4. Dois ou mais dos seguintes parâmetros:
      • Disfunção renal (valor da creatinina 2 vezes maior que o limite superior considerado normal para idade)
      • Coagulopatia: nº de plaquetas < 100.000/mmc ou CID
      • Disfunção hepática (valor de ALT, AST ou bilirrubinémia total 2 vezes maior que o limite superior considerado normal para a idade)
      • SDR tipo adulto/ARDS
      • Exantema eritemato-macular generalizado com possível ulterior descamação
      • Miosite, fascite necrosante, gangrena, ou outros tipos de lesão necrótica dos tecidos moles

Diagnóstico definitivo: parâmetros 1+3+4 presentes
Diagnóstico provável: parâmetros 2+3+4 se não for identificada outra causa de doença

Diagnóstico diferencial

O Quadro 2 sintetiza os critérios de diagnóstico da síndroma de choque tóxico por S. aureus, o qual permite comparação com os critérios para a síndroma de choque tóxico por S. pyogenes (Quadro 1), para diagnóstico diferencial.

QUADRO 2 – Critérios de diagnóstico da síndroma de choque tóxico por S. aureus.

Critérios clínicos

    1. Febre > 38,9ºC
    2. Exantema máculo-papular punctiforme
    3. Descamação
    4. Hipotensão (Quadro 1)
    5. Disfunção multiorgânica: 3 ou mais dos sistemas – gastrintestinal, SNC, hematológico, hepático, renal, muscular, mucosas (hiperémia conjuntival, orofaríngea, ou vaginal)
    6. Resultados negativos dos seguintes exames:
      • cultural da faringe, LCR, ou sangue; excepção: hemocultura positiva para S. aureus
      • prova serológica para febre das Montanhas Rochosas, leptospirose ou sarampo

Diagnóstico provável: 5 de 6 critérios clínicos
Diagnóstico confirmado: totalidade dos 6 critérios clínicos; em caso de óbito e na ausência de descamação são suficientes 5 critérios

Tratamento das infecções por Streptococcus pyogenes

A comprovação da etiologia estreptocócica no contexto da tríade clássica referida a propósito das manifestações clínicas da escarlatina constitui indicação formal para início imediato de terapêutica antibiótica.

O agente Streptococcus pyogenes é muito sensível à penicilina, não estando descritas estirpes resistentes. Uma dose única via IM de penicilina benzatínica é adequada. Nas crianças com peso até 27 kg devem ser administradas 600.000 Unidades e nas crianças com 27 kg, ou mais, a dose apropriada é 1.200.000 Unidades. Este é o esquema posológico internacionalmente recomendado.

Todavia, há quem prefira ajustar a dose ao peso e prescrever 50.000 U/kg, até à dose máxima de 1.200.000 U.

Esta forma de tratamento tem a vantagem de evitar insucessos terapêuticos por incumprimento da medicação, embora com a desvantagem de ser doloroso. A dor desta administração pode ser minorada se a penicilina não estiver a baixa temperatura.

Se se optar por prescrever antibiótico por via oral, e uma vez que em Portugal não existe penicilina oral, a amoxicilina é a terapêutica preconizada na dose de 50 mg/kg/dia (máximo 1 g/dia) administrada de 12 em 12 horas durante 10 dias. Em caso de alergia à penicilina por reacção de hipersensibilidade tipo 1, deve-se prescrever um macrólido nas doses habituais: claritromicina – 15 mg/kg/dia (máximo 500 mg/dia) de 12/12 horas durante 10 dias; azitromicina 12 mg/kg/dia (máximo 500 mg/dia) de 24 em 24 horas durante 5 dias. Refira-se que em Portugal a resistência do Streptococcus do grupo A aos macrólidos diminuiu de 10% em 2007 para 1% em 2013. Em caso de alergia à penicilina por reacção de hipersensibilidade não tipo 1 pode prescrever-se uma cefalosporina de 1ª ou 2ª geração nas doses habituais e durante 10 dias.

No tratamento das infecções invasivas graves utiliza-se a clindamicina associada à penicilina porque numa pequena proporção se verifica resitência de S. pyogenes àquele antibiótico: associação de penicilina e clindamicina por via IV (penicilina G aquosa em perfusão lenta /20 minutos, 6 a 8 vezes/dia: 25.000-500.000U/kg/dia; clindamicina em perfusão rápida, 4 vezes/dia: 30-40 mg/kg/dia) com a duração de 10 ou mais dias, em função do contexto clínico e evolução.

Para além da antibioticoterapia, estão indicadas todas as medidas de reanimação e suporte hemodinâmico descritas no âmbito da sépsis e choque. A este respeito, sugere-se a consulta do capítulo sobre sépsis e choque (Parte XXVIII).

Prevenção

Não existe actualmente prevenção primária da infecção por Streptococcus do grupo A, nomeadamente vacina ou método de erradicar a bactéria do hospedeiro. Algumas vacinas recombinantes utilizando 30 serótipos de proteína M estão em estado inicial de desenvolvimento. Contudo, dada a existência de número superior a 130 de tipos M e respectivos serótipos, com larga distribuição geográfica, existe o risco de produção de anticorpos com reacção cruzada frente aos tecidos humanos, o que comporta o risco de doenças autoimunes.

O período de evicção escolar das crianças doentes é de apenas 24 horas após o início da terapêutica antibiótica, desde que a criança esteja apirética.

De salientar que:

  1. não está indicada a pesquisa de Streptococcus aos coabitantes assintomáticos de crianças doentes, excepto se os familiares tiverem risco elevado de patologia na sequência de infecção por SGA, como GNA ou FR.
  2. não está indicada a pesquisa de Streptococcus em qualquer contacto escolar assintomático da criança doente. O risco de transmissão da infecção por um portador é mínimo, bem como é mínimo o risco de um portador desenvolver complicações, pelo que estes portadores não devem ser tratados com antibiótico.

A erradicação do SGA da orofaringe de portadores assintomáticos, apenas está indicada nas situações seguintes:

  1. pessoas com diagnóstico de FR ou GNA
  2. doentes com história familiar de FR
  3. surtos epidémicos de FR ou GNA
  4. surtos epidémicos de faringite a SGA numa comunidade fechada ou semi-fechada
  5. episódios múltiplos intrafamiliares de faringite sintomática por SGA, apesar de antibioticoterapia apropriada.

O agente SGA pode ser dificil de erradicar da orofaringe de alguns portadores. A clindamicina na dose de 30 mg/kg dia (máximo 900mg) de 8 em 8 horas durante 10 dias é a terapêutica mais eficaz.

Nota: A escarlatina não é uma doença de notificação obrigatória.

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Definição e importância do problema

O agente Haemophilus influenzae é um cocobacilo, Gram-negativo e pleiomórfico, que necessita do factor X (hematina) e factor V (fosfopiridina nucleótido) para o seu crescimento. Algumas estirpes têm cápsula de polissacárido (cápsula polissacarídea), o principal determinante da virulência e da imunogenicidade.

Depois do pneumococo, agente Haemophilus influenzae é o mais prevalente na via respiratória superior sem causar doença; esta situação de colonização (60%-90% por estirpes não capsuladas) é designada por portador assintomático, agente Haemophilus influenzae. A espécie humana constitui o único reservatório.

As estirpes capsuladas, antigenicamente distintas, incluem seis serótipos (a, b, c, d, e, f). Haemophilus influenzae do tipo b (Hib) é o mais prevalente e causa de doença invasiva com septicémia, meningite, artrite séptica, celulite, epiglotite, pneumonia e empiema.

As estirpes não capsuladas ou não tipáveis associam-se a infecções não invasivas (das superfícies mucosas) como otite média, sinusite, bronquite, conjuntivite e alguns tipos de pneumonia, sendo que cerca de 30% dos casos de otite média aguda e sinusite são explicados pelo agente.

Aspectos epidemiológicos

Após a introdução da vacinação universal anti-Hib, a epidemiologia das infecções por Haemophilus influenzae modificou-se consideravelmente. Contudo, a doença provocada por este agente (incluindo doença invasiva) continua a ser responsável por uma variedade de entidades clínicas, comportando morbilidade e mortalidade elevadas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento.

O habitat natural deste microrganismo é a via respiratória superior do ser humano. A trasmissão ocorre de pessoa a pessoa, através da inalação de gotículas respiratórias, ou por contacto directo com secreções e gotículas de saliva.

Também pode ocorrer transmissão por via vertical, através da aspiração de líquido amniótico ou de secreções contaminadas do aparelho genital materno. Nestas circunstâncias, as estirpes em causa são distintas das que colonizam habitualmente o aparelho respiratório superior.

O período de incubação é desconhecido, sendo de salientar que pode haver múltiplas exposições ao microrganismo antes de a doença se manifestar.

Com a generalização das vacinas conjugadas, a incidência da doença invasiva diminuiu cerca de 90% nalgumas regiões do globo, sendo que os casos declarados da mesma se associam em geral a situações de imunização incompleta e a recém-nascidos.

A doença tem um carácter sazonal bimodal com um pico entre Setembro e Dezembro e Março e Maio.

A susceptibilidade à doença por Hib depende essencialmente da idade e correlaciona-se com a resposta imune. Durante os primeiros 6 meses de vida, algumas crianças evidenciam um estado de protecção passiva por anticorpos IgG maternos, adquiridos por via transplacentar e pelo aleitamento materno.

O pico da incidência ocorre entre os 7 e os 11 meses, quando o nível de anticorpos é baixo ou nulo. Após uma primeira doença invasiva, os níveis de anticorpos podem permanecer baixos, o que pode determinar uma resposta imune escassa e um segundo ou terceiro episódio de doença. Assim, a existência de doença invasiva prévia não invalida a necessidade de vacinação.

Na era pré-vacinal, por volta dos 5 anos de idade, na maioria das crianças, após infecções repetidas e aquisição de anticorpos capsulares e bactericidas, desenvolvia-se imunidade específica natural para o Hib.

A incidência da doença invasiva por Hib é mais elevada no sexo masculino, em crianças africanas, em índios, e em esquimós do Alasca. Os meios socioeconómicos desfavorecidos, a permanência em lugares com elevada densidade habitacional, ou em espaços fechados como instituições ou infantários, facilitam a transmissão por uma maior exposição ao agente, aumentando o risco de doença.

Outros factores de risco incluem o não aleitamento materno, doença crónica com défice da imunidade humoral ou do complemento, doença de células falciformes, asplenia, doença oncológica e terapêutica com imunossupressores. A constituição genética do hospedeiro pode também ter papel importante na susceptibilidade à infecção por Hib, sendo ainda desconhecido o mecanismo exacto de tal associação.

Mundialmente, enquanto a incidência anual de doença invasiva por Hib em crianças com < 5 anos tem sido estimada em cerca de 67-130/100.000, a incidência daquela por serótipos não tipo b é muito inferior (~0,5-1,9 /1.000.000).

Entre 1989 e 2010, dados do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, mostram que a introdução da vacina anti-Hib em Portugal conduziu a alterações na epidemiologia da doença invasiva, particularmente no que respeita ao declínio da infecção por Hib (de 81% para 13,2%) e ao aumento da infecção por estirpes não capsuladas (de 19% para 77,1%) e por Haemophilus influenzae tipo f (de 0,8% para 6,9%).

A doença secundária, que ocorre 1 a 30 dias após o contacto com um doente, representa menos de 5% de todos os casos de doença invasiva por Hib. O maior risco (2%-4%) verifica-se em conviventes da mesma família, principalmente em crianças não imunizadas ou parcialmente imunizadas, com menos de 2 anos. Surgindo doença, esta manifesta-se na primeira semana após o diagnóstico do caso index. Por esta razão se realiza quimioprofilaxia após a exposição à doença invasiva por Hib. Nos infantários, o risco de doença secundária por Hib parece ser relativamente mais baixo (~1,35%).

Etiopatogénese

O microrganismo invade a mucosa do epitélio respiratório, ocorrendo posteriormente bacteriémia. Para surgir a infecção, a bactéria adere ao epitélio respiratório através de adesinas da superfície bacteriana. Na maior parte das estirpes as adesinas são proteínas de elevado peso molecular (HMW1 e HMW2); numa pequena percentagem de estirpes predomina uma adesina chamada Hia (Haemophilus influenzae adhesin).

Todas as estirpes possuem uma adesina multifuncional chamada Hap que pertence a uma família de factores de virulência designados por proteínas autotransportadoras, com papel na adesão às células epiteliais e a certas proteínas da matriz extracelular (por ex. fibronectina, laminina e colagénio tipo IV) e na agregação bacteriana com formação de microcolónias.

Outros factores que influenciam a interacção com o epitélio respiratório incluem: fibras adesivas chamadas pili, uma proteína da camada externa da membrana chamada P5 e uma variante de lipopolissacárido (LOS ou lipoligossacárido).

Muitos agentes bacterianos exercem acção patogénica entrando para o interior das células epiteliais; pelo contrário, os agentes Haemophilus influenzae não tipáveis vão ocupar os espaços entre as células. A este último fenómeno dá-se o nome de paracitose, o qual propicia um “nicho” que protege as bactérias da acção dos antibióticos e poderá explicar o estado de portador crónico nasofaríngeo da bactéria em causa.

Haemophilus influenzae não tipáveis poderão também escapar ao mecanismo imune por variações que se verificam ao nível das estruturas referidas atrás (pili, adesinas HMW, e LOS) que funcionam como antigénios determinados geneticamente; ou seja, a variação antigénica compromete o efeito dos anticorpos anteriormente formados contra o agente infeccioso cujo património antigénico entretanto se modificou.

A maior parte das estirpes de Haemophilus influenzae é susceptível à amoxicilina ou ampicilina; cerca de 1/3 produz beta-lactamase, o que confere resistência àqueles antibióticos. Nos casos de resistência sem produção de beta-lactamases, aquela explica-se pela produção, na membrana, da enzima PBP3, o que ocorre com frequência cada vez maior.

Quanto ao hospedeiro, o mecanismo de defesa conhecido mais importante face à agressão por Haemophilus influenzae do tipo b relaciona-se com a existência de anticorpos com acção opsónica dirigidos contra o polissacárido capsular tipo b (PRP-polyribosylribitol phosphate) cuja acção é facilitar a lise de Hib.

A magnitude do inóculo bacteriano e as infecções respiratórias prévias, víricas ou por Mycoplasma pneumoniae, podem potenciar o risco de doença invasiva. Admite-se que as estirpes capsuladas, conseguindo resistir aos mecanismos de lise do complemento ou à fagocitose no hospedeiro, podem multiplicar-se no sangue e causar doença invasiva como sépsis, ou disseminar-se para outros locais e causar meningite ou artrite.

A adesina Hap tem também papel importante neste mecanismo patogénico, facilitando a ligação de Hib às células lesadas com formação de microcolónias de bactérias agregadas.

As infecções não invasivas das mucosas são mais frequentes, principalmente na era pós-vacinal. Presume-se que ocorram por extensão de locais contíguos à mucosa do aparelho respiratório e causem otite média, sinusite, pneumonia e bronquite.

A doença é mais frequente quando existe alteração dos mecanismos de depuração ou da função imunológica do hospedeiro, tais como obstrução dos seios, disfunção da trompa de Eustáquio, infecção vírica prévia ou lesão da mucosa pelo fumo do tabaco ou outros irritantes.

O mecanismo patogénico da pneumonia, epiglotite e celulite não é completamente compreendido, mesmo quando se verifica bacteriémia associada.

Possivelmente a pneumonia ocorre após aspiração de um número significativo de microrganismos virulentos; a epiglotite relaciona-se com infecção focal da epiglote; e a celulite, com infecção do tecido subcutâneo por agente veiculado pela corrente sanguínea.

Manifestações clínicas

A doença causada por Haemophilus influenzae pode afectar vários órgãos e sistemas, e originar diferentes quadros clínicos.

Meningite

É a manifestação mais grave da doença invasiva por Hib. Antes da vacinação universal era a maior causa de meningite bacteriana entre os 3 meses e os 3 anos. Tem um pico de incidência entre os 6 e 9 meses, diminuindo após os 2 anos. Nos países em vias de desenvolvimento, onde os recursos para programas de vacinação são escassos, continua a ser uma importante causa de meningite e sépsis.

O ínicio da doença pode ser fulminante, mas mais frequentemente é insidioso, com sintomas inespecíficos como recusa alimentar, febre, irritabilidade, letargia ou vómitos. Em 10% a 20% dos casos existem outros focos de infecção como celulite, pneumonia ou artrite, na sua maioria acompanhados de bacteriémia.

Epiglotite

A infecção da epiglote é a mais aguda e emergente de todas as infecções causadas por Hib, podendo conduzir à morte em 5%-10% dos casos. Está quase sempre relacionada com a obstrução abrupta da via aérea na ausência de tratamento adequado. Ocorre entre os 2 e os 7 anos, sendo rara abaixo dos 12 meses. Em cerca de 50% dos doentes ocorre infecção da via respiratória superior.

O início da doença é súbito com febre alta, odinofagia, disfagia, sialorreia, voz “abafada”, protusão da língua, agitação, exibindo o paciente um “aspecto tóxico”.

A infecção da epiglote ou tecidos supraglóticos pode, em poucas horas, evoluir para obstrução aguda da via aérea com dificuldade respiratória, estridor e cianose. Para permitir a entrada do ar, o doente senta-se inclinado para a frente, com a cabeça em hiperextensão, adoptando a típica posição em tripé. Actualmente esta entidade pode ocorrer em crianças não imunizadas ou adultos.

Pneumonia

Na era pré-vacinal a pneumonia por Hib era responsável por cerca de um terço das pneumonias bacterianas. Clinicamente é semelhante a outras pneumonias bacterianas.

O padrão radiográfico pode revelar infiltrados segmentares, lobares ou intersticiais, realçando-se que em mais de 50% dos casos se verifica derrame pleural ou pericárdico concomitante.

A hemocultura, o exame cultural do líquido pleural ou aspirados traqueais são positivos em 75% a 90% dos casos. A detecção de antigénios capsulares do Hib no líquido pleural, sangue ou urina não tem valor diagnóstico na idade pediátrica. As complicações incluem empiema, pericardite e meningite, sendo as sequelas a longo prazo raras.

Artrite séptica e osteomielite

Na era pré-vacinal, e na maioria dos casos de artrite séptica em crianças com < 2 anos estava implicado o agente Hib. Em mais de 90% dos casos, o envolvimento abrange apenas um território, de uma grande articulação, como a coxo-femoral, a do joelho, a tibiotársica ou o cotovelo.

Habitualmente, os sinais inflamatórios são precedidos de infecção das vias respiratórias superiores. Em cerca de 10% a 20% dos doentes pode ocorrer osteomielite por contiguidade.

Bacteriémia

A partir dum foco infeccioso surge bacteriémia, a qual precede a doença invasiva. Contudo, em crianças com < 2 anos pode ocorrer bacteriémia oculta (BO) sem foco infeccioso detectável, com febre > 39ºC e leucocitose periférica. Contrariamente à BO por pneumococo, que pode regredir espontaneamente, na BO por Hib, em 30% a 50% dos casos surgem complicações focais como meningite, pneumonia ou celulite, com implicações nas decisões de exames complementares a realizar.

Celulite

A celulite por Hib, mais observada na época pré-vacinal, envolve a face, cabeça e nariz em crianças abaixo dos 2 anos. A celulite odontogénica, mais frequente no lactente, tem ínicio súbito com rubor, calor, edema e aparecimento de uma área endurecida com halo violáceo que pode assemelhar-se à erisipela.

Outros quadros clínicos de doença invasiva

Na sequência de bacteriémia podem surgir os seguintes quadros clínicos: pericardite, endoftalmite, abcesso cerebral, glossite, traqueíte, tiroidite, endocardite, fascite necrosante, piomiosite, tenossinovite, polisserosite, abcesso pulmonar, abcesso intraperitoneal, abcesso escrotal e peritonite.

A doença invasiva pode ainda manifestar-se por febre isolada, febre e petéquias, ou febre de origem indeterminada.

Doença neonatal

O microrganismo Haemophilus influenzae pode causar sépsis precoce e meningite no recém-nascido: na maioria dos casos (2/3) a sintomatologia surge no primeiro dia de vida.

Habitualmente a doença é causada por estirpes não tipáveis isoladas do tracto genital materno.

A transmissão pode ocorrer durante o parto ou in utero. Pode existir associação a prematuridade, baixo peso de nascimento, corioamnionite materna e ruptura prematura de membranas. Nalguns casos há antecedentes de parto por cesariana.

As manifestações clínicas incluem fundamentalmente pneumonia, bacteriémia e conjuntivite. A taxa de mortalidade é cerca de 55%.

Infecções por Haemophilus influenzae não tipáveis

As estirpes não tipáveis do Haemophilus influenzae são causa frequente de otite média, sinusite, conjuntivite e bronquite. As vacinas conjugadas não conferem protecção para estas estirpes não capsuladas.

A sinusite por Haemophilus influenzae tem um curso clínico mais arrastado. A otite e a sinusite crónica raramente causam complicações como mastoidite ou abcessos meníngeos.

A conjuntivite habitualmente é bilateral e purulenta, podendo ocorrer por surtos e associar-se a otite média. Esta situação é denominada síndroma conjuntivite-otite.

A doença invasiva associada a estirpes não tipáveis, rara, associa-se a factores de risco como prematuridade, fístula permitindo a perda de líquido cefalorraquidiano, cardiopatia congénita ou imunodeficiência.

Salienta-se que o diagnóstico de infecção invasiava por estirpes não tipáveis obriga a investigação imunológica, mesmo na ausência de factores de risco.

Diagnóstico

A suspeita de doença por Haemophilus influenzae obriga à realização de exames complementares para avaliação clínica e confirmação etiológica.

Exame directo

A identificação do microrganismo em esfregaço de produto biológico, após coloração pelo Gram, pressupõe que exista uma concentração da ordem de, pelo menos, 105 bactérias/mL; consequentemente, a probabilidade de detecção é baixa.

Exame cultural

O exame cultural (hemocultura, cultura de outros líquidos biológicos) implica necessidade de colheita em condições ideais e transporte rápido para o laboratório. As amostras não devem ser expostas a temperaturas ou secura extremas.

Na BO por Hib, em 30% a 50% dos casos poderão surgir complicações focais como meningite. Assim, na presença de hemocultura positiva deverá considerar-se a realização de punção lombar e exame do LCR.

Serotipagem

Pelas implicações clínicas, epidemiológicas e de saúde pública, torna-se fundamental proceder a esta técnica, designadamente para identificação ou exclusão de serótipos associados a doença invasiva.

Outros exames

Na ausência de identificação do agente em exames culturais, o diagnóstico etiológico pode ser realizado por técnicas de biologia molecular com pesquisa de sequências específicas de ARN ou de ADN em produtos no local da infecção.

Tratamento

As crianças com doença invasiva devem ser hospitalizadas e submetidas a antibioticoterapia endovenosa. Nas infecções por estirpes não tipáveis poderá optar-se, em função do contexto clínico, pela antiboticoterapia oral.

A escolha do antibiótico deve basear-se nos seguintes critérios: 1) conhecimento epidemiológico; 2) susceptibilidade aos antimicrobianos; 3) local e gravidade do quadro clínico; 4) factores de risco no hospedeiro.

A resistência de Haemophilus influenzae à ampicilina varia entre 5% a 50%. Em Portugal, em cerca de 10% das estirpes verifica-se produção de beta-lactamase, sendo que existe uma susceptibilidade quase total à amoxicilina/clavulanato e cefuroxima.

O esquema de tratamento varia em função da entidade clínica. Os Quadros 1 e 2 sintetizam os principais esquemas de tratamento. No que respeita às entidades epiglotite, conjuntivite, pneumonia, artrite séptica e celulite, sugere-se ao leitor a consulta do índice geral para localização dos respectivos capítulos.

QUADRO 1 – Esquema de tratamento de algumas infecções por H. influenzae.

AM/CL* = amoxicilina e ácido clavulânico
EntidadeActuaçãoAntibióticoDuração
MeningiteRealizar 2 hemoculturas exame cultural do LCR
Realizar detecção de antigénios capsulares no LCR e urina se antibioticoterapia prévia
Dexametasona: 0,6 mg/kg/dia IV, 6/6h, 4 dias; administrar primeira dose 20 a 30 minutos antes da 1ª administração de antibiótico. Vigiar complicações neurológicas
Ceftriaxona10-14 dias
PneumoniaRealizar 2 hemoculturas
Exame cultural de líquido pleural e aspirados traqueias
Realizar detecção de antigénios capsulares no líquido pleural
e urina se antibioticoterapia prévia
Cefuroxima ou AM/CL*10 dias
BacteriémiaRealizar 2 hemoculturas
(cada colheita com 2 mL de sangue no mínimo)
Se hemocultura positiva realizar punção lombar
Ceftriaxona7-10 dias
Doença neonatalRealizar 2 hemoculturas e punção lombar
Vigiar pneumonia
Ampicilina + Cefotaxima10-14 dias
Doença invasiva por H. influenzae não tipáveisRealizar 2 hemoculturas e punção lombar
Realizar investigação imunológica, inclusivamente nos casos de criança previamente saudável
Ceftriaxona10 dias
Outras infecções por H. influenzae não tipáveisTratar OMA se houver factores de risco, otites de repetição
e na criança com menos dos 2 anos, durante 5 a 7 dias
Tratar sinusite durante 14 dias e bronquite durante 10 dias
AM/CL* 

QUADRO 2 – Esquema de tratamento de algumas infecções por H. influenzae.

Amoxicilina e ácido clavulânico (AM/CL): via oral/dose de amoxicilina: 50 mg/kg/dia; via IV: 50 mg/kg/dose
AntibióticoDose diária Dose no RNNº de doses/dia
Cefuroxima100 mg/kg200 mg/kg/dia3
Cefotaxima100 mg/kg200 mg/kg/dia3
Ceftriaxona100 mg/kg200 mg/kg/dia1
AM/CL*50 mg/kg*200 mg/kg/dia2-3

Prognóstico

A gravidade da doença depende fundamentalmente do local da infecção, de factores de risco, factores inerentes ao hospedeiro, factores de virulência do agente e de mecanismos de resistência aos antibióticos. O mais importante elemento de defesa do hospedeiro é a existência de anticorpos dirigidos contra o polissacárido capsular do tipo b PRP (poli-ribosil-ribitol-fosfato).

Prevenção

Medidas não imunológicas

Considera-se contacto de risco aquele que corresponde à exposição a uma pessoa com doença invasiva, ocorrendo 4 ou mais horas por dia, e durante, pelo menos, 5 dias.

As medidas não imunológicas incluem:

  • isolamento de doentes com forma invasiva até 24 horas após início de antibioticoterapia
  • quimioprofilaxia aplicada a:
    1. contactos de risco;
    2. conviventes do agregado familiar que, independentemente da idade, tenham contacto com crianças com < 4 anos não imunizadas ou parcialmente imunizadas;
    3. irmãos ou conviventes com menos de 12 meses;
    4. imunodeprimidos, independentemente do seu estado de imunização;
    5. Assistência em infantários ou instituições onde ocorreram 2 ou mais casos de doença invasiva no período de 60 dias.

Em qualquer situação de 1- a -5 deve administrar-se rifampicina na dose de 20 mg/kg/dia (não excedendo 600 mg/dose), em toma única diária, durante 4 dias. No adulto a dose é 600 mg/dia, em toma única diária.

Nota: Em Portugal, as infecções por Haemophilus influenzae são de notificação obrigatória desde 1999.

Medidas imunológicas

As vacinas conjugadas com protecção para o Haemophilus influenzae tipo b têm tido um papel primordial no combate à doença invasiva, diminuindo a incidência em cerca de 90%, a colonização da nasofaringe e a transmissão interpessoal em idades precoces em que o estado de portador é mais prevalente.

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Definição e importância do problema

A tosse convulsa típica é uma doença infecciosa aguda do tracto respiratório provocada pela bactéria Gram-negativa Bordetella pertussis e, menos frequentemente, parapertussis.

Doença altamente contagiosa, é caracterizada fundamentalmente por acessos curtos e súbitos de tosse, por vezes emetizante; conhecida no Oriente por tosse dos 100 dias, só foi descrita no século XVI e apenas no século XIX isolado o agente Bordetella pertussis. Acompanha-se de morbilidade e mortalidade importantes, especialmente em crianças com idade inferior a três meses.

A tosse convulsa na era pré-vacinal era uma doença quase exclusiva da criança em idade pré-escolar e escolar. A vacinação universal contra a referida doença teve influência na epidemiologia que se traduziu por desvio etário. De facto, a doença actualmente atinge o pequeno lactente não vacinado ou incompletamente vacinado, o adolescente e o adulto jovem; como facto relevante regista-se que nos últimos anos se tem verificado uma incidência crescente. Apesar de uma taxa de cobertura vacinal elevada (86% a nível mundial em 2014), continua a ser um importante problema de saúde pública.

De acordo com estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2008 ocorreram cerca de 16 milhões de casos de tosse convulsa no mundo, dos quais mais de 95% ocorreram em países em vias de desenvolvimento, resultando na morte de 195.000 crianças. Em 2014 foram reportados 139.786 casos em todo o mundo, estimando-se o número de 89.000 mortes pela doença.

Aspectos epidemiológicos

A tosse convulsa é uma doença endémica em todo o mundo, com ciclos epidémicos que ocorrem a cada quatro a cinco anos, com duração aproximada de 12 a 18 meses, o que sugere que a vacinação não impede a circulação do agente.

Sendo o agente Bordetella pertussis patogénico humano exclusivo, o contágio faz-se através do contacto com gotículas do tracto respiratório de indivíduos com a doença. O grau de contagiosidade é extremamente elevado, podendo atingir 90%-100% dos contactos intradomiciliários susceptíveis. Mesmo em doentes imunocompetentes e vacinados, a percentagem de indivíduos com doença subclínica pode atingir 80%. Os portadores assintomáticos, descritos por vezes nos surtos, não são responsáveis pela transmissão da doença, uma vez que não tossem activamente.

A generalização da vacinação contra Bordetella pertussis no início da década de 1940 traduziu-se por franco declínio do número de casos e mortes. Com efeito, nos Estados Unidos da América (EUA) a mortalidade passou de 155 para 0,5 mortes/100.000 habitantes; em Portugal, após a introdução da vacinação em 1965, passou de 55 para 3 mortes/100.000 habitantes.

Apesar da diminuição da incidência com a vacinação universal, nos últimos anos tem-se assistido à re-emergência da doença. Em Portugal as notificações passaram de 32 casos durante o ano de 2011, para 225 em 2012, dos quais, 181 ocorreram durante o primeiro ano de vida e resultaram em 4 mortes. Em 2014 o número de casos voltou a diminuir: 74 casos.

O incremento das notificações poderá decorrer, não só do uso de exames de diagnóstico cada vez mais sensíveis, de programas de vigilância mais adequados, e da diminuição da subnotificação, mas também dum aumento real do número de casos.

Em Portugal, entre 2010 e 2013 (4 anos) foram notificados 385 casos, dos quais 309 (80%) ocorreram no primeiro ano de vida. Estes casos correspondem provavelmente a crianças contagiadas por adolescentes e adultos jovens que, por terem perdido a imunidade conferida pela vacina, adquiriram doença atípica, por vezes dificilmente diagnosticável. É de notar que a vacina não é 100% efectiva e a imunidade conferida pela vacina ou doença, não é permanente. As crianças nascem sem imunidade passiva para B. pertussis, o que significa que RN e lactentes são altamente vulneráveis até que o esquema vacinal se complete, em geral aos 6 meses de idade.

Etiopatogénese

O agente Bordetella pertussis é um coco-bacilo Gram-negativo, aeróbio, pleiomórfico, que sobrevive apenas algumas horas nas secreções respiratórias e que necessita de meios especiais para cultura, sendo os humanos o seu reservatório exclusivo. Pertence ao género Bordetella, o qual engloba oito espécies adicionais: Bordetella parapertussishu (infectando humanos), Bordetella parapertussisov (infectando ovelhas), Bordetella bronchiseptica (que causa doença respiratória em imunocomprometidos), Bordetella avium, Bordetella hinzii, Bordetella trematum, Bordetella holmesii e a mais recentemente descrita Bordetella petrii. Apesar de filogeneticamente semelhantes, estas espécies têm diferentes hospedeiros.

A transmissão ocorre por inalação de gotículas infectadas com Bordetella pertussis. Esta bactéria adere ao epitélio ciliado da nasofaringe, multiplica-se e dissemina-se pelo epitélio ciliado das vias aéreas inferiores. Num pequeno número de casos pode atingir o alvéolo e provocar pneumonia.

Os aspectos moleculares e celulares da patogénese da infecção por Bordetella pertussis são muito complexos e alguns ainda mal conhecidos. Esta bactéria produz diversas substâncias biologicamente activas (Quadro 1), com capacidade antigénica e de virulência, o que tem como resultado lesão celular, doença sistémica e interferência com os mecanismos de defesa do organismo. Muitas destas substâncias activas são imunogénicas e têm sido incluídas como componentes das vacinas acelulares disponíveis no mercado.

QUADRO 1 – Bordetella pertussis (Bp): alguns componentes moleculares biologicamente activos.

Componentes antigénicos Actividade biológica
    • Toxina pertussis (PT)
    • Hemaglutinina filamentosa (FHA)
    • Pertactina (PTN)
    • Fimbriae (aglutinogénios)
    • Toxina da adenilciclase (ACT)
    • Lipopolissacárido – endotoxina (LPS)
    • Factor de colonização traqueal ou citotoxina traqueal (TCT)
    • Toxina termolábil dermonecrótica
    • (HLT ou DNT)
    • Endotoxinas, factores de grande virulência com interferência em vários mecanismos imunológicos do hospedeiro; promovem a linfocitose associada à doença
    • Adesão ao epitélio ciliar; existem vários tipos; certas Bp poderão não conter fimbriae, outras conter fimbriae 2, fimbriae 3, ou fimbriae 2 e 3, etc.; interacção com integrina, regulando a expressão do receptor do complemento (CR3)
    • Citotóxica; afectando a fagocitose
    • Reacções locais, febre, e reacções observadas com a vacina de célula completa (holocelular) (ver adiante)
    • Efeito citopático na mucosa traqueal
    • Lesão da mucosa; responsável por alguns dos sintomas da fase catarral (consultar texto)
Com o tempo têm sido identificadas alterações genéticas relacionadas com os certos componentes antigénicos, nomeadamente PT, PTN e fimbriae.


FHA e alguns aglutinogénios (especialmente fimbriae tipos 2 e 3 e pertactina) são fundamentais para a adesão da bactéria às células epiteliais respiratórias. TCT e PT inibem provavelmente o processo de depuração da bactéria; por sua vez, TCT, HLT e DNT são responsáveis pela lesão epitelial (que origina sinais e sintomas respiratórios), permitindo a absorção de PT.

Os genes que determinam a virulência das várias espécies têm afinidades em termos de ADN, sendo que somente o germe B. pertussis produz PT.

Manifestações clínicas

Na sua forma típica (clássica) os sinais e sintomas são muito sugestivos. O diagnóstico de tosse convulsa é, pois, essencialmente clínico, sendo necessário um grau de suspeição elevado, nomeadamente quando a apresentação é atípica.

Nas formas típicas o diagnóstico é fácil, permitindo o início da terapêutica antes da confirmação laboratorial.

Após um período de incubação habitualmente de 7 a 10 dias (pode prolongar-se até 20 dias), a doença, na sua descrição clássica, tem 3 fases distintas:

  1. Fase catarral, com duração de 1-2 semanas, caracterizada por rinorreia serosa e obstrução nasal, acompanhadas por tosse seca esporádica (a partir da segunda semana) e lacrimejo. A febre é inconstante e, quando presente, é baixa. Ao contrário das outras infecções do tracto respiratório superior, ao fim destes 10-14 dias há um aumento da intensidade e frequência da tosse.
  2. Fase paroxística, com duração de 2-8 semanas, caracterizada por aumento gradual dos acessos de tosse os quais passam a ocorrer, tal como foi referido antes, em paroxismos típicos e muito característicos, com uma série de acessos de tosse no mesmo ciclo expiratório, muitas vezes acompanhados por engasgamento, protusão da língua, cianose e plétora facial, ocorrendo frequentemente vómito pós-tússico; tais acessos são seguidos por um “guincho ou silvo” inspiratório característico, que corresponde à passagem de ar pela glote, ainda parcialmente encerrada.
    Estes episódios, que podem ser espontâneos ou desencadeados por estímulos (como a alimentação ou frio), aumentam de frequência e intensidade ao longo da primeira e segunda semanas desta fase; estabilizam nas 2 a 3 semanas seguintes e diminuem gradualmente nas semanas que se seguem. As possíveis complicações da doença, descritas adiante, ocorrem nesta mesma fase.
    A contagiosidade é máxima durante a fase catarral e nas 2 primeiras semanas da fase paroxística.
  3. Fase de convalescença, pode durar semanas a meses, ao longo das quais ocorre diminuição progressiva da tosse.

Nas formas atípicas (ocorrendo em geral no pequeno lactente) a fase catarral está muitas vezes ausente ou é muito curta. Os paroxismos de tosse com congestão facial podem surgir apenas durante as refeições, estando a criança assintomática nos intervalos, e sendo o guincho característico muito pouco comum. No entanto, as complicações da doença, nomeadamente a apneia e bradicárdia, são mais frequentes.

No adolescente e adulto jovem, na maioria dos casos, a doença é atípica, manifestando-se por tosse persistente, o que dificulta o diagnóstico. Apesar de nestas faixas etárias a forma clínica ser benigna, é real o contágio ao lactente não vacinado ou sem primo-vacinação completa.

Em suma, o diagnóstico deverá ser ponderado em qualquer criança com tosse com a duração de, pelo menos, 14 dias, especialmente se não coexistir febre, exantema, enantema, e rouquidão. (Figura 1)

FIGURA 1. Cronologia da sintomatologia e exames complementares.

Complicações

As complicações mais graves da doença ocorrem na fase paroxística e decorrem essencialmente da hipóxia ou do aumento de pressão venosa por mecanismo semelhante ao da manobra de Valsalva durante os acessos de tosse. São muito mais frequentes nas crianças com idade inferior a três meses. A complicação mais comum é a pneumonia secundária (cerca de 13%), mas são descritas outras:

  1. Complicações do SNC: convulsões, encefalopatia, hemorragia subaracnoideia e intraventricular, síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética.
  2. Complicações nutricionais por vómitos, diminuição da ingesta e desidratação.
  3. Complicações cárdio-respiratórias: apneia, bradicárdia, cianose, hipertensão pulmonar, pneumotórax, pneumonia primária.
  4. Outras complicações: hemorragias conjuntivais, petéquias da face e tronco, epistaxe, hérnia umbilical e inguinal, prolapso rectal, laceração do freio da língua.

A tosse convulsa maligna, com evolução muito rápida, caracteriza-se por uma combinação de pneumonia, falência respiratória, leucocitose grave, envolvimento neurológico e hipertensão pulmonar. Culmina em morte em 75% dos casos apesar das medidas terapêuticas intensivas.

Exames complementares

Na tosse convulsa, o hemograma típico da fase catarral demonstra muitas vezes um valor aumentado dos leucócitos (15.000-100.000 cél/µL) com linfocitose e sem eosinofilia (como acontece na infecção por Chlamydia trachomatis). Os valores de linfocitose estão directamente relacionados com a gravidade da doença.

A radiografia do tórax poderá não evidenciar qualquer sinal de alteração, ou pode apresentar infiltrados peri-hilares inespecíficos ou atelectasia.

Embora o diagnóstico de tosse convulsa seja clínico, existem vários exames para confirmação da infecção:

  1. Exame cultural
    Apesar de continuar a ser considerado o método gold standard para o diagnóstico, o exame cultural tem vindo a ser substituído pelas técnicas de biologia molecular. Isto, porque a sua sensibilidade é baixa (especialmente após a fase catarral), o que se deve às características delicadas do agente e à difícil técnica de colheita.
    Recorda-se a propósito que o local de eleição para recolha do material deve ser a nasofaringe e não as fossas nasais, e que existe necessidade de zaragatoas específicas e de meios de transporte e cultura particulares. Além da baixa sensibilidade, o tempo de resposta é mais longo em comparação com os exames de biologia molecular.
  2. Polimerase Chain Reaction (PCR) ou reacção em cadeia da polimerase
    A utilização desta técnica de diagnóstico molecular tem vindo a ser cada vez maior, com as seguintes vantagens: – possibilidade na obtenção de resultados mais precoces e de utilização até mais tarde no decurso da doença; – não influência da antibioticoterapia prévia; – elevada sensibilidade, uma vez que o resultado é independente de existirem microrganismos viáveis ou de um inóculo importante.
    A sua maior limitação é a baixa especificidade.
  3. Imunofluorescência directa
    Esta ténica é usada para a detecção nas secreções respiratórias de Bordetella pertussis, através de anticorpos marcados. Com menor especificidade e sensibilidade do que o exame cultural e a PCR, é muito pouco utilizada, para além de que não é aceite como comprovativo de infecção.
  4. Estudo serológico
    A infecção por Bordetella pertussis desencadeia um aumento da concentração sérica de IgA e IgG para os antigénios de superfície (sendo que a IgM não tem significado diagnóstico na tosse convulsa). São necessárias duas colheitas de sangue para as serologias: uma na fase aguda e outra na fase de convalescença. A duplicação dos títulos de anticorpos (quantificação pelo método de ELISA) entre estas duas amostras tem elevada especificidade, apesar de fraca sensibilidade. Um valor de IgG anti-Bp >100 EU/ml também ajuda para o diagnóstico. De salientar, contudo, que permite o diagnóstico apenas nas semanas terminais da fase paroxística ou na fase de convalescença. Outras limitações do estudo serológico são:
    • diferente resposta individual, dependente da idade (crianças com menos de 3 meses podem não ter ainda capacidade imunológica para uma subida do título dos anticorpos);
    • interferência nos resultados, decorrente de exposição prévia ao microrganismo ou aos seus antigénios pela vacinação, tornando extremamente difícil a sua aplicação e interpretação.

O Center for Disease Control (CDC) recomenda a seguinte combinação de exames complementares para a comprovação diagnóstica de tosse convulsa:

  1. Nas primeiras quatro semanas de doença (três semanas de tosse): cultura e PCR.
  2. Tosse com duração de três ou quatro semanas: PCR e estudo serológico.
  3. Tosse com duração superior a quatro semanas: estudo serológico.

De notar que a tosse convulsa é uma doença de declaração obrigatória (DDO), devendo igualmente ser notificados todos os casos prováveis ou confirmados.

Diagnóstico diferencial

A infecção por Bordetella parapertussis é muito semelhante à doença provocada pela Bordetella pertussis. O hemograma (linfocitose igual ou superior a 10.000/uL é muito sugestiva de infecção por Bordetella pertussis); exames culturais ou PCR positivos para B. pertussis, permitirão o diagnóstico definitivo.

Outras infecções respiratórias que decorrem com tosse, por vezes acessual, podem dever-se a Chlamydia trachomatis, Chlamydia pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae, infecções por vírus respiratório sincicial, adenovírus e vírus parainfluenza.

Há ainda que considerar a tosse espasmódica que pode surgir no decurso de pneumonia bacteriana, fibrose quística, tuberculose, assim como nas situações de compressão extrínseca da traqueia e brônquios, ou de aspiração de corpo estranho. Nestes casos, uma anamnese cuidadosa e os exames complementares permitem, habitualmente, um diagnóstico diferencial rápido e correcto. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Tosse convulsa (por B. pertussis): diagnóstico diferencial.

Infecções víricas
Vírus sincicial respiratório (VSR); vírus parainfluenza; adenovírus; influenza A e B; rhinovirus; coronavírus
Infecções bacterianas
Bordetella parapertussis; Chlamydia trachomatis; Chlamydia pneumoniae; Mycoplasma pneumoniae
Causas não infecciosas
Refluxo gastresofágico, aspiração de corpo estranho

Tratamento

As crianças com menos de 6 meses ou com doença grave requerem hospitalização. Os doentes deverão ser mantidos isolados (transmissão por gotículas – quarto individual e máscara) até 5 dias após o início da antibioticoterapia.

Os principais critérios para internamento são: incapacidade de alimentação, sinais de dificuldade respiratória (retracção intercostal, taquipneia e cianose), convulsões ou más condições sociais. Por vezes, principalmente na criança com menos de 3 meses, é necessário o internamento em unidades de cuidados intensivos. Nos casos de insuficiência respiratória e hiperleucocitose (> 50.000 leucócitos/uL) deverá ser avaliada a possibilidade de realização de ECMO (extra-corporeal membrane oxigenation).

O tratamento de suporte é fundamental, com suprimento calórico e fluidoterapia ajustados às necessidades, uma vez que tais doentes têm frequentemente extrema dificuldade em se alimentar.

A terapêutica antibiótica (resumida no Quadro 3) deve ser iniciada numa fase precoce, o que contribui para uma diminuição da gravidade e duração dos sintomas, assim como da transmissão da doença aos contactos susceptíveis. Deverá ser instituída se houver uma suspeita clínica fortemente sugestiva, não se esperando pela confirmação do diagnóstico através dos meios de diagnóstico atrás descritos.

Broncodilatadores, glicocorticóides e antitússicos não têm qualquer papel no tratamento da doença.

QUADRO 3 – Tratamento antimicrobiano da tosse convulsa.

  Terapêutica Primária Terapêutica Alternativa
Grupo etário Azitromicina Eritromicina Claritromicina Cotrimoxazol
TMP – SMX
< 1 mês 10 mg/kg/dia, 24/24h; 5 dias Não recomendada Não recomendada Contraindicado em lactentes com < 2 meses
1-5 meses 10 mg/kg/dia, 24/24h; 5 dias 40 a 50 mg/kg/dia, 6/6h; 14 dias 15 mg/kg/dia,
12/12h; 7 dias
> 2 meses: Cotrimoxazol
TMP 8/SMX 40 mg/Kg/dia 12/12h; 14 dias
> 6 meses D1: 10 mg/kg/dia (máximo: 500 mg)
D2-5: 5 mg/kg/dia
(máximo: 250 mg)
24/24h
40 a 50 mg/kg/dia, 6/6h, (máximo: 2 g/dia); 14 dias 15 mg/kg/dia,12/12h
(máximo: 1 g/dia);
7 dias
Cotrimoxazol
TMP 8/SMX 40 mg/Kg/dia 12/12h
14 dias
Adolescentes/ Adultos D1: 500 mg
D2-5: 250 mg
24/24h
2000 mg/dia 8/8h;
14 dias
1000 mg/dia 12/12h;
7 dias
Cotrimoxazol
TMP 320/SMX 1600 mg/dia 12/12h 14 dias

Com o objectivo de evitar a transmissão secundária, para além do tratamento do caso índex, é recomendada a profilaxia dos contactos íntimos com macrólido, independentemente da idade e do estado vacinal. Nas crianças com idade igual ou inferior a 6 anos e com atraso vacinal deve ser actualizado o esquema de vacinação.

Prevenção

A imunização universal de crianças, começando na primeira infância e com reforços periódicos, constitui a base essencial da contenção da doença por B. pertussis.

Efectivamente, nos países industrializados a introdução da vacina na década de 40 permitiu uma diminuição da incidência da doença, da sua morbilidade e mortalidade. A primeira vacina utilizada foi a de célula completa Pw (DTPw ou vacina antipertussis associada à antidiftérica e antitetânica).

No entanto, pelo elevado número de efeitos adversos associados, foi interrompida nalguns países. Este procedimento teve consequências: recomeçaram grandes epidemias de tosse convulsa.

Os estudos epidemiológicos subsequentes demonstraram que o risco da doença excedia largamente o risco da vacinação, pelo que a DTPw foi reintroduzida na maioria dos países que a tinham suspendido. Grande parte das reacções adversas à DTPw deve-se ao seu conteúdo em endotoxina.

De forma a contornar esta problemática, surgiram as vacinas acelulares (DTPa), nas quais são utilizados apenas alguns antigénios da Bordetella pertussis, o que consequentemente levou a menor frequência de reacções adversas, conquanto associada a menor imunogenicidade e eficácia relativamente à DTPw. Assim, a DTPa não está recomendada em crianças com mais de 7 anos.

Os objectivos para o controlo da tosse convulsa a nível europeu estão definidos pela OMS desde 1993; entre outros, atingir em cada país a incidência inferior a 1/100.000. Portugal atingiu essa taxa em 1997, passando de 1,6 para 0,34/100.000. De salientar que, com tal estratégia, o nível de endemicidade manteve-se, com picos regulares.

Em Portugal, em 1965 foi introduzida no PNV a vacina combinada contra a tosse convulsa do tipo célula inteira (DTPw), sendo substituída em 2006 pela vacina pertussis acelular (DTPa).

Entretanto, passou a verificar-se o chamado efeito perverso da vacinação, com desvio etário da doença, quer no pequeno lactente não vacinado ou incompletamente vacinado, quer nos adolescentes e adultos.

Com o desenvolvimento da tecnologia, começaram a surgir vacinas acelulares com menor dose antigénica (símbolo pa em oposição ao convencional Pa) (Boostrix®), e com uma imunogenicidade semelhante à das vacinas utilizadas para a vacinação primária (DTPa), podendo ser utilizadas no adolescente e adulto em função da realidade epidemiológica local ou regional.

As estratégias a adoptar para controlo da re-emergência da tosse convulsa não consensuais, começaram a ser adoptadas nalguns países:

1. Vacinação da grávida

A passagem transplacentar de anticorpos é máxima às 34 semanas de gravidez. Embora a correlação entre os níveis de anticorpos e a seroprotecção não esteja ainda estabelecida, admite-se que aquela confere protecção passiva no primeiro mês de vida.

Desde 2012 os EUA e o Reino Unido adoptaram a vacinação de grávidas contra a tosse convulsa entre as 28 e as 38 semanas de gestação. Os estudos realizados pelos programas de vigilância de efeitos adversos destes países demonstraram que a vacina é segura e altamente eficaz na protecção do recém-nascido e pequeno lactente.

A vacinação da grávida parece ser a medida mais eficaz na prevenção da tosse convulsa em lactentes com menos de três meses; no entanto, é desconhecido se há interferência dos anticorpos maternos com a posterior resposta vacinal à DTPa no lactente.

2. Vacinação de recém-nascidos/antecipação da primovacinação

A imunização com DTPa no período neonatal parece interferir na resposta imunitária subsequente à tosse convulsa, não sendo recomendada. Antecipar a administração da DTPa para as 6 semanas tem sido proposto em vários países. Contudo, o impacte desta estratégia não está bem estabelecido.

3. Vacinação selectiva de familiares e contactos próximos do recém-nascido (cocooning)

Vários estudos sugerem que os lactentes são infectados pelos conviventes familiares em mais de 75% dos casos. Apesar de o efeito desta estratégia não estar ainda bem definido, a OMS recomenda a vacinação de adultos que tenham contacto próximo com recém-nascidos. Esta estratégia já foi adoptada na Austrália, EUA, França e Alemanha, sendo muito difícil de concretizar, não parece ser suficiente para diminuir a morbilidade no lactente pequeno nem a incidência global da doença.

4. Vacinação de adolescentes e adultos

Diminuir a doença nos adolescentes não parece trazer benefícios na redução de doença em lactentes. Tal facto poderá estar relacionado com a baixa cobertura vacinal ou com a reduzida interacção entre adolescentes e crianças. Por outro lado, o declínio da imunidade 6-10 anos após a vacinação na adolescência poderá levar a um aumento da susceptibilidade dos adultos em idade fértil. Para contornar esta problemática, alguns países sugerem reforços dos adultos a cada 10 anos com dTpa.

5. Vacinação selectiva de profissionais de saúde

São vários os estudos que têm sido publicados sobre surtos de infecção nosocomial em unidades de saúde, tendo os profissionais de saúde papel importante no contágio aos lactentes.

A OMS recomenda a vacinação dos profissionais de saúde, especialmente, de unidades de cuidados intensivos neonatais e maternidades. No entanto, não há estudos que avaliem o impacte desta medida.

Salienta-se que nenhuma das cinco estratégias descritas tem impacte significativo na redução global da doença e na morbilidade. Assim, perante o conhecimento actual, e de acordo com as recomendações internacionais (CDC e OMS), a comissão de vacinas da Sociedade de Infecciologia Pediátrica da Sociedade Portuguesa de Pediatria recomenda:

  • A vacinação de jovens pais e conviventes que desejem reduzir o risco de infecção para os próprios e para os recém-nascidos com quem covivem; 

  • A vacinação de grávidas durante o terceiro trimestre (entre as 28 e 36 semanas da gravidez) durante surtos, tal como o que ocorre actualmente na Europa;
  • A vacinação de adolescentes e adultos como medida de protecção individual. 


Em suma, para avaliar o impacte de qualquer das estratégias abordadas, deverá existir um programa nacional de vigilância epidemiológica. Por outro lado, torna-se fundamental alcançar coberturas vacinais elevadas para garantir resultados eficazes em todos os grupos submetidos a vacinação na tentativa de eliminação da doença.

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Definição e aspectos epidemiológicos

A designação de doença meningocócica engloba as situações clínicas associadas à infecção pela Neisseria meningitidis ou meningococo. Trata-se dum importante problema de saúde pública mundial, estimando-se 500.000 casos por ano, do que resultam 50.000 óbitos.

A incidência de doença meningocócica relatada pelos Centers for Disease Control and Prevention em 2006 referente aos EUA foi de 0,3 casos/100.000 habitantes e, em 2011, de 0,2/100.000; tal indicador varia conforme o grupo etário: mais elevada incidência em crianças com menos de 1 ano, – 6,4/100.000. Em determinadas zonas do mundo são atingidos valores de 14/100.000/ano. A doença invasiva aparece mais frequentemente em crianças pequenas (~ 9/100.000 no primeiro ano de vida ~ 25 casos/100.000 nos primeiros 4 meses de vida).

Em Portugal, no quinquénio 2003-2007, foram notificados 387 casos de doença meningocócica, ocorrendo 26% dos casos em crianças com menos de 1 ano, 34% entre 1-4 anos e 18% entre 5 e 14 anos. A doença tem no nosso país um carácter esporádico, com casos ocorrendo ao longo do ano, com maior frequência no Inverno e Primavera, não havendo relato de qualquer epidemia (definida como o aparecimento de > 3 casos no período de 3 meses na mesma comunidade e > 10 casos/100.000 pessoas) ou surto em anos recentes.

Os dados nacionais mais recentes da vigilância epidemiológica de base laboratorial do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (IRJ), mostram uma redução da incidência global da doença invasiva meningocócica (DIM) de 1,99 casos por 100.000 habitantes em 2003, para 0,53 em 2014 e 0,41 em 2016. Esta descida poderá ser explicada pela natureza cíclica da doença causada pelo meningococo B e pela utilização da vacina contra o meningococo C.

De realçar que a incidência de DIM é máxima nos lactentes (com redução nos últimos anos: 24 por 100.000 habitantes de 2008 a 2013 para 15,8 em 2014), diminui de forma acentuada até a adolescência e mantém-se relativamente estável, em valores baixos, durante a idade adulta.

Na última década, o serogrupo predominante foi sempre o B, com percentagens que variaram, entre 47,9% e 90,5%, respectivamente, em 2003 e 2008.

Em 2015 e 2016, respectivamente 72,7% e 77,5% das estirpes identificadas pertenciam a este serogrupo (B), com um número total de casos tendencialmente crescente.

Os dados de distribuição por grupo etário mostram que a DIM causada pelo serogrupo B tem um perfil característico, com um pico de incidência aos 6 meses de idade. Em crianças com menos de 1 ano de idade, entre 2003 e 2013, 67,1% (159/237) dos casos de DIM causados pelo grupo B ocorreram até aos 6 meses de idade, inclusivé.

Em Portugal foram realizados dois estudos para avaliação da taxa de colonização numa população de estudantes universitários, na mesma área geográfica, em anos diferentes, utilizando a técnica da polymerase chain reaction (PCR).

No primeiro estudo, em 2012, a taxa de colonização global foi de 14,5%, correspondendo 2,5% ao grupo B. No segundo estudo, em 2016, as respectivas taxas foram 12,5% e 1,7%.

A taxa de letalidade global por DIM entre 2003 e 2014 variou entre 2,2% e 10,6% (média <> 7,0%), salientando-se que a referida taxa é crescente a partir dos 45 anos, verificando-se proporções superiores a 30%.

Situações associadas a doenças crónicas, infecções por vírus, especialmente influenza, condições precárias higiénicas, socioeconómicas e habitacionais com convívio promíscuo, exposição ao fumo do tabaco e hábitos tabágicos constituem factores de risco.

No RN a doença surge raramente.

Etiopatogénese

Considerando a relação entre hospedeiro humano e microrganismo, existem diversas variantes quanto ao efeito deste sobre aquele: 1) estado de colonização assintomática da orofaringe ou de portador; o estado de portador assintomático por um período geralmente curto é mais frequente no adolescente e adulto jovem e constitui um factor de disseminação da infecção; 2) infecções localizadas; 3) doença invasiva, sem dúvida a mais frequente e mais grave, cursando por vezes de modo agudo e fulminante, podendo conduzir à morte em poucas horas.

Na maior parte dos casos a colonização da nasofaringe resulta em resposta do organismo hospedeiro com formação de anticorpos (IgM, IgG e IgA), o que confere imunidade natural (protecção) contra diversos serótipos. Numa minoria de casos, especialmente nas crianças pequenas, N. meningitidis penetra na mucosa e, atingindo a circulação sanguínea, causa doença sistémica. A colonização intestinal de enterobacteriáceas produz o mesmo efeito de protecção (imunidade cruzada). A estirpe não patogénica (N. lactamica) confere igual protecção.

O meningococo é um diplococo Gram-negativo aeróbio, oxidase positivo e produtor de catalase. Possui um invólucro com 3 camadas (membrana citoplásmica, parede celular de peptidoglicano, e membrana externa com fosfolípidos, proteínas e lipo-oligossacárido); tal invólucro está rodeado por uma cápsula polissacarídea.

As características estruturais da cápsula determinam a existência de, pelo menos, 12 (anteriormente considerados em número de 13) serogrupos (a que correspondem diversas variantes antigénicas) de meningococo, dos quais seis – A, B, C, W (anteriormente designada W135), X, e Y – são os responsáveis pela maioria dos casos da doença sistémica.

Cada serogrupo divide-se em serótipos e subtipos em função das proteínas porinas da membrana externa (porA e porB, respectivamente), que contribuem para a virulência do microrganismo. O imunotipo é definido pela estrutura do lipo-oligossacárido/LOS ou endotoxina, crucial na cascata inflamatória activada através do Toll-like 4 receptor (TLR-4).*

*O Toll-like receptor 4 (Receptor TLR-4) é uma proteína codificada pelo gene TLR-4. Reconhecendo determinados compostos como por exemplo o lipopolissacárido (LPS), um componente presente em muitas bactérias Gram-negativas, é responsável pela activação do sistema imune inato.

A cápsula contendo, na sua composição, polissacáridos tem capacidade para resistir à fagocitose e à acção de depuração, com a participação do ferro através da lactoferrina e transferrina.

Através de técnicas genéticas concluiu-se que existem sete linhagens hiperinvasivas, causadoras da maior parte dos casos de doença meningocócica invasiva.

De salientar a maior prevalência dos serogrupos B e C nos países industrializados (com incidência ~ 1-3/100.00 nas duas últimas décadas) e a do serogrupo A nos países em desenvolvimento, os quais têm registado incidência anual de ~ 25 casos/100.000.

A nível mundial, em diversos continentes, e relativamente aos serogrupos, verifica-se a seguinte distribuição predominante: América do Norte: B, C, Y; América do Sul, Austrália e Europa: B, C; Ásia: A, B, C; África: A, W, C, X.

Da interacção meningococo – célula endotelial – complemento resulta a produção de citocinas pró-inflamatórias- TNF-alfa, IL-1 beta, IL-7, IL-8, e activação das vias intrínseca e extrínseca da coagulação culminando em CID e vasculite difusa. O LOS, com acção antigénica, induz a produção de IL-12 e resposta de tipo Th1. São também produzidos anticorpos bacterianos contra o polissacárido capsular, as proteínas da camada externa da membrana e o próprio LOS.

A transferência de IgG materno-fetal confere protecção ao lactente nos primeiros 3 meses de vida; contudo, o défice de complemento confere risco aumentado de meningococcémia em tais crianças.

Como factores de risco de doença meningocócica grave/invasiva, descrevem-se como principais: infecção respiratória vírica prévia, défice congénito de properdina ou factor D, défice congénito de componentes terminais do complemento (C5-C9) e contacto com pessoa afectada pela doença.

Manifestações clínicas

O espectro clínico da doença meningocócica varia muito, desde o estado de portador assintomático, à forma aguda fulminante, levando à morte após escassas horas de evolução. As formas mais frequentes são a meningite (30%-50% dos casos) e a septicémia/sépsis.

Outras formas clínicas incluem bacteriémia sem sépsis, sépsis com ou sem meningite, pneumonia, bacteriémia crónica e bacteriémia oculta e infecções focais com diversas localizações.

As entidades meningite meningocócica e sépsis meningocócica, acompanhada ou não de meningite integram o conceito da chamada doença invasiva. (ver adiante “diagnóstico de meningococcémia)

Uma vez que aspectos gerais da meningite bacteriana relacionada com N. meningitidis foram abordados em capítulo anterior (meningite bacteriana pós-neonatal), o objectivo essencial deste capítulo é incidir sobre a sépsis meningocócica e outras manifestações de gravidade aparentemente intermédia.

  1. O quadro clínico de apresentação mais comum integra a febre acompanhada de exantema petequial na proporção variável entre 28% e 77% dos casos, com predomínio no tronco e extremidades inferiores (início como exantema maculopapular convertendo-se em petéquias após algumas horas. Nos casos graves, estas lesões podem evoluir para equimoses e púrpura disseminada, embora nem todos os casos letais evidenciem exantema. A febre está geralmente associada a mialgias, calafrios, vómitos, diarreia, rinite, disfagia e artralgias; este quadro pode coincidir com o aparecimento das lesões cutâneas.
  2. A bacteriémia/menigococcémia oculta manifesta-se por febre associada ou não a outros sintomas, sugerindo quadro de infecção vírica. A bacteriémia poderá regredir sem antibioticoterapia, ou evoluir para meningite ou para infecção focal com diversas localizações.
  3. Outras manifestações incluem sintomatologia associada a infecções focais: pneumonia com ou sem derrame, artrite séptica com isolamento do meningococo do líquido sinovial, artrite reactiva, estéril, de etiopatogénese imunológica, pericardite, miocardite, etc..
  4. A meningococcémia crónica constitui uma forma de apresentação rara, caracterizada por febre, artralgias, aspecto geral “não tóxico”, cefaleias, e exantema. A sintomatologia é intermitente, podendo durar cerca de 6 a 8 semanas. As hemoculturas são geralmente positivas, embora inicialmente estéreis. Nos casos não tratados poderá surgir meningite.
  5. As manifestações que sugerem o quadro da sépsis meningocócica na sua fase inicial são: febre, lesões cutâneas, e mau estado geral de instalação aguda. Por parte do clínico, reitera-se que deverá existir um elevado índice de suspeita no âmbito da avaliação de cada caso.

Tratando-se de criança mais pequena (lactente), as lesões cutâneas associadas ao mau estado geral podem constituir a primeira suspeita. As mesmas podem ser constituídas por petéquias localizadas ou disseminadas e confluentes, purpúricas.

As lesões petequiais iniciais em poucas horas aumentam em número e podem evoluir para exantema purpúrico equimótico (púrpura fulminante) com consequentes sequelas de necrose em vários territórios do organismo, podendo culminar em amputação das extremidades e obrigando a enxertos. Pode deduzir-se que, quanto mais rápida a evolução, pior o prognóstico. (Figura 3 do Capítulo sobre CIVD)

O mau estado geral corresponde a situação de choque, razão pela qual é importante pesquisar os respectivos sinais (oligúria, má perfusão periférica com tempo de reposição de circulação capilar pós-compressão da pele > três segundos, taquicárdia, taquipneia) – choque compensado. Com a evolução da situação pode passar-se para a fase de descompensação do choque potencialmente fatal, traduzida essencialmente por hipotensão arterial e falência multiorgânica.

As situações acompanhadas de insuficiência suprarrenal aguda integram a chamada síndroma de Waterhouse-Friderichsen.

Salienta-se que:

  • as formas subagudas e crónicas de doença meningocócica são raras (ver adiante);
  • em 80% dos casos, a doença meningocócica é acompanhada de sinais clínicos sugestivos;
  • o agente meningitidis é isolado do sangue em cerca de 2/3 dos casos de doença, em cerca de 50% do LCR e, em ~ 1%, do líquido articular.

Diagnóstico

O diagnóstico de meningococcémia baseia-se no isolamento da N. meningitidis do sangue, LCR, líquidos sinovial, pleural, pericárdio e lesões da pele por “técnicas de raspagem”.

Tal como noutras formas de sépsis a positividade dos exames culturais depende de vários factores, designadamente o eventual início de antibioticoterapia prévia e condições da colheita do produto a analisar.

A propósito da sépsis, cabe referir que estão indicados, em princípio, os exames complementares descritos a propósito de sépsis e meningite; salienta-se, no entanto, o interesse da PCR (técnica molecular de reacção em cadeia da polimerase) que permite aumentar a taxa de confirmação diagnóstica e quantificar a carga bacteriana com valor no prognóstico. Por outro lado, considerada a elevada probabilidade de CIVD, aconselha-se a consulta do capítulo sobre este tópico.

No que respeita a marcadores clássicos de gravidade em infecções sistémicas, determinados estudos demonstraram que, no caso da doença meningocócica, a procalcitonina (PCT) tem maior especificidade e sensibilidade que a proteína C reactiva (sigla igual à referida anteriormente para a reacção em cadeia da polimerase), considerando como valores de corte/cut off respectivamente 2 ng/mL (PCT) e 3 mg/dL (Prot CR). No que respeita à PCT, em situações de normalidade as concentrações séricas são geralmente < 0,01 ng/mL, em situações inflamatórias ligeiras, eventualmente de causa vírica raramente > 1 ng/mL, e em situações de doença menigocócica ou de infecção sistémica grave, em geral > 500 ng/mL.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial deve estabelecer-se com outras causas de sépsis ou meningite (por enterobacteriáceas, S. pneumoniae, S. aureus, etc.) e de exantemas petequiais relacionados com infecções víricas, infecções por S. viridans, púrpura de Henoch-Schonlein, síndroma hemolítica urémica, púrpura trombocitopénica idiopática, reacções farmacológicas, etc..

Tratamento

Os aspectos do tratamento a propósito da meningite bacteriana, choque e coagulação intravascular disseminada, são aplicáveis à sépsis meningocócica.

O tratamento empírico deve iniciar-se imediatamente ante a suspeita de doença meningocócica. De facto, o tratamento antibiótico pré-hospitalar com estabilização hemodinâmica (prioritários), seguido de transporte medicalizado para hospital com unidade de cuidados intensivos, têm contribuído para melhorar o prognóstico, diminuindo a mortalidade e as sequelas.

Sintetizam-se aqui aspectos essenciais da antibioticoterapia que, reitera-se, se deve iniciar precocemente em regime de internamento hospitalar:

→ de eleição

  • penicilina G via IV (250.000-400.000U/kg/ dia IV em 4-6 doses);
  • cefotaxima via IV (200 mg/kg/dia) em 4-6 doses;
  • ceftriaxona via IV (100 mg/kg/dia) em 2 doses;
  • ampicilina via IV (200-400 mg/kg/dia) em 4-6 doses.

→ de alternativa (se alergia grave a beta-lactâmicos)

  • ciprofloxacina via IV (18-30 mg/kg/dia) em 2-3 doses;
  • meropenem via IV (60-120 mg/kg/dia) em 3 doses;
  • cloranfenicol via IV (75-100 mg/kg/dia) em 4 doses.

A duração varia entre 5 e 7 dias.

Notas importantes:

    • Nalguns centros hospitalares com experiência e com o apoio de equipas médicas e de enfermagem de ambulatório e de cuidados continuados, em função do contexto clínico, está previsto o tratamento empírico em casos seleccionados de crianças com estado geral bom/não tóxico durante surtos de meningococcémia em regime extra-hospitalar.
    • Têm sido identificadas estirpes de N. meningitidis evidenciando resistência relativa à penicilina (CIM de penicilina <> 0,1-1,0 mcg/mL).
    • As estirpes de N. meningitidis produtoras de beta-lactamase são raras.

Prevenção

Medidas não imunológicas

As medidas não imunológicas incluem:

  • isolamento de doentes com doença invasiva;
  • quimioprofilaxia com rifampicina na dose de 20 mg/kg/dia (não excedendo 600 mg/dose), em 2 tomas diárias, durante 2 dias. No adulto a dose é 600 mg/dia, 1 toma diária. A profilaxia não é recomendada a grávidas.

Como alternativa, pode utilizar-se uma única injecção de ceftriaxona ou 1 dose oral de ciprofloxacina (neste último caso, somente a partir dos 18 anos).

Em Portugal, as infecções por meningococos são de notificação obrigatória. Todas estas medidas deverão ser comunicadas aos pais ou responsáveis pela criança, assim como a professores e educadores em geral.

Medidas imunológicas

Em Portugal, as vacinas meningocócicas C (Men C) e B (Men B) fazem parte do actual PNV, sendo que, esta última, a partir de 2020.

Existem, também, comercializadas vacinas polissacarídeas anti-N. meningitidis dos grupos A, C, W e Y (Men ACWY- vacina conjugada tetravalente, por ex. Nimenrix®), designadamente para indivíduos residentes ou que façam viagens para áreas endémicas ou epidémicas.

A Comissão de Vacinas da Sociedade Portuguesa de Infecciologia Pediátrica, ramo da Sociedade Portuguesa de Pediatria (CV-SPP/SIP), recomenda igualmente a administração da referida vacina conjugada nas seguintes situações: as crianças e adolescentes com asplenia anatómica ou funcional, hiposplenismo, défice congénito do complemento e submetidas a tratamento com inibidores do complemento (Eculizamab).

Segundo a referida CV, a administração duma dose de Men ACWY aos 12 meses de idade dispensa a administração da Men C incluída no PNV. A mesma pode ser administrada a partir das 6 semanas de idade.

Prognóstico

A taxa de mortalidade da doença meningocócica invasiva situa-se entre 5%-10%, sendo que os óbitos se verificam predominantemente nas situações de elevada carga bacteriana infectante.

Constituem factores de mau prognóstico: hipotermia, hipertermia, hipotensão, choque, púrpura fulminante, convulsões, leucopénia, trombocitopénia, CIVD, acidose, e elevados níveis circulantes de TNF-alfa e de endotoxinas. A presença de petéquias de início precoce (< 12 horas), ausência de meningite e baixa ou normal velocidade de sedimentação, são indicadores de rápida progressão da doença e de prognóstico mau.

Após resolução de episódio de infecção meningocócica aguda está indicado o rastreio de défice de complemento, sobretudo na segunda infância e adolescência, dado o risco de recorrência de infecções graves, caso se verifique tal défice.

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Definição, nomenclatura e importância do problema

O agente Salmonella é um bacilo Gram-negativo, não esporulado, anaeróbio facultativo, que se propaga à espécie humana. É resistente a muitos agentes físicos, sendo destruído a temperatura de 55ºC durante 1 hora ou a 60ºC durante 15 minutos. Mantém-se viável no ambiente a baixas temperaturas durante dias ou semanas em material fecal, resíduos orgânicos, etc.. A doença provocada por tal agente infeccioso, de expressão clínica variada, designa-se dum modo geral salmonelose.

Salmonella é um género da família Enterobacteriaceae cuja classificação taxonómica, algo complexa e confusa, tem mudado ao longo do tempo. (ver adiante)

O referido agente pode originar, após contacto com o organismo, para além da colonização assintomática, 2 síndromas clínicas:

  1. Infecção gastrintestinal (gastrenterite aguda ou prolongada); e
  2. Invasão sanguínea com consequente infecção sistémica.

As infecções por Salmonella (doenças de declaração obrigatória) surgem de forma endémica em várias regiões do globo, designadamente nos países em desenvolvimento, constituindo um problema de saúde pública de grande magnitude, com elevados custos para a sociedade (nos EUA, > de 3 biliões de dólares/ano).

A primeira forma descrita foi a febre tifóide, actualmente com baixa incidência nos países de maiores recursos económicos e rede adequada de cuidados primários e de saneamento básico. Em todo o mundo, estima-se que ocorram anualmente cerca de 20 milhões de casos e 600.000 mortes.

Nos países ditos desenvolvidos, a incidência de febre tifóide é < 15 casos/100.000 habitantes, ocorrendo, sobretudo em cidadãos que viajam e contactam com casos de portadores; em comparação, nos países do terceiro mundo, estima-se incidência da ordem de 100-1.000 casos/100.000 habitantes.

Em Portugal, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, no quadriénio 2010-2013 foram declarados até aos 15 anos de idade (exclusive) 742 casos de salmoneloses (S. typhi e paratyphi) correspondendo a média anual de 185. Neste período da idade pediátrica, a incidência anual média situou-se em ~ 1,85/100.000, inferior à obtida no quinquénio 2003-2007: ~ 3,2/100.000.

No que respeita às salmoneloses não tifóides (ver adiante), estatísticas da OMS referentes aos EUA, apontam, por ano, para ~ 1,4 milhões de casos, 15.000 hospitalizações e ~ 600 óbitos.

Com o desenvolvimento da biologia molecular, a partir de 2004 foi adoptada nomenclatura diversa da anterior relativamente ao género Salmonella em função da homologia genética, sendo que agentes infecciosos com analogias no genoma podem provocar doença de manifestação diversa.

O Quadro 1 pretende elucidar sobre a correspondência quanto a nomenclatura:

– tradicional; versus – actual, de acordo com os CDC (Centers for Disease Control and Prevention).

QUADRO 1 – Salmonella: Nomenclatura tradicional e actual (do CDC).

TradicionalActual
*S. typhiS. entérica, subespécie entérica, serótipo typhi
*S. paratyphi S. entérica, subespécie entérica, serótipo paratyphi A
*S. dublinS. entérica, subespécie entérica, serótipo dublin
*S. typhi muriumS. entérica, subespécie entérica, serótipo typhi murium
*S. enteritidisS. entérica, subespécie entérica, serótipo enteritidis
*S. marinaS. entérica, subespécie houtenae, serótipo marina

De acordo com a classificação tradicional, o género Salmonella (S) engloba mais de 2.500 serótipos caracterizados em função dos respectivos antigénios (O ou somáticos e H ou flagelares).

Actualmente são consideradas subespécies dentro de determinada espécie, salientando-se que cada subespécie contém vários serótipos. (ver adiante)

Relativamente às espécies, ainda hoje é utilizada a divisão em grupos A, B, C, D, E, etc..

A destrinça baseia-se em provas bioquímicas ou em técnicas de hibridação do DNA.

Algumas bactérias Salmonella (particularmente S. typhi) possuem mais um antigénio, o antigénio Vi.

S. typhi, paratyphi A, B, C, typhi murium, enteritidis, etc. têm na espécie humana o único reservatório; noutros, os principais reservatórios são os animais. (ver adiante salmonelose não-typhi)

Neste capítulo são descritas duas formas clínicas: salmoneloses não tifóides e febre tifóide.

1. SALMONELOSES NÃO TIFÓIDES

Aspectos epidemiológicos e etiopatogénese

Os agentes implicados nesta forma clínica são S. dublin, presente no gado em geral (vacum, ovelhas, cabras, etc.), S. cholerae suis, no porco; a maioria dos serótipos pode atingir, contudo, um espectro mais alargado de espécies animais.

Os 2 serótipos mais importantes nas salmoneloses de transmissão de animais à espécie humana são: S. enteritidis (S. enterica – serótipo enteritidis) e S. typhi murium (S. enterica – serótipo typhi murium).

A recrudescência deste tipo de infecções em muitas partes do mundo nas 3 décadas passadas relaciona-se com práticas intensivas em pecuária, traduzidas fundamentalmente por selecção de certas estirpes em resultado do emprego de antimicrobianos de largo espectro para conservação de rações animais preparadas industrialmente.

Como principais factores de risco de surtos de doença não tifóide por Salmonella, citam-se contacto com animais domésticos infectados: cães, gatos, répteis, roedores, galinhas, ovos, anfíbios, etc.; certos serótipos estão tipicamente associados a determinados animais (por ex. S. entérica marina em iguanas).

Outros factores de risco incluem: hemoglobinopatias, paludismo, doença inflamatória intestinal, acloridria, tratamento prolongado com corticóides ou imunossupressores, quimioterapia associada a doença oncológica, infecção por VIH, e défice hereditário de IL-12 comportam maior risco de septicémia e de osteomielite por Salmonella.

Como factores predisponentes, há a salientar défice imunitário e as idades extremas, mais vulneráveis (1ª infância e idade avançada). Os animais domésticos e o Homem adquirem o agente infeccioso através de produtos animais contaminados.

As estirpes resistentes aos antibióticos são também as mais virulentas.

As infecções sucedem-se à ingestão de alimentos contaminados (carne picada, ovos, leite, água, charcutaria, mariscos de concha, pastelaria, etc.) e ao contacto com animais infectados (galinhas, iguanas de estimação ou outros répteis, tartarugas, etc.); no entanto, a propagação também se pode fazer de pessoa a pessoa (epidemias em infantários, hospitais ou instituições em relação sobretudo com superlotação de enfermarias e deficiente lavagem das mãos por parte dos profissionais de saúde que contactam intimamente com doentes ou pessoas em geral). As pessoas infectadas sem sintomas ou portadores crónicos (muitas vezes com litíase biliar) constituem reservatórios de germes microbianos que são fonte de contágio.

Como nota à margem, cita-se que foram descritos casos de transmissão sexual e por via transplacentar.

Para que surja doença sintomática no adulto torna-se necessário que o número de bactérias ingeridas (inóculo) seja ~ 100 a 1.000. A acidez gástrica inibe a multiplicação dos agentes microbianos, sendo que surge morte dos mesmos com pH < 2; pelo contrário, a acloridria gástrica favorece-a (RN e lactente). As situações de esvaziamento gástrico rápido, designadamente as associadas a gastrenterostomias, constituem também factores predisponentes.

Outros factores incluem: serótipo envolvido, porta de entrada, doenças comprometendo os mecanismos de defesa imunitária, uso prévio de antimicrobianos, etc..

A resposta inflamatória típica da mucosa intestinal na infecção por Salmonella não tifóide é um processo de enterocolite com edema difuso da mucosa, por vezes com erosões e microabcessos.

Os agentes Salmonella (bactérias invasivas) localizam-se sobretudo no intestino (íleo terminal e intestino grosso): aderindo primeiramente às microvilosidades, são depois englobados pelo enterócito (por mecanismo semelhante à pinocitose, penetrando através da membrana da célula da bordadura em escova), ocupando o respectivo citoplasma sem se multiplicarem; tal processo de multiplicação, ocorrendo nos macrófagos após cerca de 24 horas ao atingirem a lâmina própria, conduz a reacção inflamatória com estimulação do AMP cíclico, libertação de prostaglandinas, etc..

Embora S. typhi murium possa originar doença sistémica na espécie humana, da infecção intestinal, geralmente, resultam:

  • resposta secretória do epitélio intestinal (por acção de enterotoxinas com consequente diarreia secretória); e
  • indução de secreção de IL-8 e outros mediadores ao nível dos lisossomas das células da bordadura.

Caso se verifique recrutamento e transmigração de neutrófilos até ao lume intestinal, a disseminação da bactéria fica condicionada.

Da interacção entre Salmonella e macrófagos resulta alteração na expressão de certos genes do hospedeiro, incluindo os que codificam mediadores pró-inflamatórios (sintetase do NO, IL-1b), receptores ou moléculas de adesão (TNF-alfa R, CD40, molécula de adesão intercelular-1 (ICAM-1), mediadores anti-inflamatórios (TGF-beta 1 e beta 2), assim como genes envolvidos no processo de morte celular e de apoptose.

Salienta-se que existem genes específicos de virulência cuja acção se traduz na capacidade para invasão da corrente sanguínea (bacteriémia). Estes genes encontram-se com maior frequência em estirpes de S. typhi murium isoladas do sangue e das fezes.

As estirpes de S. dublin têm maior propensão para invadir rapidamente a corrente sanguínea, ao mesmo tempo que existe menor ou nula acção patogénica intestinal.

A bacteriémia é possível, contudo, com qualquer serótipo de Salmonella, especialmente em indivíduos com défice imunitário ou compromisso do sistema reticuloendotelial.

A IL-12, produzida por macrófagos activados, é um potente indutor de interferão-gama através dos linfócitos T e das células natural killer. Considerando o possível papel protector da IL-12 contra a infecção por Plasmodium, a circunstância de fagócitos conterem/estarem infectados por Salmonella pode afectar secundariamente a produção de IL-12 e levar a situação de círculo vicioso de coinfecção Plasmodium e Salmonella.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da salmonelose não tifóide dependem essencialmente de dois factores:

  • infecção confinada ao tubo digestivo; ou
  • disseminação da infecção com focos extraintestinais.

Assim, poderão surgir: gastrenterite aguda, bacteriémia e infecções focais extra-intestinais.

Gastrenterite aguda

Trata-se da forma de apresentação mais frequente, podendo manifestar-se, após período de incubação geralmente inferior a 24 horas, variando entre 6 e 72 horas.

Fora do período neonatal, o quadro clínico, com uma duração entre 1 a 2 semanas, integra essencialmente náuseas, com ou sem febre, vómitos, dor abdominal e diarreia aquosa, por vezes muco-sanguinolenta.

No recém-nascido, em situações acompanhadas de imunossupressão ou de carga infectante considerável, e em função do serótipo em causa, pode seguir-se bacteriémia com repercussão sistémica grave acompanhada de leucocitose (quadro simile septicémia e/ou ou meningite-cefaleias, prostração, confusão mental, convulsões, distensão abdominal e meningismo). As fezes contêm polimorfonucleares e, nos casos não associados a fezes sanguinolentas, sangue oculto.

Cerca de 0,5% a 1% das crianças infectadas por S. não-typhi tornam-se portadoras e excretoras pelas fezes durante período indeterminado, com maior frequência em crianças de idade inferior a 1 ano.

Bacteriémia

Surgindo em cerca de 1% a 5% dos casos com diarreia, é mais frequentemente associada a sintomas em crianças maiores. O prolongamento da febre > 5 dias no contexto de gastrenterite por Salmonella sugere bacteriémia.

Esta pode estar associada a choque séptico – o que se tem verificado nos países em desenvolvimento – e surgir com recorrências em doentes com infecção por VIH apesar da antibioticoterapia.

Têm sido descritas com frequência considerável (~ 40%-70%) formas de doença invasiva provocada por S. typhi murium e S. enteritidis no continente africano em doentes com infecção por VIH e malária.

Infecções focais extraintestinais

Esta forma pode seguir-se à bacteriémia com formação de focos infecciosos em diversos sistemas, designadamente se a esse nível existem lesões com susceptibilidade para infecção (sistema esquelético, áreas de enfarte ósseo, próteses ósseas, meninges, encéfalo, alterações vasculares relacionadas com cateteres, etc.).

O pico de incidência da meningite por Salmonella verifica-se na 1ª infância; este quadro é associado a manifestações sistémicas importantes e comporta risco elevado de sequelas neurológicas e de mortalidade.

 Complicações

As complicações mais frequentes são a desidratação por gastrenterite e artrite reactiva pós-gastrenterite, sobretudo em adolescentes com o antigénio HLA-B-27.

Muitas das complicações podem, por outro lado, corresponder a manifestações da própria doença, a qual assume um carácter mais arrastado e mais grave, evoluindo para septicémia, ou recorrente; tal poderá acontecer, nomeadamente, em crianças com < 6 meses de idade, se existir patologia de base como doença inflamatória crónica, malária, infecção por VIH, anemia hemolítica, esquistossomíase, etc..

Nos doentes com esquistossomíase, o agente Salmonella poderá persistir e multiplicar-se dentro dos esquistossomas, levando a infecção crónica, somente curada após tratamento efectivo da esquistossomíase.

Diagnóstico

Nas situações de gastrenterite, o diagnóstico baseia-se no isolamento do agente, sendo preferível nas fezes relativamente à zaragatoa rectal (de salientar que a eliminação pelas fezes pode ser intermitente e prolongar-se durante semanas ou meses).

A verificação de muco, sangue e leucócitos indicia colite; de salientar que a presença de leucócitos nas fezes aponta para a presença de germe invasivo ou de germe produtor de citotoxina incluindo Salmonella (o que igualmente acontece com Shigella, Campylobacter jejuni e E. coli invasivo, obrigando a diagnóstico diferencial. (ver adiante)

Havendo sinais evidentes de focos de supuração, está indicada a pesquisa em aspirados a partir dos respectivos locais para coloração pelo Gram e exame cultural. Embora os agentes Salmonella cresçam bem em meios não selectivos ou enriquecidos (por ex. agar-sangue), e existência de microbiota mista obriga a utilizar meios selectivos (por ex. MacConkey).

Em alternativa aos exames culturais, podem utilizar-se técnicas PCR. Outras técnicas (rápidas) incluem a de aglutinação pelo látex e a imunofluorescência.

Nos casos de colite está indicada endoscopia, identificando-se padrão que pode sugerir colite ulcerosa.

Através do estudo serológico podem ser detectados anticorpos utilizando diversas técnicas.

Nos casos de doença invasiva estão indicados exames culturais a partir do sangue, urina, LCR e das lesões metastáticas (por exemplo medula óssea).

Nota importante: em crianças com < 3 meses, assim como nos casos de crianças imunocomprometidas com isolamento positivo das fezes, independentemente de haver, ou não sintomas sugestivos de bacteriémia, está indicada hemocultura.

Diagnóstico diferencial

As formas de salmonelose não-typhi traduzidas por gastrenterite evidenciam sintomatologia semelhante à das gastrenterites provocadas por outros germes microbianos, por ex. Shigella, E. coli, Yersinia enterocolitica, Entamoeba histolytica, Campylobacter jejuni, Clostridium difficile, etc., sendo a destrinça feita através de exames culturais ou análises pelos métodos ELISA e PCR.

Nos casos de diarreia persistindo mais de 14 dias, poderão estar indicados exames para avaliar síndroma de má-absorção, incluindo endoscopia e biópsia do intestino delgado.

Tratamento

O esquema de tratamento varia em função da idade e apresentação clínica.

Nos casos de gastrenterite estão indicadas as medidas aplicáveis a situações com etiologia diversa. Os antibióticos não estão em geral indicados por suprimirem a microbiota intestinal normal e poderem prolongar a excreção de Salmonella, havendo risco de se criar estado de portador crónico.

Contudo, dado o risco de bacteriémia em crianças com < 3 meses de idade e de disseminação de infecção em indivíduos imunocomprometidos, nestes casos está indicada antibioticoterapia empírica até conhecimento dos resultados do exame cultural:

  • cefotaxima (100-200 mg/kg/dia em 4 doses) durante 5-14 dias; ou
  • ceftriaxona (75 mg/kg/dia em 1 dose) durante 7 dias; ou
  • ampicilina (100 mg/kg/dia em 4 doses) durante 7 dias; ou
  • cefixima (15 mg/kg/dia) durante 7-10 dias.

Dada a possibilidade de aparecimento de multirresistências aos antibióticos, em casos de infecção por agente Salmonella, está indicada a avaliação da sensibilidade. A propósito, salienta-se que a estirpe S. typhi murium, fago do tipo DT104 é geralmente resistente a: ampicilina, cloranfenicol, estreptomicina, sulfonamidas e tetraciclina.

 Prognóstico

Desde que não existam factores de risco (infecções crónicas antes referidas, má-nutrição, défice imunitário), as crianças com gastrenterite recuperam completamente da doença.

No entanto, reiterando o que foi dito antes, Salmonellas não tifóides poderão continuar a ser excretadas durante semanas; o tempo de excreção prolongado (< 1%) é mais frequente em crianças com litíase biliar no contexto de hemólise crónica. Esta situação poderá contribuir como fonte de contaminação fecal-oral ou através de alimentos.

Prevenção

Para evitar a transmissão de infecções por Salmonella à espécie humana torna-se necessário:

  1. Controlar a infecção nos reservatórios animais;
  2. Utilizar judiciosamente antibióticos no âmbito da indústria de lacticínios e da medicina veterinária;
  3. Prevenir a contaminação de alimentos, nomeadamente no âmbito da indústria e comércio alimentares;
  4. Garantir a confecção doméstica de refeições em condições de higiene relacionadas, não só com os próprios alimentos, mas também com o pessoal envolvido, o ambiente e o equipamento utilizado.

As medidas de prevenção englobam igualmente: – cuidados de isolamento com répteis e anfíbios (quer os ditos de companhia doméstica, quer os públicos em jardins zoológicos e exposições), evitando o contacto com pessoas; e – condições especiais de segurança (implicando nomeadamente possibilidade de lavagem das mãos).

Relativamente a vacinas contra infecções por Salmonella não tifóide, actualmente as mesmas somente estão disponíveis para aplicar em animais.

2. FEBRE TIFÓIDE ou ENTÉRICA

Definição e importância do problema

A entidade febre tifóide (também designada por alguns autores febre entérica) diz respeito à infecção por Salmonella enterica serótipo typhi e Salmonella entérica serótipo paratyphi A.

Reiterando o que foi descrito anteriormente, cumpre referir que a distribuição geográfica da febre tifóide é universal, com uma incidência anual de 20 milhões de casos e de 600.000 mortes.

É endémica em países em vias de desenvolvimento, especialmente na Ásia, África e América Latina.

Embora rara no nosso meio, justifica-se a sua abordagem pela facilidade actual de transportes, e pela probabilidade de ocorrência de casos em viajantes retornados de áreas endémicas.

Aspectos epidemiológicos

Uma das particularidades da epidemiologia da febre tifóide é a emergência de resistência do respectivo agente infectante a antimicrobianos usados (multirresistência), por vezes na sequência de surtos esporádicos.

O mecanismo de tal resistência adquirida tem sido relacionado:

  1. Com a intervenção de plasmidos (o que acontece com ampicilina, cloranfenicol e sulfametoxazol-trimetoprim); e
  2. Com a intervenção cromossómica (quinolonas se usadas indiscriminadamente).

Outra particularidade diz respeito à adaptação de S. typhi à espécie humana, significando que o agente perdeu a capacidade de se transmitir a outros animais. Admite-se que tal facto se deve a fenómeno de degenerescência de genes.

Assim, o contacto directo ou indirecto com uma pessoa infectada (doente ou portador crónico) constitui pré-requisito para a infecção.

A contaminação pode verificar-se através de mariscos e ostras obtidos em viveiros próximos de esgotos, ou a ingestão de alimentos ou água contaminados com fezes humanas por S. typhi ou paratyphi A (ausência de saneamento básico).

Etiopatogénese

Para além da implicação do agente referido anteriormente (Salmonella enterica serótipos typhi e paratyphi A), pode também surgir doença idêntica mais ligeira provocada por S. paratyphi B (Schotmulleri) e S. paratyphi C (Hirschfeldii), respectivamente na proporção de 10/1 casos. O Homem (doente ou portador) constitui o único hospedeiro das referidas bactérias. (ver adiante)

Em termos de património genético, cabe referir que S. typhi partilha muitos genes com Escherichia coli e com S. typhi murium, alguns dos quais são conhecidos pela sua patogenicidade, e outros, adquiridos durante a evolução dos respectivos agentes infecciosos.

Um dos genes mais específicos de S. typhi é o chamado Vi, o qual está presente em cerca de 90% das estirpes, com efeito protector contra a acção bactericida do soro de doentes infectados.

Após ingestão, o número de microrganismos S. typhi para provocar infecção pode oscilar entre 100 e 1.000. Os mesmos, atingindo a mucosa intestinal, penetram depois em determinados enterócitos especializados (células M do íleo terminal encimando as áreas de tecido linfóide – as placas de Peyer), ou atravessam o espaço intercelular. Em qualquer das modalidades de passagem transepitelial, atingem o tecido linfóide mesentérico e os vasos linfáticos até aos vasos sanguíneos. Inicia-se assim bacteriémia (chamada primária), assintomática, a que correspondem em geral culturas negativas.

Os agentes S. typhi disseminam-se, então, pelo organismo colonizando órgãos do SRE (baço, fígado, vesícula biliar, medula óssea), multiplicando-se no interior de macrófagos.

Após período de multiplicação, os referidos S. typhi voltam novamente à corrente sanguínea, originando nova bacteriémia (agora chamada secundária), a qual coincide com o início de sintomas e corresponde ao fim do período de incubação (de duração variável, em função da magnitude do inóculo).

A infecção com S. typhi produz uma resposta inflamatória nas camadas mais profundas da mucosa e tecido linfóide subjacente com hiperplasia das placas de Peyer e subsequente necrose que pode levar a ulceração do epitélio suprajacente; por sua vez, como consequência da lesão da muscularis e peritoneu, surgirá perfuração da parede intestinal.

As úlceras podem sangrar e curar depois sem cicatriz, ou originar estenose intestinal. Ao nível dos gânglios mesentéricos, fígado e baço, a par do processo inflamatório, verificam-se áreas de necrose focal.

Admite-se que, através dos genes de virulência (incluindo SPI-2, TTSS) exista capacidade para o agente infeccioso provocar infecção sistémica. O antigénio capsular polissacarídeo de virulência (Vi) interfere com a fagocitose prevenindo a ligação de C3 à superfície da bactéria.

A capacidade de os microrganismos sobreviverem dentro de macrófagos (outra característica de virulência) é também determinada geneticamente (gene phoP).

A ocorrência ocasional de diarreia pode ser explicada por enterotoxina termolábil (similar a enterotoxina produzida por E. coli e vibrião colérico).

A síndroma clínica constituída por febre e sinais sistémicos deve-se à libertação de citocinas pró-inflamatórias a partir das células infectadas (IL-6, IL1-beta, TNF-alfa).

Os doentes com infecção por VIH, e Helicobacter pylori têm especial predisposição para febre tifóide.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas revelam-se após período de incubação, oscilando entre 7 e 14 dias, com limites entre 3-60 dias. Classicamente são descritos cinco períodos:

1 – Período inicial (duração ~ 7-10 dias) com sintomatologia geral de início agudo ou insidioso integrando mal-estar geral, anorexia, dor abdominal, vómitos, diarreia ou obstipação, hepatosplenomegália; e também febre alta (39-40ºC) com frequência cardíaca não proporcional à febre (classicamente bradicárdia com febre).

2 – Período de estado (duração ~ 7-14 dias) caracterizado por exacerbação da sintomatologia descrita no período inicial, sendo notória a febre elevada. Neste período poderá surgir exantema maculopapular de cor rósea na face anterior do tórax e abdómen, desaparecendo à pressão e surgindo em surtos; é a chamada roséola tífica com valor de grande sensibilidade para o diagnóstico, mas de fraca especificidade por ser inconstante. Neste período poderão surgir complicações que são descritas adiante.

3 – Período de declínio (duração ~ 7 dias) associado a oscilações da temperatura, com febre cada vez menos elevada e melhoria progressiva dos sinais gerais.

4 – Período de convalescença (duração variável): astenia, emagrecimento e, por vezes, febrícula de curta duração; nalguns casos surge queda de cabelo e descamação da pele.

De salientar que existem variantes quanto a manifestações clínicas: forma clínica em que predomina hiperpirexia; forma subfebril ou acompanhada de febre intermitente, mas prolongada; forma acompanhada de miocardite ou pneumonia traduzindo repercussão especial ao nível de determinados territórios, etc..

Estima-se que cerca de 10% dos doentes com febre tifóide eliminam pelas fezes S. typhi durante 3 meses, e que em cerca de 4% dos casos se verifica o estado de portador crónico (risco, no entanto, que é superior no adulto).

Complicações

Hoje em dia raras, tendo em conta o diagnóstico e antibioticoterapia precoces, surgem habitualmente ao cabo de 3-4 semanas de evolução:

  1. Enterorragia, em cerca de 1% dos casos (por vezes subtil e microscópica);
  2. Abcesso intestinal;
  3. Perfuração intestinal (0,5%-1%), esta última a complicação de maior gravidade, podendo levar a peritonite.

Complicações raras incluem endocardite, miocardite tóxica, choque cardiogénico, neurológicas (ataxia cerebelosa, coreia, síndroma de Guillain-Barré, necrose da medula óssea, SHU, meningite, etc.).

Exames complementares

O diagnóstico de febre tifóide é fundamentalmente clínico, a confirmar pela realização dos seguintes exames:

  • Identificação do microrganismo (utilizando diversas técnicas) e em diversos locais: fezes (eliminação intermitente), sangue, medula óssea, bílis, LCR, etc.;
    A hemocultura (o melhor método para o diagnóstico) é positiva em 60%-80% dos doentes na fase precoce da doença desde que não tenha havido antibioticoterapia prévia. A coprocultura e a urocultura são positivas após a 1ª semana; a coprocultura poderá já ser positiva durante o período de incubação. O mielocultura, pela sua elevada sensibilidade, aumenta a probabilidade de confirmação bacteriológica, com o inconveniente de se tratar de técnica invasiva.
  • Estudo serológico (detecção de anticorpos utilizando diversas técnicas).
    Pela reacção de Widal, pesquisando o título de anticorpos aglutinantes ou aglutininas para os antigénios O e H; em geral, a reacção é negativa na primeira semana, positivando a partir desta data – para o antigénio O entre o 7º e 12º dia, e para o antigénio H entre o 8º e o 15º dia.
    Os resultados da reacção de Widal devem ser interpretados devidamente pelas seguintes razões:
    • somente em 30% a 50% dos doentes se verifica elevação dos títulos;
    • em 30% dos casos o resultado é falsamente negativo;
    • a imunização antitífica prévia e infecções anteriores por outros germes, designadamente enterobacteriáceas (partilhando com os agentes Salmonellas similitude de antigénios capsulares) poderão determinar a elevação de aglutininas O e H;
    • o nível sérico de aglutininas em indivíduos sãos varia de região para região endémica;
    • a utilização anterior, em fase precoce da doença, quer de corticóides, quer de antibióticos pode modificar também a evolução da resposta serológica;
    • Portanto, não se trata duma prova específica.
  • Prova da PCR (da reacção em cadeia da polimerase), prova rápida PCR usando H1-d primers para amplificação de genes específicos de S. typhi, prova rápida na urina para identificação do antigénio Vi, reacção ELISA (reacção imunoenzimática), reacção de contra-imunoelectroforese, anticorpos monoclonais, etc..
  • Exames para avaliação global: hemograma (os achados, inespecíficos, habitualmente detectados, são: anemia, leucopénia com neutropénia, eosinopénia e linfocitose relativa; nas crianças pequenas pode haver leucocitose; a leucocitose também poderá significar doença intercorrente; trombocitopénia pode corresponder a doença grave e acompanhar CIVD); as provas de função hepática poderão evidenciar anomalias, o que é raro.

Diagnóstico diferencial

As salmoneloses typhi e paratyphi evidenciam globalmente sintomatologia semelhante a doenças infecciosas de etiologia diversa (por ex. mononucleose infecciosa, malária, calazar, tuberculose, brucelose, endocardite bacteriana, etc.) e a doenças não infecciosas (conectivites, linfomas, leucemias, etc.).

A febre paratifóide originada por S. paratyphi cursa com um quadro clínico semelhante ao da febre tifóide, em geral mais ligeiro, com período febril mais curto e menor frequência de complicações (excepto no lactente). O período de incubação é mais curto e a diarreia surge mais frequentemente.

Tratamento

Medidas gerais

Na maioria dos casos de febre tifóide é possível o tratamento em regime ambulatório com vigilância médica rigorosa (detecção de complicações e de eventual ausência de resposta ao tratamento) e antibioticoterapia oral.

A hospitalização, pressupondo antibioticoterapia parentérica e fluidoterapia IV, está indicada perante vómitos persistentes, diarreia grave, distensão abdominal e compromisso do estado geral.

As medidas gerais incluem repouso, regime alimentar simples, mole, facilmente digerível, hidratação, correcção das alterações hidroelectrolíticas, e antipirexia com paracetamol PO (10-15 mg/kg/dose, 3 a 4 vezes, até dose máxima de 80 mg/kg/dia).

Verificando-se íleo paralítico ou distensão abdominal, deve proceder-se a pausa alimentar.

Tratamento antimicrobiano

São descritos dois esquemas aplicáveis a infecções por S. typhi e paratyphi (respectivamente febre tifóide e paratifóide), respeitando sempre o resultado das provas de sensibilidade aos antimicrobianos:

  1. → Esquema recomendado pela OMS, não consensual entre os peritos, designadamente no que respeita às fluoroquinolonas, indicadas somente a partir da adolescência tardia. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Tratamento antimicrobiano da febre tifóide (segundo a OMS).

1 – Formas não complicadas

    • Sensibilidade comprovada
      • cloranfenicol PO ou IV (50-75 mg/kg/dia) em 4 doses durante 14-21dias; ou
      • amoxicilina PO ou IV (75-100 mg/kg/dia) em 3 doses durante 14 dias.
    •  Multirresistência
      • fluoroquinolona PO (15 mg/kg/dia) em 2 doses durante 5-7 dias; ou
      • cefixima PO (15-20 mg/kg/dia) em 2 doses durante 7-14 dias.
    • Resistência a quinolonas
      • azitromicina PO (8-10 mg/kg/dia) em 1 dose durante 7 dias; ou
      • ceftriaxona IV ou IM (75 mg/kg/dia) em 1dose durante 10-14 dias.

2 – Formas complicadas

    • Sensibilidade comprovada
      • fluoroquinolona (por ex. ciprofloxacina) idem durante 10-14 dias;
      • ceftriaxona idem.
    • Multirresistência
      • fluoroquinolona idem durante 10-14 dias.
    • Resistência a quinolonas
      • ceftriaxona idem;
      • cefotaxima (80 mg/kg/dia) durante 10-14 dias.

2.→ Esquema alternativo

2.1 – O tratamento de primeira linha face a estirpes sensíveis consiste na administração de ampicilina IV (200 mg/kg/dia em 4 doses durante 10-14 dias), trimetoprim/TMP-sulfametoxazol/SMX PO (10 mg/kg/dia de TMP + 50 mg/kg/dia de SMX em 2 doses durante 10-14 dias) ou fluoroquinolonas (por ex. ciprofloxacina PO (15-30 mg/kg/dia durante 10-14 dias), sendo que é dada preferência aos dois últimos antimicrobianos por se tratar de microrganismo intracelular.

2.2 – Se houver suspeita de estirpe resistente, utiliza-se a ceftriaxona IV ou IM (100 mg/kg/dia durante 14 dias) até se conhecer o perfil de sensibilidade; como alternativa: cefotaxima IV (150 mg/kg/dia em 4 doses durante 14 dias), ou ofloxacina PO (15 mg/kg/dia em 2 doses) durante 10 dias.

2.3 – Em casos resistentes, determinados estudos demonstraram boa resposta com azitromicina.

Corticosteróides

O tratamento com corticosteróides, indicado em situações críticas de choque, coma ou estado confusional, diminui a mortalidade. Recomenda-se dose inicial de dexametasona de 3 mg/kg IV em 30 minutos, seguida de 1 mg/kg/dia em 4 doses durante 2 dias.

Prognóstico

Apesar do tratamento, poderão surgir recaídas (manifestadas fundamentalmente por febre e outras manifestações),em cerca de 5%-15% dos casos no período de convalescença; as mesmas são explicáveis pela manutenção do microrganismo acantonado na vesícula biliar ou gânglios mesentéricos, regiões de difícil acesso aos antimicrobianos.

De acordo com dados da literatura, são mais frequentes após tratamento com cloranfenicol ou amoxicilina, obtendo-se maior percentagem de curas com quinolonas ou cefalosporinas de 3ª geração.

Os indivíduos que excretam o microrganismo durante período > 3 meses após episódio de infecção são considerados portadores crónicos (< 2% no casos pediátricos, valor que corresponde a proporção mais baixa do que a verificada na idade adulta).

Nos casos de esquistossomíase pode verificar-se estado de portador urinário crónico.

As recidivas correspondem a novo episódio de febre tifóide após se ter verificado cura do primeiro episódio.

Prevenção

Os aspectos gerais mais importantes de prevenção da doença diarreica infecciosa (em idade pediátrica, e não só) dizem respeito fundamentalmente à prática de medidas de higiene simples:

  • lavagem frequente das mãos com água e sabão;
  • utilização de água não contaminada na alimentação (fervida ou engarrafada com garantia) e como bebida simples;
  • cuidados de isolamento e conservação (rede de frio);
  • confecção dos alimentos, com especial atenção para a lavagem adequada de alimentos não submetidos a fervura.

A sigla em língua inglesa dos “três FFF” – Food, Flies, Fingers (alimentos, vectores, dedos das mãos) traduz bem a necessidade de detectar, controlar e eliminar as fontes de infecção, tanto animais como humanas. Chama-se mais uma vez a atenção para o papel dos répteis domésticos na transmissão de Salmonella, tornando-se indispensável que crianças com idade inferior a 5 anos ou pessoas com síndromas de imunodeficiência de qualquer etiologia não contactem com tais animais.

Em alínea anterior foi dada ênfase aos alimentos contaminados que poderão estar implicados na cadeia de transmissão de germes microbianos.

Outra medida diz respeito à imunização antitífica indicada em situações especiais (por exemplo deslocação para zonas endémicas com elevada prevalência de estirpes de Salmonella typhi multirresistente).

Na confecção de tais vacinas (de três tipos) são utilizadas subunidades antigénicas e células bacterianas atenuadas, tendo sido demonstrada relativa eficácia (< 100%) em crianças de idade escolar, no adolescente e no adulto:

  1. Vacina oral viva atenuada (Ty21a); é uma vacina imunogénica a partir dos 2 anos, devendo repetir-se de 5-5 anos;
  2. Vacina morta por via parentérica (inactivação pelo fenol e calor, holocelular);
  3. Vacina parentérica à base de polissacáridos capsulares (ViCPS ou Vi Conjugada) para crianças com > 2 anos, a repetir de 2-2 anos.

Em Portugal, é recomendada a vacina à base de polissacáridos com a indicação atrás expressa, conferindo protecção durante três anos.

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Definição e importância do problema

A brucelose humana é uma doença infecciosa zoonótica causada por microrganismos do género Brucella (coco Gram-negativo cujo crescimento é insidioso).

Também conhecida por febre de Malta, doença de Bang ou febre ondulante, constitui um problema de saúde pública em todo o mundo, sendo de notificação obrigatória em Portugal.

Embora a brucelose seja reconhecida tradicionalmente como uma doença de risco profissional nos adultos, a mesma pode afectar crianças em relação com o consumo de produtos lácteos não pasteurizados e em deficientes condições de higiene.

Salienta-se que na época actual, os microrganismos Brucella constituem uma arma potencial no âmbito do bioterrorismo.

 Aspectos epidemiológicos

A brucelose é a zoonose bacteriana mais frequente no mundo, com uma incidência acima de 500.000 novos casos por ano (incidência oscilando entre 0,03 e 160/100.000 habitantes). Apesar de a doença ser universal, é mais comum na zona do Mediterrâneo, Médio Oriente, Índia, Américas Central e do Sul. Depois do desmembramento da União Soviética assistiu-se a um recrudescimento da referida doença na Europa de Leste, associado a degradação de condições de vigilância veterinária e de saúde pública.

Como regra, é considerada rara nos países industrializados, com condições de higiene mais regulamentadas. De Portugal, foram obtidos os seguintes dados: -entre 2010 e 2013 foram notificados 249 casos, dos quais 20 abaixo dos 15 anos de idade; – entre 2013 e 2016, 185 casos, sendo 6 abaixo dos 15 anos.

Estatísticas doutro país da Europa (Reino Unido), no período 2013-2016, apontam para ~ 20 casos/ano.

Nos EUA a erradicação da brucelose bovina reduziu a incidência de infecção no homem a 0,5 casos por 100.000 habitantes, embora na fronteira mexicana a prevalência seja 8 vezes superior.

O ser humano é um hospedeiro acidental, contraindo a infecção por contacto directo (feridas da pele) com produtos animais infectados, inalação de microrganismos veiculados por partículas sob a forma de aerossóis e ingestão de leite ou de queijo fresco não pasteurizados, ou ainda de produtos lácteos obtidos de animais infectados. No primeiro caso trata-se frequentemente duma doença profissional de veterinários ou de funcionários de matadouros. (ver Glossário)

A ingestão de leite ou derivados não pasteurizados constitui a forma mais frequente de transmissão da doença em idade pediátrica.

A transmissão inter-humana é rara, tendo sido descrita em relação com transfusões de sangue, transplantação de medula óssea e bancos de esperma.

A transmissão mãe-filho pode ocorrer via transplacentar ou pelo leite materno.

Etiopatogénese

Foram descritas 8 espécies do género Brucella pelas suas características fenotípicas, antigénicas e prevalência da infecção em diferentes hospedeiros; de referir que a sequenciação dos respectivos genomas revelam muitas similitudes.

Os agentes mais comuns responsáveis pela doença humana são: B. melitensis (a partir do gado caprino), B. abortus (a partir do gado bovino), B. suis (a partir do gado suíno) e B. canis (a partir dos cães). Os agentes B. ovis (a partir dos carneiros) e B. neotomae (a partir dos roedores do deserto) não têm sido transmitidos ao Homem.

As bactérias Brucella são parasitas intracelulares facultativos com capacidade de sobrevivência e de multiplicação no interior das células do SRE. Não possuem flagelos, endosporos, cápsula ou plasmidos. A membrana celular externa tem um componente lipopolissacarídeo dominante, o qual constitui o principal factor determinante de virulência da bactéria. B. melitensis e B. suis são mais virulentas que B. abortus.

Todas as espécies de Brucella produzem granulomas no fígado, baço, gânglios linfáticos e medula óssea. A inflamação de tipo granulomatoso poderá também ocorrer na bexiga, testículo (produzindo orquite intersticial com atrofia fibróide), endocárdio (produzindo endocardite com vegetações nas válvulas), cérebro, rim e pele.

A multiplicação dos germes dentro de células do SRE é essencial para a indução da imunidade; com efeito, o organismo hospedeiro responde elaborando anticorpos específicos tais como aglutininas, opsoninas, precipitinas e anticorpos fixadores do complemento contra polissacáridos e outros antigénios da parede celular.

Os anticorpos IgM específicos aparecem dentro de 1 semana após a entrada do germe no organismo, diminuindo após cerca de 3 meses. Os anticorpos IgG aumentam pela 2ª-3ª semana, persistindo nos casos não tratados ou incompletamente tratados. A verificação de reactividade cruzada dos anticorpos específicos para a Brucella com os germes Yersinia, Vibrio cholerae, Salmonella e Francisella resulta da similitude estrutural dos lipossacáridos das membranas dos referidos germes.

O principal determinante do processo de cura da infecção está relacionado com activação dos macrófagos através da acção de linfócitos T que, libertando citocinas (interferão-gama e TNF-alfa), conferem àqueles capacidade para a destruição do microrganismo Brucella.

A característica de crescimento insidioso de Brucella tem implicações práticas no que respeita a exames culturais; com efeito, para excluir resultados negativos verdadeiros dever-se-á esperar 21 dias pelo resultado laboratorial definitivo.

Manifestações clínicas

O período de incubação pode variar entre vários dias a 4-6 semanas.

As queixas de febre arrastada e/ou queixas articulares, associadas à ingestão de alimentos não pasteurizados, devem conduzir à suspeita de brucelose. Na ausência de antecedentes conhecidos de contacto com animais ou de ingestão de leite ou produtos lácteos não pasteurizados, o diagnóstico clínico de brucelose é difícil.

Trata-se duma doença sistémica com início agudo ou insidioso, habitualmente cerca de 2 a 4 semanas após a inoculação da bactéria no organismo. Surgem então manifestações inespecíficas de febre, artralgia, ou artrite, e hepatosplenomegália (30%-40% dos casos), as quais constituem a tríade clássica da doença. A febre, classicamente descrita como ondulante, é elevada, diária podendo acompanhar-se de sudorese nocturna intensa.

É comum a coexistência de sintomas gerais inespecíficos, tais como prostração, anorexia, cefaleias, dor abdominal, tosse e faringite. A doença pode envolver qualquer órgão ou sistema, embora as manifestações articulares sejam mais frequentes.

Em cerca de 30% dos casos, a doença, não se acompanha de febre, podendo manifestar-se apenas por doença articular, sendo mais frequentemente afectadas as articulações sacroilíaca, coxo-femoral e do joelho.

O exame objectivo é pouco informativo, podendo apenas evidenciar discreta hepatosplenomegália ou sinais de artrite. Raramente, pode ocorrer endocardite e meningoencefalite. No jovem, a doença pode manifestar-se por orquite aguda.

Os sinais de localização em órgãos ou sistemas (por ex. miocardite, osteomielite e infecção do tracto génito-urinário) são pouco frequentes. O intervalo entre o início dos sintomas e o diagnóstico pode ser cerca de 150 dias, com uma média de 4 semanas.

Diagnóstico

O diagnóstico de suspeita poderá ser fácil nas áreas onde a infecção animal é endémica. Nas áreas não endémicas, o clínico poderá orientar-se valorizando a estadia do doente em áreas endémicas ou a ingestão de leite ou produtos animais provenientes das referidas áreas.

Os achados hematológicos, inespecíficos, poderão evidenciar anemia, hemólise, leucopénia, trombocitopénia ou pancitopénia por hiperesplenismo, hemofagocitose ou compromisso medular. A proteína C reactiva pode estar elevada, assim como a velocidade de sedimentação, especialmente nos casos de compromisso articular.

Existem fundamentalmente três instrumentos laboratoriais para o diagnóstico definitivo: – exame cultural; – serologia e; – provas moleculares.

O diagnóstico definitivo é realizado pelo isolamento da bactéria em hemocultura, líquido articular ou medula, sendo que tal ocorre numa percentagem entre 15% a 75% dos casos na fase aguda, antes da antibioticoterapia; na fase subaguda a percentagem de isolamento da bactéria diminui. Realça-se aqui o que atrás foi dito, tendo em conta as características do crescimento (lento) do agente Brucella: haverá que esperar pelo resultado até 4 semanas.

Por esta razão, e atendendo à fisiopatologia da doença, as provas serológicas através da pesquisa de anticorpos (provas de aglutinação) são fundamentais para o diagnóstico, salientando que os resultados devem ser interpretados em função da anamnese e exame objectivo.

O exame laboratorial de rastreio-padrão é a prova Rosa de Bengala pela elevada sensibilidade, embora a especificidade seja baixa. Este exame utiliza antigénios de B. abortus e detecta anticorpos contra todas as bactérias do género Brucella que contêm LPS. É considerada positiva se os títulos de IgM forem ≥ 1/160, o que acontece na maioria dos casos; contudo, o resultado desta prova poderá ser negativo na primeira semana de doença.

A evolução dos títulos de IgM e de IgG constitui um bom indicador de cura ou de recaída, sendo fundamental para a interpretação dos títulos de anticorpos, quantificar as IgG através de tratamento laboratorial do soro com 2-mercaptoetanol.

Pode utilizar-se a prova enzimática de imunoensaio, de elevada sensibilidade para a detecção de anticorpos anti-Brucella.

Assim, como notas importantes, cabe salientar:

    1. O sucesso do tratamento é seguido por diminuição rápida de anticorpos IgG;
    2. Títulos elevados ou em subida de IgG após tratamento sugerem infecção persistente ou recaída;
    3. Títulos baixos de IgM podem persistir durante semanas ou meses após tratamento da infecção;
    4. Em consonância com o que foi referido atrás, poderão ser encontrados resultados positivos falsos por reacção cruzada (anticorpos contra outros agentes Gram-negativos como Yersinia enterocolitica, Francisella tularensis e Vibrio cholerae);
    5. Poderão ser encontrados resultados negativos falsos devido ao fenómeno pró-zona (presença de títulos elevados de anticorpos anti-Brucella).

No âmbito de novos exames cabe citar:

    • a reacção em cadeia da polimerase (PCR) identifica o ADN do agente Brucella, salientando-se as suas elevadas sensibilidade e especificidade;
    • os achados histológicos são característicos, mas não patognomónicos. A biópsia de um gânglio linfático mostra inicialmente hiperplasia linfóide com proliferação arteriolar.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas de brucelose podem ser sobreponíveis a outras doenças tais como riquetsioses, febre tifóide, tularémia, tuberculose, infecções por micobactérias atípicas, infecções por fungos (histoplasmose, blastomicose, coccidioidomicose) e vírus (da mononucleose infecciosa, entre outros).

No caso de brucelose persistente haverá que fazer a destrinça com histiocitose maligna, linfoma ou outras doenças neoplásicas.

Em circunstâncias especiais em que a história clínica não é suficientemente elucidativa, poderão estar indicados exames especiais, designadamente imagiológicos e biópsia medular.

Tratamento

Dado que o microrganismo Brucella é uma bactéria intracelular de crescimento insidioso, o tratamento antimicrobiano deve ser sempre duplo e prolongar-se por 4 a 6 semanas nas formas comuns. Nas formas associadas a osteomielite, meningite ou endocardite, o tratamento tem maior duração, 4 a 6 meses.

Chama-se a atenção para o facto de a actividade de muitos antimicrobianos demonstrada in vitro contra Brucella nem sempre corresponder ao resultado clínico desejado.

A doxiciclina é o antimicrobiano mais útil; quando associado a aminoglicosídeo, garante menor percentagem de recaídas. As falências verificadas com beta-lactâmicos, incluindo cefalosporinas de 3ª geração, poderão ser explicadas pela natureza intracelular do microrganismo.

Nesta perspectiva, a chave do êxito terapêutico passa pelo esquema de tratamento prolongado no sentido de minorar a probabilidade de recaídas.

No início do tratamento poderá verificar-se reacção de Herxheimer relacionada com grande carga antigénica libertada com a destruição do agente infeccioso.

O Quadro 1 resume o esquema de tratamento antimicrobiano considerando idade (> 8 anos, igual ou < 8 anos) e situações associadas a meningite, osteomielite e endocardite.

Situações de meningite, endocardite e osteomielite implicam internamento hospitalar, para além de outras situações específicas em função do respectivo contexto clínico. Na meningite por Brucella, a utilização de corticóides como terapêutica adjuvante da antibioticoterapia tem sido recomendada.

Tratando-se duma doença com repercussão sistémica, estão indicadas medidas sintomáticas com analgésicos e antipiréticos.

QUADRO 1 – Tratamento antimicrobiano da brucelose.

> 8 anos de idade
Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia + Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 semanas; ou Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia, durante 4-6 semanas + Estreptomicina IM (20-30 mg/kg/dia), dose máxima de 1 g/dia, durante 1-2 semanas, ou Gentamicina IM/IV(3-5 mg/kg/dia), durante 1-2 semanas.

≤ 8 anos de idade
Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 semanas + trimetoprim (TMP)-sulfametoxazol (SMZ) PO (TMP: 10 mg/kg/dia, dose máxima de 480 mg/dia) e (SMZ: 50 mg/kg/dia, dose máxima de 100 mg/kg/dia), durante 4-6 semanas.

Meningite, Osteomielite, Endocardite
Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia, durante 4-6 meses + Gentamicina IV (3-5 mg/kg/dia), durante 1-2 semanas + Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 meses.

Prognóstico

O prognóstico das formas comuns da doença é excelente, desde que o doente cumpra o regime antibiótico prescrito. Por vezes as famílias não respeitam tratamentos prolongados, o que contribui para recaídas da doença.

Salienta-se que o tratamento com apenas um antimicrobiano comporta risco de recaída da ordem de 5%-40%. As formas letais decorrem de complicações como a endocardite.

Prevenção

Tratando-se duma zoonose, a prevenção desta doença depende, entre outras medidas, e no âmbito da medicina veterinária, dos cuidados no manuseamento de carne e leite de animais e da erradicação da doença no gado caprino, ovino, suíno e bovino (imunização ou abate de animais infectados). Os cuidados com o manuseamento de animais potencialmente infectados devem ser aplicados igualmente pelos caçadores.

Por outro lado, deverá ser proscrita a ingestão de alimentos lácteos não pasteurizados.

A aplicação de vacina viva atenuada utilizada em animais não é praticável na espécie humana.

GLOSSÁRIO

Aerossol > Em Infecciologia significa disseminação aérea de partículas ≤ 5 mm de gotículas evaporadas contendo microrganismos, que permanecem em suspensão durante longos períodos, ou poeiras contendo agentes infecciosos ou esporos; os microrganismos podem dispersar-se até longas distâncias através de correntes de ar.

Plasmido > Elemento genético das bactérias susceptível de ser transmitido de um indivíduo para outro, independentemente dos genes veiculados pela grande molécula de DN.

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Bartoneloses e importância do problema

As bartoneloses são doenças reemergentes em todo o mundo. No que respeita às espécies patogénicas para o homem do género Bartonella (> 60), citam-se como principais, B. henselae, B. bacilliformis, B. quintana, B. elizabethae e B. clarridgeiae.

As manifestações clínicas e a gravidade da infecção dependem da espécie do agente microbiano, do estado imune e da idade do paciente.

A chamada doença do arranhão do gato é uma doença infecciosa autolimitada e benigna provocada por Bartonella henselae (bacilo Gram-negativo aeróbio, comportando-se como intracelular facultativo), surgindo após contacto com gato e escoriação provocada pelo mesmo. Trata-se duma afecção que atinge principalmente crianças e adultos jovens e é a causa mais frequente de linfadenopatia crónica (de duração igual ou superior a 3 semanas).

Na primeira bartonelose descrita na espécie humana (provocada por B. bacilliformis) no Perú/América do Sul verificou-se, para além da febre e anemia hemolítica (febre Oroya), erupção cutânea semelhante a hemangioma (verruga peruana).

À B. quintana estão associados casos em doentes com imunodeficiência, sintomatologia de compromisso do SRE, bacteriémia e endocardite, para além de outros quadros clínicos.

Neste capítulo é dada ênfase à doença do arranhão do gato, a que surge com expressão mais significativa no nosso meio.

Aspectos epidemiológicos

A doença do arranhão do gato é uma doença universal, em geral esporádica, que afecta todas as etnias e géneros em proporções semelhantes. Há uma maior incidência da doença no Outono e no Inverno, quer devido ao ciclo reprodutivo da pulga do gato, quer porque nestas estações os animais são mantidos mais tempo em casa. Nos EUA é estimada uma incidência anual de 9/100.000 casos em doentes ambulatórios. Não há referência a dados de incidência da doença em Portugal. Foram descritos surtos afectando membros da mesma família.

Etiopatogénese

O agente Bartonella henselae tem um crescimento em cultura muito insidioso (cerca de 5 semanas). O seu principal reservatório é o gato, portador assintomático, em particular com menos de seis meses de idade, o qual infecta o ser humano por inoculação cutânea; com efeito, a bacteriémia (assintomática) nos gatos de menor idade envolve maior carga bacteriana do que a verificada nos gatos com > 6 meses de idade. A infecção é transmitida entre os gatos pela acção dum vector – a pulga Ctenocephalides felis.

Após a lesão na pele provocada pelo arranhão do gato, do qual resulta a inoculação do microrganismo no ser humano, verifica-se o aparecimento de uma pápula ou nódulo e necrose da derme. Posteriormente, há alterações nos gânglios linfáticos locorregionais. O aspecto histológico característico do gânglio linfático consiste em hiperplasia folicular, com necrose cortical e formação de granuloma necrótico com microabcessos centrais.

Granulomas idênticos podem ser encontrados no fígado, baço e sistema ósseo provocando, nesta última localização, lesões osteolíticas.

Importa referir que em cerca de 1% dos casos o microrganismo pode ser transmitido pela saliva do gato inoculado em zona de pele ou mucosa lesada. Nalguns casos, o agente etiológico é B. clarridgeiae. Cães e macacos podem ser reservatório. Não se provou a transmissão de pessoa a pessoa.

Manifestações clínicas

Após um período de incubação compreendido entre 7 e 12 dias, surge no local da inoculação, em cerca de 60% dos doentes, uma pápula ou nódulo avermelhado de 3-5 mm (Figura 1). Todavia, esta lesão poderá não ser valorizada pelas suas pequenas dimensões. Uma a quatro semanas depois, na maioria dos casos, verifica-se o aumento de volume dos gânglios satélites, com sinais inflamatórios na pele adjacente (Figura 2). As manifestações de adenite verificam-se mais frequentemente na zona da cabeça e pescoço, seguindo-se as extremidades. Em cerca de 10% a 20% dos casos os gânglios linfáticos atingidos supuram espontaneamente. A presença concomitante de sinais e sintomas sistémicos tais como febre, cefaleia e prostração, é frequente.

Ocasionalmente, a doença pode cursar com conjuntivite granulomatosa e adenopatia pré-auricular, constituindo-se a chamada síndroma oculoglandular de Parinaud.

Raramente, podem ocorrer outras alterações como exantema maculopapular, eritema nodoso e púrpura não trombocitopénica. (Figura 3)

FIGURA 1. Nódulo ulcerado com crosta no dorso do polegar após arranhão. (NIHDE)

FIGURA 2. A – Arranhão no polegar esquerdo; B – Adenopatia axilar esquerda. (NIHDE)

FIGURA 3. Exantema maculopapular notório no abdómen. (NIHDE)

Complicações

As complicações neurológicas, em regra com evolução favorável, surgem em cerca de 2%-5% dos doentes, geralmente 6 semanas após o aparecimento da adenite. A complicação mais frequente é a encefalopatia; na sua forma de apresentação clássica podem surgir convulsões, comportamento bizarro e alterações do estado de consciência.

Outras manifestações neurológicas incluem paralisia periférica do nervo facial, mielite, radiculite e ataxia cerebelosa.

As complicações hematológicas incluem anemia hemolítica, púrpura trombocitopénica e não trombocitopénica, assim como, eosinofilia.

A vasculite leucocitoclástica, semelhante à púrpura de Henoch-Schonlein, é rara.

As complicações sistémicas, surgindo com maior probabilidade em doentes imunodeprimidos, constam de quadros clínicos diversos, mais graves tais como: hepatite, anemia hemolítica, pneumonia atípica, retinopatia macular estelar, hepatosplenomegália (por alterações granulomatosas), endocardite, lesões osteolíticas granulomatosas ósseas, eritema nodoso, etc..

Exames complementares e diagnóstico

Existe suspeita desta doença quando, pela anamnese, se comprova contacto com gatos, e pelo exame objectivo se verifica lesão cutânea primária associada a adenopatia satélite.

As provas de serologia permitem a confirmação do diagnóstico utilizando a técnica de imunofluorescência indirecta, sendo a subida do título de anticorpos (IgG e IgM) detectada desde o início dos sintomas. De salientar que existe reactividade cruzada entre as espécies de Bartonella, especialmente entre B. henselae e B. quintana.

Através de exames de biologia molecular/PCR, utilizando como material de estudo amostras obtidas por escarificação da pele lesada, é possível evidenciar a sequência de ácidos nucleicos da Bartonella.

Os exames imagiológicos como a ecografia ou a TAC permitem detectar numerosos nódulos granulomatosos no fígado e baço.

Os resultados anómalos de determinados exames laboratoriais correntes, tais como velocidade de sedimentação elevada, leucocitose ligeira a moderada, ou elevação do valor das aminotransferases em casos de doença sistémica não têm, na maior parte das vezes, grande utilidade, excepto no que respeita à avaliação mais objectiva da repercussão da doença sobre o estado geral do doente.

Nota importante: é desaconselhada a prova cutânea empregando antigénios obtidos de aspirado purulento de lesões ganglionares pela falta de padronização e pelo risco de transmissão da infecção.

Diagnóstico diferencial

A verificação de adenopatias impõe o diagnóstico diferencial com outras situações:

  • de etiologia infecciosa, tais como infecções por Streptococcus Beta-hemolítico do grupo A, S. aureus, espécies de Brucella, citomegalovírus, vírus de Epstein-Barr, VIH, Toxoplasma, fungos; e
  • de etiologia não infecciosa como por ex. lesões tumorais.

A síndroma oculoglandular pode, por sua vez, estar associada a outras afecções tais como sífilis, tuberculose, infecções por Chlamydia, entre outras.

Os nódulos e pápulas cutâneos associados a adenopatia locorregional podem impor o diagnóstico diferencial com infecções por micobactérias atípicas, tuberculose, fungos e leishmaníase.

Tratamento

Sendo na maioria dos casos uma doença autolimitada, com resolução espontânea, o tratamento pode ser apenas sintomático. Todavia, diversos autores referem que a antibioticoterapia contribui para encurtar o tempo de resolução da doença, advogando a sua instituição após o diagnóstico. Nas formas sistémicas e nos doentes imunodeprimidos, tal tipo de tratamento é obrigatório.

A escolha dos antimicrobianos recai na azitromicina PO (10 mg/kg/dia no primeiro dia, 5 mg/kg/dia nos 4 dias seguintes), ou claritromicina PO (15 mg/kg/dia, em 2 doses diárias), 7 a 10 dias.

Nos doentes com repercussões sistémicas verifica-se em geral boa resposta à rifampicina PO (20 mg/kg/dia, de 12/12 horas), isolada ou associada a cotrimoxazol PO (40-100 mg/kg/dia de sulfametoxazol, de 12/12 horas) durante 14 dias. As fluoroquinolonas, em idades > 17 anos, são uma alternativa.

Nota importante: a duração ideal da terapêutica não está estabelecida; os esquemas referidos são os recomendados habitualmente. Os beta-lactâmicos, tetraciclinas e a eritromicina não são eficazes. Em circunstâncias especiais, poderá estar indicada a drenagem cirúrgica dos gânglios linfáticos atingidos.

Prognóstico

O prognóstico é, dum modo geral, excelente, com recuperação em semanas ou meses. Em regra, as manifestações sistémicas surgem em doentes portadores de síndromas de imunodeficiência.

Prevenção

As crianças, em especial as imunocomprometidas, devem evitar contactos íntimos com gatos com menos de 6 meses de idade. Se o indivíduo fôr arranhado pelo gato, a ferida deve ser imediatamente bem lavada. Devem igualmente ser promovidas medidas de controlo da pulga do gato.

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Aspetos epidemiológicos e importância do problema

A tuberculose (TB) resulta da infecção por Mycobacterium tuberculosis (Mtb) ou bacilo de Koch (BK), uma micobactéria descoberta por Robert Koch em 1882. Mais de um século depois, a TB continua a ser uma das doenças infecciosas com maior morbimortalidade. Segundo estimativas da OMS, cerca de um terço da população mundial está infectada com Mtb. Desde o ano 2000 que globalmente a taxa de incidência de TB diminuiu, apenas cerca de 1,4% ao ano, mantendo-se como uma das 10 principais causas de morte a nível global.

A importância da TB como doença pode ser avaliada em termos de incidência – número de casos novos e de recidivas durante determinado período de tempo, geralmente um ano; prevalência – número de casos de TB em determinado ponto no tempo; e mortalidade – número de mortes por TB num determinado período de tempo, geralmente um ano. A taxa de letalidade é a relação entre o número de mortes por TB e o número total dos respectivos casos numa dada população.

Em 2015, segundo a OMS, ocorreram cerca de 10,4 (8,7-12,2) milhões de novos casos, o equivalente a 142 novos casos por 100.000 habitantes. Um milhão dos novos casos ocorreu em crianças. O maior número de casos registou-se na Ásia (61%) e em África (26%), enquanto a Europa representou apenas 3% do total de casos. Cerca de 11% (9%-14%) dos novos casos ocorreram em pessoas infectadas com VIH, sendo as taxas de coinfeção mais elevadas (até 50% em algumas regiões) registadas em África. O número de novos casos de tuberculose multirresistente (TBMR), resistente em simultâneo à isoniazida e rifampicina, foi de 480.000, e o de resistentes apenas à rifampicina, de cerca de 100.000. Apesar da diminuição de cerca de 22% do número de mortes entre 2000 e 2015, as estimativas apontam, ainda, para 1,4 milhões de óbitos em indivíduos seronegativos para VIH e de 0,4 milhões em indivíduos coinfetados com VIH. 

Em Portugal, as taxas de incidência têm diminuído progressivamente fixando-se, pela primeira vez, abaixo de 20 novos casos por 100.000 habitantes (18,6/100.000), em 2015; neste último ano foram notificados 2.089 casos, número que engloba 1.925 casos novos.

Em 2018, a taxa de notificação foi de 16,6 casos por 100 mil habitantes[i]. Os distritos de Porto e Lisboa são os distritos com mais alta taxa de notificação e os únicos do País que se mantêm acima dos 20 casos por 100 mil habitantes, 25,3 e 23,7 casos por 100 mil habitantes, respetivamente.

Também, em 2018 a idade mediana dos doentes foi de 49 anos. Foram notificados 34 casos de tuberculose em crianças com menos de 6 anos de idade, correspondendo a uma taxa de incidência neste grupo etário de 6,59 casos/100 mil crianças dos 0 aos 5 anos. Foram identificados 4 casos de formas graves de tuberculose, todas em crianças sem BCG e 3 com critérios individuais para vacinação.

Em 2005 tinham sido notificados 3.543 casos. No entanto, a distribuição de casos notificados é bastante assimétrica, sendo os distritos mais afectados os de Lisboa (627), Porto (551), Braga (157), Setúbal (135) e Aveiro (108). O pico de incidência ocorreu no grupo etário dos 45-54 anos (418/2.089; 19,4%) sendo que apenas 22 casos (1%) foram notificados em crianças e adolescentes com menos de 15 anos. O número total de casos de tuberculose multirresistente (TB-MR) tem vindo a diminuir, tendo sido notificados 18 casos em 2015, em comparação com 40 casos em 2000. Os quatro casos de tuberculose extensivamente resistente (TB-XDR) foram todos notificados na região de Lisboa e Vale do Tejo. O “pico” de casos de TB-XDR verificou-se em 2004, com 13 notificações.

A Figura 1 mostra as taxas de notificação de Tuberculose em Portugal, por distrito, em 2018. Como se pode verificar, os distritos de Porto e Lisboa são aqueles com mais alta taxa de notificação e os únicos do País que se mantêm com valores acima dos 20 casos por 100 mil habitantes (25,3 e 23,7 casos por 100 mil habitantes, respectivamente).

De entre as comorbilidades que configuram risco para tuberculose, devemos realçar a infecção por vírus de imunodeficiência humana (VIH). É reconhecida a necessidade de rastreio de todos os doentes com tuberculose para a infecção por VIH, dado o impacte desta comorbilidade no resultado de tratamento da tuberculose. O rastreio de infecção por VIH, foi efectuado em 87,9% dos doentes com tuberculose. Verificou-se que 8,8% dos doentes com tuberculose eram também VIH positivo.

Na população geral, importa referir outros factores de risco com doenças crónicas, nomeadamente diabetes (5,81%), doença neoplásica (6%), doença pulmonar obstrutiva crónica (4,23%).

Fonte: Direcção Geral da Saúde, 2020

FIGURA 1. Taxas de notificação de tuberculose em Portugal, ano 2018.

Os distritos de Porto e Lisboa são os distritos com mais alta taxa de notificação e os únicos do País que se mantêm acima dos 20 casos por 100 mil habitantes (25,3 e 23,7 casos por 100 mil habitantes, respetivamente.

Etiopatogénese

As cinco micobactérias que integram o complexo M. tuberculosis são: M. tuberculosis hominis, M. bovis, M. africanum, M. microti e M. canetti. Os agentes patogénicos mais importantes para o Homem são M. tuberculosis e M. tuberculosis bovis. M. tuberculosis é um bacilo não móvel, não formador de esporos, aeróbio, cuja parede celular apresenta um elevado conteúdo de lípidos de alto peso molecular. Cora mal com o método de Gram e, quando corado com o método de Zhiel-Nielsen, resiste à descoloração com álcool e ácido; daí a designação de bacilo ácido-álcool resistente. As micobactérias crescem lentamente (três a seis semanas) em meio de cultura sólido específico, meio de Lowenstein. Os métodos radiométricos culturais (Bactec®, meio líquido) permitem diagnósticos mais precoces, em cerca de sete a 14 dias. Após o crescimento bacteriano em meio sólido ou líquido, a identificação da espécie pode efetuar-se através de provas de hibridização dos ácidos nucleicos. A infecção humana com M. bovis é rara nos países tecnicamente avançados, em que se procede à pasteurização do leite. Embora a transmissão se possa fazer, como no M. tuberculosis hominis por via inalatória, em regra, M. bovis é veiculado por produtos lácteos (via digestiva), podendo invadir os linfáticos da orofaringe ou penetrar na mucosa intestinal.

Tuberculose em idade pediátrica define-se genericamente como o processo mórbido infeccioso originado por micobactérias pertencentes ao complexo Mycobacterium tuberculosis (ver atrás) ocorrendo em indivíduos com menos de 18 anos de idade. A TB pediátrica é um “acontecimento-sentinela” que indicia o contacto da criança com um adulto ou adolescente que elimina e propaga bacilos: a transmissão do bacilo a partir de paciente bacilífero é eficaz se houver convivência estreita e mantida mais de 4 horas/dia no mesmo habitáculo fechado.

A designação de TB primária (ou primoinfecção tuberculosa) refere-se ao conjunto de manifestações biológicas e clínicas, que podem ou não ser demonstradas por imagem radiográfica, aquando da infecção por Mtb num indivíduo até então indemne da infecção.

Reiterando o que foi atrás referido, na maioria dos casos (> 95%) a contaminação faz-se por via respiratória. Com efeito, a transmissão da TB é inter-humana, por inalação de pequenas partículas aerossolizadas, de diâmetro inferior a 5 μm, provenientes de um indivíduo doente.

As partículas contendo Mtb atingem sobretudo alvéolos das áreas mais ventiladas dos pulmões (vértices pulmonares no adulto, porções basais na criança), desencadeando um processo inflamatório parenquimatoso que culmina na formação de granuloma classicamente chamado foco de Ghon. Os bacilos são rapidamente fagocitados pelos macrófagos alveolares continuando, no entanto, a multiplicar-se no interior dos mesmos.

Cerca de 4-8 semanas após a inalação de Mtb, os linfócitos T sensibilizados começam a libertar linfocinas, as quais activam os macrófagos e incrementam a destruição intracelular dos microrganismos inalados.

A resposta inflamatória resulta no recrutamento para o local da infecção de outras células mononucleares como monócitos, macrófagos e linfócitos. Os macrófagos diferenciam-se em macrófagos espumosos, macrófagos epitelióides e células gigantes multinucleadas delimitando o núcleo do granuloma, constituído por macrófagos infectados. Nesta fase, após indução da imunidade adaptativa, o granuloma está rodeado à periferia por uma camada constituída sobretudo por linfócitos T e B. Outras células como neutrófilos, células dendríticas, células natural killer e fibroblastos estão, também, presentes no granuloma.

Este equilíbrio entre a infecção e a resposta do hospedeiro pode persistir indefinidamente, ficando os bacilos confinados apenas ao centro do granuloma, não se desenvolvendo doença (infecção latente).

No entanto, se a infecção progredir, a destruição das células do granuloma origina a necrose caseosa que pode resultar na cavitação do referido granuloma com consequente libertação de bacilos na via aérea.

Macrófagos infectados do granuloma primário podem originar granulomas secundários, no pulmão ou outros órgãos, contribuindo para a disseminação da infecção. Os gânglios linfáticos regionais são atingidos por macrófagos infectados através dos vasos linfáticos, originando uma reação inflamatória local.

O conjunto do granuloma primário e dos gânglios hilares e paratraqueais aumentados de volume é designado por complexo primário tuberculoso. Na infecção primária pode verificar-se compressão brônquica por gânglio, erosão brônquica e disseminação da infeção por via endobrônquica (~ 3-9 meses depois), extensão parenquimatosa para áreas adjacentes do pulmão como a pleura (com derrame pleural; ~ 3-7 meses), disseminação linfática ou hematogénica (~ 1-3 meses a dois anos) com disseminação pulmonar (miliar) ou compromisso de outros órgãos, incluindo meninges, rins, medula óssea, cérebro e tracto gastrintestinal. As manifestações de doença óssea surgem, em regra, mais de um a três anos após a infecção primária e as de doença renal mais de cinco a sete anos depois. De salientar que poderá haver disseminação hematogénica multiorgânica.

Cerca de 8 a 12 semanas após a infecção primária pode detectar-se uma resposta de hipersensibilidade retardada às proteínas de Mtb demonstrável classicamente pela prova tuberculínica ou intradermorreacção de Mantoux evidenciando alergia/prova de Mantoux alérgica (ver adiante). Se anteriormente estava documentada anergia através desta prova, diz-se que ocorreu viragem tuberculínica.

Após a infecção primária, os focos de infecção contendo pequeno número de bacilos e em fase de não replicação (latentes) podem sofrer fibrose. No entanto, pode ocorrer reactivação destes focos, nomeadamente, em situações de: imunossupressão, mesmo que transitória, infecção por VIH, diabetes, insuficiência renal terminal, desnutrição, crianças com menos de cinco anos (especialmente lactentes) e infecção intercorrente (por ex. sarampo). O risco de desenvolvimento de doença após a infecção primária vai decrescendo com a idade, sendo maior nos primeiros dois anos.

Sob o ponto de vista da cronologia de eventos, sintetiza-se a evolução natural da infecção:

  1. Exposição – a criança teve contacto com um adulto ou adolescente com TB pulmonar bacilífera; a prova tuberculínica é negativa (mais propriamente, anérgica), a radiografia de tórax é normal e a criança não apresenta sinais ou sintomas de doença;
  2. Tuberculose infecção ou tuberculose latente – na grande maioria dos casos os bacilos mantêm-se em fase latente, não replicativa, sendo o risco de evolução determinado por circunstâncias do meio e do hospedeiro; nesta fase a prova tuberculínica/intradermorreacção de Mantoux(*) evidencia alergia ou é alérgica, ou as provas imunológicas IGRA (Interferon-Gamma Release Assay) são positivas, mas não se observam sinais ou sintomas de doença; (ver adiante)
  3. Tuberculose doença – as manifestações clínicas ou radiológicas causadas pela infecção por Mtb tornam-se evidentes, o que constitui um “fracasso” imunológico após infecção primária;
  4. Tuberculose latente não tratada – poderá evoluir para à tuberculose doença em ~ 43% das crianças de idade inferior a um ano, em ~ 24% das crianças entre um e cinco anos, e em ~ 5% a 15% dos adolescentes com idade superior a 15 anos.

(*) Nota: a prova tuberculínica ou intradermorreacção de Mantoux realiza-se do seguinte modo: injecção intradérmica de 0,1 mL de tuberculina PPD (Purified Protein Derivate) no 1/3 médio da região ântero-lateral do antebraço esquerdo, paralelamente ao eixo, com bisel da agulha (25-26G) para cima, até se obter pápula de 5-8 mm, e pele em “casca de laranja”. Verificação do tipo de reacção após 48-72 horas com medição da induração (não do eritema). Se não se verificar qualquer reacção, diz-que a prova foi anérgica. (ver Quadros 3 e 8)

Factores de risco

Por cada criança com TB há, pelo menos, um adulto a eliminar e propagar bacilos e, por cada adulto nestas condições, poderá haver uma ou mais crianças infectadas. Este é o conceito do binómio adulto-criança. Assim, o factor mais importante de infecção por Mtb na criança é o contacto com um adulto ou adolescente com infecção tuberculosa. A progressão para doença activa após um contacto depende da interacção entre factores do meio e do hospedeiro (Quadros 1 e 2).

QUADRO 1 – Factores do meio: características da fonte infectante e magnitude do inóculo.

    • Os adultos com exame directo positivo são mais contagiosos do que aqueles em que o Mtb é detectado apenas na cultura da expectoração.
    • As lesões cavitárias (cavernas) e a tosse aumentam o risco de disseminação.
    • O contacto íntimo e mantido com doente, e a coabitação de muitos indivíduos em espaço exíguo, aumentam o risco de infecção.
    • A co-infecção por VIH/SIDA condiciona situações de maior contágio, mesmo que não existam lesões cavitárias.

QUADRO 2 – Factores do hospedeiro: maior probabilidade de infecção e de progressão para doença activa.

    • O risco de progressão para doença activa é inversamente proporcional à idade.
    • A má-nutrição, a co-infecção com VIH, as doenças crónicas como insuficiência renal, hepática ou diabetes mellitus, a terapêutica com imunossupressores, ou doenças que se acompanham de imunossupressão temporária, como o sarampo, são factores que favorecem a evolução para tuberculose-doença.
    • O risco de progressão para tuberculose extrapulmonar (nomeadamente meníngea) é maior nas crianças de idade inferior a um ano.
    • O risco de progressão para tuberculose extrapulmonar (nomeadamente meníngea) é maior no primeiro ano após o início do processo de tuberculose-infecção.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos de TB, as manifestações consideradas clássicas como febre prolongada, pneumonia de evolução arrastada, anorexia, perda de peso, tosse persistente, hemoptise, etc. relacionam-se com doença de evolução avançada; nas crianças mais jovens existe maior probabilidade de sintomas vagos e inespecíficos, tais como tosse, febre, perda ou não progressão ponderal, mal-estar, adinamia, vómitos, diarreia e, raramente, hipersudorese noturna.

Em 27 doentes com TB internados na Unidade de Infecciologia do Hospital de Dona Estefânia, Lisboa, no período de dois anos (2004-2005) o diagnóstico de TB foi admitido como primeira hipótese em 15, tendo em conta o conhecimento da epidemiologia intrafamiliar. Dos restantes, os motivos de internamento foram diversos, tais como: febre, vómitos, diarreia, astenia, mau estado geral, alterações do estado de consciência, dificuldade respiratória e pneumonia. De salientar que sintomas vagos e persistentes em contexto epidemiológico sugerindo tuberculose, obrigarão à realização de exames complementares no sentido de excluir ou confirmar o diagnóstico.

Duas situações particulares, relacionáveis com fenómeno de hipersensibilidade mediada por células, poderão indiciar TB primária: o eritema nodoso e a ceratoconjuntivite flictenular.

O primeiro traduz-se pelo aparecimento de nódulos e placas de 1-5 cm de diâmetro, dispostos tipicamente e de modo grosseiramente simétrico sobretudo ao nível das regiões pré-tibiais, mas podendo surgir em outras localizações. (ver capítulo na Parte sobre vasculites)

A conjuntivite flictenular caracteriza-se por grupos de pequenos nódulos amarelo-acinzentados no limbo, na córnea ou na conjuntiva bulbar, persistindo por vários dias e, por vezes, com carácter recorrente. Podem causar lacrimejo intenso, fotofobia, dor e sensação de corpo estranho.

Neste capítulo são abordadas duas grandes formas clínicas de TB:

  1. TB torácica, subdividida, arbitrariamente, em pulmonar e extrapulmonar;
  2. TB extratorácica, ocorrendo em menos de 5% dos casos pediátricos, sendo que todos os órgãos podem ser atingidos.

1. Tuberculose torácica

Forma adenopática traqueobrônquica

Na idade pediátrica é a forma mais frequente, traduzida por compromisso ganglionar evidenciado em radiografia do tórax e/ou TC. O aumento de volume dos gânglios ao nível da bifurcação brônquica e mediastino poderá levar a compressão brônquica, com atelectasia ou enfisema se se verificar compressão associada a mecanismo valvular com retenção progressiva de ar. Outras possibilidades de evolução natural do componente ganglionar do complexo primário são esquematizadas em desenho na Figura 2. (Segundo Thomé Villar e Ducla Soares)

A Figura 3 mostra aspecto radiográfico da forma adenopática traqueobrônquica (radiografia do tórax PA e perfil): opacidade arredondada de limites bem definidos, confluente com o hilo pulmonar.

Notas importantes:

    • As lesões tuberculosas dos gânglios cicatrizam mais lentamente que as do foco de inoculação.
    • Conforme o estado do caseum quando se dá a perfuração do gânglio para o lume brônquico – elástico, desidratado ou líquido – podem resultar síndromas obstrutivas ou disseminação brônquica.
    • O tecido ganglionar no lume brônquico, e o tecido de granulação em torno da fístula adenobrônquica podem originar sequelas nas for- mas arrastadas (fibrose, estenose e calcificação).

FIGURA 2. Esquema das possibilidades de evolução natural do componente ganglionar do complexo primário (consultar texto).

FIGURA 3. Imagem radiográfica de adenopatia traqueobrônquica esquerda: A – Póstero-anterior; B – Perfil. (NIHDE)

Foco primário

Esta forma corresponde às manifestações resultantes da progressão do foco parenquimatoso pulmonar. Clinicamente é traduzida por quadro de bronquite e, radiologicamente, por foco de condensação (opacidade arredondada). As suas dimensões não ultrapassam em geral dois centímetros; poderá ser visualizado na radiografia do tórax concomitantemente com a adenopatia.

Disseminação brônquica

O quadro clínico de disseminação brônquica, quer a partir do gânglio, quer a partir do foco primário, é o de broncopneumonia caseosa de evolução subaguda ou crónica (formação de caseum, Figura 2). Tal situação poderá obrigar ao diagnóstico diferencial com quadro broncopneumónico relacionável com agentes infeciosos que não Mtb; a história clínica e os achados epidemiológicos associados ao resultado da prova tuberculínica ou testes IGRA contribuem para a destrinça. (Figura 4)

FIGURA 4. Disseminação broncogénica de caseum: imagens radiográficas nodulares dispersas, associadas a adenopatia hilar. (NIHDE) (ver Figura 2)

Tuberculose miliar

Trata-se duma forma grave de disseminação linfo-hematogénica a qual pode atingir qualquer órgão. Em geral, surge em crianças debilitadas e/ou desnutridas e manifesta-se por febre, mau estado geral, perda de peso, suores nocturnos, hepatosplenomegália, podendo associar-se a meningite. Existe um quadro de pneumonite bilateral que se traduz radiologicamente por infiltrados miliares/micronódulos de 1-2 mm, confluentes, dispersos em ambos os campos pulmonares (daí o nome de granúlia) e arredondados como grãos de milho (daí o nome de miliar). É notória a dificuldade respiratória que, nos pequenos lactentes pode partilhar sinais com a bronquiolite. Face ao estado de debilitação da criança, a prova tuberculínica poderá ser anérgica. (Figura 5)

FIGURA 5. Padrão radiográfico de tuberculose miliar. (NIHDE)

FIGURA 6. TAC torácica: lesões cavitárias de tuberculose. (NIHDE)

Tuberculose pulmonar reactivada

Esta forma, típica dos adolescentes e adultos, é muitas vezes designada por “tuberculose pulmonar tipo adulto”; corresponde à chamada tuberculose pós-primária, epifenómeno de reactivação endógena ou reinfecção exógena. Na forma de doença avançada surgem lesões cavitárias localizadas predominantemente nos segmentos apicais dos lobos superiores, correspondendo a zonas com maior pressão de oxigénio (Figura 6). A partir de tais lesões cavitárias verifica-se disseminação endobrônquica de bacilos, o que contribui para propagação de Mtb junto dos contactos. Os sintomas e sinais gerais são os referidos anteriormente, sendo que a tosse e hemoptise poderão indiciar cavitação e erosão brônquica.

Derrame pleural tuberculoso

O derrame pleural tuberculoso, de tipo serofibrinoso, que pode acompanhar a infecção primária, representa uma resposta imune ao Mtb. A prova tuberculínica é geralmente exuberante, e a resposta ao tratamento é em geral rápida quando coadjuvada por corticóides. Mais frequente na idade escolar e na adolescência tem início agudo com febre, dor torácica ou abdominal, agravando-se com a respiração e a tosse. A análise do líquido pleural evidencia linfócitos e elevado teor em proteínas, não contendo bacilos. A imagem radiológica do derrame pleural é sobreponível à associada a outras etiologias. (Figura 1 do Capítulo sobre Derrame Pleural-Parte XIV)

Pericardite tuberculosa

Esta forma de pericardite surge quando Mtb atinge o pericárdio por via hematogénica ou por contiguidade a partir da pleura ou pulmão. Se o processo inflamatório persistir com esta localização, poderá resultar resposta celular imune com ruptura de granulomas para o espaço pericárdico conduzindo ao desenvolvimento de pericardite constritiva.

2. Tuberculose extratorácica

Linfadenite superficial

A linfadenite superficial extratorácica surge sobretudo nas regiões cervical, supraclavicular e submaxilar, embora outras cadeias ganglionares possam ser atingidas. Trata-se da forma mais comum de TB extratorácica na idade pediátrica. Historicamente é relacionada com a ingestão de leite de vaca não pasteurizado veiculando M. bovis, o que ocorria cerca de seis meses a anos depois. Ao nível das regiões, inguinal, axilar e epitroclear pode associar-se a TB da pele ou sistema esquelético. Na região supraclavicular pode associar-se a extensão de lesão primária de segmentos superiores do pulmão ou abdómen. A tumefacção ganglionar uni ou bilateral, pode atingir grandes dimensões e originar a compressão de estruturas adjacentes. É acompanhada de sinais inflamatórios locais e regionais, com coloração eritematosa e violácea da pele, aderente aos planos profundos e tendência para a fistulização. Como sequela forma-se uma cicatriz quelóide designada habitualmente por escrófula.

Meningite tuberculosa

A meningite tuberculosa corresponde a cerca de 0,3% das infecções tuberculosas não tratadas em idade pediátrica. Manifesta-se na maioria dos casos no período de seis a 24 meses após infecção primária e em crianças com menos de cinco anos. Cerca de 40% a 50% das crianças com meningite tuberculosa têm outros focos de infecção tuberculosa, incluindo TB miliar. O início pode ser insidioso com sintomas vagos e inespecíficos como febrícula, cefaleia e alterações do comportamento, irritabilidade ou sonolência. O diagnóstico precoce é fundamental tendo em vista a redução da morbilidade e mortalidade, exigindo-se do clínico um elevado índice de suspeição. Classicamente, são descritos três estádios evolutivos, ao longo de três a quatro semanas:

  • Estádio I – febre, irritabilidade, sonolência;
  • Estádio II – alterações do comportamento, por vezes sinais focais; podem surgir sinais meníngeos e ocorrer convulsões;
  • Estádio III – delírio e coma; sinais meníngeos francos, sinais neurológicos focais. O processo inflamatório das meninges afecta sobretudo a base do encéfalo (meningite basilar), com repercussão significativa sobre os nervos cranianos, levando a hipertensão intracraniana, deterioração do estado mental e coma. A análise do líquido cefalorraquidiano revela aumento do número de leucócitos (50-500/mm3), sendo que na fase inicial poderão predominar, quer linfócitos, quer neutrófilos; hiperproteinorráquia e hipoglicorráquia. Embora o exame cultural seja o método de excelência para detecção de Mtb, os métodos de biologia molecular/reacção em cadeia da polimerase (PCR) específicos para Mtb são de grande utilidade para o diagnóstico.
Tuberculose osteoarticular

Esta forma clínica de início insidioso pode ocorrer após disseminação hematogénica ou por extensão directa a partir de gânglio regional caseoso. Inclui diversas entidades nosológicas: TB da coluna vertebral (mal de Pott), a forma mais frequente; artrite coxofemoral, com lesão destrutiva da cabeça do fémur e acetábulo; dactilite com compromisso dos dedos das mãos e pés. No mal de Pott os segmentos mais atingidos são, por ordem de frequência, o torácico inferior, o lombar e o cervical. Ocorre destruição da porção anterior do corpo vertebral, com compromisso contíguo de várias vértebras em diferentes fases de destruição e, com frequência, abcesso frio paravertebral extenso. Clinicamente, a criança encontra-se, regra geral, assintomática, com cifose acentuada.

Tuberculose abdominal

A etiopatogénese desta forma clínica relaciona-se, quer com a deglutição de material pulmonar infectado com bacilo humano (forma secundária), quer com a deglutição de produtos alimentares contaminados pelo bacilo bovino (forma primária). Trata-se duma forma relativamente rara nos países industrializados em que as medidas preventivas de medicina humana e veterinária contemplam, designadamente, a detecção da tuberculose bovina e a pasteurização do leite. A deglutição de Mtb origina ulceração da mucosa intestinal com compromisso dos gânglios mesentéricos, e especial predilecção pelos gânglios ao nível do íleo terminal (lesão caseosa com consequente erosão) (Figura 7); esta lesão pode levar a perfuração intestinal originando quadro de peritonite tuberculosa. Para além da ascite, poderá surgir sintomatologia diversa: dor abdominal, síndroma obstrutiva, diarreia crónica inflamatória, massas abdominais palpáveis, etc..

Tuberculose urogenital

Rara na idade pediátrica, ocorre por disseminação hematogénica, correspondendo a reactivação tardia. As manifestações incluem essencialmente piúria (estéril), hematúria e proteinúria. A suspeita implica a detecção específica de Mtb na urina.

FIGURA 7. Radiografia abdominal simples evidenciando adenopatia abdominal calcificada no contexto de tuberculose abdominal. (NIHDE)

Tuberculose congénita

É uma forma rara cuja etiopatogénese se relaciona, quer com transmissão por via transplacentar, formando-se o complexo primário no fígado, quer com aspiração ou deglutição de material infectado a partir do líquido amniótico ou do canal genital. As manifestações incluem quadros de sépsis, hepatosplenomegália, dificuldade respiratória precoce, com padrões radiográficos diversos (pneumonia de aspiração, simile granúlia, etc.).

Outras formas de tuberculose extratorácica

Sucintamente faz-se referência (por razões didácticas históricas) a outras formas de tuberculose extratorácica, raras:

  • Tuberculose cutânea traduzida por tubercúlides papulonecróticas, tuberculose verrucosa cútis, e eritema nodoso (já citado, por hipersensibilidade);
  • Tuberculoma cerebral originando sinais focais e de hipertensão intracraniana;
  • Laringite tuberculosa por fezes associada a tuberculose pulmonar;
  • Tuberculose nasofaríngea resultante de disseminação hematogénica ou secundária a expectoração de material pulmonar estendendo-se à nasofaringe;
  • Tuberculose oftálmica, rara, por disseminação hematogénica ou por propagação a partir dos tecidos circundantes; as formas clássicas, com valor histórico, hoje excepcionais, englobam a ceratoconjuntivite flictenular, já citada, a uveítes e a coroidite clássica agregando os chamados tubérculos coroideus, identificáveis por fundoscopia.

Diagnóstico de tuberculose

Aspectos gerais

Ao contrário do adulto, em que o diagnóstico de TB é directo, baseado na história clínica e confirmado por exames culturais, na criança o diagnóstico de TB é geralmente indirecto, baseando-se nas histórias clínica e epidemiológica valorizando o binómio adulto-criança, e na positividade da prova tuberculínica e/ou de uma prova imunológica/de imunodiagnóstico. (ver adiante)

No que respeita a resultados de exames complementares correntes, importa realçar que a fórmula sanguínea é em geral normal, a velocidade de sedimentação está aumentada e a proteína C reactiva evidencia em geral, também valores elevados. Contudo, estes resultados exprimem de modo inespecífico apenas repercussão de um processo inflamatório sobre o estado geral do organismo. O doseamento da adenosinadeaminase (ADA) no LCR ou líquido pleural poderá orientar no sentido de infecção por Mtb se os valores forem superiores a 40 U/L; no entanto, tal achado não é patognomónico, pois poderá verificar-se idêntica alteração, designadamente em casos de artrite reumatóide. Por fim, cita-se a realização de fundoscopia podendo identificar a presença de tubérculos coroideus e confirmar o diagnóstico.

Prova tuberculínica

A prova tuberculínica/intradermorreacção de Mantoux mantém a sua inegável importância no processo diagnóstico da TB; contudo, deverão ser interpretadas no contexto de eventual vacinação anterior e de parâmetros epidemiológicos, clínico-laboratoriais e radiológicos. O Quadro 3 pormenoriza aspectos importantes relacionados com este procedimento. A técnica de realização deste é descrita na caixa a seguir ao quadro.

QUADRO 3 – Interpretação da prova tuberculínica.

O BCG determina, em geral, reacção alérgica após prova tuberculínica evidenciando alergia (zona de induração 10 mm). No entanto, muitas crianças vacinadas apresentam resultados de provas tuberculínicas com induração de menores dimensões ou até anergia, sem que tal signifique menor protecção em relação às formas graves de TB.*

    • Se existir contexto epidemiológico, uma prova tuberculínica anérgica e induração até 10 mm não deverá excluir TB. Deverão ser efectuados exames radiológicos e laboratoriais.
    • Cerca de 10% das crianças com TB-doença evidenciam provas tuberculínicas anérgicas. Como causas desta situação destacam-se idade baixa, infecção tuberculosa grave em curso, má-nutrição e imunossupressão.
    • Uma prova tuberculínica com induração ≥ 10 mm deve ser sempre valorizada, caso exista contexto epidemiológico sugestivo e BCG administrada há mais de cinco anos.
    • Uma prova tuberculínica com induração ≥ 15 mm indica sempre TB-infecção ou TB-doença (excepto quando há história de TB anterior tratada: a prova tuberculínica continua a evidenciar resultado compatível com alergia após a infecção, mesmo nas situações de doença considerada tratada).
    • Num imunodeprimido, qualquer dimensão de induração deverá ser valorizada.
    • Reacção alérgica com induração ≤ 5 mm é considerada ~ anergia. Tal pode acontecer também nas 1as 6-10 semanas após início da infecção.
    • Reacção com induração de 6-9 mm poderá estar associada a infecção por micobactérias atípicas.
    • Nos vacinados com BCG a alergia poderá não ser permanente.

(*) Além da prova de Mantoux existem outras provas tuberculínicas, hoje em desuso pela fraca sensibilidade e especificidade (por exemplo, com micropunções, adesivo com tuberculina percutânea tipo Volmer, etc.), citados por razões históricas. Segundo alguns autores, a vacinação com BCG poderá dificultar o diagnóstico, por problemas de interpretação das provas tuberculínicas.

 

Técnica de realização da prova de Mantoux: – desinfecção da pele com álcool no terço médio do antebraço esquerdo; – seringa descartável de 1 mL (graduada em centésimos de mL) com agulha de calibre 26 e comprimento de 10 mm; – administração de 0,1 mL de tuberculina purificada (PPD RT 23) na localização referida; – injecção intradérmica de modo a criar pápula de 5 mm com bordos bem delimitados desaparecendo em 10-15 minutos.


Provas de imunodiagnóstico

Como alternativa e/ou complemento à prova tuberculínica recentemente foram desenvolvidas novas provas diagnósticas, como a IGRA, acrónimo do inglês Interferon-Gamma Release Assay, baseadas na detecção da secreção/libertação de interferão/IFN-gama pelos linfócitos T ao entrar em contacto com antigénios de M. Tuberculosis, o que não acontece com os antigénios da estirpe atenuada BCG.

Existem comercializadas duas técnicas IGRA, respectivamente T-SPOT.TB e QuantiFERON-TB Gold.

  • utilizando o teste T-SPOT.TB: na presença de tuberculosis (contendo antigénios específicos – ESAT-6, CFP-10 e TB7.7 – não existentes em M. bovis, nem no complexo M. avium) ocorre estimulação de linfócitos T no sangue periférico, permitindo a contagem do número de linfócitos T produtores de IFN-gama.
  • utilizando o teste QuantiFERON-TB Gold é medido o teor de IFN-gama.

As principais vantagens dos testes de detecção de IFN-gama relativamente às provas tuberculínicas são a maior especificidade devido à falta de reactividade cruzada com BCG e micobactérias atípicas, e maior sensibilidade para o diagnóstico nos casos de crianças com infecções por VIH e com síndromas de má-nutrição. Um resultado positivo dos testes IGRA confirma apenas um estado de infecção e não necessariamente de doença, mas um resultado negativo não exclui, nem doença, nem infecção. Os resultados dos testes IGRA são, por vezes, bastante discordantes com a prova tuberculínica, pelo que em algumas situações poderão ser usados ambos de forma sequencial. Em crianças com idade inferior a cinco anos os dados disponíveis são escassos e não consensuais, mas os resultados sugerem uma menor sensibilidade que em crianças mais velhas e adultos.

Pesquisa de M. tuberculosis (métodos convencionais)

A pesquisa de Mtb na idade pediátrica deve ser efectuada no suco gástrico, de manhã, em jejum, com a criança em decúbito mantido desde a véspera, e durante três dias (três amostras). Deve introduzir-se 20 a 50 ml de água destilada através de sonda de aspiração, à temperatura ambiente, recolher-se o aspirado e colocá-lo em recipiente estéril. O produto deve ser transportado à temperatura ambiente, devendo a entrega no laboratório e o processamento ser feitos nos 15 minutos seguintes; se tal não for possível dever-se-á congelar (-20ºC). O método mais económico e com maior percentagem de positividade no adulto é a cultura da expectoração, a qual é raramente positiva na criança, dado esta ser habitualmente paucibacilar. A positividade aumenta em crianças de idade superior a sete anos, colaborantes e com tuberculose endobrônquica ou parenquimatosa. Tal como com o suco gástrico, devem ser obtidas três amostras. Em qualquer idade, um exame directo negativo, em qualquer produto, não exclui tuberculose. A colheita de secreções brônquicas, líquido pleural, líquor ou urina deve ser ponderada caso a caso.

De acordo com estudos recentes provenientes da China (por Sun, et al), comprovou-se a vantagem (em termos de sensibilidade e rapidez do diagnóstico bacteriológico), da utilização do líquido de lavagem broncoalveolar, relativamente ao uso da expectoração, através do teste designado Xpert MTB/RIF.

Pesquisa de M. tuberculosis por técnica de amplificação do ácido nucleico

As técnicas de amplificação do ácido nucleico (TAAN) podem identificar directamente Mtb com a vantagem de não ser necessário crescimento em meio de cultura. No entanto, um resultado positivo nas TAAN não excluiu a realização de cultura, pela necessidade de efectuar os testes de sensibilidade aos antibacilares.

Outros exames complementares

Apesar de não haver um padrão radiológico específico da TB pulmonar na criança, a radiografia do tórax em incidências póstero-anterior e perfis é fundamental. A alteração mais frequente é a adenopatia mediastínica (hilar), que poderá ser responsável por atelectasia. Outros sinais radiológicos incluem a pneumonia, o derrame pleural, o padrão de disseminação miliar ou broncogénica e, nos adolescentes, as imagens sugestivas de cavitação (Figuras 2, 3 e 4). Quando são detectadas alterações radiológicas, deve ser efectuada tomografia computadorizada (TC), para melhor definição das características e extensão das lesões. A broncoscopia está indicada em situações específicas. (Quadro 4)

QUADRO 4 – Indicações da broncoscopia.

    1. Perturbações da ventilação
    2. Imagens de disseminação broncogénica
    3. Adenomegália volumosa látero-traqueal ou traqueobrônquica direita
    4. Redução súbita de dimensões de adenomegália em radiogramas sucessivos
    5. Verificação de sinais de “escavação” ganglionar
    6. Hemoptises
    7. Doente VIH+


Em casos especiais de derrame pleural poderá estar indicada biópsia pleural para detecção de eventual granuloma. Igualmente, em função do contexto clínico, nalguns casos de tuberculose miliar/granúlia poderá estar indicada biópsia da medula óssea.

Nas formas extratorácicas deverão ser realizados exames de imagem (radiografia, ecografia, TC, RM, conforme indicado) para melhor caracterização das lesões, e biópsia para colheita de produtos, que devem ser sempre enviados para realização de exame directo por microscopia óptica, TANN e cultura.

Na meningite tuberculosa além dos exames de imagem já citados, que poderão evidenciar sinais de edema cerebral, hidrocefalia, ventriculomegália ou tuberculomas, deve ser efectuada punção lombar para colheita e análise do LCR, incluindo cultura (negativa em 30% dos casos), PCR/reacção da polimerase em cadeia, e pesquisa de Mtb por TANN.

Perante a suspeita de meningite ou granúlia, a realização de fundoscopia é fundamental, pois a presença de tubérculos coroideus pode confirmar o diagnóstico.

Diagnóstico diferencial

Apesar de Portugal ser actualmente um país de baixa incidência, o diagnóstico diferencial de TB deve ser efectuado em situações de pneumonia de evolução arrastada, meningoencefalite, síndroma febril prolongada e de origem não determinada; síndromas de etiopatogénese diversa associadas a derrame pleural, doença articular, adenopatia superficial, eritema nodoso, conjuntivite flictenular, etc..

Tratamento

Princípios gerais

O tratamento da TB inclui a administração de fármacos ao doente infectado e medidas de Saúde Pública para controlo da infecção a nível comunitário. As características de cada doente devem ser tidas em conta, designadamente, a idade, o local da infecção, assim como a eventualidade de estado de imunossupressão e de coinfecção com VIH.

Os Quadros 5 e 6 discriminam respectivamente fármacos antibacilares de 1ª e 2ª linhas actualmente utilizados.

QUADRO 5 – Posologia dos antibacilares de primeira linha.

Rifampicina 15 mg/kg/dia (10-20 mg/kg/dia); máx. 600 mg
Isoniazida 10 mg/kg/dia (7-15 mg/kg/dia); máx. de 300 mg
Pirazinamida 35 mg/kg/dia (30-40 mg/kg/dia)
Etambutol 20 mg/kg/dia (15-25 mg/kg/dia)

QUADRO 6 – Posologia de antibacilares de segunda linha.

Amicacina 15-22,5 mg/kg/dia (máx. 1000 mg)
Canamicina 15-30 mg/kg/dia (máx. 1000 mg)
Capreomicina 15-30 mg/kg/dia (máx. 1000 mg)
Levofloxacina 15-20 mg/kg/dia (máx. 750 mg)
Moxifloxacina 15-20 mg/kg/dia (máx. 400 mg)
Etionamida 15-20 mg/kg/dia (máx. 1000); 2 tomas
Cicloserina 10-20 mg/kg/dia (máx. 1000 mg); 1-2 tomas
PAS (ácido para-amino-salicílico) em carteiras 150 mg/kg/dia (máx. 12.000 mg); 2-3 tomas
Linezolide 20 mg/kg/dia (máx. 1200 mg); 2 tomas

Logo após o início da terapêutica antibacilar tornou-se evidente que a emergência de resistência de Mtb se desenvolveria a uma taxa previsível se os sucessivos fármacos fossem usados em monoterapia.

Por conseguinte, uma vez que o tratamento tem por objectivo principal a erradicação de Mtb, dever-se-á usar sempre um esquema de politerapia que inclua fármacos bactericidas. Esta associação de fármacos impedirá o aparecimento de estirpes mutantes e reduzirá o tempo de tratamento; este, deverá, no entanto, ser suficientemente longo para permitir a esterilização das lesões.

Os esquemas-padrão de tratamento para as formas de TB torácica e para a maioria das formas de TB extratorácica, pressupõem seis meses de duração. Em determinadas situações poderão ser mais longos, com excepção das formas multirresistentes e extensivamente resistentes, não excedendo contudo um ano.

O tratamento com fármacos que actuam sobre bacilos em multiplicação activa é bastante eficaz. No entanto, para conseguir a esterilização das lesões na presença de bacilos em estado latente e/ou multiplicação lenta ou intermitente, o tratamento deve ser prolongado.

No adulto, a terapêutica intermitente (duas a três vezes/semana) tem interesse em situações de suspeita de má adesão ao tratamento diário ou em ambientes com dificuldades de acesso aos serviços de saúde, o que implica supervisão/vigilância rigorosas.

Em determinados contextos deverá adoptar-se a estratégia de toma observada direta (TOD), em que o profissional de saúde observa e confirma a toma dos antibacilares pelo doente.

Sendo a multiplicação do bacilo proporcional à pressão de oxigénio no meio, torna-se fácil compreender que as lesões poderão conter três tipos de populações microbianas distintas:

  • bacilos em multiplicação activa, nas paredes das lesões caseosas das cavernas;
  • população mais reduzida de bacilos, fagocitados pelos macrófagos (em meio ácido, sob o efeito de várias enzimas) com multiplicação lenta e ocasional;
  • bacilos extracelulares em focos caseosos sólidos com multiplicação intermitente.

De salientar que as micobactérias podem sobreviver durante anos em estado latente (de quiescência) quando o metabolismo é inibido por baixa pressão de oxigénio ou pH baixo.

Os testes de sensibilidade aos antimicrobianos são habitualmente efectuados em duas fases. Na primeira são testados os fármacos de 1ª linha que incluem isoniazida/INH, rifampicina/RIF, pirazinamida/PZA e etambutol/EMB. Se o microrganismo for multirresistente, são testados numa 2ª fase, os de 2ª linha.

Os testes de sensibilidade (dado o crescimento lento das micobactérias) demoram, em média, duas semanas para os de 1ª linha e duas a quatro semanas para os de 2ª linha.

A propósito do fenómeno das resistências a fármacos, os quais são administrados a pessoas doentes, importa proceder à seguinte sistematização:

*considerando o fármaco

      • Monorresistência – resistência apenas a um dos antibacilares de 1ª linha;
      • Polirresistência – resistência a mais do que um dos antibacilares de 1ª linha;
      • Multirresistência – resistência simultânea à INH e RIF a que se podem associar resistências a outros fármacos antibacilares;
      • Resistência extensiva – resistência simultânea a INH, RIF, qualquer quinolona e, no mínimo, a um dos três fármacos injectáveis de segunda linha.

*considerando o doente

      • Resistência inicial (primária) – resistência em doentes a submeter a um primeiro tratamento; trata-se dum indicador epidemiológico de excelência, reflectindo o reservatório de bacilos circulantes na comunidade;
      • Resistência adquirida (secundária) – resistência demonstrável em doentes já em tratamento (inicialmente sensíveis, tornando-se resistentes); traduz casos de falência terapêutica.

Esquemas de tratamento

Tuberculose infecção ou tuberculose latente

Não existe uniformidade de critérios para a terapêutica da tuberculose-infecção ou tuberculose latente (que, de facto corresponde ao conceito de quimioprofilaxia secundária – ver Glossário geral).

Em Portugal recomenda-se a administração de isoniazida durante seis a nove meses ou, em alternativa, isoniazida e rifampicina por um período de três meses. Se confirmada resistência à isoniazida recomenda-se rifampicina durante quatro meses.

Têm indicação para tratamento da infecção latente, crianças com idade inferior a cinco anos submetidas a terapêutica actual com fármacos imunossupressores, especialmente fármacos biológicos, infecção por VIH, desnutrição grave e doença depauperante.

Estudos recentes apontam, por mecanismo não completamente esclarecido, para uma melhoria do prognóstico da tuberculose nos pacientes com diabetes mellitus associada, submetidos a tratamento com metformina.

Tuberculose doença

Nas formas de TB pulmonar (esquema terapêutico inicial) recomenda-se a utilização de três ou quatro fármacos durante dois meses com pirazinamida, isoniazida, rifampicina e etambutol.

Após este período são mantidas a isoniazida e a rifampicina durante mais quatro meses. Em regiões com elevada resistência à isoniazida, ou no doente com baciloscopias positivas, doença pulmonar extensa, imunodeprimidos (infecção por VIH ou outra) e formas extrapulmonares graves, a terapêutica inicial deverá incluir sempre quatro fármacos.

Nota: A utilização de estreptomicina (citada no quadro) como primeira linha não é recomendada em nenhuma das formas de doença.

Na resistência isolada à isoniazida, esta deve ser substituída por uma quinolona (levofloxacina ou moxifloxacina), mantendo terapêutica durante seis a nove meses. Na resistência isolada à rifampicina recomenda-se um esquema de multirresistência com ou sem isoniazida.

O tratamento da TB-MR, deve ser orientado pelas susceptibilidades encontradas na criança e/ou na fonte infectante. Como regra geral, devem incluir pirazinamida e, no mínimo, quatro fármacos de segunda linha aos quais se julgue não haver resistência.

A duração do tratamento deve ser individualizada em função da resposta clínica e laboratorial.

Como regra geral recomenda-se uma fase inicial intensiva de oito meses e uma fase de consolidação, no mínimo, com três fármacos comprovadamente activos (duração de 12 meses).

O tratamento deve ser administrado, na totalidade, em sistema TOD. Todos os referidos fármacos podem causar reacções adversas importantes as quais poderão obrigar a modificação da terapêutica e/ou suspensão de alguns.

Nos casos de TB-MR e TB-XDR a monitorização bacteriológica deverá ser mensal até final do tratamento e repetida, respectivamente, 6 e 12 meses após suspensão da terapêutica.

Nos casos de TB pulmonar a radiografia de tórax deverá ser realizada de seis em seis meses e no final do tratamento. O doente deve ser observado por médico mensalmente durante o tratamento e, posteriormente, aos 3, 6 e 12 meses, no mínimo.

Outras formas de tuberculose

No tratamento da linfadenite tuberculosa poderá ser necessária a remoção cirúrgica do gânglio e da fístula à pele. A meningite tuberculosa, e a tuberculose osteoarticular obrigam sempre a terapêutica quádrupla inicial (isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol) durante dois meses, seguida de dupla (isoniazida e rifampicina) no total de 12 meses.

Situações especiais
  • A corticoterapia está indicada em todas as situações em que o processo inflamatório causado pela infecção tuberculosa possa ser factor adjuvante para o estabelecimento de complicações e sequelas. O “desmame” dos corticóides deve ser muito lento, em quatro a seis semanas. O Quadro 7 elucida sobre as indicações universais e a ponderar.
  • A coinfecção por VIH, menos frequente na criança do que no adulto, obriga no entanto ao respectivo rastreio em todas as crianças com tuberculose-doença. A terapêutica da criança VIH positiva com TB é semelhante à da criança VIH negativa. Contudo, devem ser ponderados esquemas terapêuticos mais longos se a resposta inicial for lenta.
    A introdução dos fármacos antiretrovíricos inibidores da protease (IP; por ex. indinavir e nelfinavir) trouxe problemas adicionais na terapêutica antibacilar destes doentes, nomeadamente em relação à utilização das rifamicinas (rifampicina e rifabutina).
    Sendo as rifamicinas indutoras do citocromo P450 hepático, aceleram o metabolismo dos IP (a rifampicina é o indutor mais potente) condicionando concentrações séricas baixas e níveis infraterapêuticos dos referidos antiretrovíricos. Estes, por sua vez, ao retardarem o metabolismo das rifamicinas, elevam os seus níveis séricos com consequente risco de toxicidade. Assim, a rifampicina não deve ser utilizada conjuntamente com os IP actualmente disponíveis; contudo, a rifabutina poderá ser uma alternativa eficaz, desde que se efetcuem ajustes posológicos (redução da dose de rifabutina e aumento da referente aos IP).

QUADRO 7 – Corticoterapia na tuberculose.

Indicações universaisIndicações a ponderar
    • Granúlia/miliar
    • Meningite tuberculosa
    • Tuberculose endobrônquica
    • Pericardite tuberculosa
    • Derrame pleural
    • Perturbação da ventilação
    • Muito mau estado geral

Prevenção

A prevenção da tuberculose exige uma acção harmónica entre as várias estruturas da Saúde, com detecção precoce dos casos e seu tratamento eficaz, rastreio dos contactos, quimioprofilaxia e vacinação.

Quimioprofilaxia (primária)

Consiste na administração profiláctica de fármacos antibacilares a crianças ainda não infectadas e em contacto com doente que elimina e propaga bacilos, por conseguinte em risco de adquirirem a tuberculose (Quadro 8). Como regra, a quimioprofilaxia primária está indicada em crianças de idade inferior a cinco anos. No entanto, a quimioprofilaxia deverá ser ponderada, caso a caso, em todas as situações de maior risco de evolução para doença activa. Habitualmente, consiste na administração de isoniazida em monoterapia. Quando haja resistência da fonte infectante à isoniazida, alguns autores preconizam a administração de rifampicina, enquanto outros preferem a administração conjunta de isoniazida e rifampicina. Para além da prova tuberculínica e/ou testes IGRA, antes de iniciar a quimioprofilaxia deverá ser efectuada radiografia de tórax, de modo a excluir doença.

QUADRO 8 – Quimioprofilaxia (primária).

Indicações Duração No final
Contactos intrafamiliares ou muito próximos de doentes bacilíferos com:
    • Idade inferior ou igual a 5 anos (a ponderar caso a caso nas crianças com idade superior)
    • Imunodeficiência congénita ou adquirida
    • Doença grave
    • Terapêutica prolongada (superior a um mês) com corticóides em doses imunossupressoras
    • Outras terapêuticas imunossupressoras
Enquanto se mantiver o contacto infetante e mais três meses após este terminar Realizar prova tuberculínica ou teste IGRA
    • Prova tuberculínica anérgica e ausência de critérios de tuberculose-doença: suspender a terapêutica
    • Prova tuberculínica alérgica (TB-infecção ou TB-doença): Avaliar a situação e tratar em função do contexto clínico-epidemiológico

Vacinação

A vacinação com BCG segue as recomendações da OMS para países de elevada incidência de tuberculose. Trata-se duma vacina viva atenuada contendo estirpes de M. bovis. Os estudos efetuados sobre a efectividade da vacina não são concludentes; enquanto alguns atestam elevada protecção, outros referem ser escassa ou nenhuma. Algumas particularidades ajudam a explicar estes resultados: 1) não existem critérios universais para o diagnóstico de tuberculose, nomeadamente da tuberculose em idade pediátrica; 2) necessidade de estudos muito longos porque existe geralmente um grande intervalo entre a administração da vacina e a eclosão da doença; 3) grande variedade de estirpes da vacina, de diversos fabricantes; 4) mecanismo de acção não está, ainda, verdadeiramente esclarecido; 5) interferência imunológica por micobactérias não tuberculosas; 6) polimorfismos genéticos das populações.

A vacinação com BCG não determinou, de facto, a eliminação da tuberculose em nenhum país, nem tem tido qualquer efeito na epidemiologia mundial da tuberculose. No entanto, a principal vantagem relaciona-se com a possibilidade de redução de formas mais graves de tuberculose infantil como a meningite e a tuberculose disseminada. Como vacinação universal a vacina foi retirada do PNV português em 2015, passando a ser vacinados, à semelhança de outros países, apenas os grupos de risco conforme Norma 6/2016 da DGS. (Quadro 9)

Quadro 9 – Crianças de idade inferior a seis anos, elegíveis para vacinação com BCG – Grupos de risco.1

1A partir dos 12 meses de idade há indicação para realização de prova tuberculínica ou de IGRA antes da vacinação com BCG. Se houver antecedentes de contacto com caso de tuberculose activa (possível ou confirmada), ou outras circunstâncias que levem a suspeitar que a criança teve ou tem uma probabilidade elevada de ter contraído infecção, deve ser submetida a rastreio em articulação com o PNT. Após prova tuberculínica/IGRA negativo a vacina BCG pode ser administrada nos três meses seguintes.
2Dependendo de uma avaliação do risco, caso a caso.

Crianças sem registo de BCG/sem cicatriz vacinal e: Situações abrangidas
Provenientes de países com elevada incidência de tuberculoseEstadia de, pelo menos, três meses
Que terminaram o processo de rastreio de contactos e/ou esquema de profilaxiaA avaliar pelas Unidades de Saúde Pública em articulação com os Coordenadores Regionais do Programa Nacional para a Tuberculose (PNT) e Centros de Diagnóstico Pneumológico (CDP)
Cujos pais, outros coabitantes ou conviventes apresentem →
    • Infeção VIH/SIDA, após exclusão de infeção VIH na criança, se mãe VIH+
    • Dependência de álcool ou de drogas
    • Naturalidade de país com elevada incidência de TB2
    • Antecedentes de tuberculose
Pertencentes a comunidades com risco elevado de tuberculoseA avaliar pelas Unidades de Saúde Pública em articulação com os Coordenadores Regionais do Programa Nacional para a Tuberculose e CDP
Viajantes para países com elevada incidência de tuberculose2
    • Estadia de, pelo menos, três meses
    • Pode ser ponderada a vacinação para estadias mais curtas, se for considerado um elevado risco de infeção

As vacinas actualmente incluem diversas modalidades:

  • vacinas de subunidades que utilizam proteínas de Mtb;
  • vacinas contendo DNA de Mtb usando vectores víricos;
  • BCG recombinante; – utilização de estirpes mutantes de Mtb; e
  • vacinas inactivadas e atenuadas contendo micobactérias não-tuberculosas.

As novas vacinas deverão ser acessíveis aos países mais pobres, onde o peso da doença é mais significativo e os sistemas de saúde mais débeis.

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Definição e importância do problema

O botulismo é uma afecção rara e potencialmente fatal caracterizada por paralisia flácida aguda simétrica e descendente, não acompanhada de febre e afectando tipicamente os pares cranianos, causada por uma neurotoxina produzida por Clostridium botulinum (e, mais raramente, Clostridium butyricum e Clostridium baratii).

Como consequência surge bloqueio irreversível dos receptores pré-sinápticos colinérgicos da junção neuromuscular. Trata-se, pois, de bactérias anaeróbias Gram-positivas do género Clostridium, produtoras de esporos.

O termo botulismo, derivando do latim botulus significando “salsichas ou enchidos em geral”, explica-se pelo facto de, em 1820, na Alemanha, se ter relacionado pela primeira vez um quadro de paralisia com “intoxicação com salsichas ingeridas em estado de deterioração”. A taxa de mortalidade varia entre 5% e 25%.

Sistematização

Estão descritas actualmente 6 formas clínicas distintas de botulismo de acordo com o seu modo de transmissão:

  1. botulismo alimentar (através de alimentos contaminados com a toxina pré-formada, por exemplo, em conservas, produtos desidratados, presunto, azeitonas, mel, etc.);
  2. botulismo infantil (através da ingestão de esporos de Clostridium, colonização no tracto gastrintestinal e libertação da toxina in vivo);
  3. botulismo associado a ferimentos (através de infecção de lesão cutaneomucosa, – como nos casos de tétano – com produção da toxina in vivo);
  4. botulismo entérico forma-adulta (idêntico à forma clássica infantil);
  5. botulismo inalado (situação rara, com toxina aerossolizada, em contexto de potencial bioterrorismo; estima-se que um grama de toxina pode matar pelo menos 1,5 milhões de pessoas); e
  6. botulismo iatrogénico (por sobredosagem na administração da toxina botulínica com fins cosméticos ou terapêuticos).

Neste capítulo é dada ênfase às formas 1, 2 e 3.

Aspectos epidemiológicos

As formas alimentar e infantil, manifestadas em geral como pequenos surtos, são as mais frequentes em todo o mundo (respectivamente 70% e 25%), com o maior número de casos descritos nos Estados Unidos da América (EUA). Dados dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC) estimam ocorrência média anual de 110 casos. Em cerca de 95% dos casos da forma infantil são atingidas crianças entre as 3 semanas de vida e os 6 meses de idade e com um “pico” entre os 2 e 4 meses. A forma associada a ferimentos é muito rara, com menos de 400 casos notificados a nível mundial.

Na Europa, os registos do sistema de vigilância das doenças infecciosas de declaração obrigatória (DDO) são heterogéneos e com limitações dependentes dos notificantes, o que condiciona a precisão dos dados estatísticos. Neste continente, nos últimos nove anos (2007-2015) foram reportados 1029 casos (~ 114/ano), com distribuição variável.

Em 2016, no âmbito da União Europeia foram emitidos alertas a relembrar o risco de alguns alimentos potencialmente contaminados: salmão fumado, sopas embaladas, molho de mostarda caseiro e feijão branco embalado.

Embora o botulismo possa ocorrer em todas as zonas do mundo, os surtos são mais frequentes nas regiões em que a preservação da fruta, vegetais e outros bens de consumo alimentar é menos comum, como nos países tropicais.

Em Portugal, o botulismo é uma DDO desde 1999, devendo proceder-se à respectiva notificação à Direcção Geral da Saúde (DGS). No ano de 2000, em contexto de consumo de fumeiros caseiros no Norte do país e na Região Autónoma da Madeira foram notificados 31 pacientes.

De acordo com dados da DGS, entre 2013 e 2016, foram notificados 14 casos (entre < 1 ano e > 75 anos), correspondendo apenas 1 caso abaixo dos 18 anos (ano de 2015) constam (dos dados do sistema de vigilância europeia) 26 casos nacionais, incluindo 6 casos recentes, em 2015.

Etiopatogénese

Microbiologia

Reafirmando que o botulismo é provocado na quase totalidade dos casos por Clostridium botulinum – um grupo heterogéneo de bacilos Gram-positivos, formadores de esporos e anaeróbios obrigatórios – realça-se que se trata de microrganismos ubíquos, com habitat natural no solo, pó e sedimentos marinhos, facilmente isolados duma variedade de produtos agrícolas e alimentos frescos, cozinhados ou processados. Os esporos são resistentes ao calor e sobrevivem a 100ºC por várias horas, sendo destruídos acima dos 120ºC durante 5 minutos. Em determinadas condições (ambiente anaeróbio, água com pH ácido baixo 4 e temperatura entre os 25-37ºC) os referidos esporos germinam e crescem, produzindo neurotoxinas. Por outro lado, esta toxina – provavelmente o “veneno” mais potente conhecido, donde o papel do seu aproveitamento para o bioterrorismo – é termolábil e facilmente destruída acima dos 85ºC, ou fica inactiva em água com cloro em apenas vinte minutos, ou em água fresca por três a seis dias.

Foram indentificadas 8 estirpes de C. botulinum de acordo com a especificidade antigénica, sendo que cada uma das 8 estirpes produz respectivamente um tipo específico de toxina (com as designações de A, B, C, D, E, F, G, H). O botulismo humano produz-se quase sempre pelas toxinas A, B, E e raramente pelas F, G e H. As toxinas E e F são também produzidas por Clostridium baratii e Clostridium butyricum. Ou seja, as toxinas patogénicas para o ser humano são as A, B, E, F, G e H. Esta última foi descrita pela primeira vez em 2013.

Patogénese

A toxina botulínica é uma proteína com cadeia de dupla hélice, libertada como um precursor polipeptídico que origina, por clivagem através das proteases, uma neurotoxina composta por uma cadeia leve de 50 KDa e uma cadeia pesada de 100 KDa.

Após a sua ingestão é absorvida inicialmente no estômago (resistindo à acidez gástrica), e posteriormente no intestino delgado e cólon. Distribuindo-se por via hematogénica, atinge as sinapses colinérgicas com consequente bloqueio pré-sináptico, impedindo a libertação de acetilcolina. Como consequência verifica-se paralisia flácida. De salientar que a toxina exerce também bloqueio da acetilcolina ao nível do sistema autonómico, induzindo sintomas de boca seca e sudação reduzida.

Mais pormenorizadamente, importa referir que o mecanismo preciso da acção da toxina compreende um processo com várias etapas que incluem a ligação irreversível da cadeia pesada a receptores específicos na terminação (só a colinérgica) pré-sináptica dos nervos periféricos e na placa motora. A ligação faz-se através da chamada sinaptotagmina II.

Uma vez no interior da célula (isto é, após endocitose), a cadeia leve, uma metaloprotease de zinco, impede a fusão das vesículas pré-sinápticas com a membrana, o que evita a libertação de acetilcolina (neurotransmissor) e provoca a “desinervação” funcional do músculo. A recuperação requer a formação de novas terminações pré-sinápticas (em cerca de 6 meses).

Sendo afectadas a união motora e autonómica, pode deduzir-se o atingimento de neurónios motores e sensitivos, bem como o bloqueio da inervação colinérgica do músculo liso e estriado, assim como das glândulas salivares, lacrimais e sudoríparas.

Está provado que a toxina pode atravessar a barreira hemato-encefálica, quer por via da disseminação sistémica, quer por transporte axonal anterógrado ou retrógrado. A morte resulta frequentemente dos efeitos paralíticos sobre a via respiratória.

Alimentos como o peixe, a carne, os vegetais, as frutas e os molhos, sobretudo se em ambiente com pH ácido baixo, representam o meio propício para a multiplicação de Clostridium botulinum e a produção de toxina. Também os alimentos embalados e processados para distribuição comercial, mesmo que selados em sacos de plástico e refrigerados, podem constituir um risco considerável.

Com implicações práticas no que respeita à forma infantil de botulismo, importa referir que em estudos prospectivos se demonstrou efeito benéfico e protector do leite humano, traduzido nomeadamente por manifestações clínicas mais ligeiras do que nos pacientes alimentados com fórmula. Por outro lado, também se verificou que nas crianças amamentadas, a suplementação com ferro antecipa o início da doença.

A doença não confere imunidade.

Manifestações clínicas

Aspectos gerais 

Como foi referido anteriormente, o botulismo traduz-se tipicamente por paralisia flácida descendente e simétrica surgida em horas ou dias. A gravidade pode variar de doente para doente: entre obstipação e hipotonia ligeira, e tetraparésia flácida.

Nos casos de C. baratii, produtor da toxina F, o quadro clínico ocorre em idades muito jovens, com início rápido e maior gravidade; em tal contexto, contudo, a paralisia tem duração inferior à da provocada por C. botulinum.

Em crianças mais velhas, com botulismo clássico ou associado a ferimentos, o início de sintomas obedece a uma sequência: diplopia, visão turva, ptose, xerostomia, disfagia, disfonia, disartria e reflexo córneo diminuído.

De referir que a assimetria dos sinais, o carácter ascendente e a ausência de atingimento cervical e facial afastam a hipótese de botulismo.

Botulismo alimentar

Em cerca de 30% dos casos o doente começa com náuseas, vómitos ou diarreia cerca de 12-36 horas após a ingestão de alimentos contaminados; contudo, estes sintomas poderão surgir tão precocemente como às duas horas ou, tardiamente, ao oitavo dia. Na fase seguinte surge obstipação e sintomas motores e anticolinérgicos, iniciando-se pelos nervos cranianos: diplopia, disartria, disfagia e disfonia. A visão é afectada, tornando-se “nebulosa” por alteração da acomodação, surgindo também secura bucal e ocular paralelamente a debilidade muscular/paralisia flácida descendente rapidamente progressiva, retenção urinária e fecal, assim como hipotensão ortostática. O paciente está apirético, excepto se houver outra infecção secundária, mais frequentemente, pneumonia.

Os raros casos provocados pela colonização por C. butyricum cursam com distensão abdominal, podendo conduzir ao diagnóstico de abdómen agudo.

Botulismo infantil

As manifestações clínicas, correspondendo a 50% de todos os casos, podem surgir pelas 7 a 13 semanas de vida. Geralmente apirética, o primeiro indício na criança é a obstipação. Os pais notam hipoactividade motora, letargia, hipotonia cervicocefálica (que pode passar despercebida se a criança não for colocada em posição vertical), incapacidade para alimentar-se por hiporreflexia da sucção e choro fraco. Em média, nos quatro a cinco dias seguintes surge paralisia flácida descendente, dificuldade respiratória e sintomas anticolinérgicos.

O exame objectivo ocular – de grande importância para o diagnóstico – evidencia, em 50%-80% dos casos, ptose palpebral, oftalmoplegia e pupilas hiporreactivas. Nalguns casos o reflexo pupilar pode manter-se intacto até estádios avançados.

Esta forma clínica pode evoluir de forma fulminante, conduzindo a morte súbita.

Pode ocorrer paragem respiratória súbita por acumulação de secreções não deglutidas e paralisia da musculatura faríngea. Poderá surgir febre, geralmente provocada por complicação, como infecção bacteriana secundária, em geral pneumonia de aspiração.

Salienta-se que nos casos menos graves os sinais de botulismo são subtis e poderão não ser diagnosticados.

Botulismo associado a ferimentos

Difere do botulismo alimentar pela ausência de sintomas gastrintestinais e período de incubação superior ao das restantes formas clínicas (4-14 dias). Inicialmente foram descritos casos no contexto de feridas perfurantes, abcessos subcutâneos ou infecções de tecidos profundos. Ultimamente, têm sido descritos como consequência de abrasões, lacerações, incisões cirúrgicas e até fracturas expostas. A febre pode estar presente, sendo que os sinais de infecção poderão estar ausentes.

Diagnóstico

Como com qualquer tipo de patologia, uma anamnese criteriosa seguida de exame físico completo são fundamentais.

Admitida a hipótese clínica de botulismo, na base de suspeita fundamentada, importa obter a confirmação laboratorial definitiva, o que requer métodos especializados e morosos (inoculação da neurotoxina em ratinhos).

Outros métodos de confirmação incluem a demonstração da presença da toxina no soro do doente, ou dos esporos em alimentos, material de feridas, fluidos ou fezes.

A emissão da toxina nas fezes pode durar meses, em especial em lactentes.

Dado que o microrganismo C. botulinum não faz parte da microbiota intestinal na espécie humana, o seu isolamento nas fezes pode considerar-se patognomónico.

O electromiograma mostra padrão característico, mas não é justificado por ser doloroso e eventualmente não conclusivo.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial faz-se com outras formas de fraqueza muscular com a síndroma de Guillain-Barré (que é ascendente), paralisia por picada de carraça (a avaliar pela história clínica), doenças metabólicas (em que há vómitos, hipoglicémia e acidose), hipotiroidismo (de evolução mais lenta), a Mistenia gravis (limitada habitualmente a ptose palpebral intermitente), a doença de Werdnig-Hoffman (que respeita os pares cranianos), o enfarte cerebral (localizado), a síndroma de Miller-Fisher, a poliomielite, a intoxicação por metais pesados, por organofosforados e por mariscos.

Há determinados exames complementares com utilidade no diagnóstico diferencial com outras causas de paralisia.

O líquido cefalorraquidiano é normal no botulismo, ao invés do que acontece noutro tipo de patologia do SNC. Na síndroma de Guillain-Barré é muitas vezes normal no início da doença.

Exames de imagem do cérebro, medula espinhal e tórax podem mostrar sinais de hemorragia, inflamação ou neoplasia.

O teste com cloreto de edrofónio reverte por curto período de tempo a paralisia em doentes com Miastenia gravis e em alguns com botulismo.

A inspecção da pele e do couro cabeludo pode revelar uma carraça.

No caso de suspeita de intoxicação por organofosforados, esta deve ser rapidamente confirmada pela premência do uso do antídoto.

Prognóstico

O botulismo poderá requerer internamento hospitalar durante 4 a 8 semanas. A taxa de mortalidade é cerca de 1% a 8%. Nas formas graves poderão surgir sequelas neurológicas. Parece haver maior incidência de estrabismo nas crianças não tratadas.

Nos tipos de botulismo alimentar ou associado a ferimentos, quanto menor a idade, melhor o prognóstico. De salientar que há casos descritos de fadiga crónica e de fraqueza muscular após um ano do diagnóstico.

Nas formas ligeiras a recuperação é total.

Tratamento

O tratamento de qualquer tipo de botulismo implica as seguintes medidas:

Suporte respiratório, nutricional, hidroelectrolítico e cuidados de enfermagem. Em cerca de 50% dos casos de botulismo infantil é necessária a assistência ventilatória/entubação orotraqueal, muitas vezes realizada de forma antecipada e profiláctica nas seguintes situações: reflexo da tosse diminuído e obstrução da via aérea com a acumulação de secreções.

A alimentação deve ser administrada por sonda nasogástrica ou nasojejunal até recuperação da força muscular e da coordenação necessárias à amamentação ou leite por tetina. O aleitamento materno deve ser mantido nas crianças com botulismo.

Deve promover-se o estado de hidratação e usar laxantes como a lactulose para melhorar os sintomas de obstipação.

Em pacientes com < 1 ano de idade: Antitoxina através de administração precoce (sem esperar pelo diagnóstico definitivo) de imunoglobulina humana específica intravenosa /IGIV (BabyBIG®), numa dose única de 50-100 mg/kg para neutralização da neurotoxina livre. Especialmente indicada na forma clínica de botulismo infantil causada pelas toxinas A ou B, os estudos mostram que esta abordagem reduz a gravidade, a duração e a mortalidade da doença. A referida imunoglobulina, com um custo de 45.000 dólares, não se encontra aprovada para uso na Europa. Em caso de necessidade deve ser importada dos EUA (California Department of Health Services): http://www.infantbotulism.org/contact/index.php).

Em pacientes com > 1 ano de idade ou no tipo de botulismo aerossolizado:

Antitoxina equina heptavalente (A-G), disponível nos EUA através dos CDC.

Notas importantes:

    • O uso de antibióticos não está recomendado no BI pelo risco de lise bacteriana no intestino com libertação e absorção de grandes quantidades de neurotoxina. Mais precisamente, há a salientar que os aminoglicosídeos, provocando bloqueio neuromuscular, estão contraindicados por agravamento da parésia.
    • É fundamental evitar o uso de sedativos ou depressores do SNC a fim de manter o impulso respiratório central eficaz.

Prevenção

No botulismo alimentar, a forma mais eficaz consiste no cumprimento das medidas de segurança alimentar e na sua divulgação junto dos agentes responsáveis, bem como na evicção dos alimentos considerados suspeitos. Nos casos de confecção e armazenamento em meio doméstico, os alimentos devem ser aquecidos, pelo menos a 85ºC durante mais de 5 minutos.

No BI, o único factor sobre o qual se pode intervir diz respeito à evicção do consumo de mel em crianças abaixo de um ano idade, uma vez que a inalação de esporos do solo ou poeira nem sempre é passível de prevenção.

No botulismo associado a ferimentos, a melhor prevenção é a evicção do uso de drogas ilícitas injectáveis e o tratamento precoce e adequado das feridas traumáticas com lavagem, desbridamento cirúrgico e insituição de antibioticoterapia adequada.

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Definição e importância do problema

A borreliose de Lyme, ou doença de Lyme, uma zoonose descrita pela primeira vez em 1975, é uma perturbação inflamatória multissistémica causada pela resposta do sistema imunitário à infecção por um grupo de espiroquetas – Borrelia burgdorferi sensu latu –; trata-se de bactérias Gram-negativas de forma cilíndrica espiralada, fazendo-se a transmissão por picada dum artrópode infectado – a carraça.

Nos EUA, particularmente nalguns estados, constitui a zoonose mais frequente, com mais de 30.000 casos declarados anualmente. Na Europa, a doença é mais comum no norte e região central, evidenciando características clínicas ligeiramente diferentes.

Epidemiologia

O nome da doença corresponde ao nome duma comunidade de Connecticut nos EUA (Lyme) onde foi pela primeira vez descrita. Ulteriormente foi identificada em mais de 50 países; na Europa verifica-se maior prevalência na Alemanha, Áustria, Eslovénia e Suécia.

Existem algumas áreas endémicas onde a incidência anual da doença oscila entre 20 a 130 casos/100.000 habitantes admitindo-se que seja uma doença subdiagnosticada. Pode afectar indivíduos de qualquer idade mas, em cerca de 25% dos casos, atinge crianças abaixo dos 15 anos. No nosso país é uma doença de notificação obrigatória. Entre 2010-2013 foram declarados 24 casos, 2 dos quais na faixa etária entre 5 e 14 anos.

A doença apresenta-se com maior incidência em dois períodos de idade: 5-10 anos e 35-55 anos, sendo que no primeiro grupo a doença é mais prevalente no sexo masculino, devendo-se provavelmente a maior prática de actividades ao ar livre por rapazes.

Quanto aos reservatórios naturais da doença, eles são múltiplos: ratos do campo, ungulados selvagens (raposa, javali), ou domésticos (cabra, vaca) e cães. A carraça, vector da doença para o homem, é mais pequena do que a carraça comum do cão, encontrando-se com maior frequência em animais selvagens do que em animais domésticos.

A maioria dos casos de doença ocorre entre Abril e Outubro, estando esta sazonalidade relacionada com o ciclo de vida do vector artrópode. O risco de transmissão do agente B. burgdorferi a partir da carraça infectada relaciona-se directamente com a duração da picada; ou seja, são necessárias mais de 24 horas de contacto do artrópode com o ser humano, considerando-se que o risco infeccioso é elevado a partir das 36-48 horas de duração do mesmo.

O risco associa-se ainda ao estado em que se encontra a carraça – larvar, ninfa ou forma adulta -, sendo a ninfa o principal vector da doença.

Não se encontrou relação directa entre doença de Lyme na gravidez e o aparecimento de defeitos congénitos no feto, nem está provado que o leite materno transmita o microrganismo.

Etiopatogénese

Os agentes em causa – Borrelia burgdorferi sensu latu possuem dupla membrana (externa e interna) e flagelos inseridos na membrana interna.

Foram descritas três proteínas major na membrana externa (designadas respectivamente OspA, OspB e OspC) e uma proteína flagelar designada 41 kDa, inserida na membrana interna. Estas proteínas, com pesos moleculares diversos, têm papel importante na resposta imune.

As diferenças quanto à estrutura molecular das diferentes espécies estão associadas a diferenças quanto a manifestações clínicas na Europa e Estados Unidos (por ex. frequência mais elevada de casos de radiculoneurite na Europa e de artrite nos Estados Unidos.

Na América do Norte, Borrelia burgdorferi sensu strictu é a única espécie causadora de doença.

Na Europa, são cinco as espécies responsáveis pela doença: Borrelia afzelli, Borrelia garinii, Borrelia burgdorferi, Borrelia spielmanii e Borrelia bavariensis, sendo as primeiras duas as mais prevalentes. Na Ásia, a espécie Borrelia garinii é a mais comum.

A bactéria pode ser isolada a partir do sangue, pele, líquor e líquido sinovial de doentes infectados, bem como a nível do intestino do vector – a carraça do género Ixodes.

O I. scapularis e I. pacificus são prevalentes nos EUA, o I. ricinus na Europa e o I. persulcatus na Ásia.

O alvo inicial da infecção causada pela B. burgdorferi é a pele, onde o espiroqueta pode ser depositado pela saliva ou pelo material fecal da carraça. Após um período de incubação de 3 a 31 dias, neste local da pele surge eritema cutâneo característico adiante descrito. Contudo, o espiroqueta pode ser injectado na corrente sanguínea através da saliva da carraça, atingindo vários tecidos e órgãos, aderindo às células, onde pode permanecer por longos períodos de tempo após a infecção inicial. Esta permanência explica os sintomas tardios.

Os espiroquetas não produzem toxinas. O aparecimento de sintomas, quer na fase precoce disseminada, quer na fase tardia, está directamente relacionado com os danos teciduais originados a partir da resposta imunológica desencadeada pela estimulação de mediadores da inflamação, como o factor de necrose tumoral (TNF), interferão-gama (IFN-δ), factor transformador de crescimento (TGF) e interleucinas (IL-1, IL-6, IL-8, IL-10).

Um dos aspectos do mecanismo de resposta imunológica a determinadas espécies de espiroqueta é a desactivação do complemento. Salienta-se também o recrutamento de macrófagos e neutrófilos para eliminar o espiroqueta.

Admite-se que o desenvolvimento de sintomas refractários da doença esteja relacionado com uma base imunogenética, sendo os indivíduos portadores dos genótipos HLA-DR2, DR3 e DR4 mais predispostos.

As alterações histológicas secundárias à agressão microbiana a doença de Lyme caracterizam-se por lesões inflamatórias contendo linfócitos, macrófagos e plasmócitos. Estes infiltrados inflamatórios podem ser observados na pele ou em qualquer dos órgãos atingidos, como o miocárdio ou o SNC. Também podem coexistir fenómenos de vasculite, o que sugere a presença do microrganismo na parede ou em redor dos pequenos vasos sanguíneos.

Manifestações clínicas

No que respeita às manifestações clínicas, consideram-se três estádios ou formas de apresentação: precoce (localizada e disseminada) e doença tardia e persistente.

Doença precoce localizada

No local da picada (entre 3 e 30 dias após a mesma) verifica-se uma lesão eritematosa macular ou papular (única).

Esta lesão, localizada, tem a forma de coroa circular (contorno redondo), aumenta de dimensão expandindo-se concentricamente, em dias ou semanas, podendo atingir um diâmetro entre 5 e 20 cm; tipicamente exibe, então, de fora para dentro, um aspecto em alvo com três zonas: bordo eritematoso em “anel”, zona intermédia mais clara, e pequena zona central concêntrica eritematosa rósea/eritematosa com tonalidade semelhante à do bordo externo circular. Por vezes a lesão, de contormo circular, exibe interiormente mais do que um anel circular de rubi, separado por aneis “pálidos”, isto é, de rubor menos acentuado ou com o aspecto de pele de cor normal.

O bordo externo “em anel” é habitualmente plano mas, por vezes, pode ser proeminente e endurecido. Raramente, existem vesículas ou zonas necróticas ao nível da pequena área circular central eritematosa.

Ao toque, a lesão aparenta temperatura mais elevada, sendo ocasionalmente pruriginosa ou dolorosa. Pode surgir em qualquer parte do corpo. As crianças mais pequenas são mais atingidas na cabeça e pescoço, enquanto as maiores, nas extremidades. (Figura 1)

A este tipo de lesão cutânea com expansão periférica e apagamento central é dado o nome de eritema migratório (eritema migrans), o qual evolui durante alguns dias, podendo persistir durante duas ou três semanas, regredindo posteriormente de forma gradual.

Esta forma clínica pode ser acompanhada de febre, mialgia, artralgia e cefaleia.

Como nota importante, salienta-se que em cerca de 1/3 dos doentes não há antecedentes precisos de picada, pelo que é essencial a suspeita clínica.

Doença precoce generalizada

Esta forma clínica, a mais frequente, caracteriza-se por lesões cutâneas múltiplas de eritema migrans atrás descrito, habitualmente de menores dimensões. Surge cerca de 3 a 12 semanas após a inoculação da bactéria a partir do vector artrópode.

A disseminação das lesões de eritema migrans corresponde à disseminação hematogénica do microrganismo.

Regra geral, está presente sintomatologia sistémica de maior intensidade em relação à doença localizada, como febre, cefaleias, artralgia e mialgia.

As manifestações neurológicas, nomeadamente de meningite asséptica, ocorrem em cerca de 8% dos casos, podendo coexistir com edema da papila e paralisia facial. Esta última, relativamente frequente na criança, persiste cerca de 2 a 8 semanas, e pode constituir a manifestação inicial e, por vezes, única, desta forma da doença de Lyme; regride na maioria dos casos.

FIGURA 1. Mácula circular em forma de alvo com tendência para ir aumentando de dimensões com a evolução, como que expandindo-se; neste caso, rubor acentuado na periferia, em “coroa” periférica e zona central mais “pálida”. (Arquivo pessoal do editor – JMVA)

Embora as alterações citoquímicas do LCR sejam semelhantes às encontradas na meningite vírica, em cerca de 90% das crianças com doença de Lyme verifica-se associação a neuropatia doutros pares cranianos para além do VIIº atrás referido; contudo, o curso da meningite da doença de Lyme é mais arrastado.

O compromisso cardíaco, raro na criança, traduz-se por graus variáveis de bloqueio auriculoventricular, miocardite, pericardite ou disfunção ventricular esquerda.

Como nota final, cumpre referir que, perante quadro de paralisia facial, a doença de Lyme deve ser equacionada, mesmo na ausência de outras manifestações.

Doença tardia

Esta forma clínica (classicamente associada a intervalo entre picada e início de sintomatologia > 2 meses) caracteriza-se pelo aparecimento de episódios recorrentes de artrite. Trata-se de artrite pauciarticular, envolvendo as grandes articulações, sendo o joelho atingido em cerca de 90% dos casos: são notórios edema e dor (não tão intensa como na artrite bacteriana) e sensação de calor sem rubor.

As manifestações de artrite podem ocorrer sem história inicial de doença, nomeadamente sem antecedentes de eritema migrans (ver atrás). Se a doença não for tratada, as manifestações de artrite podem regredir em semanas, voltando a surgir ulteriormente e a atingir progressivamente outras articulações; esta forma clínica recorrente surge em 50% dos casos não tratados.

Notas importantes: a)- embora o microrganismo B. burgdorferi tenha sido isolado de abortos, fetos mortos e nados-vivos com anomalias congénitas, nas respectivas placentas não foram detectados sinais de inflamação; de acordo com alguns patologistas, se existir doença de Lyme congénita, ela será muito rara; b)- B. burgdorferi não se transmite através do leite materno.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se no antecedente de picada de carraça com manifestações clínicas compatíveis, requerendo-se, no entanto, confirmação microbiológica ou serológica em todas as formas da doença.

A avaliação laboratorial global é pouco informativa. A velocidade de sedimentação elevada, o valor normal de leucócitos ou discretamente elevado, bem como o aumento moderado das aminotransferases séricas, não são orientadores do diagnóstico.

Quanto ao estudo serológico, importa salientar que este apenas deve ser realizado nas seguintes circunstâncias:

  • doente viajante ou residente em zona endémica de doença de Lyme;
  • factor de risco de exposição a picada;
  • sintomas compatíveis com estádio disseminado da doença.

Não está indicado estudo serológico nos casos de:

  •  eritema migrans como manifestação única;
  •  doentes assintomáticos em áreas endémicas.

Os anticorpos específicos IgM após infecção aguda com B. bugdorferi são detectáveis em geral 3-4 semanas após a infecção aguda com valor máximo cerca das 6-8 semanas, diminuindo depois (ou seja, na fase de aparecimento do eritema migrans não é ainda possível detectar anticorpos contra B. burgdorferi na maioria dos doentes).

Por outro lado, pode verificar-se elevação do valor de IgM durante tempo mais prolongado apesar do tratamento antimicrobiano.

Os anticorpos específicos IgG aparecem em geral pelas 6-8 semanas após início da infecção, atingindo valor máximo ao cabo de 4-6 meses, mantendo-se elevados indefinidamente; assim, como não desaparecem por completo após cura da doença, não têm utilidade para confirmar o sucesso terapêutico.

Nalguns casos de tratamento antimicrobiano muito precoce, poderá ser anulada a resposta com formação de anticorpos.

As técnicas mais sensíveis e específicas para detecção de anticorpos específicos incluem a imunofluorescência e o método ELISA; este último é responsável por maior número de falsos positivos devido à reacção cruzada com anticorpos para outros espiroquetas, varicela, mononucleose, bem como em casos de lúpus eritematoso sistémico. Nos casos de positividade de qualquer destas provas, a confirmação serológica deve ser realizada pela técnica Western-Blot.

Contudo, resultados de estudos recentes comprovam que, a partir de um determinado cut-off (> 3,0), o método ELISA tem um valor preditivo positivo muito elevado e dispensa o Western-Blot. Em estudo encontram-se outros testes, nomeadamente o VisE C6, em associação ou alternativa aos testes serológicos anteriores.

Quanto à confirmação microbiológica, nalguns laboratórios procede-se ao estudo molecular por PCR, cuja sensibilidade é baixa pelo facto de a concentração de bactérias ser baixa e associada a muitos falsos positivos.

Através de exames culturais, o isolamento de B. burgdorferi a partir do sangue, pele, líquor e líquido sinovial é um processo moroso e dispendioso (e por vezes invasivo), exigindo meios de cultura especiais como o de Barbour-Stoenner-Kelly e tempo superior a 4 semanas para que haja crescimento bacteriano; por outro lado, a percentagem de isolamento do agente em tais circunstâncias é baixa.

De salientar que o crescimento dos microrganismos Borrelia em cultura é extremamente lento, exigindo, para tal, meios especiais. Como se torna lógico depreender, tanto as provas serológicas como o exame cultural implicam a disponibilidade de laboratórios especializados.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas da doença de Lyme, exceptuando no que respeita ao eritema migrans na sua forma típica, são inespecíficas. A forma mono ou pauci-articular de artrite poderá levantar a suspeita, quer de artrite séptica aguda, quer doutras causas de artrite tais como artrite reumatóide juvenil ou artrite pós-estreptocócica.

Por outro lado, a paralisia facial devida a doença de Lyme não se distingue da paralisia de Bell, assim como a meningite de Lyme não se distingue da meningite por enterovírus.

Considerando o quadro morfológico cutâneo de eritema migrans, há que salientar que, por vezes, o mesmo poderá ser confundido inicialmente com eczema numular, granuloma anular, manifestação cutânea no local de picada de insecto em geral, tinha ou celulite.

Tratamento

Na doença precoce localizada, a doxiciclina PO na dose de 4 mg/kg/dia (máximo 200 mg/dia) de 12/12 horas durante 14 a 21 dias é o antimicrobiano de escolha para crianças com idade superior a 8 anos.

Nas crianças com idade inferior a 8 anos está indicada a amoxicilina PO na dose de 50 mg/kg/dia (máximo 1,5 g/dia) de 8/8 horas durante 14-21 dias.

Nos casos de alergia à penicilina, constituem alternativas a cefuroxima axetil (PO) na dose de 30-40 mg/kg/dia (máximo 1 g/dia), em duas doses.

Na doença precoce disseminada e na doença tardia, com eritema migrans múltiplo, paralisia facial isolada (ou paralisia de outros nervos cranianos), ou artrite não complicada, recomenda-se o mesmo regime terapêutico aplicável à doença localizada, entre 14 a 21 dias. Nos casos de paralisia dos nervos cranianos os corticóides não deverão ser utilizados.

Na cardite, meningite ou encefalite, a antibioticoterapia (com a duração de 10 a 28 dias) deverá ser IV com:

  • ceftriaxona (50-75mg/kg/dia, máximo 2 g/dia).

Nos casos de artrite recorrente ou persistente (para além de 2 meses) aconselha-se duração de 28 dias e eventualmente segundo curso terapêutico.

Notas importantes:

    • a resposta ao tratamento poderá ser demorada persistindo sinais e sintomas durante várias semanas;
    • existe risco de fotossensibilidade em doentes durante tratamento com doxiciclina;
    • nalguns doentes (até 15%) verifica-se reacção de Jarisch-Herxheimer após início do tratamento (febre, sudação, e mialgias).

Prognóstico

Nas crianças com doença de Lyme tratada, o prognóstico é excelente.

De salientar que, com a regressão dos sinais de eritema migrans após tratamento precoce, não se verifica, em geral, o desenvolvimento de fases ulteriores da doença (evolução para doença tardia). (ver atrás)

Quer nos casos clínicos que cursam com meningite, quer nos casos de artrite, a resolução clínica é em geral completa e sem sequelas se o tratamento for adequado.

Prevenção

A medida preventiva mais eficaz implica o uso de vestuário adequado aquando da permanência em áreas endémicas.

Os repelentes de insectos, como o DEET, produzem efeito temporário; e em doses elevadas podem provocar toxicidade para a criança. As permetrinas matam o vector, devendo ser aplicadas somente à superfície da roupa.

O banho ajuda à remoção de prováveis vectores. Medidas ambientais, como o uso de acaricidas em zonas endémicas, poderão ter igualmente algum efeito protector.

Como a maioria das pessoas reconhece a presença da carraça, esta será removida nas primeiras 36 horas de adesão, ou seja, antes de haver risco elevado de transmissão da bactéria (com pinça ou, na falta dela, por extracção manual/dedos em pinça, na vertical, capturando-a sob a roupa, pela região cefálica).

De acordo com um estudo realizado numa zona endémica demonstrou-se que, após picada de carraça, uma dose única profiláctica de doxiciclina PO 200 mg preveniu a doença de Lyme em 87% de casos. Contudo, este estudo decorreu em adultos, pelo que continua a não recomendar-se o uso de antibióticos profilácticos em crianças..

Actualmente, não existe vacina disponível.

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Definição e importância do problema

A febre recorrente é uma doença infecciosa pouco comum, caracterizada por episódios recorrentes de febre. A mesma é causada por espiroquetas do género Borrelia, os quais se transmitem à espécie humana por dois artrópodes-vectores distintos, respectivamente: o piolho Pediculus humanus e a carraça da espécie Ornithodoros erraticus.

Trata-se duma doença de distribuição mundial, salientando-se o aparecimento de epidemias na África Oriental. A doença em lactentes é responsável por cerca de 5% do total de casos.

Aspectos epidemiológicos

A febre recorrente epidémica é causada pelo agente Borrelia recurrentis; foram descritas epidemias na costa oriental de África, designadamente Sudão e Etiópia.

A febre recorrente endémica é causada por cerca de 15 espécies de Borrelia; as mais comuns são B. hermsii e B. turicatae, prevalentes na parte ocidental dos EUA, B. dugesi no México e América Central, B. hispanica em Espanha, e B. persica na Ásia.

Estas espécies de Borrelia (recurrentis) são distintas das associadas a outras doenças, nomeadamente à doença de Lyme.

Uma característica particular destes germes bacterianos é a contínua mutação de genes determinando grande variação de antigénios ao longo do tempo. Assim, o agente Borrelia isolado num primeiro episódio febril será antigenicamente diferente dos agentes isolados em episódios subsequentes, o que explica a natureza cíclica da infecção.

Etiopatogénese

A febre recorrente epidémica é transmitida ao homem pelo piolho Pediculus humanus, que ingere o espiroqueta ao alimentar-se do sangue de um doente. Ao ser esmagado pelo homem, os fluidos do piolho contaminam o local da picada.

Por outro lado, feridas da pele decorrentes do efeito traumático de lesões de coceira permitem a entrada em circulação do espiroqueta.

Esta infecção está associada a precárias condições de higiene e saneamento. Actualmente é mais frequente na Etiópia, Somália e Eritreia, tendo sido associada aos desastres sociais e guerra naquela região do globo.

A febre recorrente endémica é transmitida ao homem por carraças do género Ornithodoros, infectadas a partir de roedores selvagens. A saliva do artrópode que pica o homem permite a entrada de Borrelia na circulação sanguínea. Salienta-se que nos abrigos de montanha de parques naturais existem condições propícias para contrair a infecção.

Durante os episódios febris, os espiroquetas, entrando na corrente sanguínea, promovem o desenvolvimento de anticorpos específicos IgM e IgG, os quais actuando contra determinadas espécies antigénicas, contribuem para a “depuração” de determinadas variantes, restando contudo incólumes outras variantes de espécies que poderão proliferar e originar ulteriormente outros episódios.

Ou seja, durante a fase de remissão os espiroquetas Borrelia podem permanecer na corrente sanguínea, podendo originar novos episódios em função do número remanescente. A eliminação dos referidos microrganismos dependerá da efectividade do tratamento.

Salienta-se que os microrganismos podem ser sequestrados, fagocitados e sofrendo lise, no fígado, baço, sistema nervoso central, e/ou medula óssea.

Manifestações clínicas

Após um período de incubação médio de 7 dias (2-18 dias), verifica-se o aparecimento súbito de febre alta com calafrio, sudorese, cefaleias, mialgias, fraqueza muscular e artralgias.

O episódio inicial febril termina ao fim de 4 a 7 dias com um quadro agudo marcado por diaforese, hipotermia, hipotensão, bradicárdia e fraqueza muscular profunda.

De acordo com o que foi referido antes, nos doentes sem tratamento a febre poderá surgir de novo ao fim de uma semana com manifestações de síndroma gripal.

Poderão ocorrer cerca de 10 episódios de febre; todavia os episódios sintomáticos tornam-se progressivamente mais espaçados e mais moderados. Ou seja, verifica-se um aumento gradual dos períodos de remissão.

As picadas, quer da carraça, quer do piolho, são assintomáticas.

É comum surgir exantema macular fugaz no tronco, podendo generalizar-se ou tornar-se petequial. O exame objectivo poderá evidenciar, também, hepatosplenomegália.

Poderão também surgir trombocitopénia, icterícia, iridociclite, pneumonia, meningite ou miocardite.

Sinais de discrasia hemorrágica são comuns na febre epidémica, mas não na endémica.

Diagnóstico

Apesar de a história epidemiológica ser extremamente valiosa, levantando forte suspeita, torna-se fundamental proceder à identificação de Borrelia no sangue durante o episódio febril: a observação ao microscópio do esfregaço de sangue periférico corado pelos métodos de Wright e Giemsa permite, assim, o diagnóstico.

O diagnóstico também pode ser realizado por imunofluorescência indirecta.

O estudo molecular, atilizando a PCR é igualmente útil.

Salienta-se que o estudo serológico está fortemente limitado pela grande variabilidade antigénica a que atrás se fez menção. Por outro lado, salienta-se que existe reacção serológica cruzada com outros espiroquetas, designadamente com Borrelia burgdorferi, agente da doença de Lyme.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas da febre recorrente podem ser sobreponíveis a outras doenças tais como malária, riquetsioses, brucelose, febre tifóide, tularémia, vírus da dengue, hepatite vírica ou leptospirose, pelo que a epidemiologia e a história clínica devem ser devidamente valorizadas.

Tratamento

Os objectivos essenciais do tratamento são eliminar os espiroquetas do sangue e prevenir ou controlar a reacção de Jarisch-Herxheimer resultante da destruição maciça de microrganismos.

Existe uma larga gama de antibióticos eficazes.

O tratamento da febre recorrente, epidémica ou endémica, consiste na administração de eritromicina PO 50 mg/kg/dia, 4 vezes por dia, durante 10 dias, em crianças pequenas. Acima dos 8 anos, pode considerar-se ainda a tetraciclina PO (500 mg 4 vezes por dia) ou doxiciclina PO (100 mg 2 vezes por dia), durante 10 dias.

Aspecto importante da antibioticoterapia é a possibilidade de ocorrência da já referida reacção de Jarisch-Herxheimer (J-H), associada a níveis elevados de TNF-alfa, IL-6 e IL-8.

Por isso, é recomendável que se mantenha linha IV com soro fisiológico para eventual tratamento do choque anafiláctico na eventualidade de surgir a reacção. Está em investigação o tratamento da reacção de J-H com anticorpos anti-TNF-alfa.

Prognóstico

Com tratamento adequado em regime hospitalar, a mortalidade em doentes com febre recorrente é < 2%. A febre recorrente epidémica sem tratamento pode comportar mortalidade elevada, entre 10% a 70% dos casos.

Prevenção

A prevenção faz-se através da erradicação dos vectores. A melhoria dos cuidados de higiene pessoal é essencial para a prevenção da febre recorrente epidémica. Quanto à febre recorrente endémica, o uso de roupa adequada, de repelentes e a desinfestação dos abrigos de montanha reduz o número de pessoas infectadas.

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Definição e importância do problema

A leptospirose é uma zoonose sistémica aguda e febril com espectro clínico muito variável, provocada por um grupo de espiroquetas, móveis e aeróbios, do género Leptospira, o qual possui espécies com mais de 300 serótipos de virulência variável.

Na Europa, os serótipos mais comuns são L. icterohaemorrhagiae, L. canicola, L. pomona, L. hebdomadis e L. ballum. A Leptospira biflexa engloba mais de 60 serótipos não patogénicos. A correlação dos serótipos referidos com síndromas específicas é impossível dada a variedade da patologia que pode ser produzida por cada serótipo.

De distribuição universal, é a zoonose mais frequente. Contudo, a sua distribuição geográfica é muito variável, a qual depende, sobretudo, da maior ou menor abundância de vectores e do nível sanitário das populações.

Aspectos epidemiológicos

Está descrita variação sazonal na frequência de leptospirose. Com efeito, precipitação de chuvas e inundações, facilitando a acumulação de água contaminada, podem dar origem a surtos epidémicos.

A doença é cerca de 10 vezes mais prevalente em zonas tropicais do que em climas temperados e em ambientes pobres, sem saneamento.

A leptospirose é uma doença de notificação obrigatória. Em Portugal foram declarados 124 casos entre 2010-2013, dos quais apenas um corresponde a idade inferior a 15 anos.

O melhor conhecimento da epidemiologia da leptospirose e a introdução de antibióticos determinaram que praticamente tenha desaparecido de zonas, onde há décadas, era uma doença frequente e grave.

Etiopatogénese

Em geral, o ser humano contamina-se a partir do contacto com água, lama ou alimentos contaminados. A porta de entrada é geralmente a pele ou as mucosas com lesões (oral, ocular, esofágica e nasofaríngea).

O contágio directo através do sangue, por contacto com tecidos ou órgãos de animais infectados (por exemplo em acidentes de laboratório), é mais raro. O leite materno pode igualmente transmitir a doença.

Foram também descritos casos de transmissão vertical, por ingestão ou inalação.

O agente Leptospira infecta um grande número de animais, quer domésticos, quer selvagens, sendo o rato a principal fonte de infecção humana. Nestes animais (reservatórios), o serótipo determina o quadro clínico, variando entre doença fatal e portador crónico, assintomático.

A bactéria é excretada na urina, líquido amniótico e placenta dos animais infectados, permanecendo viável na água e solo durante meses nos climas temperados. Especificando, L. icterohaemorrhagiae é eliminado pela urina do rato, L. canicola pela urina do cão e L. pomona pela urina do porco.

O microrganismo, entrando em circulação, pode atingir todos os órgãos. As manifestações clínicas são secundárias a lesões em estruturas microvasculares (vasculite generalizada com lesão das células endoteliais dos pequenos vasos) produzindo, designadamente, aumento da permeabilidade capilar, microcoagulação local, edema, hipóxia-isquémia em órgãos-alvo e hipovolémia.

Posteriormente, ao mesmo tempo que os microrganismos desaparecem no sangue e LCR, aparecem anticorpos circulantes IgM, verificando-se deposição de Leptospiras em diversos órgãos, assim como de imunocomplexos (designadamente no rim/túbulos renais e humor aquoso/globo ocular, conduzindo a lesão funcional em consequência de infiltrados inflamatórios e necrose. Este quadro anatomofisiológico poderá persistir durante várias semanas.

Manifestações clínicas

O espectro de manifestações clínicas da leptospirose na espécie humana varia entre:

  • infecção assintomática ou doença ligeira (90% dos casos); e
  • doença grave (10% dos casos), caracterizada por disfunção multiorgânica, com letalidade > 5%.

Após um período de incubação médio de 7 a 15 dias (podendo variar entre 2 e 30 dias), a doença evolui em duas fases, respectivamente: a inicial (septicémica/com leptospirémia) e a tardia, imune ou de localização (com leptospirúria). Trata-se, pois, duma doença bifásica.

Assim, a fase inicial, septicémica, com duração de 3-7 dias, caracteriza-se por manifestações de doença febril aguda com sintomatologia inespecífica: febre alta, calafrio, cefaleias, mialgias intensas dos gémeos e região lombar (80% dos casos), náuseas, vómitos, injecção conjuntival sem exsudado (30%-40%), exantema no tronco, adenomegálias generalizadas e hepatosplenomegália.

Na fase seguinte (imune), com duração até várias semanas, atenuam-se os sintomas iniciais, diminui a febre e passam a ser notórios sinais e sintomas de localização traduzidos sobretudo por meningite asséptica e nefrite intersticial mais frequentemente, e por síndroma de Guillain-Barré, neuropatia, colecistite e pneumopatia, menos frequentemente. Apesar da presença de anticorpos circulantes, Leptospiras podem persistir nos tecidos e órgãos, designadamente, rim, urina e humor aquoso. Pode também surgir uveíte com evolução arrastada até cerca de 6 a 12 meses.

Em cerca de 10% dos casos (raramente em idade pediátrica), a leptospirose, para além da sintomatologia descrita antes, pode apresentar-se com icterícia, e sinais de insuficiência hepática e renal graves, logo após o 4º-6º dia de evolução, constituindo a chamada Forma clínica ictérica ou Síndroma de Weil (em geral provocada por L. icterohaemorrhagiae). A sintomatologia mais relevante é constituída, sobretudo, por pneumonite hemorrágica e colapso cardiocirculatório.

A infecção da grávida por Leptospira pode provocar abortamento e infecção congénita.

Diagnóstico

Deve suspeitar-se de leptospirose perante uma doença febril aguda, surgindo em doentes que vivem em zonas de prevalência de roedores, nomeadamente ratos, sem saneamento básico, com história de contacto directo com animais, águas ou solos contaminados.

O agente Leptospira pode ser isolado no sangue ou líquor durante a fase septicémica, através de técnicas e meios de cultura especiais.

Na fase imune, que corresponde à excreção pela urina, pode ser pesquisado através de exame directo – microscopia em campo escuro, ou de exame cultural. Também podem ser utilizadas técnicas ELISA e técnica molecular/PCR em tempo real para identificação do microrganismo em tecidos infectados ou fluidos orgânicos.

A bactéria também se pode detectar em tecidos por meio de técnicas imuno-histoquímicas.

As provas serológicas em sangue colhido 7 dias após o início da doença evidenciam subida do título de anticorpos (3 a 4 vezes) a partir do 12º dia, com títulos máximos pela 2ª a 3ª semana, em casos da doença. Títulos baixos poderão persistir durante anos. Em cerca de 10% dos casos não é possível detectar aglutininas, possivelmente pelo facto de os anti-soros disponíveis não identificarem todos os serótipos

Tendo em conta a repercussão multissistémica da doença, em função da sintomatologia, poderão ser realizados diversos exames fundamentados em diversas circunstâncias:

  • diátese hemorrágica: hemograma com plaquetas, estudo da coagulação;
  • icterícia: bilirrubinémia, transaminases, gamaglutamil transpeptidase, fosfatase alcalina;
  • disfunção renal: análise sumária de urina, creatininémia e ionograma sérico;
  • disfunção cardíaca: CPK e CPK-MB, ECG, ECO-CG e radiografia do tórax.

Diagnóstico diferencial

Nas formas anictéricas o diagnóstico diferencial faz-se com: infecções víricas e com meningite linfocitária. Nas formas ictéricas e septicémia, com hepatites víricas, colecistite aguda, malária, riquetsioses e febre tifóide.

Tratamento

Leptospira é sensível a múltiplos antibióticos sem que se tenham verificado resistências.

A antibioticoterapia é tanto mais eficaz quanto mais precocemente se iniciar, inclusivamente na primeira semana após início dos sintomas.

A penicilina G cristalina por via IV, 25.000-50.000 UI/kg/dia dividida em doses de 4/4 horas (máximo 12 milhões UI/dia), durante 7 a 10 dias é o antibiótico de eleição para os doentes com necessidade de internamento.

Na doença moderada poderá ser administrada a doxiciclina 2 mg/kg/dia, de 12/12 horas, (dose máxima 200 mg/dia); o tratamento deve durar também 7-10 dias. A azitromicina, também eficaz, é uma alternativa à doxiciclina.

O tratamento de suporte inclui vigilância do equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base, eventual terapia intensiva, incluindo oxigenoterapia, correcção da hipovolémia e hipotensão, e prevenção da hemorragia digestiva com ranitidina ou omeprazol.

Prognóstico

A mortalidade causada por Leptospira varia entre cerca de 1% nas formas ligeiras, e superior a 40% nos casos graves, sendo que as infecções por L. icterohemorrhagiae e L. copenhageni estão associadas a doença mais grave. Tal deve-se essencialmente à síndroma hemorrágica (equimoses, petéquias, hemorragia pulmonar, hemorragia gastrintestinal).

Todavia, realça-se que na maioria dos casos a leptospirose é uma doença autolimitada.

Prevenção

A prevenção tem como principal objectivo controlar as pragas de roedores e proceder à imunização dos animais reservatórios da doença (com vacina inactivada que, no entanto, não previne a leptospirúria); portanto, os animais vacinados poderão ainda ser fontes de infecção humana. Não existe actualmente disponível vacina humana.

Alguns autores preconizam como medida profiláctica transitória, para quem se desloca em viagens a zonas de alta endemia, doxiciclina PO em dose de 200 mg semanal.

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Sistematização e importância do problema

Os agentes Mycoplasma, um género de bactérias sem parede celular, são os mais pequenos procariotas conhecidos que causam doença na espécie humana. Pelas dimensões (50-250 nm), aproximam-se mais dos vírus do que das bactérias. Trata-se de Gram-negativos com forma muito variável, dependentes da ligação a células do hospedeiro para obtenção de precursores essenciais como nucleótidos, ácidos gordos, esteróis e aminoácidos. Possuem um único genoma e ADN circular, de dupla cadeia (5×108 daltons). A ausência de parede celular rígida reflecte-se no aparecimento de morfologia variável ou pleiomorfismo (cocobacilar, filamentosa ramificada, etc.). Possuem, contudo, uma membrana citoplásmica trilaminar.

Das 16 espécies de Mycoplasma isoladas da espécie humana, M. pneumoniae é o principal agente de infecções respiratórias em crianças de idade escolar, adolescentes e jovens adultos.

Ureaplasma constitui outro género que se integra nos Mycoplasmas genitais.

1. INFECÇÕES POR Mycoplasma pneumoniae

Aspectos epidemiológicos

As infecções por este microrganismo são endémicas nas grandes comunidades, podendo ocorrer surtos epidémicos em ciclos cada 3-7 anos. Esporádicas nas pequenas comunidades, podem ocorrer surtos epidémicos irregularmente no tempo.

Trata-se de patologia pouco frequente antes dos 3 anos, de expressão clínica tanto mais ligeira quanto mais baixa a idade, e pico de incidência na idade escolar. De acordo com diversos estudos epidemiológicos, explica entre 7%-40% das pneumonias adquiridas na comunidade dos 3-15 anos.

Com um período de incubação ~ 1-3 semanas, ocorre através da contaminação por gotículas respiratórias, sobretudo em comunidades ou instituições de grande concentração de pessoas, em ambiente fechado.

Etiopatogénese

As células do epitélio respiratório ciliado são o alvo dos microrganismos às quais estes se ligam através de junção de glicoproteína ou glicolípido sulfatado, penetrando nelas depois, e em cujo citoplasma sobrevivem; como consequência verifica-se citólise (em parte explicável por toxina ou pela produção de peróxido de hidrogénio), disfunção ciliar e, ulteriormente, destacamento ou “descamação” celular.

Acrescenta-se que o agente pode actuar sobre células de outros aparelhos e sistemas, determinando também sintomatologia decorrente de tal acção, cujo mecanismo não está completamente esclarecido.

Como efeito da acção (complexa) do microrganismo verifica-se activação policlonal dos linfócitos B e de células T CD4+, o que por sua vez amplifica a resposta imune com libertação de várias citocinas pró-inflamatórias e anti-inflamatórias, interferões vários, TNF-alfa e outras citocinas. Como resposta do hospedeiro agredido surgem diversas reacções de imunidade celular e anticorpos que o protegem ou contribuem para a cura.

De salientar que situações crónicas de hipogamaglobulinémia, drepanocitose ou síndromas de imunodeficiência primária predispõem a infecções respiratórias de maior gravidade. Todavia, M. pneumoniae não se comporta como agente oportunista em doentes com síndroma de imunodeficiência adquirida.

M. pneumoniae pode ser detectado por reacção da polimerase em cadeia (PCR) em diversos locais extra tracto respiratório, tais como sangue, líquido pleural, LCR e líquido sinovial. Este facto aponta para a possibilidade de o efeito ao nível de diversos territórios se relacionar, mais com acção directa da invasão do agente, do que com mecanismo imunológico.

Manifestações clínicas

No que respeita às manifestações do tracto respiratório, este tópico foi abordado na Parte XIV, capítulo sobre Pneumonia, cuja Figura 1 mostra o respectivo padrão de pneumonia.

Quanto às manifestações extrapulmonares (que podem surgir antes, durante, ou depois das manifestações respiratórias e, inclusivamente, em doentes sem manifestações respiratórias, e outrora consideradas complicações), pode proceder-se à seguinte sistematização:

  • gastrintestinais (gastrenterite, hepatite colestática, pancreatite, gastropatia hipertrófica com perda de proteínas, elevação das transaminases, etc.);
  • génito-urinárias (nefropatia por IgA, glomerulonefrite aguda, nefropatia tubulointersticial, insuficiênca renal, etc.);
  • dermatológicas (eritema nodoso, exantema maculopapuloso, urticária, síndroma de Stevens Johnson, eritema multiforme, etc.);
  • músculo-esqueléticas (artromialgias, miosite aguda, síndroma símile febre reumática “sem cardite”, etc.);
  • cardiovasculares (pericardite, miocardite, endocardite, etc.);
  • oculares (conjuntivite, uveíte, retinite, iridociclite, etc.);
  • neurológicas (meningite asséptica, meningoencefalite, paralisia de pares cranianos, ataxia cerebelosa, síndroma de Guillain-Barré, etc.); quanto à encefalite ocorrendo dentro de 5 dias após início dos sintomas prodrómicos, a mesma poderá ser devida a invasão directa do SNC; se ocorrer para além de 7 dias após início daqueles, tratar-se-á provavelmente de encefalite por mecanismo autoimune;
  • hematológicas (crioaglutininas IgM, trombocitopénia, púrpura trombocitopénica trombótica, CIVD, anemia aplástica, anemia hemolítica com prova de Coombs positiva e reticulocitose cerca de 2-3 semanas após início da doença – a hemólise grave, rara, pode ser documentada por determinação do título de hemaglutininas frias (> 1/512).

Diagnóstico

  1. Na forma clássica de infecção do tracto respiratório, o diagnóstico etiológico pode fazer-se através do exame cultural de secreções da faringe ou expectoração, método que não permite resposta rápida (~ 1 semana). A sensibilidade desta prova é baixa, estando em desuso.
  2. Considerando a infecção por M. pneumoniae na perspectiva global (formas respiratórias e extrarrespiratórias), cumpre salientar as seguintes provas:
    • provas serológicas, sendo que a mais popular e exequível é a da fixação do complemento; título (elevado) de anticorpos IgG anti- M. pneumoniae com subida 4 vezes no período entre 10 dias e 3 semanas é sugestivo da respectiva infecção; a detecção de IgM específicas por imunofluorescência não distingue entre infecção aguda e infecção recente anterior;
    • determinação de anticorpos IgM/crioaglutininas dirigidos contra antigénio I dos eritrócitos, em desuso, por sensibilidade e especificidade baixas;
    • técnicas de PCR a partir de exsudado da naso ou orofaringe e doutros produtos biológicos (ver atrás) é a prova de eleição, rápida, com sensibilidade e especificidade entre 80% e 100% sempre que se necessita de confirmação microbiológica.

Tratamento

Para além de medidas gerais descritas antes relativamente às formas clínicas do tracto respiratório, cabe referir que a medida mais efectiva para a erradicação de M. pneumoniae é a antibioticoterapia com claritromicina ou azitromicina. Verificando-se surtos em instituições, é recomendada a profilaxia dos contactos com azitromicina, designadamente nas situações predisponentes atrás descritas (hipogamaglobulinémia, drepanocitose, etc.).

Contudo, nas formas extrarrespiratórias, apenas parece ser consensual entre especialistas antibioticoterapia nos casos de artrite, doentes imunodeprimidos, compromisso cardíaco ou hemólise. Nas formas neurológicas, tendo em conta a importância do mecanismo imunológico, a antibioticoterapia é controversa, embora se admita o papel do macrólido como imunomodulador; nalguns centros propõe-se a utilização de antibioticoterapia com levofloxacina, corticóides e de imunoglobulina intravenosa.

 Complicações

As complicações neurológicas (que surgem, em média 10 dias após doença respiratória) incluem meningoencefalite, mielite transversa, meningite asséptica, ataxia cerebelosa, paralisia de Bell, surdez, encefalite desmielinizante aguda e síndroma de Guillain-Barré; contudo, podem surgir sem doença respiratória prévia em cerca de 20% dos casos.

Prognóstico

As infecções fatais são raras. Com o desenvolvimento da tecnologia da imagem (TAC de alta resolução) demonstrou-se numa baixa percentagem de crianças pequenas com antecedentes de doença pulmonar por M. pneumoniae: espessamento da parede brônquica, alterações da perfusão pulmonar e bronquiectasias. Em geral há recuperação completa com excepção no respeitante às sequelas de encefalite.

2. INFECÇÕES por OUTRAS ESPÉCIES de Mycoplasma

As três espécies M. hominis, M. genitalium e Ureaplasma urealyticum são patogénios humanos urogenitais; colonizam o tracto genital feminino, podendo originar corioamnionite, colonização dos RN e infecção perinatal. Estão muitas vezes associadas a infecções sexualmente transmitidas, tais como uretrite não gonocócica.

Duas outras espécies de Mycoplasma genitais (M. fermentans e M. penetrans) podem ser isoladas de secreções, quer do tracto respiratório, quer do tracto genital, com maior frequência em doentes com infecção por VIH.

Os restantes membros são provavelmente saprófitas, excepto em circunstâncias invulgares, como é o caso de M. salivarium, associado a artrite na hipogamaglobulinémia.

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Importância do problema

Os agentes Clamídia são bactérias Gram-negativas intracelulares obrigatórias, da família Chlamydiaceae, com capacidade para infectar uma grande variedade de células. O nome Chlamydia deriva da palavra grega “chlamys”, representando a capa ou manto com que se cobriam os homens na Grécia Antiga. Em comparação com tal facto histórico, os cientistas, desde o início, verificaram a existência de “agentes patogénicos” que infectavam células, envolvendo, como uma manta ou capa, o respectivo núcleo.

As referidas bactérias incluem apenas o género Chlamydia, com nove espécies. As três espécies com acção patogénica humana são: Chlamydia trachomatis (causando largo espectro de doenças, com relevância para as infecções do tracto genital, constitui o principal agente patogénico das doenças sexualmente transmissíveis em todo o mundo); Chlamydia pneumoniae – também designada Chlamydophila pneumoniae (provocando doença respiratória); e Chlamydia psittaci (causa da psitacose ou ornitose, considerada uma zoonose com significativo impacte em saúde pública).

De acordo com alguns estudos, C. abortus e C. felis poderão raramente originar infecções em seres humanos. C. pecorum causa doença apenas em porcos, ovelhas e gado, em geral.

A imunidade à infecção por estes agentes microbianos é de fraca duração, razão pela qual são comuns as reinfecções ou a persistência de infecções, particularmente, oculares e genitais.

Ciclo de vida nas células epiteliais

Os agentes Clamídia, evidenciando um ciclo de vida (complexo) nas células epiteliais que se descreve muito resumidamente, apresentam-se com duas formas morfológicas características: – a forma intracelular (ou corpo reticular -CR), representando a forma replicativa; e – a forma intracelular (ou corpo elementar – CE), representando as partículas infecciosas. Estas últimas ligam-se às células do hospedeiro pela interacção de proteínas da membrana externa com os receptores do hospedeiro e, após endocitose, expressam proteínas que impedem a sua fusão com os lisossomas. Posteriormente, diferenciam-se em CR, replicam-se por fissão binária e rediferenciam-se novamente em CE, libertados da célula por lise ou extrusão.

Este capítulo incide fundamentalmente sobre as infecções provocados pelos três agentes mais relevantes. As principais medidas preventivas e o tratamento são abordados no fim, em conjunto, após descrição das três entidades clínicas respectivas.

1. CHLAMYDIA TRACHOMATIS

Etiopatogénese

O agente Chlamydia trachomatis subdivide-se em serótipos associados a largo espectro de doenças. Os serótipos A, B, Ba e C são os dominantes no tracoma; os serótipos de D a K causam infecções do tracto genital, recto, faringe e conjuntiva; e, os serótipos L1, L2 e L3 são responsáveis pelo linfogranuloma venéreo (LGV).

De salientar que, enquanto as infecções pelos serótipos A a K estão, habitualmente, confinadas à mucosa, os serótipos L podem atravessar o epitélio, disseminar-se por via linfática e causar doença sistémica.

Após um período de incubação médio de 10 dias (variável entre 7 e 21 dias), surge uma variedade de manifestações clínicas resultante da resposta inflamatória do hospedeiro e consequente destruição tecidual. Nas infecções oculares e genitais, os plasmócitos estão presentes em número elevado, enquanto na pneumonia predominam eosinófilos e neutrófilos.

Importância do problema e aspectos epidemiológicos

O agente Chlamydia trachomatis é o patogénio mais comum de transmissão sexual nos países industrializados. Na sua maioria, as infecções por C. trachomatis nos seres humanos são assintomáticas e constituem um reservatório da infecção; sendo a causa de 30% a 50% de casos de uretrite não gonocócica no sexo masculino, é frequente a coinfecção com o gonococo.

Como foi referido antes, é causa das infecções bacterianas sexualmente transmissíveis (IST) mais prevalentes em todo o mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou, em 2012, cerca de 131 milhões de novos casos entre os 15 e 49 anos, e 128 milhões de prevalentes. A prevalência é maior no sexo feminino (4,2% vs 2,7%), sobretudo, na faixa etária dos 15 aos 19 anos.

Na Europa verifica-se um aumento da incidência destas infecções desde 2004, tendo-se registado 384.555 casos em 2013 nos 26 estados membros do European Center for Disease Prevention and Control (ECDC). Como na maioria dos casos as infecções são assintomáticas, a verdadeira incidência poderá ser subestimada. Dois terços (67%) de todos os casos reportados ocorreram em jovens adolescentes entre os 15 e 24 anos.

O aumento do número de casos poderá ser explicado por maior número de rastreios, melhoria da sensibilidade dos testes de diagnóstico, aumento da notificação dos casos detectados, bem como pelo aumento real da incidência das IST.

Na gravidez, a taxa de infecção cervical por Chlamydia trachomatis varia de 1 a 37%, com mais elevada incidência em idades inferiores a 25 anos. O risco de o recém-nascido de mãe com infecção activa ser infectado é de 50%-75%. Na grávida com infecção activa, a transmissão perinatal de Chlamydia trachomatis ao feto na maioria das vezes tem lugar durante o parto por via vaginal, independentemente de haver ou não ruptura de membranas. Entre os lactentes expostos, cerca de 20%-50% desenvolvem conjuntivite e, 10%-20%, pneumonia.

A infecção por Chlamydia trachomatis adquirida por via perinatal pode persistir meses a anos. Este facto poderá dificultar mais tarde o diagnóstico de possível abuso sexual dada a positividade persistente do agente em amostras vaginais e rectais.

O tracoma, endémico em 42 países de vários continentes (África, América Central e do Sul, Ásia, Austrália e Médio Oriente), é responsável por cegueira ou diminuição da acuidade visual em cerca de 1,9 milhões de sujeitos. O continente mais afectado é o africano.

Manifestações clínicas

Conjuntivite

A infecção por Chlamydia trachomatis constitui a principal causa de conjuntivite neonatal e a principal manifestação neonatal de infecção por Chlamydia em países em que não é feito o rastreio sistemático e tratamento de IST na gravidez, como Portugal.

O período de incubação é 5-14 dias após o parto, ou inferior, se houver ruptura prematura de membranas. Pelo menos 50% dos recém-nascidos com conjuntivite por Chlamydia trachomatis apresentam também infecção nasofaríngea.

O espectro clínico de tal conjuntivite (difícil de distinguir de conjuntivites com outra etiologia) é amplo: pode ocorrer injecção conjuntival ligeira com exsudado mucoso ou, na forma grave, exsudado purulento copioso, quemose e pseudomembranas. O eritema e edema palpebral são frequentes e em dois terços dos casos a infecção é bilateral.

O diagnóstico diferencial com oftalmia gonocócica é difícil pelas semelhanças do tempo de incubação e achados clínicos, mas imprescindível. Tal oftalmia é mais frequente na ausência de vigilância da gravidez, de doença gonocócica prévia, doutras IST ou de história de abuso de drogas ilícitas.

Na maioria dos casos verifica-se resolução espontânea nos primeiros meses de vida, sem repercussão na função visual. Ao contrário do que acontece no tracoma, é rara a evolução para a cronicidade com formação de úlceras da córnea, cicatrizes e tecido de granulação (pannus)

Pneumonia

Aproximadamente, 70% dos recém-nascidos infectados apresentam resultados positivos das culturas da nasofaringe para Chlamydia trachomatis; em cerca de 30% há forte probabilidade de surgimento de pneumonia entre as 4 e 12 semanas de vida.

Clinicamente, a pneumonia cursa com coriza, tosse, taquipneia, apneia nos lactentes mais pequenos e, na auscultação pulmonar, com fervores e ausência de sibilos. Habitualmente não existe febre.

Os achados da radiografia torácica são inespecíficos: sinais de hiperinsuflação, infiltrados bilaterais intersticiais, reticulonodulares; contudo, pode verificar-se normalidade.

Os achados laboratoriais incluem frequentemente eosinofilia periférica (> 300 células/mm3), hipoxemia arterial e aumento das imunoglobulinas séricas. Estes achados, difíceis de distinguir dos associados à pneumonia vírica, implicam a necessidade de valorizar a história clínica. A presença de leucorreia materna durante a gravidez, a existência de conjuntivite anterior às duas semanas de vida e a eosinofilia devem levar à suspeita do diagnóstico de clamidose.

Dum modo geral, a pneumonia é autolimitada, não requerendo internamento.

No que respeita ao prognóstico da pneumonia, importa relatar a possibilidade de surgir mais tarde, em crianças, adolescentes e adultos, alterações na função respiratória, incluindo sibilância recorrente e asma.

Tracoma

O tracoma, endémico no Médio Oriente e Sueste Asiático, é a causa mais importante de cegueira evitável em todo o mundo. A infecção, ocorrendo em idades precoces, pode persistir por vários anos. A mesma é disseminada através de secreções infectadas, pelo que a falta de condições de saneamento e a presença de vectores (moscas) constituem factores de risco de transmissão da mesma.

O quadro clínico corresponde a ceratoconjuntivite folicular crónica (infiltrado de linfócitos, monócitos, plasmócitos e macrófagos), com neovascularização da córnea, secundária a infecção recorrente ou crónica. A cicatrização conjuntival, por vezes exacerbada por sobreinfecção bacteriana, pode levar a entrópio (inversão do bordo palpebral) que, por sua vez, resulta num agravamento do trauma da córnea pela acção traumática dos cílios palpebrais, com ulceração, cicatrização, opacificação e cegueira (entre 1%-15% dos pacientes) após a doença activa.

A OMS sugere um sistema de classificação simples para as manifestações clínicas do tracoma: 1) tracoma folicular, definido pela presença de pelos 5 folículos na zona central da conjuntiva tarsal superior, indicativos de doença activa; 2) inflamação intensa tracomatosa, caracterizada pelo espessamento inflamatório pronunciado e hipertrofia papilar da conjuntiva tarsal superior; 3) cicatrização tracomatosa, implicando a presença de linhas ou bandas brancas na conjuntiva tarsal, correspondente a doença passada; 4) triquíase, caracterizada pela inversão de, pelo menos, um folículo piloso em contacto com o globo ocular; 5) opacidade da córnea.

Infecções genitais

Este tipo de infecções pode ser sistematizado do seguinte modo: vaginite nas mulheres pré-púberes, uretrite e epididimite no sexo masculino, e uretrite, cervicite, endometrite, salpingite e peri-hepatite (síndroma de Fitz-Hugh-Curtis) nas mulheres pós-púberes. Nestas últimas, a infecção pode originar doença inflamatória pélvica, gravidez ectópica ou esterilidade.

A infecção por Chlamydia trachomatis tem um pico de incidência no sexo feminino, entre os 15 e 19 anos. A discrepância entre sexos parece estar relacionada com uma susceptibilidade aumentada da mulher a este agente e pelo rastreio mais eficaz nas raparigas adolescentes. A reinfecção é muito comum, ocorrendo em cerca de 40% dos casos dentro de 9 meses, habitualmente por parceiros não tratados.

A uretrite por C. trachomatis no sexo masculino origina um exsudado predominantemente mucóide, enquanto na causada por gonococo o exsudado é purulento.

Linfogranuloma venéreo

O LGV é uma IST causada pelos serótipos L1 a L3 de Chlamydia trachomatis, endémicos em regiões tropicais e subtropicais. Recentemente tem-se assistido ao ressurgimento desta infecção na Europa e EUA no contexto de homossexualidade masculina.

Sucintamente, manifesta-se por infecção linfática invasiva com lesão ulcerosa inicial nos genitais e linfadenopatias inguinais dolorosas, supuradas e unilaterais. Pode surgir infecção anorrectal ou proctocolite.

Pormenorizando, importa distinguir três estádios definidos:

  1. infecção local – pápula, pústula ou úlcera genital ou rectal não dolorosa, pequena, que não deixa cicatriz (estádio primário);
  2. disseminação regional (estádio secundário) e;
  3. lesão tecidual com regressão ou possíveis sequelas (estádio terciário).

Cerca de 2 a 6 semanas após a lesão do estádio primário, surge linfadenopatia aguda inguinal unilateral e dolorosa, designada por “bubão”. Se a lesão do estádio primário for rectal, pode ocorrer proctite aguda hemorrágica ou dor abdominal ou lombar devido ao envolvimento dos gânglios retroperitoneais e pélvicos.

O estádio secundário é habitualmente acompanhado de sintomatologia sistémica, como febre, mialgias e cefaleias. Em 1/3 dos casos associados a surgimento de bubões poderá verificar-se drenagem espontânea; nos restantes, involução lenta.

Na maioria dos casos há regressão da doença no estádio terciário. Contudo, numa minoria, surge infecção anorrectal persistente, desenvolvendo-se uma inflamação crónica e fibrose, com diversas consequências: úlceras genitais crónicas, fístulas, estenoses rectais e elefantíase genital.

Diagnóstico

O método diagnóstico de referência da infecção por Chlamydia trachomatis em lactentes e crianças é o exame cultural. Segundo o CDC, pretende-se o isolamento do microrganismo em cultura de tecidos e confirmação ulterior através da identificação, por microscopia, das inclusões citoplasmáticas típicas. As amostras, que podem ser conjuntivais, nasofaríngeas, vaginais ou rectais, devem conter epitélio colunar da mucosa em vez de exsudado.

A citologia é utilizada principalmente para o diagnóstico de conjuntivite. As inclusões citoplasmáticas de Chlamydia trachomatis contêm glicogénio, o qual pode ser identificado com a coloração Giemsa nos raspados conjuntivais em 90% das crianças com conjuntivite. Nas situações de tracoma, tal identificação é viável apenas em 10% a 30% dos casos.

A técnica de amplificação de ácidos nucleicos (TAAN) é um instrumento com sensibilidade e especificidade elevadas para o diagnóstico de infecções genitais.

Existem actualmente três testes disponíveis e aprovados pela FDA: polymerase chain reaction, transcription-mediated amplification e strand displacement amplification. A sua utilização em crianças ainda não se encontra aprovada, embora os dados disponíveis sugiram que existe equivalência com o exame cultural em amostras conjuntivais e nasofaríngeas de crianças com conjuntivite.

Outro método de diagnóstico, com sensibilidade e especificidade elevadas, e que pode ser utilizado em amostras de esfregaços conjuntivais ou faríngeos, é constituído pelos testes directos com anticorpos fluorescentes utilizando anticorpos monoclonais conjugados com fluoresceína para identificação de antigénios.

O estudo serológico classicamente tem indicação em estudos populacionais.
Contudo, é útil no diagnóstico do LGV e da pneumonia neonatal. De salientar que a técnica serológica de referência é a microimunofluorescência (MIF). Um título de IgM igual ou > 1:32 considera-se com valor diagnóstico de pneumonia neonatal.

2. CHLAMYDIA (CHLAMYDOPHILA) PNEUMONIAE

Importância do problema e aspectos epidemiológicos

Chlamydia (Chlamydophila) pneumoniae é uma causa frequente de infecção respiratória na idade escolar e na adultícia jovem (tal como o agente Mycoplasma). Transmite-se de pessoa para pessoa através de secreções infectadas do tracto respiratório, sendo desconhecido qualquer reservatório animal. A infecção inicial ocorre mais frequentemente entre os 5 e 15 anos de idade, sendo a recorrência comum.

Podendo eliminar-se até cerca de 1 ano após a infecção, verifica-se uma frequência de colonização na idade escolar da ordem de 5% a 25%, e uma incidência muito aproximada de 100 casos por 100.000 habitantes.

Com um período de incubação médio de 21 dias, de acordo com diversos estudos, a infecção respiratória por C. pneumoniae tem sido associada a hiperreactividade brônquica.

Diversos estudos têm sugerido um papel importante do agente C. pneumoniae na patogénese da doença cardiovascular aterosclerótica com base numa prevalência elevada de anticorpos anti-C. pneumoniae nos doentes com tal patologia. Contudo, não está provado cientificamente o benefício da utilização de antibioticoterapia, quer quanto à redução da placa aterosclerótica, quer quanto à redução significativa de eventos coronários.

Manifestações clínicas

As infecções por C. pneumoniae são em geral assintomáticas ou associadas a manifestações ligeiras. Incluem uma variedade de nosologias, mais frequentemente, pneumonia e bronquite e, menos frequentemente, faringite, laringite, rinossinusite e otite média aguda.

Caracterizada por febre, mal-estar, cefaleia, tosse e faringite, o curso da doença é prolongado, podendo a tosse persistir até 2 a 6 semanas, e apresentar uma evolução bifásica.

O quadro clínico de pneumonia, com roncos, fervores e sibilâncias, é semelhante ao da infecção por Mycoplasma. Nos casos de crianças com doença das células falciformes, poderá surgir forma grave acompanhada de síndroma torácica aguda. A radiografia torácica, inespecífica, pode evidenciar sinais de infiltrado hilífugo bilateral.

Como manifestações extrapulmonares têm sido descritas as seguintes situações: eritema nodoso, irite, meningoencefalite, síndroma de Guillain-Barré, artrite reactiva e miocardite.

A coinfecção por Streptococcus pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae e vírus respiratórios é frequente.

Diagnóstico

Não existe nenhuma prova completamente confiável para o diagnóstico desta infecção.

O diagnóstico laboratorial específico consiste no seu isolamento em cultura a partir de amostras de secreções obtidas por zaragatoas da nasofaringe posterior; podem também ser utilizadas amostras de expectoração, lavado broncoalveolar ou líquido pleural.

As TAAN baseadas na reacção em cadeia da polimerase (PCR) em tempo real evidenciam sensibilidade e especificidade elevadas. Contudo, na fase actual não estão comercializadas.

O método serológico por microimunofluorescência (MIF) é o mais sensível e específico. Para o diagnóstico de infecção aguda estão definidos os seguintes critérios: um título de IgM igual ou superior a 1:16, ou um aumento 4 vezes do título de IgG.

Na infecção primária:

  • a IgM surge aproximadamente 2 a 3 semanas após o início da infecção e;
  • a IgG não atinge o pico máximo antes das 6 a 8 semanas.

Importa salientar que a terapêutica antimicrobiana precoce poderá suprimir a resposta imunológica.

3. CHLAMYDIA PSITTACI

Importância do problema e aspectos epidemiológicos

Chlamydia psitacci é o agente etiológico da psitacose (ou doença dos papagaios – por afectar os papagaios) e ornitose (doença infecciosa que afecta outras aves como galinhas, pombos, perus, araras, patos).

As aves são, pois, o principal reservatório de Chlamydia psittaci, embora tal microrganismo também possa infectar mamíferos, como ovelhas, cabras, gado e gatos.

Estas clamidoses constituem, assim, um perigo biológico para a saúde humana e uma ameaça económica à indústria avícula.

O período de incubação, variando entre 5 a 14 dias, pode ser mais prolongado.

Trata-se de doenças de distribuição mundial, esporádicas, podendo, contudo, surgir em surtos. A infecção é adquirida habitualmente pela inalação de aerossóis de secreções respiratórias, oculares, ou de fezes ou urina, dos animais infectados.

Os indivíduos com maior risco são trabalhadores em explorações avículas, matadouros de aves e funcionários de lojas de animais. A importação e tráfico ilegal de aves exóticas estão associados a um aumento da incidência porque a infecção, habitualmente no estado latente, é activada por factores de estresse como sobrelotação, subnutrição, transporte ou outras infecções provocadas por outros microrganismos. Pode também ser transmitida a partir de animais assintomáticos, com sintomatologia ligeira ou durante longos períodos após a recuperação da doença. A transmissão entre pessoas não foi demonstrada.

Na idade pediátrica, a infecção é rara. Entre 1990 e 2008 foram reportados ao CDC 756 casos de psitacose, com uma proporção de 9% em idade inferior a 20 anos.

Manifestações clínicas

Esta clamidose (que pode ser assintomática) manifesta-se habitualmente com sinais de infecção respiratória aguda associada a sintomatologia sistémica, de grau variável, incluindo febre, tosse não produtiva, cefaleia, mialgias, calafrios, diarreia, vómitos e hepatomegália.

Através do exame objectivo comprova-se eritema faríngeo, fervores crepitantes ou outras alterações da auscultação pulmonar.

A radiografia do tórax poderá evidenciar sinais de infiltrados exuberantes, em desproporção com os sinais auscultatórios verificados; em tais circunstâncias, o quadro clínico-radiológico é compatível com pneumonia atípica.

Raramente poderão surgir complicações, como eritema nodoso, pericardite, miocardite, endocardite, tromboflebite superficial, hepatite e encefalite.

Em suma, e na prática, o diagnóstico desta clamidose pode ser admitido em face da verificação de febre, cefaleia, mialgias e tosse seca num paciente em contacto com aves.

Diagnóstico

Dado que o exame cultural (do sangue ou de amostras respiratórias – expectoração ou líquido pleural) somente está disponível em laboratórios especializados, o diagnóstico de psitacose/ornitose é estabelecido fundamentalmente com base:

  • em provas serológicas; de preferência, recomenda-se a detecção de anticorpos por MIF, requerendo-se um aumento 4 vezes dos níveis de IgG- idealmente em intervalo de 4-6 semanas-, ou valores de IgM ≥ 32. Em alternativa, a prova de fixação do complemento. De salientar que o tratamento antimicrobiano poderá retardar ou diminuir a resposta imunológica.
  • detecção de ADN de Chlamydia psittaci por PCR.

Tratamento e prevenção das clamidoses descritas

A seguir, são descritas, de modo sucinto e encadeado, as principais bases do tratamento e da prevenção.

Tratamento

No que respeita ao tratamento antimicrobiano, o Quadro 1 integra o esquema a utilizar em cada entidade clínica (referindo-se que existem variantes de actuação descritas na literatura científica): são considerados respectivamente os fármacos de eleição, e as alternativas, estas últimas, designadas antes do nome por “Ou”.

QUADRO 1 – Bases do tratamento antimicrobiano das infecções por Chlamydia.

Notas importantes
A: até aos 45 kg, eritromicina na mesma dose que para a pneumonia do lactente; se mais de 45 kg, mas menos de 8 anos, indicada azitromicina, 1 grama, em dose única.
B: contraindicação na grávida.
C: na gravidez e em menores de 8 anos.
Abreviatura- po: per os
*Relativamente ao tracoma, para além do tratamento antimicrobiano, a OMS preconiza a chamada estratégia denominada SAFE (sigla de Surgery, Antibiotics, Facial cleanliness, Environmental improvements) tendo em vista a sua erradicação. A cirurgia, reservada para os casos de triquíase, é de extrema importância na prevenção da amaurose.
Por outro lado, estando bem estabelecida a relação entre a prevalência de tracoma em determinada área e as respectivas condições de vida dos habitantes, a correcta higiene corporal (designadamente a correcta limpeza da face, com especial realce nas crianças), o acesso a água potável e o saneamento adequado tornam-se imprescindíveis com vista à erradicação desta infecção.

→ C. trachomatis

Conjuntivite do RN e pneumonia do lactente
Eritromicina: 50 mg/kg/dia po, 4 doses, 14 dias,
Ou Azitromicina: 20 mg/kg/dia po, 1 dose, 3 dias (efeito idêntico à eritromicina)
NB- Risco de estenose hipertrófica do piloro em lactentes com < de 6 semanas, tratados com eritromicina.

Tracoma*
Eritromicina ou tetraciclina tópicas, 2 doses/dia, 2 meses, ou 5 dias/mês, 6 meses
Azitromicina: 20 mg/kg/semana em dose única po (máx. 1 g), 3 semanas,
Ou Doxiciclina (se > 8 anos): 4 mg/kg/dia po 2 doses, 40 dias. OMS prefere azitromicina para formas graves

Infecções genitaisA
Doxiciclina (se > 8 anos)B: 4 mg/kg/dia po 2 doses (máx. 200 mg/dia), 7 dias
Azitromicina: 1 g em dose única po,
Ou Eritromicina base: 2 g/dia ou Eritromicina etilsuccinato: 3,2 g/dia po (em 4 doses),
Ou OfloxacinaB: 600 mg/dia em 2 doses ou Levofloxacina: 500 mg/dia po, 7 dias

Na grávida
Azitromicina: 1 g em dose única po,
Amoxicilina: 1,5 g/dia po em 3 doses, 7 dias
Ou Eritromicina base: 2 g/dia po em 4 doses, 7 dias

Linfogranuloma venéreo (LGV)
Doxiciclina: 200 mg/dia po em 2 doses, 21 dias,
Ou Eritromicina base: 2 g/dia po em 4 doses, 21 dias ou Azitromicina: 1 g/semana po, 3 semanas

→ C. pneumoniae
Pneumonia atípica
Eritromicina base ou Eritromicina etilsuccinato: 50 mg/kg/dia po em 4 doses, 14 dias,
Ou Azitromicina: 20 mg/kg/dia, em dose única po, 3 dias
Doxiciclina (se > 8 anos): 2-4 mg/kg/dia po em 2 doses (máx. 200 mg/dia), 10-14 dias
→ C. psittaci
Psitacose
Doxiciclina (se > 8 anos): 4 mg/kg/dia po em 2 doses (máx. 200 mg/dia), (mínimo de 10 dias e até mais 10-14 dias após remissão da febre,
Ou AzitromicinaB ou Eritromicina nos casos de gravidez ou de idade < 8 anos

Medidas preventivas

No que respeita às principais medidas preventivas, dá-se ênfase às que se relacionam com infecções por C. trachomatis e C. psittaci.

C. trachomatis

Relativamente à profilaxia da conjuntivite por C. trachomatis, a OMS recomenda, a todos os recém-nascidos, profilaxia ocular tópica com uma das seguintes opções, escolhidas com base nos padrões de resistência locais: – aplicação tópica em ambos os olhos, imediatamente após o parto de cloridrato de tetraciclina 1%, ou eritromicina 0,5%, ou cloranfenicol 1%, ou solução de iodopovidona 2,5%, ou nitrato de prata 1%; quanto à aplicação tópica dos dois últimos compostos (incluindo iodo e prata, respectivamente), os resultados de diversos estudos demonstram que existe um benefício superior ao risco, de possível desenvolvimento de conjuntivite não-infecciosa.

De referir, contudo, que alguns autores desaconselham profilaxia tópica em RN de mães infectadas.

Quanto à prevenção das infecções genitais no âmbito de população com comportamento de risco, sintetizam-se as seguintes normas gerais:

  • os parceiros sexuais (contacto de parceiro aparentemente saudável com outro doente ou suspeito) devem ser avaliados e tratados em caso de relações dentro do período de 60 dias precedendo o início dos sintomas;
  • havendo contacto de parceiro doente com parceiro saudável, recomenda-se ulteriormente abstenção de relações por período mínimo de 7 dias, quer após regime de tratamento antimicrobiano com dose única de 1 dia, quer após esquema de tratamento diário durante 7 dias;
  • rastreio anual de C. trachomatis (ou com maior frequência em função do grau de comportamento de risco dos parceiros) incidindo designadamente sobre: – adolescentes do sexo feminino, sexualmente activas; – todas as mulheres entre 20-25 anos; – todas as mulheres com > 25 anos com comportamentos de risco.
 C. psittaci

Antes de sistematizar as principais medidas de contenção da clamidíase provocada por esta bactéria (medidas com particularidades, podendo variar em países ou regiões), e incidindo essencialmente sobre pessoas que lidam com aves (por ex. em aviários, na criação e transporte de aves) importa salientar que tal agente, vulnerável ao calor e à maior parte dos desinfectantes e detergentes, é resistente aos ácidos e alcalis:

  • identificação das fontes de infecção, divulgando ulteriormente o facto junto do pessoal exposto;
  • nos actos de compra e venda de aves, assim como na exposição em eventos ou feiras, as mesmas deverão ser isoladas nos 30 a 45 dias anteriores, para vigilância, eventuais análises e/ou tratamento profiláctico, sob tutela do médico-veterinário;
  • higiene rigorosa quanto ao manuseamento de material fecal e comida das aves, evitando contacto directo;
  • formação do pessoal envolvido, com chamada de atenção para sinais de alerta de doença nas aves, tais como exsudado ocular, dejecções diarreicas, défice ponderal, etc.;
  • uso de fato para isolamento e de máscaras, próprios (a clássica máscara cirúrgica é insuficiente) nos casos de contactos com aves doentes com indicação de tratamento, as quais deverão ser isoladas durante 45 dias.

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Nomenclatura e importância do problema

Os agentes Riquétsia são bactérias Gram-negativas intracelulares obrigatórias. A ordem Rickettsiales compreende actualmente duas famílias, a família Rickettsiaceae e a família Anaplasmataceae.

A família Anaplasmataceae engloba os géneros Ehrlichia, Anaplasma, Cowdria, Wolbachia e Neorickettsia.

Por sua vez, a família Rickettsiaceae inclui o género Rickettsia, que se divide em dois grupos: o grupo do tifo, com duas espécies patogénicas para o homem, Rickettsia prowazeki e R. typhi, e o grupo das febres exantemáticas. Actualmente são conhecidas vinte e quatro estirpes de Rickettsia, mas apenas dezassete são responsáveis por doença no Homem.

O impacte mundial destas zoonoses continua a ser considerável devido à sua elevada prevalência em numerosas áreas do globo e à morbilidade a que determinam. Algumas espécies constituem actualmente autênticos paradigmas de agentes patogénicos emergentes. Por outro lado, o interesse geral por este género de microrganismos tem aumentado pela potencial utilização como arma biológica no bioterrorismo.

Etiopatogénese

As Riquétsias crescem livremente no citoplasma das células eucarióticas do hospedeiro (artrópodes ou helmintas), que servem como vectores biológicos para a transmissão ao Homem.

Os referidos agentes microbianos são transmitidos ao Homem por diferentes artrópodes, como piolhos, pulgas, ácaros ou mais frequentemente carraças (ixodídeos).

As Riquétsias do grupo tifo são essencialmente transmitidas:

  • através das fezes do piolho (Pediculus humanus corporis) no caso do tifo epidémico; ou
  • através das fezes da pulga, no caso do tifo murino.

Numa pequena percentagem de casos a transmissão faz-se por contaminação das mucosas (por ex. conjuntiva) e por inalação de aerossóis. O ciclo de vida mantém-se ao infectar espécies de hospedeiros (geralmente mamíferos) e vectores (habitualmente carraças ou pulgas). Com excepção do agente Rickettsia prowazekii, o ser humano constitui um hospedeiro acidental.

Neste capítulo, em obediência à taxonomia actual descrita no início, procede-se à abordagem sucinta das seguintes entidades clínicas:

  1. febres exantemáticas, com excepção da febre escaronodular, riquetsiose com maior expressão no nosso país, onde é endémica;
  2. tifo murino ou endémico;
  3. tifo exantemático epidémico;
  4. erliquiose e anaplasmose.

Cabe salientar que, com excepção das riquetsioses que integram o grupo exantemático, as restantes não estão presentes em Portugal.

Todas as estirpes de Rickettsia têm como alvo as células endoteliais, provocando uma resposta inflamatória por parte do hospedeiro que se manifesta através do aumento de IFN-γ, IFN-α e β que, por sua vez, estimulam a produção de IL-12 e resposta celular T helper tipo 1. As células endoteliais infectadas produzem IL-6, IL-8 e MCP-1.

Esta resposta de fase aguda, que é multifocal, conduz a vasculite disseminada (aumento da permeabilidade vascular, edema, hipovolémia e hipotensão) e a estado procoagulante, com fibrinogénio elevado.

1. FEBRES EXANTEMÁTICAS

Introdução

O grupo das febres exantemáticas, que inclui a espécie R. conorii, engloba a maioria das espécies de riquetsias transmitidas por ixodídeos ou carraças, sendo consideradas patogénicas todas as identificadas em humanos por amplificação de DNA. (Quadro 1)

Todas as riquetsias deste grupo provocam febre, cefaleia e mialgias intensas. Exantema e escara (tache noire) ocorrem na maioria, mas não em todas as riquetsioses do grupo.

A imunofluorescência indirecta (IFA) é a técnica recomendada para o diagnóstico, apesar de existirem outras técnicas para testes serológicos como a ELISA. Contudo, aquela tem a desvantagem de não permitir o diagnóstico em fase aguda de doença e de não identificar a espécie de Rickettsia dentro do mesmo grupo taxonómico.

O tratamento é semelhante para todas e deve ser iniciado imediatamente perante suspeita clínica, após colheita de amostras para diagnóstico, de forma a melhorar o prognóstico.

Quadro 1 – Grupo das Febres Exantemáticas.

Agente Doença Vector
R. rickettsii Febre das Montanhas Rochosas Dermacentor spp., Amblyoma spp., Rhipicephalus spp.
R. conorii sensu stricto (Malish) Febre Botonosa Rhipicephalus spp., Haemaphysalis spp.
Astrakhan fever rickettsia Febre de Astrakan Rhipicephalus punilo
Israeli tick typhus Febre Botonosa de Israel Rhipicephalus spp
R. sibirica Tifo Siberiano Dermacentor spp., Haemaphysalis spp.
R. australis Tifo da carraça de Queensland Ixodes holocyclus
R. honei Febre botonosa das ilhas Flinders Aponoma sp., Ixodes sp.
R. japonica Febre exantemática oriental Haemaphysalis spp., Dermacentor spp.
R. africae Febre da carraça africana
 Amblyomma sp.
R. sibirica monglotimonae Lymphangitis associated rickettsiosis (LAR) Hyalomma asiaticum
R. slovaca TIBOLA, DEBONEL Dermacentor marginatus
R. helvetica Perimiocardite crónica Ixodes ricinus
R. akari Riquetsiose vesicular Liponyssoides sanguineus
R.felis California flea rickettsiosis Ctenocephalides felis

1.1. Febre das Montanhas Rochosas

Aspectos epidemiológicos e etiopatogénese

A febre das Montanhas Rochosas (FMR), que não existe em Portugal, é a riquetsiose mais frequente nos EUA. Está presente também no Canadá e América Central e Sul. Nos EUA, é a segunda doença infecciosa transmitida por vectores, logo a seguir à doença de Lyme. Apresenta uma incidência anual crescente (14,3 casos por cada milhão de pessoas em 2012), sendo mais frequente de Abril a Setembro e em crianças abaixo dos 10 anos de idade.

  1. rickettssi, o agente etiológico, é transmitido por várias espécies de carraças, nomeadamente Dermacentor, Rhipicephalus e Amblyomma. Após inoculação, os microrganismos alcançam o endotélio vascular e invadem-no através da interacção entre os lipopolissacáridos da membrana e proteínas da membrana externa das riquétsias (rOmp), permitindo a entrada nas células endoteliais por endocitose.

Uma vez no interior das células, provocam lise do fagossoma, ficando livres no citosol onde provocam polimerização dos filamentos de actina do citoplasma das células hospedeiras, originando a sua invaginação. Os agentes R. rickettsii disseminam-se posteriormente por via hematogénica e linfática.

O mecanismo pelo qual provocam morte celular a nível dos pequenos vasos não é conhecido: está provavelmente relacionado com a acção da peroxidase lipídica, das proteases e de fosfolipase A.

O exame histológico permite evidenciar infiltrados perivasculares linfocíticos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Após um período de incubação de 3 a 12 dias, surge febre alta, de início súbito, associada a mialgias, cefaleia intensa, náuseas, vómitos e anorexia. Outras manifestações menos frequentes incluem irritabilidade, alteração do estado de consciência, dor abdominal, esplenomegália, hiperémia conjuntival e edema periorbitário.

Em cerca de 80% a 90% dos casos surge exantema entre o 2º e o 4º dias de doença: inicialmente macular, podendo evoluir para papular e para petequial; a evolução é centrípeta, com início nos punhos e tornozelos, incluindo palmas e plantas, expandindo-se depois para o tronco, coxas, braços e face. A doença dura geralmente três semanas, com compromisso habitual dos sistemas nervoso central, cardiovascular, pulmonar e renal.

Nas situações graves pode surgir choque e, rararamente, CIVD. São considerados como principais factores de risco a presença de défice de glucose-6-fosfato desidrogenase e o atraso no início da antibioticoterapia.

O diagnóstico é estabelecido por serologia e/ou por detecção de DNA por polymerase chain-reaction (PCR), no sangue ou em tecido, ou ainda por imunopatologia através de biópsia cutânea.

A serologia por imunofluorescência indirecta (IFI) embora continue a ser o método-padrão de diagnóstico, é um método retrospectivo. Nos primeiros 10-15 dias é frequentemente negativa, não excluindo a hipótese diagnóstica em fase aguda. Contudo, serve para confirmação diagnóstica a posteriori.

Para o diagnóstico será necessário comprovar elevação do título 4 vezes no intervalo de 2-4 semanas a partir da fase aguda, ou título > 64 na convalescença; em qualquer fase, título > 128 corresponde a caso suspeito.

A PCR, apesar de dispendiosa, é altamente sensível e específica, permitindo o diagnóstico rápido, antes da seroconversão. Pode ser efectuada no sangue ou em amostra de tecido de biópsia.

Tratamento

A antibioticoterapia de eleição para a FMR é a doxiciclina PO durante 5-7 dias (2,2 mg/kg/dose em duas doses; máximo 100 mg/dose). Nas formas graves com disfunção multiorgânica está indicado internamento em UCIP e doxiciclina EV.

A taxa de mortalidade é mais elevada em crianças com menos de 4 anos (3%-4%).

Prevenção

As medidas principais consistem em prevenir a infestação de animais pelos vectores nas áreas endémicas, protecção da pele com roupa e repelentes contendo DEET (N-dietil-meta-toluamida) e eventual remoção dos vectores da pele. Não existe vacina disponível.

1.2. Linfangite associada a riquetsioses (LAR)

A LAR é provocada por R. sibirica mongolotimonae, isolada pela primeira vez de uma carraça na Mongólia em 1991. Vários casos de infecção por este agente foram entretanto reconhecidos no sul de França, mas também em Portugal, Espanha, Grécia, Argélia e Egipto (bacia do Mediterrâneo) e África do Sul. É transmitida pelos vectores Hyalomma asiaticum (Mongólia), H. truncatum, H. anatolicum excavatum (Grécia) e Rhipicephalus pusillus (Portugal, Espanha, França).

A doença manifesta-se fundamentalmente por linfadenopatia loco-regional e/ou linfangite; em diversos estudos, os sinais mais frequentemente encontrados, por vezes em associação, são assim sintetizados: adenopatia (50% casos), febre (100%), cefaleia (80%), exantema maculopapular, e escara de inoculação (92%) que pode aparecer em vários locais. Habitualmente trata-se duma situação de mediana gravidade, embora haja casos descritos de doença grave com complicações renais e retinianas.

O diagnóstico etiológico é confirmado por PCR utilizando-se tecido da escara (propiciando maior sensibilidade) e sangue periférico.

O tratamento faz-se com doxiciclina durante 5-7 dias, na dose 2,2 mg/kg/dose de 12/12h nas crianças com ≤ 45 kg ou 100 mg de 12/12 horas também, nas crianças com peso superior.

1.3. Linfadenopatia associada a carraça (TIBOLA) ou Linfadenopatia e escara de necrose associada à carraça Dermatocentor (DEBONEL)

A infecção por Riquétsias R. slovaca, R. raoultii e R. rioja resulta na síndroma de linfadenopatia associada a carraças – Tick-borne lymphadenopathy ou TIBOLA, também reconhecida por Dermacentorborne necrosis-eschar-lymphadenopathy ou DEBONEL. Recentemente foi proposto o acrónimo SENLAT como substituto (scalp eschars and neck lymphadenopathy).

Trata-se duma infeção comum nos países europeus (França, Espanha, Itália, Alemanha, Polónia, Hungria e, mais recentemente, em Portugal), mais frequente nos meses mais frios, de Outubro a Abril, transmitida pelos vectores Dermacentor marginatus e D. reticulatus.

A prevalência de infecção por R. slovaca em Dermatocentor spp é elevada na Europa; atingindo o valor de 41% em Portugal, sendo actualmente a segunda riquetsiose mais frequente depois da febre escaronodular, é mais comum nas crianças e mulheres.

Após inoculação e 5 dias de incubação, surge uma lesão em crosta com exsudado cor de mel no couro cabeludo (68%-100%), no local da mordida, que evolui para uma escara necrosada dias depois, associada a linfadenopatia dolorosa occipital e/ou cervical (74%-100%) e a eritema local. Febre e exantema são pouco frequentes (25% e 5% respectivamente). A escara mantém-se durante um ou dois meses, sendo frequente o desenvolvimento de alopécia no local.

A suspeita diagnóstica (pela epidemiologia e manifestações clínicas) é confirmada por seroconversão e/ou por amplificação de DNA por método PCR (utilizando amostra da escara ou sangue periférico).

O tratamento de escolha é a doxiciclina, conforme esquema prévio.

 1.4. Riquetsiose das pulgas

R. felis foi isolada pela primeira vez em 1992 a partir de pulgas de gatos (Ctenocephalides felis). É mais frequente na América do Sul, México e continente africano.

O quadro clínico é ligeiro e semelhante ao do tifo murino (ver adiante), podendo também cursar com exantema maculopapular no tronco, escara e linfadenopatia regional.

De acordo com resultados de exames laboratoriais verifica-se, tal como nas restantes riquetsioses, leucopénia, trombocitopénia e anemia ligeiras. Pode também surgir hiponatrémia, hipoalbuminémia, aumento das transaminases e disfunção renal.

Apesar de a IFA ser recomendada como método de diagnóstico, os anticorpos para R. felis apresentam reactividade cruzada com os anticorpos de R. rickettsii, R. conorii e R. typhi.

Assim, perante suspeita de riquetsiose, deve ser efectuada IFA e, para ulterior identificação da espécie, deve proceder-se a exames Western-Blott, PCR ou cultura (principalmente em doentes com contacto com pulgas de gatos e sem contacto com ratos).

Para o tratamento utiliza-se a doxiciclina, em esquema já descrito anteriormente.

2. TIFO MURINO OU ENDÉMICO

Definição e etiopatogénese

O tifo endémico é uma infecção causada por R. typhi, mais frequente em países em desenvolvimento e em áreas de elevado agregado populacional com proximidade de contacto com ratos. Estes constituem o principal reservatório, sendo a pulga Xenopsylla cheopsis o vector de transmissão da doença. Contudo, outras espécies de pulgas podem estar envolvidas, como a pulga do gato que pode desempenhar um importante papel no ciclo biológico e na transmissão ao Homem.

Actualmente rara em países desenvolvidos, foi identificada pela última vez em Portugal em 1996, em Porto Santo, em cinco doentes hospitalizados.

O mecanismo desta afecção é semelhante ao descrito para R. rickettsii.

 Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

O período de incubação varia entre 6 a 14 dias. Trata-se duma doença de gravidade moderada na idade pediátrica, caracterizando-se por febre, cefaleia, calafrio e mialgias.

Entre o 4º e 7º dias de doença (em média pelo 6º dia) pode surgir exantema macular, maculopapular, ou papular, petequial, ou ainda, morbiliforme. O exantema atinge sobretudo o tronco e extremidades (evolução centrífuga) sendo raro nas palmas, plantas e face. A presença de escara é rara.

A tríade febre, cefaleia e exantema ocorre em menos de 15% dos doentes, razão pela qual, sendo habitualmente de gravidade ligeira, é facilmente subdiagnosticada podendo confundir-se com síndroma gripal.

Em casos graves pode haver envolvimento do sistema nervoso central (confusão, convulsões, coma), renal (IRA), hepático (icterícia), cardíaco (alterações do ritmo) e pulmonar (derrame pleural, insuficiência respiratória).

Os exames laboratoriais evidenciam frequentemente elevação das transaminases e da LDH, hiponatrémia ligeira e hipocalcémia. Pode também cursar com hipoalbuminémia, leucopénia e trombocitopénia precoce.

O diagnóstico é confirmado por métodos moleculares, através da técnica de PCR, ou por serologia, através de IFI (IgM >1/32 e/ou IgG >1/64 ou seroconversão 4 semanas depois), ou de Western blot.

Tal como no grupo das febres exantemáticas, o tratamento de eleição é a doxiciclina em esquema semelhante durante 7 a 14 dias. O cloranfenicol não é actualmente recomendado por se associar a risco de recorrência.

Geralmente o prognóstico é bom.

3. TIFO EXANTEMÁTICO EPIDÉMICO

Definição e importância do problema

O tifo exantemático epidémico, infecção provocada por R. prowazekii, tem sido responsável por um elevadíssimo número de mortes ao longo da história da Humanidade.

Considerada a partir da II Guerra Mundial como uma doença do passado, tem reemergido desde 1995 com pequenos surtos (Rússia 1997, Peru 1998) e com casos esporádicos (África e França).

O ser humano constitui o reservatório, sendo a doença transmitida pelo piolho Pediculus humanus corporis. Afecta todas as idades, sendo que a pobreza e as más condições de higiene favorecem o aparecimento e disseminação da doença.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Após um período de incubação de 10 a 14 dias, a doença tem um início súbito com febre, arrepios, mialgias, cefaleia intensa.

O exantema, maculopapular aparece entre o 4º e 7º dias de doença, nas axilas e posteriormente tronco, com ulterior evolução para a periferia (centrífugo) e para petequial e hemorrágico. Poupa face, palmas das mãos e plantas dos pés.

A escara de inoculação está ausente. As complicações relacionadas com alteração do SNC eram frequentes na era pré-antibiótica (delírio, letargia, coma, convulsões).

A recorrência da doença (designada por doença de Brill-Zinsser) podendo ocorrer anos mais tarde após a infecção primária, tem carácter benigno.

O diagnóstico é confirmado habitualmente por serologia através de IFA (IgM > 1/32 e/ou IgG > 1/64 ou seroconversão 4 semanas depois), ou de Western blot (mais específico e sensível em fase precoce da doença do que a imunofluorescência indirecta). Pode ainda realizar-se PCR com amostra de sangue (rápido e sensível) e exame cultural.

O tratamento de eleição é também a doxiciclina, mas em dose única, 100-200 mg. Cloranfenicol, fluoroquinolonas e macrólidos não são alternativas.

4. ERLIQUIOSES e ANAPLASMOSES

Introdução

Reportando-nos à primeira alínea deste capítulo, cabe referir que todos os membros da família Anaplasmataceae (Ehrlichia, Anaplasma, Cowdria, Wolbachia e Neorickettsia) são bactérias intracelulares obrigatórias que crescem em vacúolos com origem na membrana celular das células eucarióticas do hospedeiro.

À excepção do género Wolbachia, todas as estirpes têm a capacidade de replicação em hospedeiros vertebrados, sobretudo em células hematopoiéticas.

Tipicamente, os microrganismos Ehrlichia spp infectam células da linhagem leucocitária (monócitos e macrófagos), enquanto Anaplasma spp têm como alvo todas as células hematopoiéticas (eritrócitos, neutrófilos e plaquetas). Destacam-se duas espécies mais frequentemente associadas a doença na espécie humana:

  • a Ehrlichia chaffeensis (Erliquiose humana);
  • a Anaplasma phagocytophilum (Anaplasmose humana granulocítica).

Ao contrário do que acontece nas riquetsioses propriamente ditas, a vasculite é rara, não estando a patogénese completamente esclarecida. Os principais achados anatomopatológicos incluem infiltrados linfo-histiocitários perivasculares, hepatite lobular ligeira, infiltrados de fagócitos mononucleares no baço, e granulomas no fígado e medula óssea. Poderá haver compromisso multiorgânico.

4.1. Erliquiose humana

Definição e epidemiologia

A erliquiose humana é uma infecção provocada pelas espécies do género Ehrlichia: E. chaffeensis, associada à Erliquiose Monocítica (EM); a carraça Amblyomma americanum, rara na Europa e frequente nos EUA, é o vector mais frequente da doença,

Nos EUA a doença apresenta uma incidência crescente, tendo sido verificados 3,2 casos da doença por milhão de pessoas anualmente, entre 2008-2012. Em Portugal, há registos serológicos que apontam para a exposição do homem a E. chaffeensis ou a agentes antigenicamente semelhantes.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Após um período de incubação de 5-10 dias surge, em geral, febre, cefaleia e mialgias; numa minoria, poderão surgir também manifestações graves como hepatite, pneumonia/ARDS, meningite, menigoencefalite ou IRA.

Tipicamente, o exantema de localização variável (macular ou maculopapular, mais comum que o petequial), é menos frequente do que nas riquetsioses propriamente ditas, e mais comum em crianças (67%) do que em adultos.

Os exames laboratoriais evidenciam geralmente leucopénia e trombocitopénia (início pelo 3º dia, nadir pelo 6º dia). Pode haver aumento das transaminases (ALT>AST).

O diagnóstico pode ser confirmado:

  • por visualização directa (detecção de mórulas nos leucócitos do sangue periférico – achado típico mas raro);
  • por detecção molecular de ADN;
  • por serologia (IFI ou Western blot) ou;
  • por cultura.

Habitualmente é estabelecido por serologia (seroconversão ou aumento de 4x nos títulos em duas amostras consecutivas colhidas com um intervalo de 2-3 semanas). Há contudo a referir, que numa fase inicial da infecção, o diagnóstico pode ser efectuado por PCR de sangue periférico ou por isolamento cultural.

A doxiciclina é o tratamento recomendado em primeira linha, durante 5-14 dias segundo esquema habitual, incluindo em crianças com menos de 8 anos (risco baixo de pigmentação dentária com cursos curtos). Em alternativa, pode ser usada rifampicina.

Nas crianças com menos de 5 anos, a taxa de mortalidade é superior à dos adultos (4% vs 1%, respectivamente).

4.2. Anaplasmose granulocítica humana

Definição e epidemiologia

A anaplasmose granulocítica humana (AGH) é provocada por A. phagocytophilum, transmitida por carraças do género Ixodes, identificada em Portugal nas espécies I. ricinus e I. ventalloi. Ocasionalmente, pode ocorrer coinfecção com doença de Lyme, uma vez que o vector é o mesmo.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Esta zoonose manifesta-se habitualmente através de um quadro febril ligeiro, geralmente de prognóstico benigno, acompanhado de sintomatologia inespecífica como arrepios, mal-estar geral, cefaleias e mialgias.

A presença de exantema é rara e habitualmente deve-se a coinfecção por Borrelia burgdoferi (eritema migrans). O exame objectivo habitualmente não revela alterações.

Os exames laboratoriais poderão evidenciar trombocitopénia, leucopénia, aumento das transaminases e/ou hiponatrémia ligeira.

O diagnóstico pode ser confirmado através da visualização de aglomerados de bactérias nos vacúolos citoplasmáticos de granulócitos (achado raro nos doentes Europeus) e/ou por PCR e/ou por serologia, identicamente ao que foi descrito para a erliquiose.

A doxiciclina é o tratamento recomendado, em esquema semelhante ao da erliquiose. Em alternativa, pode ser usada rifampicina.

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Definição e importância do problema

A febre escaronodular (FEN), designação dada por Ricardo Jorge em Portugal em 1930, também conhecida por febre botonosa ou febre exantemática mediterrânica, é uma doença infecciosa aguda causada pela bactéria Rickettsia conorii.

Trata-se duma zoonose (doença transmitida de animal vertebrado para o Homem), característica dos meses quentes nos países mediterrânicos. Nos últimos anos, especialmente no sul da Europa, parece existir um recrudescimento da doença, provavelmente devido ao maior número de cães nas cidades, à maior mobilidade das populações, bem como às alterções climáticas, e em particular à menor pluviosidade.

Aspectos epidemiológicos

A FEN, a riquetsiose mais frequente nos países do sul da Europa, é especialmente prevalente nos países mediterrâneos desde Espanha até Israel, embora também se verifique em África, Índia e Sudoeste Asiático. Em Portugal, é a zoonose mais prevalente; entre 2010 e 2013 foram declarados 564 casos, na sua maioria entre os meses de Julho e Setembro, dos quais 208 até aos 14 anos (36,8% do total). Todavia, o número real de casos de doença deve ser bem superior, pois a notificação da doença nem sempre é levada a cabo, em especial nos serviços de urgência, local onde o diagnóstico é geralmente realizado.

O maior número de casos verifica-se no Verão e princípio do Outono embora nalgumas regiões a doença possa ser transmitida noutras épocas do ano permitindo, em função das condições climáticas, que o vector se mantenha activo fora da época estival. Refira-se que a carraça somente transmite a infecção se permanecer entre 6-20 horas em contacto com a pessoa, o que acontecerá se as medidas de higiene básica forem precárias.

Etiopatogénese

Rickettsia conorii, o agente infectante, é uma bactéria gram-negativa intracelular obrigatória, com uma forma coco-bacilar que se multiplica por divisão binária. Na bacia mediterrânica o principal vector é o ioxídeo conhecido por carraça do cão (Rhipicephalus sanguineus) em estádios de desenvolvimento diversos – larva, ninfa ou adulto. Os principais reservatórios são os cães, raposas, lebres e outros roedores. Na carraça (a qual funciona também como reservatório), a bactéria pode alojar-se nas células de múltiplos órgãos, incluindo os ovários. O organismo humano constitui um hospedeiro acidental.

A doença transmite-se ao organismo humano pela picada da carraça infectada enquanto esta efectua a sua refeição sanguínea, ou através da contaminação de mucosas com macerados de ioxídeos infectados. Depois da picada, Rickettsia conorii provoca lesão da íntima e a média dos vasos, desencadeando no organismo humano fenómenos de vasculite, com infiltrado perivascular rico em linfócitos e histiócitos. Neste processo inflamatório são notórios: activação das plaquetas, aumento de tromboxano A2, libertação de endotelina e aumento da permeabilidade capilar.

O compromisso dos vasos da derme é responsável pelo exantema característico da doença. A lesão endotelial capilar que pode ocorrer é responsável pela bacteriémia e compromisso doutros órgãos, sendo o pericárdio e o pulmão os mais atingidos. Nestas circunstâncias, podem coexistir pericardite ou pneumonite. Raramente, surgem lesões ao nível do SNC.

No local da picada forma-se uma lesão castanha escura ou escara, denominada tâche noire pelos autores franceses, que é consequência da necrose provocada pelo infiltrado inflamatório oriundo de substâncias produzidas, quer pela R. conorii, quer pela própria carraça. De realçar que a maioria das carraças do cão não está infectada, pelo que o detectar-se uma carraça numa pessoa não implica que a mesma contraia a doença.

Manifestações clínicas

A doença surge após um período de incubação variando entre 4 a 12 dias (em média, cerca de uma semana). Verifica-se um período prodrómico de quatro a cinco dias, semelhante à síndroma gripal, com início abrupto: febre alta (39-40ºC), arrepios, cefaleia intensa, mialgias e prostração; poderá verificar-se também dor abdominal.

Entre o 4º e 6º dia de doença, surge o exantema maculopapular, discretamente nodular, rosado, irregular, com lesões de cerca de 1 a 4 mm, que se inicia pelos membros inferiores e que atinge tipicamente a palma das mãos e a planta dos pés, e que se pode ou não generalizar a todo o corpo. Inicialmente de cor rósea, pode evoluir para purpúrico ou petequial com ulterior evolução para pigmentação residual. Este exantema pode ser pruriginoso e persistir cerca de 15 dias após a regressão dos sinais gerais. (Figura 1)

A lesão de inoculação da carraça, escara ou tâche noire, indolor e raramente pruriginosa, embora patognomónica da doença, nem sempre está presente. Trata-se duma lesão arredondada, de cerca de 1 cm de diâmetro, negra (lesão ulcerosa coberta por escara negra e rodeada por halo eritematoso) que deve ser procurada em qualquer zona do corpo, nomeadamente no couro cabeludo, regiões retroauricular, inguinal ou internadegueira; na criança predomina no couro cabeludo, enquanto nos adultos predomina nos membros inferiores, mas também na cintura (Figura 2). A referida lesão desaparece lentamente em 10 a 20 dias sem deixar cicatriz, e acompanha-se de adenopatia satélite.

No exame objectivo pode ainda ser evidente hepatosplenomegália em cerca de 20% dos doentes. A hepatomegália pode acompanhar-se de discreta elevação do valor das transaminases séricas. Nas crianças anteriormente saudáveis o curso da doença é benigno, ocorrendo resolução do quadro clínico em cerca de 10 a 20 dias.

Complicações

As complicações mais frequentemente descritas, correspondendo ao compromisso possível de qualquer órgão ou sistema, são: cardiovasculares (pericardite, miocardite, arritmia, flebotrombose), respiratórias (pneumonite, derrame pleural), oculares (retinite, uveíte), renais (proteinúria, insuficiência renal), gastrintestinais (gastrenterite, pancreatite, hemorragia digestiva), osteomusculares (artrite), hematológicas (CIVD, anemia e trombocitopénia autoimune, síndroma mononucleósica) e neurológicas (radiculonevrite, meningoencefalite, AVC). Nas formas clínicas de evolução grave e por vezes fatal, poderão surgir vasculite generalizada, insuficiência renal, choque e CIVD.

Como factores predisponentes relevantes das complicações apontam-se a diabetes mellitus e a deficiência em desidrogenase da glucose-6-fosfato.

Exames complementares e diagnóstico

O diagnóstico da FEN é essencialmente clínico. As características do exantema associado ao quadro febril e a sinais gerais conduzem à suspeita do diagnóstico. Se o exame objectivo permitir identificar a tâche noire, o diagnóstico pode considerar-se definitivo.

FIGURA 1. Exantema da FEN. (NIHDE)

FIGURA 2. FEN: lesão de inoculação da carraça (escara). (NIHDE)

O estudo serológico para detecção de anticorpos por imunofluorescência indirecta pode ser conclusivo verificando-se títulos de anticorpos: IgG ≥ 128 e IgM ≥ 32, sendo de referir que somente se verifica positividade na segunda semana de doença. O critério de diagnóstico baseia-se na seroconversão ou no aumento do título (4 vezes) em duas amostras colhidas com intervalo de 2 a 4 semanas (entre a fase aguda e a fase de convalescença), pelo que este exame apenas é útil na confirmação ulterior da doença, não contribuindo para o diagnóstico na fase aguda.

A detecção directa da Riquétsia na fase aguda é possível, quer através do seu isolamento pela técnica de “shell vial”, quer por detecção do genoma da riquétsia – técnica PCR em amostras de sangue ou biópsias de pele (exantema e/ou escara), somente disponível em laboratórios especializados.

A reacção de Weil-Félix, método clássico para pesquisa de anticorpos, é hoje em dia considerada obsoleta por sensibilidade e especificidade baixas.

Regra geral, o hemograma não evidencia alterações significativas. Pode ocorrer anemia hemolítica autoimune, assim como leucopénia, leucocitose e trombocitopénia. A velocidade de sedimentação, assim com as enzimas hepáticas e musculares pderão revelar valores elevados, designadamente nas formas clínicas complicadas.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial faz-se essencialmentre com outras riquetsioses, primoinfecção por VIH, meningococcémia, infecções víricas exantemáticas (por ex. vírus Coxsackie, sarampo) e toxidermias.

Tratamento

O tratamento precoce é da maior importância por encurtar a duração dos sintomas o que, por sua vez, diminui a probabilidade de complicações.

O antibiótico de eleição é a doxiciclina PO, 4 mg/kg/dia em duas doses (máxima dose diária: 200 mg). A duração do tratamento é de 10 dias, ou até verificação de 2 dias de apirexia na condição de antibioticoterapia com duração mínima de 5 dias.

Como alternativas podem ser utilizados macrólidos PO:

  • azitromicina (10 mg/kg/dia) numa dose diária durante 3 dias; ou
  • claritromicina (15 mg/kg/dia) em duas doses diárias durante 7 dias.

Prognóstico

Na idade pediátrica, o prognóstico da FEN pode considerar-se, em geral, bom, sem sequelas, nomeadamente se não existir doença crónica subjacente.

Prevenção

Com o objectivo de diminuir a probabilidade de picada da carraça podem ser adoptadas determinadas medidas contra reservatórios e vectores e na própria espécie humana:

  • desparasitação de animais domésticos;
  • utilização de repelentes (por ex. N, N-dietil-m-toluamida – DEET) após o 1 ano de idade;
  • cuidados básicos de higiene;
  • nas situações de risco (actividades no campo, por ex.) utilização de roupa branca para mais fácil identificação da carraça; a roupa deverá ficar justa ao corpo para servir de barreira àquela, evitando o seu contacto com a pele.

Se eventualmente for identificada a carraça, deve proceder-se do seguinte modo:

  1. aplicação local de éter ou cloreto de etilo para matar a carraça;
  2. retirar a carraça completamente com pinça fina de bordos finos, sem garras.

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Definição e importância do problema

A febre Q é uma doença infecciosa aguda e geralmente autolimitada (embora se possa manifestar sob a forma crónica) tendo Coxiella burnetti como agente etiológico responsável, um cocobacilo Gram-negativo intracelular obrigatório.

A doença foi diagnosticada em 1935 pela primeira vez em Queensland, na Austrália, após um surto de febre de causa desconhecida (“Q” de query) num matadouro. Tendo-se demonstrado que o referido agente é geneticamente distinto dos géneros Rickettsia, Ehrlichia e Anaplasma, actualmente o mesmo já não é englobado na ordem das riquetsioses, mas sim na ordem Legionellales, pertencendo à família Coxiellaceae.

Microrganismo altamente infeccioso em animais e na espécie humana, constitui, por isso, uma arma potencialmente utilizável no bioterrorismo.

As formas crónicas comportam grau mais elevado de morbilidade, designadamente pelo facto de o processo inflamatório poder originar lesões valvulares cardíacas, lesões vasculares persistentes ou osteomielite.

Aspectos epidemiológicos 

A febre Q, distribuída por todo o mundo, é uma zoonose, sendo o gado bovino, ovino e caprino os principais reservatórios da doença. Todavia, animais domésticos tais como gatos, cães e pássaros, podem transmitir a doença, que é mais frequente em meio rural; importa acentuar que a carraça poderá (raramente) ser um vector de transmissão inter-reservatórios.

Mais de 60% das infecções são assintomáticas, podendo um pequeno contingente (~5%) requerer hospitalização.

Como o microrganismo C. burnetti é muito resistente ao calor e a produtos químicos, pode sobreviver nos locais infectados durante meses. Por outro lado, este facto permite que microrganismos viáveis sejam levados pelo vento para locais distantes, o que pode dificultar a identificação da origem da infecção.

De realçar que a criança pode ser infectada através do leite materno.

Em inquéritos de seroprevalência em certas regiões da Europa foram comprovados antecedentes de infecção em percentagem muito variável conforme as regiões (6%-70%). Tratando-se duma doença de declaração obrigatória/DDO, em Portugal foram declarados 71 casos entre 2010-2013, mas apenas 2 abaixo dos 15 anos. Estabelecendo comparação com dados epidemiológicos doutro país europeu (França), em que se apurou incidência de 50 casos por 100.000 habitantes, é possível que em Portugal se verifique subnotificação.

Na Holanda, entre 2007 e 2010 verificou-se um surto de febre Q, com identificação de 4026 casos em humanos. De acordo com dados do CDC, nos EUA, em 2010 foram notificados 129 casos, em oposição a 17 casos apenas no ano de 2000; este aumento associa-se provavelmente a um maior número de notificações desde o 11 de Setembro de 2001.

Etiopatogénese

Ao contrário das infecções por Rickettsia, o ser humano adquire infecção por C. burnetti predominantemente através da inalação de partículas infectadas sob a forma de aerossóis, por exposição directa a produtos de animais (secreções genitais no parto, tosquias, matadouros), ou por ingestão de produtos lácteos não pasteurizados.

Após a inoculação das partículas infectantes portadoras de C. burnetti ocorre pneumonite intersticial linfocitária com alta concentração de macrófagos infectados no exsudado alveolar. O microrganismo pode permanecer latente nos macrófagos de tecidos durante anos, o que poderá conduzir a lesões permanentes (valvulopatias, vasculopatia, osteomielite). Também podem ser encontrados granulomas hepáticos na medula óssea, bem como noutros órgãos.

Manifestações clínicas

Forma aguda

Após um período de incubação entre 9 a 39 dias, surge febre durante 7-10 dias com calafrio, associada a cefaleias intensas, mialgias, vómitos e dor abdominal, entre outros sintomas sistémicos inespecíficos.

A perda de peso e a fraqueza muscular podem ser acentuadas. Na criança, pode verificar-se exantema em 50% dos casos, ao contrário do que acontece no adulto; os suores nocturnos, frequentes nos adultos, são raros na idade pediátrica. No adulto, a febre pode durar 2-3 semanas.

Na criança, a doença é habitualmente autolimitada, com resolução espontânea entre uma a três semanas. Em mais de metade dos casos a infecção em causa pode ser assintomática.

A hepatoesplenomegália pode estar presente nalguns doentes, coincidindo com quadro de hepatite na maioria dos casos. É frequente o compromisso do sistema respiratório com tosse não produtiva e dor torácica. Outras manifestações – que podem ser consideradas complicações raras, incluindo miocardite, pericardite, SHU, rabdomiólise, hemofagocitose, meningoencefalite – podem surgir alguns meses após infecção inicial.

Forma crónica

Em cerca de 1% dos casos poderá verificar-se evolução para a cronicidade, em geral relacionável com doença cardíaca ou vascular prévias. A endocardite pode manifestar-se meses a anos após o episódio agudo da doença. A osteomielite crónica também constitui uma manifestação de doença crónica.

Diagnóstico

Trata-se duma doença de difícil diagnóstico se não houver uma forte suspeita clínica e epidemiológica. Haverá que admitir tal hipótese nos seguintes casos:

  • em toda a criança com febre de origem desconhecida que viva em meio rural ou que contacte com animais e/ou seus produtos; e igualmente,
  • no contexto de pneumonia atípica, endocardite evoluindo com culturas negativas, osteomielite recorrente.

Relativamente aos sinais radiológicos torácicos encontrados, o padrão é semelhante ao verificado nos casos de pneumonia por vírus, Mycoplasma pneumoniae ou por Chlamydophila pneumoniae; de referir que também poderão ser encontradas opacidades arredondadas em doentes clinicamente assintomáticos.

A serologia continua a ser o procedimento diagnóstico mais utilizado, sendo a imunofluorescência indirecta o método mais sensível.

Para confirmar a infecção aguda prévia, deve demonstrar-se um aumento de 4x ou > do título de anticorpos entre a fase aguda e a convalescença, ou título de anticorpos de IgM > 1:50. Título de anticorpos de IgG = ou > 1:128 deve considerar-se como sinal de infecção provável; e de IgG > 1:200 são sugestivos de infecção.

Para o diagnóstico na fase crónica, num paciente com quadro clínico compatível, será suficiente um título de anticorpos IgG = ou > 1:800. Títulos de IgG < 1:200 e de IgM negativos poderão indicar cura.

O microrganismo pode também ser identificado em cultura de tecidos, ou através de estudo molecular/PCR com amostras de sangue ou de tecidos (neste último caso, – designadamente em válvulas cardíacas – evidenciando maior sensibilidade).

Considerando outros exames laboratoriais, cumpre salientar que se pode verificar hipergamaglobulinémia, hiperfibrinogenémia e elevação da proteína C reactiva. Em mais de metade dos doentes há evidência laboratorial de processo autoimune, explicável designadamente pela positividade de: factor reumatóide, anticorpos antiplaquetas, antimúsculo liso, antimitocôndrias e prova de Coombs directa.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da febre Q com outras doenças depende da forma de apresentação clínica. Como foi referido anteriormente, o quadro respiratório pode ser confundido com infecções por Mycoplasma pneumoniae, Chlamydophila pneumoniae, mas também infecção por VEB ou Legionella.

No caso de hepatite granulomatosa, tuberculose ou outras infecções por micobactérias, salmonelose, leishmaniose visceral, toxoplasmose, brucelose, doença do arranhão do gato, doença de Hodgkin ou sarcoidose devem ser situações a equacionar.

A presença de endocardite deve levar a admitir hipóteses de infecção por Brucella, Bartonella ou ainda por bactérias do grupo HACEK (Haemophilus, Agregatibacter, Cardiobacterium hominis, Eikenella corrodens, Kingella).

Tratamento

Na forma aguda da doença, a doxiciclina (4 mg/kg/dia até máximo de 200 mg/dia) é o fármaco de primeira escolha acima dos oito anos; esta terapêutica deve ser mantida durante 14 a 21 dias e até se verificar apirexia durante pelo menos 3 dias. Como alternativas poderão ser usados os antimicrobianos azitromicina, sulfametoxazol+trimetoprim/cotrimoxazol, cloranfenicol ou fluoroquinolonas (estas últimas somente acima dos 17 anos de idade). A doxiciclina e as fluoroquinolonas não têm formulação pediátrica em Portugal.

Nos casos de febre Q crónica (endocardite e hepatite) deverá associar-se à doxiciclina: a rifampicina, cotrimoxazol ou fluoroquinolonas. A associação entre rifampicina e hidroxicloroquina, de 18 a 36 meses de duração, é a forma adoptada actualmente, sobretudo em adultos.

Nas formas consideradas refractárias, tem sido utilizado o interferão-gama.

Nota importante: na hipótese de diagnóstico feito retrospectivamente, mesmo que a criança esteja assintomática, o esquema de tratamento é igual, tendo como objectivo erradicar a infecção e evitar a cronicidade.

Prognóstico

A mortalidade da febre Q aguda não complicada é inferior a 1%.

Em caso de endocardite, a doença pode ser fatal em 30%-60% dos doentes.

Prevenção

A prevenção compreende essencialmente medidas de higiene de âmbito veterinário e protecção das pessoas que contactam com animais contaminados e seus produtos (matadouros, laboratórios, etc.).

Existe actualmente uma vacina que confere protecção, pelo menos, durante 5 anos, indicada para as pessoas em risco, designadamente para os trabalhadores em matadouros.

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1. VARICELA-ZÓSTER

Definição

As infecções pelo vírus da varicela-zóster (VVZ) são doenças contagiosas exantemáticas vesicobolhosas, de distribuição universal, geralmente benignas e autolimitadas em doentes imunocompetentes.

Importância do problema e etiopatogénese

O vírus da varicela–zóster (VVZ) pertence a um dos 8 membros da família dos Herpesvirus, subfamília Herpesviridae, género Varicelavirus; de grandes dimensões em comparação com outros vírus, com uma estrutura icosaédrica e um núcleo de DNA, cresce dificilmente em cultura de laboratório. Tem semelhanças com o vírus Herpes simplex, que também é um herpes vírus-alfa.

É causa de duas doenças distintas:

  • Varicela, correspondente à infecção primária ou primoinfecção; e
  • Zona ou herpes-zóster, correspondente a reactivação do vírus latente.

O Homem é o único hospedeiro natural do vírus.

Do ponto de vista clínico, este vírus tem três características muito importantes:

  • A sua alta contagiosidade, sendo o único vírus herpes que se transmite por disseminação aérea (aerossóis). A varicela é uma das doenças mais contagiosas na idade pediátrica (taxa de transmissão de 61%-100%);
  • A infecção latente dos gânglios das raízes sensoriais, com capacidade de reactivação sob a forma de zona ou herpes-zóster; (ver adiante)
  • A presença de sintomas no decurso da infecção primária, em contraste com os outros vírus herpes (nomeadamente VEB e CMV) cuja primoinfecção é muitas vezes assintomática.

A transmissão surge por contacto directo de pessoa a pessoa, ou por intermédio de gotículas de muco ou de saliva eliminadas pelo doente infectado; existe ainda a possibilidade de transmissão por líquidos das vesículas de doentes com herpes-zóster.

O período de incubação é cerca de 15 dias, podendo variar de 10 a 21.

Durante a primeira parte deste período verifica-se replicação do vírus no tecido linfóide local, a que se segue breve período de virémia subclínica (1ª virémia) que veicula o vírus para o SRE. As lesões cutâneas disseminadas ocorrem durante uma 2ª virémia que dura 3-7 dias. As células sanguíneas mononucleares transportam vírus, gerando o aparecimento de novas vesículas durante este 2º período de virémia.

O VVZ é também transportado “de retorno” à mucosa das vias respiratórias superiores na parte final do período de incubação, permitindo a disseminação do vírus a contactos susceptíveis antes do aparecimento do exantema.

Em condições de resposta imune normal (indivíduos saudáveis) há possibilidade de o organismo limitar a replicação do vírus, facilitando a cura. Pelo contrário, nos indivíduos imunodeprimidos (sobretudo em situações associadas a defeitos congénitos de linfócitos T ou a síndroma de imunodeficiência adquirida), a replicação do vírus continua, podendo surgir infecção disseminada com repercussões em vários órgãos.

O vírus é transportado de modo retrógrado através dos neurónios sensoriais/espinhal-medula para os gânglios das raízes dorsais paravertebrais, onde fica em estado latente.

A reactivação subsequente causa herpes-zóster, quadro caracterizado por erupção vesicular distribuída em dermátomo, sendo que a supressão da imunidade celular aumenta o risco de reactivação do VVZ.

Aspectos epidemiológicos

Antes da introdução da vacina antivaricela nos EUA há mais de 14 anos, a maior parte das crianças adquiria infecção até aos 15 anos. Cerca de uma década depois verificou-se declínio de hospitalizações da ordem de 75%, em relação com varicela complicada. Igualmente se verificou diminuição acentuada da mortalidade entre as idades de 1 e 9 anos (menos 90% de óbitos).

No que respeita à idade de manifestação da infecção por VVZ há essencialmente 2 padrões:

  • O padrão dos climas temperados, em que se inclui a Europa, com contacto precoce com o vírus; nesta circunstância é, como a varicela, uma doença da idade pediátrica, com pico de incidência no final do Inverno/início da Primavera. Em populações não vacinadas, > 90% dos casos ocorrem antes da adolescência.
  • O padrão dos climas tropicais, com infecção protelada até à adolescência e idade adulta, idade com maior probabilidade de evolução mais grave e de aparecimento de complicações.

Em relação à prevalência da infecção, em Portugal, o Segundo Inquérito Serológico Nacional Portugal Continental 2000-2002 revelou que 86,8% da população estudada é seropositiva para VVZ e, tal como noutros países europeus, a infecção por este vírus ocorre predominantemente em crianças. Dos 15 aos 19 anos a seropositividade é 94,2%, após o que se verifica um aumento gradual para 99,3%. Neste estudo, verificou-se também que apenas 2,8% das mulheres nos períodos de maior fertilidade (20-29 anos e 30-44 anos) são susceptíveis.

De acordo com o mesmo inquérito, concluiu-se que a varicela ocorre predominantemente na infância: 41,3% das crianças entre os 2 e os 3 anos já se infectaram com o vírus, aumentando para o dobro dos 6 aos 7 anos.

Num estudo prospectivo, nacional, de Janeiro 2006 a Julho 2007 (19 meses), através de notificação pela Unidade de Vigilância Pediátrica (UVP) de crianças e adolescentes internados por varicela ou zona, identificaram-se 158 casos com uma incidência de complicações de 5,8/100.000/ano. No mesmo estudo concluiu-se que:

  • A maioria dos internamentos por complicação da varicela ocorreu em crianças saudáveis (89%), sem factor de risco de varicela grave;
  • As complicações mais frequentes foram sobreinfecção bacteriana (49%); neurológicas (8,2%); respiratórias (8,2%); digestivas (5,7%) e hematológicas (0,02%); Streptococcus pyogenes e Staphylococcus aureus foram os agentes mais frequentemente isolados, nas sobreinfecções;
  • Não houve óbitos.

A varicela é um problema de saúde pública e em vários países foram demonstrados benefícios com a introdução da vacina nos programas nacionais de vacinação. Em Portugal, uma vez que a doença não é de notificação obrigatória, não existe uma informação precisa sobre o impacte da doença na comunidade.

Manifestações clínicas

1 – Na VARICELA da criança não existe habitualmente período prodrómico, ao contrário do que acontece com o adolescente e o adulto. Este período caracteriza-se por febre, cefaleia, sensação de mal-estar, 1 a 2 dias antes do aparecimento do exantema. Este evolui rapidamente de mácula para vesícula de conteúdo transparente (que se rompe facilmente) e, posteriormente, para crosta, com distribuição crânio-caudal e centrípeta. As crostas destacam-se espontaneamente em cerca de 8 a 15 dias.
É típica a presença de lesões nos vários estádios numa mesma área anatómica. As mucosas podem ser igualmente atingidas, com ulcerações superficiais no palato e vulva. O prurido intenso acompanha geralmente o estádio vesicular do exantema da varicela. Pode verificar-se o aparecimento de linfadenopatias generalizadas. (Figura 1, evidenciado manifestações de exantema muito exuberante)
Os doentes são contagiosos desde cerca de 48 horas antes do início do exantema até à fase em que todas as vesículas se apresentam na forma de crosta (5 a 10 dias).
A varicela é uma doença de evicção escolar obrigatória.

2 – A ZONA surge por reactivação do VVZ, o qual ficou latente nos gânglios das raízes sensoriais a seguir a infecção aguda; ocorre raramente (em cerca de 5% dos casos de varicela anterior: ~ 5% até aos 15 anos, e ~ 10%-15% na idade adulta); manifesta-se sobretudo nas seguintes circunstâncias:

  • Infecção primária in utero;
  • Quadros clínicos com imunossupressão (como foi referido antes, sobretudo défice da imunidade celular), em que há probabilidade de herpes-zóster mais exuberante e mais grave, com risco de disseminação cutânea, compromisso visceral e tendência para a cronicidade. A incidência é cerca de 15% nas crianças que já tiveram leucemia, e ~ 30% nos receptores de transplante medular e nos infectados pelo VIH;
  • Envelhecimento, a partir dos 50 anos; se um indivíduo viver até aos 80 anos aumenta a probabilidade de adquirir infecção zóster, que é tanto mais grave quanto mais tardio o seu aparecimento. (ver atrás)

Esta forma clínica caracteriza-se por uma erupção unilateral, por vezes acompanhada de linfadenopatia regional. Na fase de pré-erupção existe dor, mal-estar, febre, hiperestesia, sensação de “queimadura” ao longo de uma área limitada de pele de trajecto mais ou menos rectilíneo, suprida por nervos sensitivos de um ou dois gânglios das raízes dorsais, (dermátomo); no adolescente e adulto a dor relaciona-se com neurite aguda.
Surge, ao cabo de alguns dias, a erupção de pápulas que rapidamente se transformam em vesículas segundo um trajecto mais ou menos rectilíneo (ou paralelamente, em dois trajectos se estiverem em causa dois dermátomos), progredindo até à fase de crosta em cerca de 5 a 7 dias. Em cerca de um terço dos casos poderá verificar-se a ocorrência de vesículas “vizinhas” que ultrapassam o limite do dermátomo.
Embora raramente, poderá a zona ter localização ao nível do trajecto do nervo trigémio, acompanhando-se as lesões cutâneas de conjuntivite, ceratite e iridociclite. Outro possível nervo craniano afectado é o facial. Neste caso a tradução clínica mais típica é paralisia facial e aparecimento de vesículas no canal auditivo externo (síndroma de Ramsay-Hunt).
A nevralgia pós–zóster, mantida por vezes 2 a 3 meses, é rara em idade pediátrica.

FIGURA 1. A) Varicela – predomínio de vesículas visualizando-se algumas crostas; B) Varicela confluente com predomínio de vesículas; zona nadegueira protegida da luz, menos exuberante em lesões (fotoprotecção). (NIHDE)

FIGURA 2. A) Herpes-zóster: lesões na área do trigémio; B) Herpes-zóster de localização torácica; lesões de trajecto rectilíneo ao longo dos nervos intercostais acompanhando a direcção das costelas. (NIHDE)

Factores de gravidade

No que se refere à gravidade da doença verifica-se um aumento da morbilidade e mortalidade na mulher grávida susceptível, e no feto. A síndroma da varicela congénita caracteriza-se por lesões do SNC, globo ocular (cegueira), cicatrizes cutâneas permanentes e defeitos dos membros, com incidência de 2% nas primeiras vinte semanas de gravidez.

Esta situação é distinta da varicela perinatal, surgindo no recém-nascido quando a mãe contrai varicela no período entre 5 dias antes do parto e 5 dias depois. A varicela perinatal é geralmente muito grave pois, para além da imaturidade imunológica do recém-nascido, nesta fase não houve ainda passagem transplacentária de anticorpos maternos que seriam um factor de protecção. A terapêutica com imunoglobulina específica e aciclovir tem melhorado muito o prognóstico destes doentes.

Para além destes dois quadros clínicos, há um risco acrescido de complicações para a mulher e para o feto na varicela contraída no último trimestre, respectivamente pneumonia e disseminação da doença.

A gravidade da varicela é maior no adulto, com maior morbilidade e mortalidade: o número de lesões é maior, os sintomas sistémicos mais duradouros e as complicações mais frequentes, tendo sido verificado nalguns estudos que a encefalite é sete vezes mais frequente que na criança, e a mortalidade vinte e cinco vezes maior.

O risco de varicela grave é também maior nas síndromas acompanhadas de imunodeficiência, especialmente nos casos de doença maligna sob quimio ou radioterapia, no caso de corticoterapia em altas doses e nos defeitos da imunidade celular.

Por este motivo, as complicações da varicela passaram a ser mais frequentes à medida que maior número de crianças com doença maligna, transplantação de órgãos ou asma grave, foi sendo tratado com sucesso. Igualmente nos casos de SIDA, têm sido descritos casos graves e fatais. Doentes submetidos a terapêutica prolongada com salicilatos também têm maior risco de doença grave e complicações.

A infecção congénita é abordada na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia.

Complicações

A partir da década de 90 passou a verificar-se aumento de complicações na criança saudável e sem factores de risco prévios, nomeadamente cutâneas, respiratórias e neurológicas.

No que se refere às complicações cutâneas, especialmente na varicela, salienta-se o papel de Streptococcus pyogenes, responsável por situações muito graves como a fascite necrosante. É controverso se as complicações cutâneas e sistémicas estão associadas a toma prévia de anti-inflamatórios não esteróides como nimesulido e ibuprofeno, pelo que estas drogas não devem ser prescritas no decurso da varicela. A medicação com salicilatos antes e durante a doença relacionou-se com o aparecimento de síndroma de Reye.

Outras complicações descritas na literatura em relação com infecções por VVZ em geral, incluem: meningite asséptica, síndroma de Guillan-barré, encefalite (nalguns casos em relação com o próprio vírus), ataxia cerebelar (por mecanismo imunológico, sem acção directa do vírus), púrpura trombocitopénica concomitante com a doença aguda ou de aparecimento a posteriori.

Exames complementares

Na prática, em situações correntes, o diagnóstico é essencialmente clínico-epidemiológico. Em situações especiais ou em casos complicados poderá estar indicada a realização de exames complementares: por microscopia electrónica para estudo citológico (pesquisa de corpos de inclusão, células gigantes) e isolamento do vírus no fluido das vesículas ou nos produtos de raspagem das lesões.

A pesquisa de DNA por PCR (reacção em cadeia da polimerase), mais sensível que a imunofluorescência, pode ser feita no raspado das lesões cutâneas, saliva e líquido céfalo-raquidiano cutâneas, saliva e LCR. Também pode ser utilizada para diferenciar a estirpe selvagem da estirpe vacinal (OKA). O isolamento através de cultura de células é pouco utilizado.

Para confirmar a infecção poderão utilizar-se provas serológicas como provas de fixação do complemento, pesquisa de anticorpos fluorescentes para os antigénios de membrana, métodos ELISA, radioimunoensaio, etc..

Para confirmar o estado de imunidade relativamente à varicela após vacina, pode recorrer-se ao estudo serológico. Nalguns centros, para confirmar o estado de imunidade relativamente à varicela procede-se a uma prova intradérmica utilizando a estirpe OKA inactivada do vírus. Tal prova evidenciou sensibilidade e especificidade ~ 95%, comparável à obtida com o estudo serológico com pesquisa de anticorpos fluorescentes.

Tratamento

O tratamento da maioria dos casos é sintomático.

O doente internado com varicela deve ser isolado, com precauções de transmissão de contacto e via aérea.

Se a criança estiver febril, deve ser administrado paracetamol, não devendo ser administrados salicilatos nem anti-inflamatórios não esteróides.

Os banhos de amido são, regra geral suficientes para o bem-estar da criança. Igualmente não se utiliza a aplicação de tópicos. Em relação ao prurido, a terapêutica com anti-histamínicos pode ser administrada.

Os pais e mais directos responsáveis pelos cuidados a prestar à criança doente devem ser instruídos no sentido de procederem ao corte das unhas e de correcta lavagem das mãos de modo a diminuir o risco de sobreinfecção bacteriana.

As roupas devem ser de algodão e fáceis de despir, sem traumatizar a pele. Os banhos estão indicados, com a água à temperatura habitual, mas deverão ser rápidos, tendo o cuidado de secar a criança sem friccionar o corpo com a toalha.

As crianças com varicela não complicada podem regressar à escola após todas as lesões estarem em fase de crosta.

A terapêutica com aciclovir não é recomendada para uso generalizado na criança saudável com varicela. Quando indicada, deve ser iniciada o mais precocemente possível (idealmente nas primeiras 24 horas, logo após início do exantema; é inútil após o 3º dia de evolução da doença).

O aciclovir oral (20 mg/kg/dose até máximo de 800 mg/dose, em 4 tomas diárias durante 5 dias) está indicado em crianças com risco aumentado de doença grave: adolescentes; doenças crónicas dermatológicas ou pulmonares; terapêutica mantida com salicilatos; terapêutica com corticóides, de curta duração, intermitente ou por aerossóis; casos secundários num agregado familiar (os casos secundários são geralmente mais graves). O valciclovir (20 mg/kg/dose, máximo 1000 mg, 3x dia, 5 dias) também pode ser utilizado, em crianças dos 2-18 anos. O aciclovir endovenoso está indicado nos doentes imunodeprimidos (5-10 mg/kg/dose de 8-8 horas durante 7 a 10 dias) ou em complicações graves, como encefalite por VZV.

No herpes-zóster o aciclovir abrevia a cura das lesões cutâneas, reduz o tempo de evolução da neurite aguda, assim como o risco de nevralgia pós-fase aguda. Está igualmente indicado nos casos de doentes com imunodepressão, contribuindo para diminuir o risco de disseminação visceral.

O tratamento das infecções cutâneas secundárias é abordado noutros capítulos.

Prevenção

Imunização passiva – Imunoglobulina humana antivaricela zoster (IgVZ)

A imunoglobulina antivaricela zóster (IgVZ) deve ser administrada para prevenir a varicela em doentes que não têm imunidade para o vírus e que apresentam risco de complicações graves se adquirirem a infecção. A IgVZ deve ser administrada o mais precocemente possível após exposição, com limite máximo de 96 horas para a forma endovenosa, e 72 horas para a forma intramuscular; e, de preferência, nas primeiras 48 horas. A varicela após IgVZ é, regra geral, mais benigna mantendo-se, contudo, contagiosa.

A decisão de administrar IgVZ deve fundamentar-se em três parâmetros: susceptibilidade à doença; probabilidade de a exposição resultar em infecção; risco de complicações graves.

Aos indivíduos com risco de complicações graves, com exposição continuada ao vírus, deve ser feita uma segunda administração de IGVZ passadas três semanas.

Os doentes sob terapêutica mensal com altas doses de IGIV estarão muito provavelmente protegidos se a última administração tiver ocorrido menos de 3 semanas antes da exposição. A IgVZ interfere com a resposta imunológica às vacinas vivas, especialmente VASPR nos 5 meses subsequentes à sua administração, razão pela qual o calendário vacinal da criança a quem foi administrada IgVZ deve ser adaptado a esta circunstância.

Se não for respeitado o intervalo entre IgVZ e VASPR deve proceder-se à titulação dos anticorpos para VASPR, um mês após a vacinação.

A IgVZ não é recomendada para indivíduos já vacinados contra a varicela.

A IgVZ não deve ser usada indiscriminadamente já que condiciona apenas uma protecção temporária de cerca de 3 semanas (um caso de varicela numa enfermaria não implica a prescrição alargada de IGVZ baseada apenas na susceptibilidade à doença).

Vacina antivaricela

A propósito desta medida de prevenção, sugere-se a consulta do Capítulo sobre Imunizações e Vacinas.

Considera-se actualmente que a administração de duas doses confere uma maior protecção.

Estão descritos casos de varicela surgindo algum tempo após a vacinação, por falência vacinal secundária devida a uma perda progressiva, ao longo do tempo, da imunidade contra o vírus (breakthrough disease). Esta eventualidade poderá ser minorada com o esquema vacinal de duas doses.

2. CITOMEGALOVÍRUS

Definições e aspectos epidemiológicos

O citomegalovírus humano (CMV) é um vírus ADN da família Herpesviridae, ubiquitário na comunidade. A prevalência da infecção por CMV aumenta com a idade, é mais elevada nos países em desenvolvimento e nos estratos socioeconómicos mais precários.

Na maioria, as infecções por CMV são assintomáticas; contudo, o espectro de manifestações é amplo, entre infecções ligeiras e fatais. Certos grupos populacionais são considerados de risco, como os recém-nascidos e os imunodeprimidos, nomeadamente as imunodeficiências primárias com disfunção das células T e NK, transplantados e os portadores de infecção por VIH. Em indivíduos imunocompetentes a infecção por CMV poderá apresentar-se como mononucleose infecciosa.

A infecção congénita é abordada na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia.

Considera-se infecção primária a que ocorre num indivíduo susceptível, seronegativo. Infecção recorrente é a que surge por reactivação de infecção latente ou por reinfecção de hospedeiro imune-seropositivo. Doença por CMV poderá resultar de infecção primária ou recorrente, sendo que no primeiro caso existe maior probabilidade de quadro clínico mais grave.

Em países em desenvolvimento, a maioria das crianças é infectada até aos 3 anos de idade; em países desenvolvidos, a infecção ocorre geralmente na infância e adolescência, sendo que 60%-80% da população já teve a infecção quando chega à idade adulta.

Etiopatogénese

Da família Herpesviridae fazem parte também outros vírus: Epstein-Barr (VEB), herpes simplex 1 e 2, varicela-zoster, e herpesvirus 6, 7 e 8. Como qualquer herpesvírus, tem a característica de se manter latente no organismo, o que condiciona a possibilidade de reactivação. (ver atrás)

Estão descritos diversos modos de transmissão:

  • Congénita: via placentária. A incidência de infecção congénita por CMV varia de 0,2%-2,4%;
  • Perinatal: secreções vaginais (parto), leite materno (incidência de 10%-60% nos primeiros seis meses de vida), urina, saliva ou por transfusão;
  • Crianças: saliva, lágrimas, leite materno, urina (taxa de infecção de 50%-80%); sobretudo na infância; as creches contribuem para a disseminação da doença nesta faixa etária;
  • Adolescentes: sémen, secreções vaginais; durante este período ocorre um segundo pico de infecção devido à transmissão sexual;
  • Outros: intrafamiliar, transfusões de sangue e derivados (infecção por resíduos de leucócitos no derivado), transplante de órgãos.

A doença clínica resulta fundamentalmente dos seguintes factores:

  • Depressão da imunidade celular (sobretudo de células T e NK); a imunidade humoral não parece ser tão importante, sendo a presença de anticorpos contra CMV indicador de infecção prévia ou recente e não um marcador de imunidade por si;
  • Replicação vírica intensa com consequente aumento da respectiva carga; alguns genótipos estão associados a doença mais grave
  • Compromisso multiorgânico por efeito citopático directo dos vírus, sobretudo em determinados órgãos-alvo.

O vírus induz reacção inflamatória com infiltração celular focal por células mononucleadas. Os órgãos mais afectados são o pulmão, fígado, rins, aparelho gastrintestinal, glândulas salivares e outras glândulas exócrinas. Pode surgir necrose focal no cérebro e fígado, acompanhada de granulomas com calcificações.

A presença de CMV intracelular e a replicação do vírus incrementa a expressão de mediadores inflamatórios como citocinas e quimocinas; as células infectadas aumentam de tamanho e podem conter inclusões (grandes, intranucleares, e mais pequenas, intracitoplásmicas) podem conter inclusões que são patognomónicas da infecção por CMV (doença de inclusões citomegálicas).

Manifestações clínicas e laboratoriais

As manifestações clínicas são variáveis e influenciadas pelo momento em que ocorre a transmissão da doença (congénita, perinatal ou pós-natal), idade do doente e concomitância, ou não, de imunodeficiência.

Uma vez que a infecção perinatal é abordada na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia, é dada ênfase às manifestações pós-neonatais.

Na sua maioria, as crianças imunocompetentes com infecção por CMV são assintomáticas; em cerca de 10% dos casos surge febre, tosse, cefaleia, dor abdominal com diarreia, artralgias, mialgias; por vezes, exantema petequial ou morbiliforme, linfadenopatias e hepatoesplenomegália. Em crianças mais velhas e adolescentes, o quadro é semelhante à mononucleose infecciosa, com elevação de ALT e AST, e linfocitose atípica, febre, fadiga, faringite, adenopatia (sobretudo cervical) e hepatite. Podem surgir manifestações ou complicações pouco frequentes em doentes previamente saudáveis. Nos doentes imunocomprometidos (sobretudo em casos de SIDA e de doentes transplantados) existe risco aumentado de infecção primária ou recorrente, incluindo febre isolada, leucopénia, pneumonite intersticial, miocardite, hepatite, coriorretinite, doença gastrointestinal (ulcerações submucosas, pancreatite, colecistite, colite), e compromisso do sistema nervoso central, com meningoencefalite ou síndroma de Guillain-Barré.

Diagnóstico

Antes da abordagem desta alínea, importa recordar conceitos: o conceito de infecção é biológico e o conceito de doença é clínico, traduzindo, em princípio, a presença de sintomatologia.

Assim, é importante diferenciar entre infecção e doença por CMV:

  • Infecção por CMV define-se como evidência de replicação de CMV independentemente da existência ou não de sinais ou sintomas;
  • Doença por CMV define-se como evidência de infecção por CMV com sinais e sintomas acompanhantes.

As modalidades diagnósticas disponíveis incluem serologia, PCR CMV qualitativa e quantitativa, antigenémia pp65, exame cultural e exame histopatológico.

O diagnóstico de infecção primária em indivíduos imunocompetentes baseia-se na detecção de IgM CMV (surgindo nas primeiras 2 semanas após o aparecimento dos sintomas e podendo persistir até 6 meses após o início dos sintomas), ou na detecção simultânea de IgM e IgG de baixa avidez, ou na seroconversão (um aumento 4 vezes do título de IgG com 2-4 semanas de intervalo). Durante as primeiras semanas após infecção primária, a avidez funcional dos anticorpos da classe IgG é muito baixa, atingindo o pico 4-5 meses depois. Os anticorpos IgG geralmente só são detectados 2-3 semanas após o início da sintomatologia e persistem por toda a vida. Os imunocomprometidos graves podem ser seronegativos, apesar de infectados.

A cultura vírica convencional é morosa e demora algumas semanas, mas pode ser utilizada em várias amostras.

As técnicas de amplificação de ácidos nucleicos existem em vários laboratórios e são sensíveis para detectar o DNA do CMV, determinar a carga vírica e monitorizar a resposta à terapêutica, sobretudo nos doentes imunodeprimidos.

A biópsia de tecidos é útil para o diagnóstico de doença invasiva tecidual por CMV, sobretudo em imunodeprimidos. O exame histopatológico pode evidenciar a presença de corpos de inclusão, tipicamente inclusões intranucleares basófilas, embora também se possam observar inclusões no citoplasma dos eosinófilos. A sensibilidade deste teste pode ser melhorada com coloração imuno-histoquímica.

O exame cultural, laborioso, necessita de várias semanas para o vírus crescer.

No paciente em estado de imunossupressão, quando não é possível a biópsia tecidual, o aumento da carga vírica no sangue pode fundamentar o diagnóstico.

Nalgumas amostras, a detecção do vírus por exame cultural ou PCR (este último, muito sensível) não confirma doença activa por CMV, pois pode haver excreção do vírus pela urina, secreções respiratórias e fezes por períodos prolongados de tempo, mesmo na ausência de doença clínica.

A distinção entre reactivação de vírus endógeno e reinfecção com estirpe diferente de CMV requer técnicas especiais com análise do ADN do vírus (com enzimas de restrição ou determinação de anticorpos específicos para epitopos do CMV, por ex. glicoproteína H).

Como nota final, cabe referir que nos doentes imunocomprometidos é habitual haver excreção aumentada de CMV, mesmo em presença de títulos elevados de IgG e de IgM, o que pode dificultar a destrinça entre infecção primária e recorrente.

Tratamento

No hospedeiro imunocompetente não está indicada qualquer terapêutica específica.

No contexto de doentes com imunossupressão utiliza-se o ganciclovir associado ou não à IGIV standard ou à IGIV hiperimune-CMV. Um dos esquemas utilizado é o seguinte:

  • ganciclovir IV (5 mg/kg/dose 12/12h ev durante 2-3 semanas, seguido de manutenção 5 mg/kg em dias alternados ou 5 dias/semana) + IGIV/CMV (400 mg/kg/dia, em esquemas diferentes).

Verifica-se, como resultado desta terapêutica, diminuição da carga vírica CMV dentro de 1 semana em 70%-80% dos doentes. Na ausência de resposta clínica ou virológica deve suspeitar-se de resistência ao fármaco antivírico.

Outros antivíricos podem ser usados: foscarnet (menor experiência em crianças) e cidofovir.

Nas formas ligeiras de infecção por CMV pode utilizar-se valganciclovir oral (16 mg/kg/dose 12/12h oral).

O ganciclovir tem diversos efeitos tóxicos, nomeadamente supressão medular, alterações hepáticas, redução da espermatogénese; e cancerígeno e potencialmente teratogénico.

O ganciclovir e valganciclovir têm excreção renal.

Prevenção

Na prevenção devem ser consideradas as seguintes medidas:

  • Medidas de protecção pessoal;
  • Vacina (ainda em estudo);
  • Esterilização do leite de mães seropositivas para RN pré-termo;
  • IGIV no período pré-transplante de órgãos (visto que o doente transplantado comporta risco acrescido de aquisição de infecção grave por CMV);
  • Utilização de sangue e derivados de dadores com anticorpos negativos para CMV a RN pré-termo e doentes imunocomprometidos (sobretudo pós-transplante e com infecção por VIH); se tal não for possível, utilização de sangue desleucocitado;
  • Se possível, utilização de órgãos de dadores livres de CMV.

Prognóstico

O prognóstico é variável consoante a data da infecção. No caso de infecção congénita, geralmente surgem sequelas neurossensoriais graves como surdez (5%-10%), coriorretinite (3%-5%), microcefalia, atraso mental ou motor. A infecção no período perinatal raramente origina sequelas.

A maioria dos doentes imunocompetentes recupera completamente. Como regra, nos imunodeprimidos o prognóstico é variável consoante a doença de base e o grau de imunossupressão.

3. VÍRUS de EPSTEIN-BARR (VEB)

Aspectos epidemiológicos

O vírus de Epstein-Barr (VEB) tem uma distribuição mundial. Nos países em vias de desenvolvimento, a infecção é geralmente muito precoce e assintomática. Nos países desenvolvidos a infecção surge habitualmente na adolescência e no adulto jovem, sendo a mesma frequentemente sintomática.

Cerca de 85% a 95% dos adultos têm anticorpos anti-VEB. Portugal segue o padrão dos países desenvolvidos de acordo com estudos do INSA/Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. A incidência anual varia, de acordo com diversas estatísticas, grupos etários e regiões do globo, entre 20 a 70/ 100.000 indivíduos. A infecção por VEB pode ser assintomática ou comportar-se como uma infecção vírica ligeira e inespecífica.

A entidade clínica conhecida por mononucleose infecciosa (MNI) tem como causa mais frequente a primoinfecção por VEB, síndroma associada ao desenvolvimento de linfomas de células B e T, linfoma de Hodgkin, linfomas primários do SNC em doentes com SIDA e carcinomas nasofaríngeos. Salienta-se que existem outras causas de “síndromas mononucleósicas”.

Etiopatogénese

O vírus de Epstein-Barr (VEB) é um vírus de DNA pertencente à família dos Herpesviridae.

A transmissão faz-se pela saliva, sangue e, possivelmente, por contacto sexual. O vírus penetra na cavidade oral, invade as células epiteliais e as glândulas salivares, causando virémia, infecção dos linfócitos B e sistema reticuloendotelial (SRE), estimulando uma resposta imune e a formação de linfócitos atípicos (linfócitos T CD8+ que aumentam em valor absoluto e relativo).

Nos adultos, este aumento de linfócitos T CD8+ resulta numa inversão transitória da relação normal de 2/1 de linfócitos T CD4+/CD8+ ou (helper/supressor), sendo menos marcada nas crianças.

Pondo em contacto secreções da orofaringe de doentes afectados por mononucleose infecciosa com linfócitos B humanos, estes são transformados espontaneamente por acção do vírus em linhas celulares linfoblastóides; por isso se chama a este vírus o agente transformador de linfócitos.

Após infecção primária, o VEB permanece latente em múltiplos epissomas dos núcleos dos linfócitos B, o que corresponde, de facto, a um estado de infecção de longa duração, clinicamente inaparente. Para além da capacidade de latência, o agente infeccioso tem capacidade de reactivação e de incorporação genómica nas células do hospedeiro, o que se repercute nas características genéticas destas últimas.

Pode, pois, considerar-se que a infecção por VEB corresponde a uma doença linfoproliferativa, já que representa uma “guerra civil linfocitária” em que os linfócitos T activados, que correspondem aos linfócitos atípicos do sangue periférico, tentam destruir os linfócitos B infectados pelo vírus, sendo esta reacção imunológica a principal responsável pelas diversas manifestações da doença.

Nos gânglios e baço verifica-se uma reacção inflamatória inespecífica com hiperplasia das células do SRE e predomínio de linfócitos normais e atípicos. No fígado podem ser evidentes sinais de necrose e distensão dos espaços porta por exsudado inflamatório constituído sobretudo por linfócitos, sem alterações, e atípicos.

Após descrição sucinta de aspectos epidemiológicos e etiopatogénese da infecção por VEB em geral, procede-se à abordagem clínico-laboratorial específica das formas clínicas: 3.1, 3.2 e 3.3.

Por fim, são focados aspectos genéricos do diagnóstico, tratamento e prognóstico das infecções por VEB em geral.

3.1 MONONUCLEOSE INFECCIOSA

Definição e manifestações clínicas

A mononucleose infecciosa (MNI) clássica é uma síndroma clínica aguda de causa infecciosa que tem como agente etiológico mais frequente o vírus de Epstein-Barr. O período de incubação varia entre 4-6 semanas, podendo o início ser agudo ou insidioso. É caracterizada essencialmente por febre, adinamia, amigdalite frequentemente exsudativa, faringite, e linfadenopatia cervical ou generalizada. Conforme o predomínio de um ou de outro sinal ou sintoma, poderão ser descritas formas febris, amigdalinas, ou ganglionares.

Podem surgir também dor abdominal, náuseas, vómitos, dificuldade respiratória, edema palpebral, esplenomegália e hepatomegália, petéquias no palato e exantema maculopapular ou morbiliforme.

O exantema pode estar associado à administração de ampicilina (ou amoxicilina), sobretudo nos adultos. A fadiga pode ser proeminente.

A designação popular de doença do beijo” e de “doença dos noivos sublinha o facto de o agente da doença se poder transmitir muitas vezes pela saliva. A designação antiga de febre ganglionar traduz a comparticipação do sistema linfóide nesta entidade clínica.

Em suma, a tríade linfadenopatias, faringoamigdalite exsudativa e muito dolorosa, e esplenomegália num doente febril é típica – conquanto não patognomónica – de MNI.

Exames complementares

A leucocitose (10.000-20.000/mm3) é mais frequente do que a leucopénia; observa-se, regra geral, predomínio de linfócitos, com linfócitos atípicos pleomorfos, que correspondem aos linfócitos T activados.

A trombocitopénia ligeira é referida na literatura (20.000-50.000/mm3) em mais de 50% dos doentes; habitualmente comprova-se uma elevação ligeira a moderada das transaminases (ALT e AST).

Diagnóstico diferencial

Apesar de, tal como foi referido, o agente etiológico mais frequente da síndroma de mononucleose infecciosa ser o VEB, há que considerar outros agentes causais da referida síndroma, nomeadamente citomegalovírus (CMV), Toxoplasma gondii, vírus das hepatites A, B e C (VHB, VHC) e, por vezes, VIH.

As situações acompanhadas de leucocitose muito acentuada põem problemas de diagnóstico diferencial com leucemia aguda. Quando a elevação das transaminases predomina há que considerar a hipótese de hepatite aguda por vírus. A amigdalite da infecção por VEB deve ser distinguida da amigdalite estreptocócica (se bem que por vezes haja co-infecção por estes dois agentes), da diftérica e de outras amigdalites por outros agentes víricos como adenovírus.

3.2 INFECÇÃO PRIMÁRIA por VEB

Em crianças pequenas, a infecção por VEB é frequentemente assintomática. Quando existe sintomatologia, as manifestações são variáveis: otite média, diarreia, queixas abdominais, infecção das vias respiratórias superiores, e quadro semelhante ao descrito para a entidade clínica “mononucleose infecciosa”.

A infecção primária por VEB pode causar dum modo geral diversas manifestações, por vezes com complicações graves:

  • Alterações hematológicas (anemia hemolítica, trombocitopénia, anemia aplásica, púrpura trombótica trombocitopénica, síndroma hemolítica-urémica, coagulação intravascular disseminada;
  • Ruptura esplénica (mais frequente durante a segunda semana de doença, embora possa surgir como apresentação clínica inicial;
  • Sintomas neurológicos (meningoencefalite, paralisia do nervo facial, síndroma de Guillain-Barré, meningite asséptica, mielite transversa, neurite periférica e neurite óptica);
  • Pneumonia, ou outras complicações respiratórias com obstrução das vias aéreas por hiperplasia do tecido linfóide;
  • Miocardite ou pericardite;
  • Pancreatite, adenite mesentérica ou hepatite fulminante;
  • Glomerulonefrite;

Como particularidades de algumas formas de infecção primária citam-se:

  • Sobreinfecção bacteriana, sobretudo por Streptococcus-hemolítico do grupo A, abcessos cervicais ou periamigdalinos;
  • Associação a síndroma de Gianotti-Crosti (constando de exantema simétrico pápulo-eritematoso podendo confluir em placas, com a duração de 15-20 dias e localização predominante nas extremidades e nádegas). Este quadro imita a dermatite atópica.

3.3 OUTRAS FORMAS CLÍNICAS de INFECÇÃO por VEB

Estão descritas alterações genéticas hereditárias determinando resposta anómala traduzida por maior gravidade ou tendência para a cronicidade da infecção por VEB. Como exemplos, são referidas mutações de genes SAP ou XIAP, ITK, MAGT1 (XMEN). (ver adiante)

Nesta perspectiva são descritas as seguintes formas clínicas:

  • Forma crónica activa: os sintomas são persistentes por mais de 6 meses, os títulos de IgG VCA são elevados (ver adiante), há evidência histológica de envolvimento focal e a virémia é elevada;
  • Síndroma hemofagocítica ou linfo-histiocitose hemofagocítica (HLH): esta situação, pouco frequente, é caracterizada por febre, hepatoesplenomegália, pancitopénia, hipertrigliceridémia e/ou hipofibrinogenémia, com fagocitose das células sanguíneas e seus precursores, actividade deficiente das células T/NK e produção anárquica de citocinas. Devem ser excluídas as formas familiares de HLH, associadas a mutação da perforina, MUNC13-4 e UNC13D;
  • Doenças linfoproliferativas: a infecção por VEB pode ser considerada um “cancro abortado”, tendo-se demonstrado que o referido vírus possui um elevado potencial oncogénico. Exemplos dessas patologias são a doença linfoproliferativa ligada ao X ou síndroma de Duncan (por mutação SAP ou XIAP), linfoma de Burkitt, carcinoma nasofaríngeo, linfomas de células B ou T e a doença de Hodgkin.
    O poder oncogénico do vírus expressa-se de modo diferente consoante as regiões geográficas. Por exemplo, o linfoma de Burkitt predomina na África Equatorial, entre o Trópico de Capricórnio e o Trópico de Câncer, e ainda na Papua Nova Guiné; o cofactor mais importante para o aparecimento desta patologia é a malária, nomeadamente por Plasmodium falciparum: a exposição contínua à malária actua como mitogénico dos linfócitos B infectados pelo vírus, diminuindo, por efeito sobre a imunidade celular, o controlo exercido pelas células T.
    A doença de Hodgkin tem um pico de incidência na infância nos países em desenvolvimento, enquanto nos países desenvolvidos a incidência é maior no adulto jovem, o que coincide com o perfil da infecção por VEB nesses países;
  • Doença linfoproliferativa pós-transplante: resulta da ausência de vigilância imune efectiva contra o VEB, pela imunossupressão. Surge habitualmente febre e infiltração linfomatosa disseminada (gânglios, fígado, baço, rim, pulmão, SNC e intestino). É mais frequente nas situações decorrentes do transplante de órgão sólido, sobretudo intestino e pulmão.

Diagnóstico

O diagnóstico de infecção por VEB pode ser suspeitado pelos dados clínicos e por certos achados laboratoriais característicos.

A confirmação do diagnóstico de infecção por VEB baseia-se na demonstração de diversos tipos de anticorpos específicos anti-VEB: VCA (viral capside antigen) IgG e IgM, EBNA (nuclear antigen), EA (early antigen); cada tipo de anticorpo é detectável em fases diferentes da infecção:

  • VCA-IgM – anticorpo surge na fase precoce da doença aguda (geralmente nas primeiras duas semanas de infecção); desaparece após vários meses de infecção; nesta fase há ausência de anticorpos EBNA. A existência de factor reumatóide pode causar um resultado falso positivo;
  • VCA-IgG – persiste durante toda a vida após infecção inicial;
  • EA – associa-se à replicação vírica; presente em 70%-80% casos de doença aguda, desaparece após 6 meses;
  • EBNA – tardio, surge cerca de 6-12 semanas após infecção, persiste para o resto da vida.

Em suma, a detecção de VCA-IgM e IgG constitui a prova serológica mais valiosa e específica para o diagnóstico de infecção por VEB, na ausência de EBNA, sendo geralmente suficiente para confirmar o diagnóstico de infecção aguda.

Como provas qualitativas de aglutinação, citam-se:

  • Prova de Paul-Bunnell-Davidsohn, em que se pesquisa a aglutinação de eritrócitos de espécies diferentes (carneiro, cavalo, etc.), empregando soro do doente contendo anticorpos/aglutininas que se formam no decurso da MNI; como aglutinam eritrócitos de outras espécies, tais anticorpos são chamados heterófilos;
  • Monospot test, que constitui uma variante da metodologia descrita antes.

Estas provas evidenciam habitualmente valores falsos positivos em menos de 10% dos casos e elevado número de resultados falsos negativos em crianças pequenas.

A detecção de DNA do VEB por técnicas moleculares no sangue, LCR e noutros produtos biológicos, tem utilidade nos doentes imunossuprimidos, em que a resposta imunológica poderá estar ausente, e em situações clínicas mais complexas. Embora por vezes difícil de avaliar, a monitorização da carga vírica do VEB no sangue é importante na síndroma linfoproliferativa pós-transplante e em doenças malignas.

Diagnóstico diferencial

Apesar de, tal como foi referido, o agente etiológico mais frequente da síndroma de mononucleose infecciosa ser o VEB, há que considerar outros agentes causais originando síndromas mononucleósicas nomeadamente citomegalovírus (CMV), Toxoplasma gondii, vírus das hepatites B e C (VHB, VHC) e, por vezes, VIH. As situações acompanhadas de leucocitose muito acentuada põem problemas de diagnóstico diferencial com leucemia aguda.

Quando a elevação das transaminases predomina há que considerar as hepatites agudas por vírus. A amigdalite da infecção por VEB deve ser distinguida da amigdalite estreptocócica (se bem que por vezes haja co-infecção por estes dois agentes), da diftérica e de outras amigdalites por outros agentes víricos como adenovírus.

Tratamento

Não existe tratamento específico para a síndroma de mononucleose infecciosa. O tratamento é geralmente de suporte, visto que a doença é autolimitada. Se existir fadiga debilitante aconselha-se repouso no leito. Os desportos de contacto devem ser evitados enquanto houver esplenomegália ou alterações da coagulação devido ao risco de ruptura esplénica.

A terapêutica com aciclovir, ganciclovir ou foscarnet diminui a replicação vírica e a disseminação orofaríngea durante o período de administração, mas não reduz a gravidade ou duração dos sintomas, nem altera o prognóstico, pelo que não é aconselhado.

Pequenos cursos de corticosteróides poderão ter utilidade nos casos de complicações da doença, nomeadamente nos casos de dificuldade respiratória por inflamação amigdalina marcada, miocardite, anemia hemolítica, trombocitopénia grave ou síndroma hemofagocítica.

Prognóstico

O prognóstico de MNI é geralmente bom, sendo as complicações pouco frequentes. Os sintomas principais podem durar entre quatro semanas a 10 meses, seguindo-se uma recuperação gradual. Um estado de fadiga pode permanecer durante mais tempo (meses). Na doença linfoproliferativa a mortalidade é elevada, atingindo os 50%.

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Importância do problema

O microrganismo Parvovírus B19 (PVB19), vírus ADN e de cadeia única, pertence, como único membro, à família Parvoviridae e ao género Erythrovirus. A designação deste microrganismo deriva do facto de o mesmo se replicar unicamente nos precursores hematopoiéticos.

Foi inicialmente descoberto em 1975 no soro de dadores de sangue saudáveis. Durante muitos anos após a sua descoberta, admitiu-se que a infecção por PVB19 era assintomática ou associada a doença febril inespecífica.

Em 1980 chamou-se a atenção para o papel central do referido vírus na patogénese das crises aplásticas no contexto de anemia hemolítica crónica. Ulteriormente, concluiu-se que a entidade clínica denominada muitos anos antes Eritema Infeccioso (ou 5ª doença dos antigos) era a manifestação mais comum de infecção pelo mesmo vírus. Mais tarde associou-se o PVB19 a patologia diversa durante a gravidez, sendo a hidropisia fetal de causa não imune a mais conhecida.

As infecções por este vírus estão associadas a um espectro amplo de manifestações clínicas. Outros parvovírus são patogénicos para animais como o cão e o gato.

Aspectos epidemiológicos 

As infecções por PVB19, distribuídas em todo o mundo, são mais prevalentes na idade escolar (~ 70% dos casos entre os 5 e 15 anos), com picos sazonais na transição do Inverno para a Primavera. Trata-se do único membro da família Parvoviridae que causa doença na espécie humana.

A seroprevalência aumenta com a idade, tendo sido provado, em estudos epidemiológicos, que cerca de 40%-60% dos adultos já tiveram a infecção.

A transmissão de pessoa a pessoa faz-se sobretudo por via respiratória através das gotículas de secreções nasofaríngeas; contudo, pode fazer-se igualmente através do sangue ou derivados, facto documentado em doentes com hemofilia.

Poderão surgir infecções pelo PVB19 associadas aos cuidados de saúde/nosocomiais, com possibilidade de afectar os profissionais de saúde.

Por outro lado, pode verificar-se segundo episódio de doença no mesmo indivíduo, com probabilidade entre 10% e 60%.

Etiopatogénese

A infecção experimental com PVB19 em voluntários saudáveis revelou que a mesma constitui uma doença bifásica.

  • Cerca de 7-11 dias após a inoculação surge virémia acompanhada de febre, mal-estar, rinorreia e eliminação do vírus pelas secreções nasofarígeas. Concomitantemente, verificou-se que havia diminuição muito acentuada dos reticulócitos, atingindo-se níveis indetectáveis, a par de discreta diminuição da hemoglobina sérica. Com o surgimento de anticorpos específicos, a sintomatologia regrediu e a hemoglobina sérica voltou ao normal.
  • Cerca de 17-18 dias após a inoculação, nalguns indivíduos surge exantema associado a artralgia.

Nesta perspectiva, concluiu-se que na patogénese da doença infecciosa por PVB19 estão implicados dois mecanismos correspondentes a duas fases da mesma:

  1. A primeira fase (infecciosa), resultante da acção directa do vírus (citotoxicidade com efeito sobre as  células susceptíveis em divisão); e
  2. A segunda fase (pós-infecciosa), relacionada com a resposta imune.

Pormenorizando:

1ª Fase (infecciosa)Citotoxicidade directa sobre as células precursoras eritróides, (fase infecciosa).

O alvo primário do PVB19 é a linha celular eritróide, particularmente pronormoblastos e normoblastos em divisão. A infecção vírica (e replicação) produz lise celular com consequente depleção progressiva dos precursores eritróides e a inibição transitória da eritropoiese. O vírus não tem efeito aparente sobre a linha celular mielóide.

O tropismo para as células eritróides é explicado pela existência do chamado antigénio P (Ag P) dos grupos de sangue nas células eritróides, o qual constitui o receptor celular primário para o vírus; importa salientar:

      • Que tal receptor também se encontra ao nível das células endoteliais, renais, placentárias e miocárdicas fetais; e
      • Que indivíduos sem a proteína P são resistentes à infecção.

Importa especificar que a patogénese de anomalias muitas vezes observadas também, tais como trombopénia e neutropénia, não têm explicação na base dos conhecimentos actuais. Somente se comprovou in vitro que as proteínas do PVB19 têm acção citotóxica sobre os megacariócitos.(#)

Ocasionalmente o vírus pode infectar os leucócitos (especialmente os neutrófilos), sendo que in vitro as proteínas do PVB19 têm acção citotóxica sobre os megacariócitos. Muito embora a infecção se possa manifestar como um quadro de pancitopénia, o vírus não constitui factor etiológico desencadeante de verdadeira anemia aplástica.

2ª Fase (pós-infecciosa)Resposta imune do hospedeiro. Nesta fase (pós-infecciosa), em que se verifica a formação de imunocomplexos, o quadro clínico é variável, em função de diversos factores: estado geral anterior do paciente infectado por PVB19, idade, eventual verificação de imunocompetência, de alteração da imunidade humoral e/ou de doença hematológica (designadamente anemia hemolítica crónica).

      1. Nas situações imunocompetência ou normalidade dos mecanismos do sistema imune, verifica-se que 25% dos infectados estão assintomáticos, 50% evidenciam sintomatologia inespecífica (febre, mialgia, cefaleia), e 25% apresentam manifestações cutâneas do tipo exantema (mais frequentes até aos 10 anos), e articulares (sobretudo em adolescentes e adultos). Os indivíduos imunocompetentes produzem anticorpos específicos (IgG e IgM contra o vírus).
      2. Nos indivíduos padecendo de anemia hemolítica crónica e doutras doenças hematológicas caracterizadas por turnover elevado de eritrócitos existe especial vulnerabilidade face a perturbações, mesmo ligeiras, da eritropoiese. A infecção por PVB19, levando a inibição transitória da eritropoiese, provoca diminuição significativa da hemoglobina (Hb), requerendo muitas vezes transfusão. Em tal circunstância verifica-se igualmente diminuição acentuada dos reticulócitos, traduzindo lise dos precursores eritróides infectados.
        Neste contexto, a normalidade da imunidade humoral é crucial para controlo da infecção (como mecanismo natural de resposta). Assim, como resultado do mecanismo de compensação funcionante/normal, surge imunoglobulina específica (Ig)M dentro de 1-2 dias após a infecção, seguindo-se elevação de IgG anti-PVB19, conduzindo a controlo da infecção, restauração da reticulocitose e a elevação da Hb.
      3. Nos indivíduos com alteração da imunidade humoral existe risco aumentado de infecções por PVB19 mais graves e persistentes, traduzindo-se por aplasia eritrocitária crónica, por vezes acompanhada de neutropénia, trombocitopénia e insuficiência medular. Nas crianças submetidas a quimioterapia no contexto de leucemia ou outras formas de cancro, submetidas a transplantes, assim como em situações de imunodeficiência congénita ou adquirida (incluindo SIDA) verifica-se risco elevado de infecções crónicas por PVB19.

O papel da imunidade celular na recuperação da doença não é conhecido, muito embora alguns doentes em que se desenvolve infecção persistente evidenciem défice de células T bem como outras alterações do sistema imune.

Notas importantes:
Considerando como referência o período de incubação de 7 dias, poder-se-á estabelecer a seguinte cronologia de eventos mais importantes, relacionados com a patogénese:
🡪 Virémia e sinais inespecíficos persistindo entre o 7º e o 14º dia;
🡪 Descida dos reticulócitos e Hb a partir do 6º-7º dia e persistindo cerca de 4 semanas;
🡪 Ac IgM específicos anti-PVB19 desenvolvendo-se rapidamente após o início da virémia (entre 4-10 dias após a infecção) com pico pelas 2-3 semanas e persistindo durante tempo superior a 6-8 semanas (podendo desaparecer pelos 3-6 meses); constituem o melhor marcador de infecção aguda/recente;
🡪 Ac IgG específicos a partir do 14º dia ou terceira semana após a infecção; (marcadores de infecção passada ou de imunidade, detectáveis durante toda a vida);
🡪 Exantema e artropatia pela 3ª-4ª semana;
🡪 O aparecimento de erupção cutânea, coincidindo, como se referiu, com o desenvolvimento de Ac IgG, ocorre após a virémia, não havendo, nesta fase, risco de transmissão da doença. O aparecimento de Ac IgG anti-PVB19 indicia infecção dominada, restabelecimento da normalidade no número de reticulócitos e elevação da concentração de Hb.

 

Manifestações clínicas

O período de incubação deste tipo de infecção varia entre 4 e 14 dias, podendo atingir 20 dias.
As manifestações clínicas são muito variadas, desde quadros específicos exantemáticos (eritema infeccioso) até apresentações graves (crises aplásicas) em doentes com factores de risco imunológicos e hematológicos.
No indivíduo aparentemente saudável, a infecção pode ser assintomática, salientando-se que a manifestação mais comum é o já referido eritema infeccioso.
Nos casos de imunodepressão (em regime de quimioterapia ou de tratamento com drogas imunossupressoras, síndromas de imunodeficiência congénita ou adquirida) poderá desenvolver-se infecção persistente, causa frequente de anemia crónica.
A hidropisia fetal e a morte fetal são complicações da infecção fetal.
Outras manifestações menos comuns de infecção por PVB19 incluem: púrpura trombocitopénica idiopática, miocardite, vasculite, glomerulonefrite, meningoencefalite, dermatomiosite juvenil e pseudoapendicite; tal sintomatologia pode surgir isoladamente ou como complicação do eritema infeccioso.
Seguidamente procede-se à descrição das formas clínicas mais típicas.

Eritema infeccioso (Quinta doença ou megaleritema epidémico)

É mais comum nas crianças entre os 4-10 anos. O curso clássico do eritema infeccioso pode ser dividido em três estádios distintos (Figuras 1 e 2):

Estádio 1
  • Período de transmissão possível (precedendo o exantema).
  • Doença prodrómica leve (mal-estar, rinorreia, cefaleia, mialgia).
  • Virémia (início cerca de 7 dias após a infecção).
  • Depleção das células progenitoras eritróides.
  • Desenvolvimento de Ac IgM específicos.

FIGURA 1. Criança de 4 anos, hospitalizada com quadro febril, queilite, erupção tipo “face esbofeteada” e erupção maculopapulosa difusa. Detecção de Ac IgM específicos para PVB19 e sinais laboratoriais de compromisso renal.

FIGURA 2. A mesma criança da Figura 1 evidenciando quadro morfológico cutâneo compatível com PPGSS (papular-purpuric gloves and socks syndrome).

Estádio 2
  • Exantema facial semelhante a “cara esbofeteada”.
  • Desaparecimento da virémia.
  • Desenvolvimento de Ac IgG específicos (anti-PVB19).
Estádio 3
  • Exantema eritematoso maculopapuloso das extremidades e tronco. Mais proeminente nas superfícies de extensão, poupando as palmas das mãos e plantas dos pés.
  • Curso evanescente do exantema em 1-3 semanas.
  • Artropatia.

O exantema, um dos mais comuns da infância, é muito típico, evoluindo em três fases.

Após 5-7 dias do início da doença, surge erupção cutânea avermelhada, brilhante, nas bochechas (face como que esbofeteada), seguida de erupção de tipo “rendilhado ou reticulado difuso” do tronco, por vezes purpúrica, estendendo-se gradualmente para as extremidades. Por vezes surge eritema multiforme, ou prurido na planta dos pés. Outras vezes ainda: eritema purpúrico com lesões papulares e distribuição em luva (glove) e meia (sock) originando a sigla em inglês: PPGSS (papular-purpuric gloves and socks syndrome).

Esta síndroma, relacionada sempre com infecção por PVB19, é rara no adulto, e mesmo, na criança. Um exantema residual associado ao PVB19 pode reaparecer até várias semanas ou meses após a infecção inicial, podendo ser exacerbado por alterações térmica (banho quente) e luz solar. 

Infecção por PVB19 durante a gravidez e infecção fetal

Na mulher grávida, a infecção materna primária por PVB19 pode resultar em hydrops foetalis, aborto e morte fetal, particularmente quando se verifica antes das 20 semanas de gestação (em 10% dos fetos cujas mães se infectam durante a gravidez).

A hidropisia fetal gera-se no contexto de anemia e miocardite fetais, levando a insuficiência cardíaca congestiva. A este respeito, importa salientar o efeito citopático/citotóxico do PVB19 quer sobre a hematopoiese extramedular (hepática e esplénica em fase precoce da gravidez, desde a 6ª semana), quer sobre a medular, a partir do 4º mês.

Nos Estados Unidos a etiologia mais comum da hidropisia fetal é precisamente a infecção por PVB19.

Há resultados controversos de estudos relativamente à possibilidade (ou não) de anomalias congénitas atribuíveis à infecção in utero.

No decurso da gravidez importa avaliar o hematócrito fetal através de colheita de sangue do cordão por via percutânea. Poderá estar indicada transfusão eritrocitária intrauterina.

Na data do parto está indicado o estudo do sangue do cordão ou do sangue do RN para a detecção de vírus e IgM.

O diagnóstico diferencial da anemia congénita causada por este tipo de infecção faz-se fundamentalmente com a anemia hipoplástica congénita (síndroma de Diamond-Blackfan).

Artropatia

Desde há alguns anos que se tornou clara a associação de PVB19 com artrite e artralgias. É mais comum nos adultos, particularmente na mulher; este tipo de patologia afecta principalmente as pequenas articulações das mãos e dos pés, joelhos, tornozelos e punhos, com distribuição simétrica.

Em cerca de 50% dos casos poderá verificar-se a presença de sinais gerais associados (astenia, adinamia, mialgias, cefaleias, febre, etc.), sendo que em apenas 1/3 se verifica exantema concomitantemente.

A relação entre infecção por PVB19 e artrite reumática juvenil, artrite reumatóide e doença de Still tem sido estudada exaustivamente.

Crise aplástica transitória

Em doentes com anemia hemolítica crónica, nos quais a duração da sobrevida eritrocitária está diminuída, a acentuada reticulocitopénia resultante da infecção por PVB19 conduz a diminuição da concentração de hemoglobina a níveis críticos (crise hipoplástica).

Nos doentes com drepanocitose pode haver associação da crise aplástica (compromisso de todas as séries precursoras) com síndroma torácica aguda, crises vasoclusivas e sequestração esplénica.

A infecção por PVB19 não resulta invariavelmente em crise aplástica no doente hemolítico crónico; com efeito, nalgumas situações, tal complicação poderá não surgir se tiver havido transfusão recente, o que se explica:

  • pelo efeito protector dos anticorpos anti-PVB19 transfundidos (~ 40%-60% dos dadores são imunes);
  • pela substituição dos eritrócitos do dador, de vida média normal, por eritrócitos de vida média encurtada; ou
  • pelos dois mecanismos.

Nesta forma clínica de infecção por PVB19, ao contrário do que acontece nos doentes com eritema infeccioso, existe febre, mal-estar geral, letargia e sinais e sintomas associados a anemia de gravidade variável (palidez, taquicárdia, taquipneia, etc.).

Síndromas de imunodeficiência

Os doentes com alterações diversas da imunidade humoral têm maior risco de infecção crónica por PVB19, manifestada predominantemente por anemia crónica, em geral associada a neutropénia, trombocitopénia e aplasia medular. Outras situações de risco de infecção incluem patologia em que está indicada terapia imunossupressora ou quimioterapia (tumores sólidos, leucemia linfocítica aguda, etc.).

Uma das complicações neste contexto é a síndroma hemofagocitária.

Miocardite

As infecções por PVB19 podem originar miocardite em fetos, RN, crianças, adolescentes e adultos. A este propósito, cabe referir que as células do miocárdio exprimem o antigénio P, o que já foi referido antes.

O diagnóstico etiológico pode ser realizado através do estudo do ADN.

Diagnóstico

Os Ac IgM específicos anti-PVB19, desenvolvendo-se rapidamente após o início da virémia (entre 4-10 dias após a infecção) com pico pelas 2-3 semanas, persistem durante tempo superior a 6-8 semanas. Podendo desaparecer pelos 3-6 meses, constituem o melhor marcador de infecção aguda/recente.

Os Ac IgG específicos surgem a partir do 14º dia ou terceira semana após a infecção; são marcadores de infecção passada ou de imunidade, detectáveis durante toda a vida.

A seroconversão de IgG anti-PVB19 também serve de marcador de infecção recente (aumento do título 4 vezes em duas amostras de soro com duas semanas de intervalo). De salientar que a demonstração de IgG, mesmo com títulos elevados, na ausência de IgM, não é diagnóstica de infecção recente.

A detecção do vírus no sangue ou tecidos realiza-se pela técnica da reacção em cadeia da polimerase (PCR). Este método será reservado para situações de imunodeficiência em que a resposta de anticorpos, por ser deficiente (com baixo nível de ADN no soro), não é identificada por métodos convencionais.

Com efeito, o vírus pode ser detectado mediante PCR até vários meses após a fase aguda da infecção ainda que, nos pacientes imunocompetentes, os níveis caiam rapidamente depois da fase aguda. Nos pacientes imunodeprimidos ou nos diagnosticados de crise aplásica antes do desenvolvimento da resposta imunológica, esta prova é crucial para o diagnóstico.

O método de hibridação de ácidos nucleicos permite identificar positividade somente durante 2-4 dias após o início da doença.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial das infecções por PVB19 com exantema faz-se com outras doenças exantemáticas. Nos casos de exantema e artropatia há que admitir patologia do foro da Reumatologia.

Tratamento

Não existe terapêutica específica antivírica.

Nas situações de aplasia medular induzida por PVB19, nas formas persistentes e nas formas graves nos pacientes imunodeprimidos, está indicada IGIV na dose de 200 mg/kg/dia durante 5 dias; ou 1 g/kg/dia durante 3 dias. A IGIV não está indicada nas formas acompanhadas de artropatia.

Quando se suspeita de anemia, com base na ecografia, é fundamental a monitorização fetal incluindo a determinação do hematócrito através de colheita de amostra de sangue da veia umbilical por via percutânea. Poderá estar indicada a transfusão intrauterina para prevenção da morte fetal por anemia.

Em medicina materno-fetal, o diagnóstico de hidropisia e anemia fetais implica transferência da grávida para centro especializado perante a provável indicação de transfusão fetal.

Nos quadros febris e dolorosos estão indicados antipiréticos e analgésicos como paracetamol ou ibuprofeno.

Qualquer mulher grávida não imunizada e exposta ao PVB19 deve ser observada em consulta de obstetrícia. Havendo antecedentes de hidropisia fetal, independentemente do tratamento pré-natal efectuado, a criança deve ser submetida a vigilância rigorosa no sentido de detectar qualquer anomalia e ou sequelas.

Prevenção

Não existe vacina disponível para PVB19. Está a ser investigada uma vacina composta por proteínas da cápside do vírus.

A prevenção é difícil uma vez que o vírus é transmitido antes do aparecimento de sintomas no caso índice. Por isso, não se torna necessário isolamento nem evicção escolar.

Nos casos de aplasia medular estão indicadas medidas de isolamento do doente, dado o risco de sobreinfecção.

Nota: As fotos incluídas neste capítulo fazem parte da iconografia do Departamento de Pediatria do Hospital Fernando Fonseca, Amadora-Sintra.

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Nomenclatura e importância do problema

Os Enterovírus (EV) pertencem à família Picornaviridae e englobam grande número de patogénios responsáveis por um espectro alargado de doenças. São constituídos por RNA de cadeia simples, rodeado por uma cápside que compreende 60 cópias de 4 proteínas víricas designadas respectivamente por VP1, VP2, VP3 e VP4, sem invólucro lipídico.

Anteriormente, a sua classificação era baseada no potencial patogénico observado em humanos e ratos, integrando 5 grupos diferentes: Poliovirus (serótipos 1-3), Coxsackievirus A (serótipos 1-22 e 24), Coxsackievirus B (serótipos 1-6), Echovirus (serótipos 1-9, 11-21, 24-27, 29-33) e Enterovirus (serótipos 68-71).

Actualmente, a classificação dos EV tem em conta as propriedades moleculares, antigénicas e biológicas dos vírus, resultando assim respectivamente em 5 diferentes espécies de EV Humanos: Poliovirus, Human Enterovirus-A (HEV-A), HEV-B, HEV-C e HEV-D. De referir que os primeiros Para-Echovirus Humanos (HPeV) foram descritos anteriormente como Echovirus 22 e 23, pertencendo ao género EV. Na actualidade estão descritos mais de 10 HPev, pertencentes a um género próprio.

Os tipos dos enterovírus distinguem-se por diferenças quanto a antigénios e quanto a sequências genéticas. Embora tenham sido identificados mais de 100, a maioria dos casos de doença é explicada por 10-15 dos mesmos. Diferentes tipos de EV estão associados a determinadas manifestações clínicas.

Algumas das suas mais importantes características físicas e biológicas incluem a capacidade de actuar perante um grande espectro de pH (3 a 10), resistência ao éter e etanol, e inactivação a temperaturas superiores a 50ºC.

As infecções por EV, muito frequentes na idade pediátrica, são habitualmente responsáveis por sintomas ligeiros, como doença das vias respiratórias superiores ou exantema febril.

No entanto, podem também ser responsáveis por um quadro clínico com gravidade, principalmente no período neonatal.

Surtos de infecção por EV têm sido descritos, tais como:

  • O surto de EV-D68, que causou um elevado número de casos de insuficiência respiratória em crianças nos Estados Unidos em 2014; e
  • O surto de EV-71, que tem vindo a causar inúmeras mortes por rombencefalite e disfunção multiorgânica no Sueste Asiático nos últimos 40 anos.

Aspectos epidemiológicos

Os enterovírus têm uma distribuição mundial. Nos climas temperados ocorrem surtos de infecções sobretudo no Verão e início do Outono. Nos trópicos não se verifica incidência sazonal.

As respectivas infecções são responsáveis por cerca de 30%-60% das doenças febris agudas, e por cerca de 50% dos casos hospitalizados com suspeita de sépsis, de acordo com dados estatísticos de países americanos e europeus.

São considerados factores de risco: idades mais baixas, deficientes condições de higiene e saneamento, baixo nível socioeconómico e aglomerados de pessoas e crianças em infantários, escolas, e deficientes condições de habitação em geral.

A transmissão dos EV ocorre predominantemente por via directa ou indirecta de contacto fecal-oral com pessoas infectadas com o vírus.

Por exemplo, o contacto directo com fezes ocorre em actividades simples como mudar a fralda.

A transmissão indirecta pode ocorrer por más condições sanitárias e inclui água contaminada e superfícies. Pode também haver transmissão através de secreções respiratórias, mais frequente em alguns serótipos, nomeadamente Coxsackievirus A21.

O período de incubação é difícil de determinar com precisão, podendo variar de acordo com a apresentação clínica e com o vírus. Nos casos de doença febril aguda, é geralmente de 3 a 5 dias, exceptuam-se os casos de conjuntivite hemorrágica, de 24-72 horas.

A excreção do vírus pelo tracto respiratório superior em doentes infectados permanece durante cerca de 1 a 3 semanas e, pelas fezes, durante cerca de 3 a 8 semanas.

O período de maior contágio verifica-se provavelmente nas primeiras duas semanas após infecção aguda.

Etiopatogénese

Muito do que se sabe da etiopatogénese dos enterovírus foi extrapolado de estudos da infecção por poliovírus. Após a aquisição do vírus, a replicação inicial ocorre na faringe e íleo terminal. A ausência de invólucro lipídico favorece a sobrevivência no tracto gastrintestinal.

Por outro lado, diversas macromoléculas da superfície celular funcionam como receptores para o vírus: receptor para Adenovirus-Coxsackievirus, molécula intercelular de adesão 1 (ICAM-1), antigénio VLA-2 e proteína DAF/CD55.

A replicação inicial na faringe e intestino é seguida por uma virémia minor que possibilita a disseminação do vírus por via hematogénica para os tecidos linfóides (amígdalas, placas de Peyer e gânglios regionais).

A resposta imune do hospedeiro poderá limitar a replicação e progressão para além do sistema retículo-endotelial, do que resultará infecção subclínica.

Nos casos em que não se verifica o processo de limitação da replicação, a multiplicação subsequente faz com que haja uma virémia major, coincidente com o início da sintomatologia, sendo atingidos o SNC, coração e pele (forma sintomática).

De salientar que o tropismo para determinados órgãos-alvo é determinado em parte pelo serótipo.

Uma vez atingidos os órgãos-alvo (SNC, coração, fígado, pulmões, pâncreas, rins, músculo, pele), os mesmos são lesados em função de processo de necrose local (citólise) e de resposta inflamatória imunomediada, sendo que a resposta inflamatória poderá passar à cronicidade, sem a presença do vírus, após a sua eliminação. Como resultado da persistência possível de certos Enterovirus (por ex. Coxsackie B) poderá surgir cardiomiopatia dilatada.

A resposta imune ao EV é específica para cada um dos seus diferentes serótipos e, como tal, a reinfecção por um determinado serótipo é, em regra, assintomática.

A imunidade humoral tem um papel fundamental, não só na resposta à infecção aguda, mas também na prevenção da reinfecção; contudo, isoladamente, não é suficiente para bloquear a replicação in vitro.

A proteína da cápside VP1 é o alvo preferencial do anticorpo neutralizante, o qual confere imunidade duradoura para a doença provocada pelo mesmo serótipo.

O papel dos macrófagos na infecção por EV é essencial para a depuração do vírus, ao contrário da resposta celular mediada por linfócitos T, que não parece contribuir significativamente para a eliminação do vírus.

Certos hospedeiros são mais susceptíveis a infecções graves, nomeadamente:

  • No período neonatal: recém-nascidos infectados pelas suas mães no período perinatal, ou ainda;
  • Portadores de imunodeficiências congénitas ou adquiridas que poderão originar situações de infecção crónica;
  • Pacientes padecendo de agamaglobulinémia: possibilidade de a infecção por EV poder cursar com meningoencefalite crónica devastadora.

Manifestações clínicas

Em cerca de 90% dos casos as infecções são subclínicas; quando sintomáticas, cursam geralmente com síndroma febril ou doença respiratória inespecífica. Nos pacientes sintomáticos, o espectro e a gravidade da doença dependem do serótipo de EV assim como de factores do hospedeiro, como a idade, o sexo e o respectivo tipo de resposta imunológica, a ausência ou presença de memória imunológica. A probabilidade de doença sintomática é tanto maior quanto menor a idade da criança.

Apenas numa pequena proporção de casos se verificam manifestações clínicas graves como miocardite, meningoencefalite, rombencefalite ou sépsis. No que respeita à gravidade, ela será provavelmente maior nos extremos da faixa etária pediátrica (RN e adolescentes).

De referir contudo que, mesmo nos casos ligeiros ou assintomáticos se pode verificar excreção do vírus, o que constitui fonte de disseminação da infecção.

Tendo sido referido antes que este capítulo não incluía o Poliovirus, como complemento, sugere-se a leitura do capítulo sobre doenças neuromusculares, o qual aborda, de modo sucinto, aspectos clínicos da poliomielite na alínea relacionada com o diagnóstico diferencial.

Seguidamente são sistematizadas as principais formas clínicas das infecções por enterovírus. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Manifestações clínicas associadas à infecção por Enterovírus.

Quadro clínico Particularidades
S. febril inespecíficaTodos os serótipos de enterovírus
ParalisiaMais comum com poliovírus, mas também enterovírus, especialmente enterovírus 71
MeningiteTodos os enterovírus, sobretudo antes dos 5 anos de idade
Encefalite/meningoencefalite RombencefaliteGeneralizada ou focal, associada a meningite (na maioria dos casos, recuperação sem défice neurológico)
Doença mão-pé-bocaCoxsackie A16, A5, A7, A9, A10, e B2, B5, e enterovírus 71 (formas mais graves)
HerpanginaGeralmente por coxsackie A; por vezes enterovírus 71
Pleurodinia epidémica (doença de Bornholm)Por coxsackie B3, B5, B1, B2, ECHO vírus 1 e 6, e enterovírus 71 (formas mais graves)
Miocardite

Sobretudo por coxsackie B. Pode surgir no período neonatal com elevada taxa de mortalidade.

No adulto raramente é fatal

ExantemaPor diversos tipos de coxsackie A, B, e ECHO vírus
Infecção neonatalAlguns serótipos de coxsackie B e ECHO vírus. A transmissão ocorre durante o parto e os sinais são variáveis (desde intercorrência febril até doença multissistémica fulminante e morte)
Conjuntivite hemorrágicaVários serótipos de enterovírus (sobretudo coxsackie A24 e enterovírus 11, 19 e 70)
Pancreatite/diabetesPor coxsackie B

Doença “mão-pé-boca” (hand-foot-mouth)

Muito comum em idade pediátrica (especialmente crianças com menos de 5 anos), caracteriza-se por febre, vesículas na cavidade oral (Figura 1), mucosa bucal, palato, língua e lábios. Nas mãos e pés predominam vesículas (de 3-7 mm), sobretudo na palma e planta. Após ulceração das vesículas, observa-se pequena “cratera” amarelada (de 4-8 mm) com orla vermelha. (Figura 2)

Nas nádegas predominam as lesões exantemáticas maculopapulosas (não incluem vesículas), progredindo para as coxas e podendo originar confusão, por vezes com o padrão morfológico encontrado na púrpura de Henoch-Schonlein.

A Figura 3 mostra aspecto de exantema por enterovírus, ao nível da face, tronco, membros e dorso das mãos.

O período de incubação é, geralmente, de 3 a 5 dias e a doença habitualmente resolve-se em 2 a 3 dias sem outras complicações. Coxsackievirus A (nomeadamente A16, na Europa) são responsáveis pela maior parte dos casos descritos.

A doença é moderadamente contagiosa e o vírus pode persistir no organismo durante várias semanas após a fase aguda, permitindo que o vírus se continue a transmitir.

Nos últimos anos têm sido descritos casos de “doença mão-pé-boca” atípica: febre mais elevada, maior duração, envolvimento cutâneo mais extenso, com lesões vesículo-bolhosas atingindo também a face dorsal das mãos e pés, e superfícies extensoras dos membros e períneo.

Nas crianças com eczema atópico pode haver atingimento preferencial das zonas de eczema (eczema coxsackium). Em muitos casos ocorre descamação palmo-plantar e onicomadese (separação da unha a nível proximal do leito ungueal) 2-6 semanas após o quadro agudo. Na sua maioria, tal forma clínica é associada ao vírus Coxsackievirus A6.

Herpangina

Nesta forma clínica verifica-se início súbito de febre elevada, odinofagia e lesões na faringe posterior acompanhadas de anorexia; nas crianças mais velhas há queixas de cefaleias, cervicalgias, vómitos, dor abdominal e disfagia.

No exame objectivo destacam-se lesões papulovesiculares na orofaringe, nomeadamente pilares anteriores das amígdalas, véu do paladar e úvula. Estas pequenas vesículas (1-2 mm) ulceram em 2-3 dias, ampliando-se as lesões ulcerosas para 3-4 mm; rapidamente, as úlceras podem atingir 10 mm de diâmetro com halo vermelho circundante. A herpangina é, em regra, uma doença benigna.

Meningite

A meningite asséptica afecta frequentemente crianças com idades inferiores a um ano de idade. Em mais de 90% dos casos, os enterovírus são o agente responsável, sendo que a grande maioria pertence ao Coxsackievirus B e Echovirus.

As manifestações clínicas dependem do grupo etário. Nos recém-nascidos, manifesta-se habitualmente com febre acompanhada de outros sinais inespecíficos (diminuição da ingesta alimentar, vómitos, diarreia) e fontanela abaulada. Em crianças mais velhas predomina febre, irritabilidade, cefaleias, náuseas, vómitos, fotofobia e rigidez da nuca.

A doença é autolimitada, observando-se recuperação entre 3 a 7 dias após o início da sintomatologia.

Encefalite

Os enterovírus são agentes pouco frequentes de encefalite aguda (responsáveis por cerca de 5% de todos os casos). Vários serótipos já foram implicados na etiologia desta doença, sendo que os Coxsackievirus dos tipos A9, B2 e B5 e os Echovirus dos tipos 6 e 9 correspondem aos serótipos mais frequentemente associados. A encefalite por enterovírus ocorre em todas as idades mas tem maior incidência em crianças e jovens adultos; o seu prognóstico é mais favorável do que o da encefalite causada por outros agentes (HSV, arbovirus).

A meningoencefalite por vírus foi abordada anteriormente, em capítulo próprio, no grupo “Síndromas infecciosas”.

Pleurodinia (Doença de Bornholm)

Esta forma de apresentação de infecção por enterovírus, podendo ocorrer tanto de modo esporádico como epidémico, caracteriza-se por dor tóraco-abdominal paroxística devida a miosite, atingindo os músculos da parede torácica e abdominal.

Nas crianças pequenas as dores abdominais assemelham-se a cólicas. Acompanhada de mal-estar, cefaleia e febre, a doença agrava-se com a tosse, movimentos respiratórios, expiração forçada ou outros movimentos. Em geral evoluindo durante 3-6 dias, pode manifestar-se de modo intermitente (padrão bifásico) durante semanas, pode estar associada a miocardite, pericardite, orquite e meningite.

O serótipo mais frequentemente envolvido nesta apresentação é o Coxsackievirus grupo B, sendo também descritos outros serótipos de forma esporádica como o Echovirus 1, 6, 9 e 19, e ainda, Coxsackievirus A 4, 6, 9 e 10.

FIGURA 1. Estomatite. (NIHDE)

FIGURA 2. Lesões maculopapulosas nas palmas das mãos e plantas dos pés. (NIHDE)

FIGURA 3. Exantema da face, tronco e membros. (NIHDE)

Conjuntivite hemorrágica

A conjuntivite hemorrágica aguda é outra forma de manifestação de infecção por EV, que consiste em dor ocular, edema palpebral e hemorragia subconjuntival. Surge depois exsudado, inicialmente seroso, passando a mucopurulento por sobreinfecção bacteriana.

A febre é rara, mas pode verificar-se associação a faringite (a chamada febre faringoconjuntival, também presente nas infecções por Adenovírus).

O processo na sua evolução natural dura cerca de 10 dias. Apesar de exuberante, tal evolução é geralmente autolimitada e com percurso benigno.

Em casos mais graves, pode persistir ceratite por várias semanas e, se o agente etiológico for o Enterovirus D70, podem existir complicações intracranianas. As formas associadas a Enterovírus 11 e 19 comportam maior risco de complicações: ceratite, coriorretinite, uveíte, retinite ou glaucoma.

Miopericardite

Esta doença é mais frequente no pequeno lactente, nomeadamente no recém-nascido. A sua gravidade varia desde casos assintomáticos até a insuficiência cardíaca fulminante e morte. Os EV mais frequentemente responsáveis são os Coxsackievirus grupo B.

Rombencefalite

Esta forma clínica (encefalite do tronco cerebral associada ao enterovírus/ EV-A71) é considerada actualmente um problema emergente de saúde pública, sobretudo na Ásia, onde é responsável por epidemias recorrentes. Pode surgir na sequência de herpangina ou de “doença mão-pé-boca”, seguindo-se o atingimento do tronco cerebral e instalação por fases de um quadro clínico grave:

  1. Abalos mioclónicos associados a tremor e/ou ataxia;
  2. Mioclonias transitórias associadas a compromisso dos nervos cranianos, seguindo-se dificuldade respiratória por edema pulmonar neurogénico, cianose, choque, coma e apneia;
  3. Forma mais grave comportando mortalidade ~ 70% com sintomatologia semelhante à descrita em I e II, mas associada a diplegia facial, ataxia, disartria, oftalmoplegia internuclear e apneia de causa central e sequelas graves tais como tetraplegia espástica.

O prognóstico da rombencefalite é extremamente reservado. Nos últimos anos foram já descritos inúmeros casos de síndroma mão-pé-boca por EV-A71 na Europa e recentemente já houve casos de rombencefalite por este agente nalguns países Europeus (incluindo Portugal).

Pneumonia e paralisia flácida

No Verão de 2014 houve nos Estados Unidos da América um surto de pneumonia com insuficiência respiratória aguda que atingiu todos os estados. Este surto, causado pelo Enterovirus D68, partilha muitas das características dos Rhinovirus (sobrevivência a temperaturas de 33ºC, intolerância a ambientes ácidos); assim, não se estranha que apresente tropismo especial pelo aparelho respiratório.

No decorrer deste surto, foi identificado um aumento exponencial do número de casos de crianças com quadro agudo de paralisia flácida e disfunção de pares cranianos. Apesar de não se ter identificado Enterovírus D68 no SNC, foi estabelecida uma relação causal.

De referir que a paralisia flácida aguda devida a enterovírus não pólio é mais ligeira do que a provocada pela infecção por poliovírus.

Exames complementares e diagnóstico

Apesar de o diagnóstico ser, em regra, clínico, o diagnóstico laboratorial de uma infecção por EV pode ser obtido por isolamento e identificação do vírus em cultura celular, detecção do RNA do vírus por PCR (reacção em cadeia da polimerase), ou por métodos serológicos.

  1. A identificação do EV em cultura celular é conseguida com base no efeito citopatogénico directo produzido pelo vírus em células cultivadas; tal identificação pode ser efectuada em diversos produtos biológicos (sangue, LCR, fezes, secreções respiratórias).
    Trata-se dum método relativamente sensível, permitindo a realização de serotipagem para estudos clínicos e epidemiológicos; contudo, é demorado (3-8 dias), dispendioso e não se encontra disponível em todos os centros.
    Actualmente, a cultura celular não se justifica para diagnóstico clínico; por outro lado tem interesse para determinação de serótipos de enterovírus identificados previamente em amostras de produtos biológicos pelo método molecular PCR.
  2. No âmbito das técnicas de amplificação genómica, cabe salientar que a PCR constitui a técnica mais útil sob o ponto de vista clínico, designadamente por permitir maior rapidez na obtenção do resultado, estando disponível na maioria dos laboratórios.
    Podendo aplicar-se a uma grande variedade de amostras (LCR, soro, urina, fezes e exsudado e secreções da nasofaringe ou conjuntiva), obtém-se positividade quanto à identificação do vírus com sensibilidade entre 92% e 100%, e especificidade entre 97% e 100%. Tem como limitação o facto de não permitir a identificação dos serótipos.
  3. Quanto às provas serológicas importa referir que a microneutralização é a técnica mais utilizada para identificação de anticorpos anti-enterovírus. Ao tratar-se duma técnica específica de serótipo, a sua utilidade na prática clínica é limitada, sobretudo tendo em conta a grande variedade de serótipos existentes. Outra limitação diz respeito à baixa sensibilidade e ao tempo requerido para se obter o resultado final por ser necessário obter amostras de soro na fase aguda e na fase de convalescença.

Complicações e prognóstico

O prognóstico na maioria das formas clínicas é bom. Como regra, pode estabelecer-se que a morbilidade e mortalidade se associam a formas clínicas acompanhadas de miocardite, doença neurológica e infecção perinatal.

Tratamento

Sendo em geral as infecções por EV autolimitadas, está indicado apenas o tratamento sintomático.

No entanto, nas formas clínicas de maior gravidade, apresentando-se com quadros de miocardite, meningite, em recém-nascidos e em doentes imunocomprometidos, poderá estar indicada terapêutica específica.

A administração de imunoglobulina endovenosa poderá constituir uma opção para estes doentes, nomeadamente nos recém-nascidos com miocardite.

O pleconaril oral (antivírico eficaz in vitro dirigido a Enterovírus) nos casos de infecção grave com miocardite associada, foi recentemente suspenso pelas acções secundárias. Presentemente está em estudo um fármaco a administrar por via nasal.

Prevenção

Medidas de higiene simples, tais como lavagem cuidadosa das mãos (prevenção da transmissão oral-fecal) e outras medidas clássicas universais de higiene básica (desinfecção de objectos contaminados, higiene de lugares públicos como piscinas, de locais de confecção de alimentos, etc.) são de extrema importância para a prevenção da transmissão de EV.

As mulheres grávidas, principalmente no terceiro trimestre, devem ser informadas que se deverão manter afastadas de qualquer doente com provável infecção por EV.

Inúmeros esforços têm sido feitos para se encontrar um antivírico ou uma vacina eficazes contra o Enterovirus 71. Inúmeras vacinas inactivas contra o genótipo C4 do Enterovírus 71 parecem ser promissoras, seguras e sem efeitos adversos graves. No entanto, não conferem protecção para outros genótipos, o que limita a sua utilização.

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Definição

Qualquer processo que curse com inflamação e tumefacção dolorosa da glândula tem o nome de parotidite (vulgo papeira). As causas infecciosas são as mais frequentes. (Quadro 1)

Neste capítulo, é dada ênfase à chamada parotidite epidémica, doença sistémica vírica autolimitada, com predilecção pelos tecidos glandulares (predominantemente parótida, mas também as restantes glândulas salivares) e pelo sistema nervoso. Tal patologia foi descrita pela primeira vez por Hipócrates no século V antes de Cristo. A etiologia vírica foi comunicada por Johnson & Goodpasture em 1934.

Recorda-se que a parótida, ou glândula parotídea, é a maior das glândulas salivares. Localizada por baixo e à frente do pavilhão auricular, tem o seu limite inferior imediatamente acima do ângulo da mandíbula. Relaciona-se com os músculos da mastigação cuja contracção promove a secreção de saliva; esta é excretada através do canal parotídeo (canal de Stenon ou de Stensen), o qual drena ao nível do segundo dente molar superior.

Aspectos epidemiológicos

Tratando-se duma doença típica da idade escolar em sujeitos não vacinados (5-14 anos), importa referir que, com o advento da vacinação sistemática, actualmente grande parte dos casos verificam-se sobretudo em indivíduos com idade superior a 15 anos.

A parotidite epidémica continua, pois, a ser mais relevante nos países sem vacinação eficaz. Mais recentemente, em países industrializados verificaram-se surtos localizados explicáveis por perda de imunidade de grupo devida aos “movimentos anti-vacinação”. Em Portugal, segundo os dados do último relatório de doenças de declaração obrigatória, entre 2009 e 2012 foram declarados menos de 200 casos/ano de parotidite epidémica.

Nalguns países têm sido descritas epidemias relacionadas com a administração de vacinas pouco imunogénicas. Por outro lado, importa assinalar que se têm observados casos em populações vacinadas, o que sugere perda da imunidade com o tempo.

Em Portugal, a parotidite epidémica é uma doença de declaração obrigatória, com indicação para evicção escolar por um período mínimo de 9 dias após o aparecimento de tumefacção glandular.

Etiopatogénese

O vírus da parotidite epidémica é um vírus ARN pertencente ao género Rubulavirus, da família Paramyxoviridae. O único hospedeiro é o Homem. Com diferentes genótipos, admite-se que exista apenas um fenótipo.

A referida parotidite é uma doença com elevada infecciosidade, transmitindo-se através da saliva, aerossóis, ou das gotículas da orofaringe. Com um período de incubação oscilando entre 2 a 4 semanas, o período de contágio situa-se entre 3 dias antes e 4 dias depois do início dos sintomas.

Surge virémia desde que o vírus atinja a via respiratória e se verifique replicação no epitélio da nasofaringe e nos gânglios linfáticos regionais (cabeça e pescoço) Tal determina que, com a disseminação do vírus, sejam atingidos diversos tecidos e órgãos, sobretudo, glândulas salivares, meninges, pâncreas, ovários e testículos; e, menos frequentemente, próstata, tiroideia, interstício do rim, miocárdio, fígado, sinovial articular, medula óssea, sistema excretor lacrimal e glândulas de Bartholin.

Posteriormente, o vírus elimina-se com a urina.

Manifestações clínicas e laboratoriais

Na sua forma clássica, em cerca de 30% dos casos, a doença é assintomática ou manifesta-se por sintomas inespecíficos simulando quadro gripal.

Importa salientar um período prodrómico de 24 a 48 horas com febre, em geral não elevada, cefaleia, vómitos, mialgia e mal-estar geral; sucede-se a tumefacção da glândula parótida, que começa por ser unilateral, sendo evidente a bilateralidade em 70%-90% dos casos.

Em cerca de 10% dos casos, outras glândulas salivares podem ser atingidas: a submaxilar, palpando-se sob a mandíbula, anteriormente ao ângulo mandibular, e/ou a sublingual, que origina tumefacção da língua e do pavimento bucal.

Ao nível da cavidade bucal, verifica-se que os orifícios de saída do canal de Stenon (da glândula parótida) e do canal de Wharton (da glândula submaxilar) estão eritematosos e edematosos. Com menos frequência pode surgir edema pré-esternal, relacionável com obstrução dos vasos linfáticos por aumento das dimensões das glândulas salivares.

A doença é geralmente autolimitada, com duração média de duas semanas.

Outras manifestações (consideradas por alguns autores como complicações) estão relacionadas com os locais atingidos pelo vírus, sendo mais frequentes a meningite com características de toda e qualquer meningite vírica (5%-10% dos casos), a orquite (30%-40%), e a ooforite (5%). Poderá detectar-se pleocitose (cerca de 50% dos casos) sem sinais de meningite. Por sua vez, a meningite pode ocorrer antes, durante, ou depois da tumefacção das parótidas.

Nos casos de meningite, poderão surgir convulsões em cerca de 20% dos casos. Para além da pleocitose (200-1.000 células/uL), já citada, o LCR, no contexto de meningite estabelecida, pode evidenciar predomínio de linfócitos, associado a glicose e proteínas normais; em fases iniciais da doença pode haver predomínio de polimorfonucleares e glicorráquia inferior a 40 mg/dL.

Habitualmente, o quadro neurológico regride em duas semanas, sem sequelas. Em casos raros (0,5-5/100.000 casos) pode ocorrer surdez neurossensorial.

O quadro de encefalite, com mortalidade ~ 1,4%, hoje raro, era descrito, reportado à era pré-vacinal, na proporção de 1 para cada 400-6.000 casos. Eram também descritos casos de cerebelite, síndroma de Guillain-Barré, paralisia facial e mielite transversa.

A orquite (ou melhor, epidídimo-orquite) é frequente sobretudo na idade pós-púbere, sendo unilateral em cerca de 70% dos casos. Surge em geral cerca de 4-10 dias após o início da parotidite, com evidência de edema do escroto, dor e edema testiculares, e febre. Pode igualmente manifestar-se como manifestação isolada da infecção. Ainda que possa ocorrer atrofia testicular, a esterilidade é muito rara pelo facto de aquela ser segmentar.

A infecção, atingindo outros órgãos, é susceptível de originar uma diversidade de quadros infecciosos, variando de paciente para paciente: pancreatite, tiroidite, prostatite, hepatite, dacriocistite, nefrite intersticial, bartolinite, miocardite, sinovite, púrpura trombocitopénica, etc..

No contexto de infecção da grávida, embora não se tenha demonstrado o efeito teratogénico do vírus, existe o risco de abortamento.

Diagnóstico

O diagnóstico da parotidite epidémica deve ser suspeitado em face de história clínica compatível (incluindo tumefacção parotídea bilateral) em doentes não vacinados, sem PNV actualizado com VASPR, ou em caso de surto epidemiológico.

Os resultados de exames laboratoriais evidenciam tipicamente leucopénia, linfocitose e elevação da amilasémia.

Nos casos de tumefacção parotídea unilateral, ou inexistente, o diagnóstico poderá ser mais difícil, obrigando ao recurso a estudo serológico, o método laboratorial mais usado.

O procedimento mais adequado é a identificação de anticorpos específicos anti-parotidite IgM no soro, plasma, LCR, ou saliva, por análise enzimo-imunológica a partir dos 7 dias de evolução clínica; isto porque anteriormente há a probabilidade de resultados falsos-negativos.

Nas populações imunizadas o diagnóstico por serologia é mais difícil, uma vez que a resposta humoral com IgM pode ser mais curta; assim, nas populações imunizadas um valor de IgM negativo não exclui o diagnóstico.

Em alternativa, poderá obter-se o diagnóstico, pesquisando a seroconversão, através do doseamento de anticorpos IgG, demonstrada pela elevação do título destes, pelo menos quatro vezes, ao cabo de 2-3 semanas.

Outro método de diagnóstico da parotidite epidémica consiste na cultura vírica na saliva, urina ou LCR, sendo que a sensibilidade é inferior a 50%.

Uma alternativa à cultura vírica é o estudo do material genético em amostras de urina, saliva ou LCR por técnicas de reacção em cadeia da polimerase em tempo real (PCR). Estas amostras devem recolher-se nos primeiros 3 dias de doença, e não para além dos 7 dias de evolução.

Diagnóstico diferencial

Abordando o diagnóstico diferencial das parotidites, importa ainda salientar uma noção semiológica – estabelecer a destrinça entre tumefacção parotídea e adenomegália laterocervical; no caso desta última, a sua localização é mais posterior, tem limites mais definidos e não apaga o ângulo mandibular.

O diagnóstico diferencial da parotidite epidémica faz-se com outros tipos de parotidite, os quais são discriminados no Quadro 1.

QUADRO 1 – Diagnóstico diferencial das parotidites em idade pediátrica.

A etiologia por fungos não é descrita na criança (Candida albicans e Cryptococcus isolados em adultos imunodeprimidos)
INFECCIOSA
VÍRUS
Paramyxoviridae (parotidite epidémica). VEB, CMV, VHH6, Adenovírus, Parainfluenza 1, 2 e 3, Parvovírus B19, Enterovírus e VIH*
BACTÉRIAS

Parotidite supurativa
Staphylococcus aureus, Streptococcus pyogenes, Streptococcus viridans, Peptostreptococcus spp, Prevotella spp, Porphyromonas sp, Fusobacterium nucleatum, Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae, Moraxella catarrhalis, Pseudomona aeruginosa, Pseudomona pseudomallei, Escherichia coli, Proteus spp, Salmonella spp, Klebsiella spp, Actinomyces spp*

Parotidite granulomatosa*
Mycobacterium tuberculosis
Micobactérias atípicas
Bartonella henselae
Actinomyces spp**
IDIOPÁTICA
Parotidite recidivante idiopática
AUTOIMUNE
Síndroma de Sjögren*, Sarcoidose*, LES, Doença mista do tecido conjuntivo
NEOPLÁSICA
Formas benignas (adenoma pleiomórfico, hemangioma e linfangioma) e malignas (carcinoma mucoepidermóide, adenóide-cístico e de células acínicas e rabdomiossarcoma)
OUTRAS
Sialolitíase, defeitos congénitos, traumatismos, radioterapia, doenças infiltrativas, má-nutrição, doenças metabólicas crónicas, fármacos, etc.
VIH – Vírus da Imunodeficiência Humana; VEB – Vírus de Epstein-Barr; CMV – Citomegalovírus; VHH6 – Vírus Herpes Humano 6; LES – Lúpus Eritematoso Sistémico.
* Parotidite habitualmente crónica. ** Consoante o microbioma concomitante, o curso da doença pode ser agudo, subagudo ou crónico.

 

  1. Parotidites de etiopatogénese infecciosa, (exceptuando a relacionada com os vírus da família Paramyxoviridae); destacam-se as seguintes situações:
    • Parotidite associada a hiperplasia linfóide devida a infecção por VIH.
      Em cerca de 1%-10% dos casos de infecção por VIH desenvolve-se um quadro de parotidite crónica caracterizado pelo aumento progressivo e indolor da glândula parotídea, geralmente bilateral, podendo ser acompanhado de adenomegálias cervicais ou generalizadas.
      O diagnóstico é feito com base no quadro clínico, serologia para VIH positiva e caracterização imagiológica das lesões por ecografia (exame de primeira linha), tomografia computadorizada (TC) ou ressonância magnética (RM). (consultar capítulo sobre Imunodeficiências Adquiridas)
    • Parotidite por Mycobacterium tuberculosis
      Trata-se duma situação extremamente rara, mesmo nas áreas de elevada incidência de tuberculose. O respectivo diagnóstico etiológico é difícil pela escassez de sinais e sintomas para além da tumefacção e inespecificidade dos estudos imagiológicos. O diagnóstico é feito por estudo microbiológico adequado de uma amostra obtida por biópsia.
    • Parotidite por Actinomyces spp (Parotidite granulomatosa)
      Os agentes Actinomyces são bactérias Gram-positivas anaeróbias que fazem parte do microbioma oral na espécie humana. A infecção provocada por estes agentes, rara, muitas vezes relacionada com deficiente higiene oral ou a estado de imunodepressão, na sua maioria está associada a outros agentes – trata-se duma infecção polimicrobiana (sigla HACEK incluindo, designadamente, Haemophilus aphrophilus, Aggregatibacter ou Actinobacillus, Cardiobacterium hominis, Eikenella coorodens e Kingella kingae). É caracterizada por doença granulomatosa crónica, com agudizações, supurativa com tendência para ultrapassar “barreiras anatómicas”, predominantemente na região cérvico-facial, incluindo região parotídea. A estase salivar por tumefacção da glândula e tecidos envolventes constitui um factor predisponente da infecção.
    • Parotidite por Bartonella henselae
      Esta entidade clínica foi abordada no capítulo sobre “Doença do arranhão do gato”.
N.B. 🡪 De acordo com estudos epidemiológicos na idade pediátrica demonstrou-se etiologia vírica da parotidite em 14% dos casos, com a seguinte distribuição: VEB- 7%; Parainfluenzae– 4%; Adenovírus- 3%; e – VHHC6 em criança com menos de 6 anos.

 

  1. Parotidites de etiopatogénese não infecciosa. Importa uma referência a outras situações susceptíveis de originar inflamação e tumefacção da parótida:
    1. Acção de fármacos (fenilbutazona, tiouracilo, iodetos e tiazidas).
    2. Doenças metabólicas crónicas (cirrose hepática, diabetes mellitus e urémia).
    3. Parotidite obstrutiva, mais frequentemente provocada por sialolitíase, e caracterizada por episódios pós-prandiais de edema glandular e dor, com regressão espontânea em 3-4 horas. Qualquer que seja o insulto inicial, este promove estase salivar, o que facilita a contaminação bacteriana. Tanto a estase salivar como a contaminação bacteriana promovem fenómenos subsequentes de metaplasia ductal, com agravamento da estase e surgimento de infecção secundária, fibrose, atrofia glandular e formação de mucoceles.
      O diagnóstico é sugerido pela história clínica, com especial relevo na relação com o período pós-prandial, e confirmado por ecografia, ou RM evidenciando sinais de dilatação do canal parotídeo.
    4. Parotidite recidivante, processo de causa desconhecida, que se manifesta por episódios autolimitados e habitualmente unilaterais de tumefacção dolorosa da parótida, durando cerca de 2-3 semanas, acompanhados ou não de febre, com regressão após a puberdade. De relevar o risco de ulterior fibrose e insuficiência glandular em função do número e duração dos episódios (os quais poderão surgir em número ~ 20/ano).
    5. Síndroma de Sjögren, de etiopatogénese autoimune, traduzida por inflamação crónica das glândulas exócrinas, sobretudo salivares e lacrimais (infiltrado de linfócitos e plasmócitos com consequente destruição epitelial) em sujeitos geneticamente predispostos, como consequência de exposição a factores ambientais (por ex. infecções víricas). Na idade pediátrica, o sinal mais frequente e precoce é a tumefacção parotídea, associando-se a xerostomia (secura da boca por diminuição da secreção salivar) e, mais tardiamente, xeroftalmia (diminuição da secreção lacrimal) e xerodermia (secura da pele).
      As manifestações extraglandulares podem ser tipificadas por fenómeno de Raynaud, sintomatologia simile LES, e por problemas respiratórios diversos.
      A resposta autoimune a células epiteliais da pele e mucosas traduz-se analiticamente na positividade de anticorpos antinucleares (ANA) e de factor reumatóide em 50%-85% dos casos, e de anticorpos anti-Ro/SSA e anti-La/SSB em 60%-90%.
      A cintigrafia com tecnécio-99 permite avaliar a função das glândulas salivares e a ecografia, a arquitectura anormal das mesmas.
    6. Sarcoidose
      Trata-se duma doença granulomatosa multissistémica de causa desconhecida, extremamente rara, geralmente manifestada pelo aumento bilateral crónico e indolor da parótida. Outra apresentação da doença, correspondendo à síndroma de Heerfordt-Waldenstrom, associa parotidite a: febre, uveíte e paralisia do nervo facial. O diagnóstico baseia-se na identificação dos granulomas característicos da doença por biópsia.
    7. Tumores da parótida
      Os tumores da glândula parótida apresentam-se como massas de crescimento progressivo, nodulares, indolores, podendo ser móveis ainda que os tumores malignos sejam mais frequentemente imóveis. Pode verificar-se perda de peso, mal-estar geral, xerostomia, paralisia do nervo facial ou episódios de parotidite aguda supurativa.
      Os tumores benignos mais frequentes abaixo do ano de idade são os hemangiomas e linfangiomas; nos restantes grupos etários, predominam o adenoma pleiomórfico, com potencialidade de degenerescência maligna. O tumor maligno mais frequente é o carcinoma mucoepidermóide, seguindo-se os cistoadenocarcinomas.

Os exames complementares imagiológicos são determinantes para o diagnóstico. A ecografia, pela sua acessibilidade e ausência de radiação ionizante, constitui o meio de primeira linha; contudo, as lesões suspeitas devem ser mais bem caracterizadas por TC ou RM. As características imagiológicas sugestivas de malignidade são:

  • Margens mal definidas com invasão dos tecidos adjacentes; e
  • Sinais de metástases ósseas ou linfáticas.

Tratamento

O tratamento da parotidite epidémica, assim como o das complicações, é sintomático, utilizando o paracetamol ou o ibuprofeno em doses habituais.

No que respeita às restantes situações mencionadas, importa particularizar alguns procedimentos relativamente às seguintes:

  • Nas parotidites bacterianas, fúngicas ou por outros vírus está indicado o tratamento antimicrobiano dirigido;
  • Nas parotidites de etiologia neoplásica, para além da ressecção cirúrgica, total ou parcial, são utilizados certos fármacos antineoplásicos, salientando-se a importância da actuação especializada em centros de referência;
  • Nas formas obstrutivas, designadamente em relação com sialolitíase ou defeitos congénitos, o tratamento é cirúrgico; tratando-se de remoção de cálculo, poderá utilizar-se a técnica cirúrgica clássica ou a endoscopia para litotrícia;
  • Na parotidite recidivante, alívio dos sintomas durante as crises com analgesia, massagem parotídea e fármacos sialogogos; havendo suspeita de sobreinfecção bacteriana sem repercussão sistémica está indicada antibioticoterapia oral com amoxicilina/ácido clavulânico como primeira linha; os casos mais graves devem ser orientados em centros de referência, em que são aplicadas diversas terapêuticas: escleroterapia intraductal, nevrectomia do ramo timpânico do nervo facial, endoscopia dilatadora ou paratiroidectomia;
  • Na parotidite associada a sarcoidose, não se torna necessário qualquer tratamento específico para além do tratamento-base.

Prevenção da parotidite epidémica

  1. Primeiramente, adopção de medidas de isolamento do paciente para evitar a transmissão a sujeitos susceptíveis/não vacinados. Está indicado manter tais medidas durante 5 dias depois do início dos sintomas.
  2. Vacinação anti-parotidite (associada a anti-sarampo e anti-rubéola) <> VASPR em duas doses, aos 12 meses e 5 anos, segundo o PNV 2017. No caso de não vacinação anterior, sugere-se que o leitor consulte o capítulo sobre Vacinas.
  3. Em caso de surto epidémico, está preconizada a vacinação dos contactos com mais de seis meses que não tenham qualquer dose de vacina, com duas doses de vacina intervaladas de, pelo menos, 28 dias.
  4. Nos casos de aos contactos ter sido aplicada apenas uma dose da vacina, deve ser administrada uma segunda dose se o surto afectar crianças em idade pré-escolar, ou adultos com capacidade de transmissão a grande parte da comunidade.
  5. Na hipótese de a vacinação não ser possível, a criança deve manter o evitamento escolar durante 26 dias após o último caso de parotidite.

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Introdução

Entre as arboviroses tropicais, surgem três entidades clínicas de grande importância epidemiológica e de saúde pública, sobretudo na América Latina, transmitidas pelo mosquito Aedes. Trata-se da Dengue, da Doença por vírus Chikungunya e da Doença por vírus Zica. A Dengue, depois da Malária, é considerada a mais importante doença transmitida por vector na actualidade. Recorda-se, a propósito, a definição de Arbovírus <> abreviatura do termo em Inglês-arthropod-borne virus.

Neste capítulo é dada ênfase à Dengue, e à Doença por vírus Chikungunya. A Doença por vírus Zica é abordada no Capítulo sobre Infecção Congénita, na Parte sobre Perinatologia e Neonatologia (XXXI).

DENGUE

Definição

A dengue, incluída no grupo das chamadas febres hemorrágicas víricas, é uma doença infecciosa aguda transmitida ao homem pela picada do mosquito, vector do género Aedes infectado com o vírus da dengue, vírus de RNA da família Flaviridae, género Flavivirus, com 4 serótipos, DEN-1, DEN-2, DEN-3 e DEN-4.

Frequentemente autolimitada e benigna, a doença pode, no entanto, assumir formas graves e fatais, com número crescente da forma clínica chamada dengue grave, na actual nomenclatura, com uma mortalidade ~ 2,5%.

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

A nível mundial estima-se que ocorram anualmente 50 a 100 milhões de novos casos, englobando cerca de 500 mil novos casos de dengue grave. Cerca de 2.500 milhões de pessoas no mundo encontram-se em situação de risco de padecer da doença, o que é explicável sobretudo pelo crescimento populacional, pela urbanização não planificada, pelo inadequado ordenamento ambiental, pela migração e turismo, e pelas alterações climáticas.

A doença é endémica em mais de 100 Países distribuídos predominantemente pelas grandes regiões do globo – África, América do Sul, Mediterrâneo Oriental, Sueste Asiático e Pacífico Oeste. Em 2010, de acordo com dados da OMS, surgiram em todo o mundo cerca de 390 milhões de casos de dengue. No Brasil, num surto ocorrido em 2013, foram notificados 1,5 milhões de casos, 7.000 dos quais corresponderam a formas graves.

Na Europa, em 10 países, têm sido descritos casos importados, sobretudo do Sueste Asiático, realçando-se o primeiro caso fatal surgido no Reino unido em 1997. No continente europeu têm sido relatados anualmente entre 100 e 170 casos importados, quase metade originados no Sueste Asiático.

Quanto a casos autóctones na Europa, importa referir o seu surgimento recente na França e Croácia.

Em Portugal, na Região Autónoma da Madeira (RAM), o vector Aedes aegypti foi detectado pela primeira vez em 2004; o primeiro surto, notificado em 2012, manteve-se até 2013, tendo sido identificado o serótipo DEN-1 com origem na Venezuela, Colômbia e Norte do Brasil.

Até à data, em Portugal Continental ainda não foram identificados mosquitos do género Aedes, pelo que não parece existir o risco de emergência de casos autóctones.

Refira-se que o Aedes aegypti e o vírus da dengue são endémicos em todos os continentes excepto na Europa e na Antártida; a dengue grave ocorre preferencialmente na Ásia e Américas. (Figura 1)

Etiopatogénese

A doença é causada por qualquer dos serótipos do vírus anteriormente descritos (DEN 1, 2, 3 e 4). Actualmente já se conhecem mutantes, mas o respectivo impacte clínico não está ainda estabelecido.

A infecção por um serótipo produz imunidade específica permanente e, ainda que não imunidade cruzada para os outros serótipos, pode verificar-se imunidade cruzada heterotípica, a qual se pode manter entre 2 e 12 meses.

Os vírus são transmitidos por um eficiente vector existente em extensas áreas do Globo, particularmente em regiões tropicais e subtropicais. O mosquito/artrópode Aedes aegypti, mais frequente nas Américas e a principal espécie responsável pela transmissão a nível mundial, tem hábitos diurnos, domésticos e preferência por recipientes com água onde deposita ovos e larvas; um único mosquito infectado pode transmitir o vírus a vários indivíduos numa pequena área.

Importa referir que o artrópode a seguir, em importância, é o Aedes albopictus (Figura 2), confinado ao Sueste Asiático. Noutras regiões têm papel mais reduzido o Aedes polynesiensis e o Aedes scutellaris (Figura 3).

A transmissão do vírus da dengue por picada do artrópode infectado (originando virémia) depende da estirpe do mesmo vírus, do vector, da susceptibilidade da população e dos factores ambientais já descritos anteriormente.

Pode verificar-se transmissão vertical se a picada se verificar na grávida (durante a fase virémica da doença), com potencial impacte no recém-nascido. Em diversos estudos não foram notados efeitos lesivos, designadamente quanto a baixo peso e/ou defeitos congénitos.

O ciclo biológico é iniciado quando a fêmea do mosquito ingere o sangue da pessoa infectada em fase de virémia; esta ingestão leva à infecção do epitélio do intestino médio do mosquito e disseminação pela hemolinfa atingindo outros órgãos, como as glândulas salivares e o sistema reprodutivo do mesmo.

Geralmente decorrem 7 a 10 dias entre a ingestão do sangue contaminado e a eliminação do vírus pela saliva, sendo esta fase designada por período de incubação extrínseco. A duração deste período é inversamente proporcional à temperatura ambiente; aduza-se que, uma vez infectado, o mosquito carrega o vírus até ao fim da sua vida.

Uma vez transmitido o vírus ao humano por picada do mosquito infectado (vírus na saliva do mosquito), existe um período de incubação intrínseco sem sintomas com a duração média de 4-7 dias e limites entre 2-14 dias: surgindo então replicação vírica no órgão-alvo, atingimento dos leucócitos e tecidos linfáticos, a que se segue a virémia.

FIGURA 1. Aedes aegypti.

FIGURA 2. Aedes albopictus.

FIGURA 3. Epidemiologia da infecção pelo vírus da dengue.

Trata-se, pois, dum processo de transmissão homem-mosquito-homem.

A transmissão do vírus entre mosquito e primatas não humanos foi demonstrada na Ásia e África, mas não está provado que desta transmissão a primatas não humanos resulte potencial reservatório para a transmissão a humanos. Cabe referir que há relatos de transmissão através do sangue e de exposição mucocutânea.

Sobre a patogénese importa salientar que a dengue é uma doença sistémica, com atingimento de vários órgãos e sistemas, largo espectro de manifestações, desde formas assintomáticas e oligossintomáticas, a formas graves que podem ser fatais.

Devido à sua característica hepatotrófica, o vírus exerce acção citopática mais acentuada ao nível dos hepatócitos, replicando-se nas células de Kupffer (que fazem parte do sistema mononuclear fagocítico), do que resulta citólise com aumento das aminotransferases, directamente proporcional à magnitude do dano. A hepatomegália é frequente, podendo verificar-se insuficiência hepática.

Outros órgãos atingidos são o coração (por mecanismo imunomediado), o pulmão (sede de edema pulmonar) e o sistema nervoso central. As manifestações neurológicas podem ter como substracto diversos quadros, tais como, de encefalite, síndroma de Guillain-Barré, mielite transversa, etc..

As manifestações hemorrágicas surgem de modo esporádico e em grau variável. A este propósito, importa referir que a clássica designação de “dengue hemorrágica” passou a ser considerada errónea, por levar a pensar que a hemorragia era sinal cardinal de gravidade: na verdade, a principal causa de mortalidade é, sim, a extravasão de plasma por aumento da permeabilidade capilar, levando a choque. De facto, reforça-se a noção de que, o que diferencia as formas graves das mais ligeiras, é a verificação do aumento da permeabilidade capilar nas primeiras.

Demonstrou-se que o efeito duma segunda infecção (infecção secundária) tem efeito patogénico 100 vezes superior ao verificado durante um primeiro episódio da infecção (infecção primária). Ou seja, a exposição prévia do hospedeiro a um serótipo heterólogo predispõe a forma grave, o que poderá ser explicado pela teoria da imunopotenciação mediada por anticorpos (ADE, antibody dependent enhancement). Esta teoria postula o seguinte:

  • Aquando dum estímulo antigénico inicial (primeira infecção ou infecção primária) verifica-se sensibilização do sistema imune envolvendo linfócitos T e B;
  • Os pacientes sensibilizados a determinado serótipo do vírus desenvolvem anticorpos incapazes de neutralizar os outros serótipos, mas facilitando o ingresso do vírus no monócito;
  • Os anticorpos heterólogos correspondentes ao serótipo da dengue pré-existente (infecção primária) reconhecem de forma cruzada o novo vírus infectante, doutro serótipo (infecção secundária), não o neutralizando; aliás, formam complexos antigénio-anticorpo, os quais se ligam ao receptor Fc para imunoglobulina nos macrófagos, facilitando assim o ingresso do vírus na célula, onde se vai replicar;
  • Aquando duma segunda infecção ou infecção secundária, verifica-se uma rápida activação e proliferação das células T e monócitos previamente sensibilizados (resposta imunitária ampliada), com lise dos monócitos infectados pelos vírus da dengue, libertação de mediadores inflamatórios e procoagulantes como interleucinas, factor de necrose tumoral, factor activador das plaquetas, interferão gama, e consequente aumento da permeabilidade vascular com extravasão de plasma, hipovolémia e hipotensão.

Comprovou-se que os linfócitos T têm um papel preponderante no processo descrito devido a resposta aberrante.

A imunidade é duradoura, mas serótipo-específica. A resposta humoral é vigorosa: são detectados anticorpos específicos da classe IgM (contra o serótipo infectante) após o quarto dia de início dos sintomas; os referidos anticorpos atingem níveis elevados cerca de 7-8 dias após o início dos sintomas, declinando lentamente e passando a não ser detectáveis após alguns meses.

Quanto à IgG específica, os seus níveis elevam-se após o quarto dia de sintomas, atingindo altos teores em duas semanas, passando a ser detectáveis por vários anos (Figura 4).

Para além da importância de se tratar de infecção primária e infecção secundária, na patogénese há ainda que considerar os seguintes factores:

  • Factores relacionados com os vírus. Demonstrou-se que o serótipo 2, o mais virulento de todos, está ligado às formas graves acompanhadas de choque, frequentes no Sueste Asiático; ainda há que atender aos factos de: – determinado serótipo poder incluir diversos genótipos; e de – haver variação importante entre as estirpes de determinado serótipo;
  • Particularidades quanto a serótipos infectantes. Em estudos epidemiológicos verificou-se que a gravidade da doença é maior quando o serótipo 1 é seguido do serótipo 2;
  • Outros factores patogénicos incluem: – susceptibilidade do foro genético do hospedeiro, variável; – idade do paciente, sendo que o prognóstico é mais reservado em crianças com < 5 anos e gravidade, e menor gravidade após os 12 anos; – género feminino, mais susceptível; -doença crónica de base associada a pior prognóstico.

Manifestações clínicas e laboratoriais

A dengue é uma doença sistémica cujo espectro inclui formas graves e não graves. Na idade pediátrica, parcela significativa de pacientes pode apresentar-se sob a forma oligossintomática, o que torna difícil o diagnóstico diferencial com outras doenças víricas comuns nesta faixa etária.

Após o período de incubação variável – como média entre 5 e 10 dias – (ver atrás) a doença apresenta-se abruptamente e pode manifestar-se em 3 fases: 1- febril; 2- crítica; 3- de recuperação ou convalescença.

Fase febril: manifesta-se com febre de início abrupto, em geral durando 2 a 7 dias.

Fase crítica: febre desaparecendo em lise (defervescência). Nesta fase, os doentes poderão melhorar ou piorar. Os que melhoram, evidenciam quadro designado por dengue sem sinais de alarme; os que pioram, correspondem aos casos de dengue com sinais de alarme.

Fase de recuperação ou convalescença: produz-se a reabsorção gradual dos fluidos do espaço extravascular nas 48-72 horas seguintes. Verifica-se estabilização hemodinâmica, melhoria da diurese e diminuição do hematócrito por reabsorção dos fluidos. Seguidamente, elevação do número dos leucócitos e das plaquetas. (Figura 5)

Classificação da dengue

De acordo com a última revisão da classificação da OMS (de 2009), são consideradas as seguintes formas clínicas: Dengue sem sinais de alarme; Dengue com sinais de alarme; e Dengue grave.

FIGURA 4. Evolução clínica e resposta imunitária ao vírus da dengue.

FIGURA 5. Diagnóstico e manifestações clínicas da dengue.

Dengue sem sinais de alarme

Nesta forma clínica poderão surgir os seguintes sinais e sintomas: febre, letargia, hiperestesia cutânea, injecção conjuntival, cefaleia frontal e/ou retro-orbitária intensificando-se com o movimento dos olhos; mialgia generalizada, mais intensa na região lombar; linfadenopatia cervical; exantema morbiliforme em cerca de 50% dos casos atingindo face, tronco, e membros, não poupando plantas dos pés e palmas das mãos; pode surgir hiperémia difusa com áreas esbranquiçadas arredondadas de pele normal, prurido e sensação de “calor”; a prova de Rumpell-Leed é positiva (aparecimento de 20 ou mais petéquias numa área de 2,5 cm2 após insuflação de braçadeira de esfigmomanómetro no braço com valor da média aritmética das pressões sistólica e diastólica durante 5 minutos).

Em zonas endémicas ou nos casos em que se verificou viagem para as mesmas, suspeitar-se-á de dengue ante a presença de febre associada a dois ou mais dos seguintes critérios: náuseas, vómitos, exantema, artralgias, petéquias ou prova de Rumpell-Leed positiva e leucopénia.

Dengue com sinais de alarme

Num doente: – que esteja febril ou, – que esteja na fase de defervescência, e se verifique um dos sinais de alarme descritos a seguir, tal significa que se trata de situação acompanhada de aumento da permeabilidade capilar nesse momento.

Descrevem-se os seguintes sinais de alarme:

  • Dor abdominal intensa e contínua, por vezes localizada ao hipocôndrio direito, correspondendo a sinal de líquido extravasado para zonas renais e perirrenais;
  • Vómitos persistentes ( > 3 em 1 hora, ou > 5 em 6 horas);
  • Hemorragias das mucosas (gengivorragias, epistaxes, hematúria, hematemeses, melenas, hemorragias vaginais);
  • Alteração da consciência (agitação ou letargia, escala de Glasgow < 15);
  • Aumento do hematócrito com diminuição brusca do número de plaquetas;
  • Hepatomegália (> 2 cm abaixo do rebordo costal);
  • Acumulação de líquidos/derrames cavitários (derrame pleural, ascite, derrame pericárdico detectados clinicamente ou por ecografia, não associados a dificuldade respiratória nem a compromisso hemodinâmico.

Dengue grave

Esta forma clínica é definida pela verificação dos seguintes critérios:

  • Choque por extravasão de plasma e/ou acumulação de líquidos, associado a dificuldade respiratória;
  • Hemorragia grave;
  • Atingimento grave de órgãos (fígado: citólise, elevação de ALT e AST > 1.000 U/mL, insuficiência hepática; SNC: encefalite, alterações sensitivas; coração: miocardiopatia).

O choque, que pode ser precedido por sinais de alarme e a principal causa de morte, surge quando desaparece a febre, entre o 4º e 5º dia de doença. A gravidade deste quadro de dengue poderá também integrar, com incidência baixa, síndroma de Reye, síndroma de dificuldade respiratória tipo adulto.

Exames complementares

Em contexto de epidemia, o exame clínico rigoroso é em geral suficiente para diagnosticar a maioria dos casos. Noutras circunstâncias, dada a variedade de sintomas, em geral inespecíficos, associados a esta entidade, o diagnóstico clínico não é muito confiável. Nesta perspectiva, há que recorrer a exames complementares.

Os principais métodos diagnósticos são: o isolamento do vírus, a identificação de serótipos, a detecção de ácido nucleico, a detecção de antigénios e a enzimoimunoanálise (ELISA) para provas serológicas.

Em Portugal, o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA) é o laboratório de referência para o diagnóstico laboratorial da dengue, que se faz através de:

  • Pesquisa de anticorpos específicos: detecção de IgM por ELISA na fase aguda da doença (no sangue ou SNC) presentes após o quinto dia de início do quadro clínico ou subida de 4 vezes do título de IgG entre a data da amostra colhida logo após o princípio dos sintomas, e uma segunda, obtida cerca de duas semanas depois (2 mL de sangue em tubo seco ou 1 mL de líquor);
  • Pesquisa de componentes víricos/ácidos nucleicos a realizar até ao 5º dia da doença por meio da reacção em cadeia da polimerase com transcriptase reversa (RT-PCR) no sangue ou LCR (2 mL de sangue em tubo com EDTA);
  • Todas as amostras positivas colhidas em laboratórios públicos ou privados devem ser enviadas (refrigeradas no próprio dia ou mantidas no frigorífico se não for possível) para o INSA, acompanhadas por formulário preenchido para estudo epidemiológico e virológico. Os casos devem ser notificados à Direcção-Geral da Saúde (dengue@dgs.pt).

No que respeita à avaliação laboratorial podem ainda ser úteis os exames complementares e procedimentos a seguir descritos:

  1. Hemograma: é um exame importante a ser feito aquando da primeira observação. A verificação de leucopénia reforça o diagnóstico provável de dengue. Uma diminuição do número de plaquetas, associada a uma elevação do hematócrito, sugere extravasamento de plasma. Se o hematócrito não tiver sido registado no início deve ser efectuado o cálculo da variação do seu valor utilizando os valores de referência da população geral, ajustados à idade e sexo;
  2. Transaminases: elevação de AST e ALT, observada em 30% dos pacientes com dengue em geral, e em cerca de 90% dos casos de dengue grave;
  3. Ecografia: útil para identificar a presença de líquido livre em cavidade abdominal ou espaço pleural, ou ainda para detectar derrame pericárdico ou sinais de espessamento da parede da vesícula biliar.

Diagnóstico diferencial

A dengue pode confundir-se com diversas infecções bacterianas, parasitárias e víricas, tais como doença meningocócica, choque séptico, febre tifóide, escarlatina, sarampo, rubéola, gripe, doenças por enterovírus, herpes vírus, parvovírus B19, leptospirose, hepatite, malária, febre amarela, febre e outras infecções por Flavivirus. Obviamente que no âmbito raciocínio clínico importa valorizar a região onde decorreu o caso.

A dor abdominal intensa poderá ser confundida com apendicite aguda, colecistite aguda e perfuração intestinal. A febre, a polisserosite, a hemoconcentração, a trombocitopénia e a ausência de compromisso renal permitem estabelecer a destrinça entre dengue e outras febres hemorrágicas.

Para finalizar o tópico sobre diagnóstico diferencial, importa uma referência a três infecções víricas transmitidas por artrópodes tal como a dengue, ocorrendo noutras latitudes (África, Ásia, América Latina, Estados Unidos e Médio Oriente). São consideradas pela patogénese e pelas afinidades quanto às manifestações clínicas, doenças simile dengue; trata-se: – da febre Chikungunya, por Togavirus, transmitida por Aedes aegypti e Aedes albopictus; – da infecção por vírus ZICA (ZICV), da família Flaviviridae, transmitida por Aedes aegypti e Aedes albopictus; – da febre O’nyong-nyong, por Togavirus, transmitida por Anopheles funestus; e – da febre do Nilo/West Nile, por Flavivirus, transmitida por Culex molestus ou Culex univittatus.

Tratamento

Não existe tratamento específico. A doença deve ser tratada com medidas sintomáticas; o tratamento da febre deverá ser feito apenas com paracetamol, estando o ibuprofeno e outros AINE contraindicados.

Na dengue grave a perda de líquidos para o espaço extravascular é o determinante fisiopatológico mais importante, sendo fundamental iniciar precocemente a reposição de volume (com hidratação venosa vigorosa) quando se verifica esta situação.

Sobre o tratamento da reidratação e do choque aconselha-se a consulta de capítulos próprios abordando estas temáticas.

Prevenção

A prevenção deve ser feita:

  • Pelo controlo do vector, destruindo-o na fase larvar do ciclo de vida dos mosquitos e eliminando-o na fase adulta dos mosquitos; – por educação ambiental, eliminando locais de águas estabilizadas e detritos urbanos, utilizando repelentes com N-dieSl-metatoluamida (DEET), usando vestuário apropriado (roupas frescas, claras, que cubram a maior área possível), optando por alojamentos com ar condicionado e redes mosquiteiras;
  • Por estratégias de comunicação/informação às populações, com utilização de diferentes meios de divulgação, informação precisa e concisa, não alarmista, sobre medidas que potenciem a diminuição da densidade de mosquitos e medidas a tomar nas viagens/estadias/residência, educação para a saúde nas escolas de ensino básico e secundário;
  • Outras medidas de controlo incluem identificação de locais propícios para criadouros e larvas, identificação das empresas registadas como estando a trabalhar na actividade de desinfestação, recenseamento dos locais de cultivo de plantas para exportação, identificação de residências abandonadas/devolutas ou não habitadas em permanência que contenham criadouros de mosquitos;
  • Por vacinação: o método ideal, incluindo os 4 serótipos, conferindo imunidade perene ainda não se encontra disponível; uma vacina viva atenuada recombinante CYD-TDV – está actualmente na fase II de investigação.

DOENÇA POR VÍRUS CHIKUNGUNYA

Definição e aspectos epidemiológicos

Esta doença, provocada pelo vírus Chikungunya (CHKV), também conhecida por febre Chikungunya (palavra que significa “aqueles que se dobram” num dialecto da Tanzânia, fazendo referência ao andar curvado das pessoas acometidas por essa doença que “provoca dores”), foi descoberta pela primeira vez em 1953 na Tanzânia durante uma epidemia de doença febril. Verificando-se posteriormente várias epidemias intervaladas entre 2 e 20 anos na África e Ásia, a partir de 2004 adquiriu características de expansão global afectando milhões de pessoas até à actualidade.

Uma das epidemias mais conhecidas ocorreu na Ilha da Reunião em 2005, afectando mais de 300.000 casos, com 219 mortes. Posteriormente foram registados surtos na Itália, França, Canadá, Brasil, Estados Unidos e Guiana. Mais recentemente, em 2013, na Ilha de San Martin, Caraíbas, comprovou-se a existência de casos autóctones.

Determinados factores predisponentes, tais como as condições climáticas, a presença de artrópode vector e uma população susceptível sob o ponto de vista imunológico influenciaram a disseminação da doença no continente americano.

Etiopatogénese

Trata-se duma arbovirose produzida por um vírus ARN pertencente ao género Alphavirus e uma das 29 espécies da família Togaviridae. Após a picada do mosquito (especialmente da família Aedes) infectado pelo vírus, este transmite-se aos fibroblastos e macrófagos dérmicos, replicando-se nesta localização. Disseminando-se ulteriormente pelos nódulos linfáticos, passam para a circulação originando virémia. Seguidamente, com nova disseminação, são atingidos os órgãos periféricos, designadamente, os músculos, o baço, continuando a replicação.

Neste processo, foram identificadas diversas fases: aguda, subaguda e crónica. Estão documentadas infecções pré-natal, perinatal e formas atípicas da doença.

Para além da transmissão do vírus pelo mosquito, estão descritos casos de transmissão através de transfusões de sangue.

O Homem é o reservatório principal; secundariamente, alguns vertebrados.

Manifestações clínicas

O período de incubação oscila entre 3 e 7 dias. A percentagem de casos assintomáticos varia entre 3% e 28%. Nos indivíduos sintomáticos as manifestações mais típicas na fase aguda são: febre alta de início abrupto podendo durar 7 dias, poliartralgias simétricas, frequentemente incapacitantes, sobretudo ao nível das mãos e pés, zonas proximais, e exantema maculopapular pruriginoso atingindo as palmas das mãos e plantas dos pés.

Têm sido descritos outros sinais e sintomas, tais como: astenia, cefaleia, mialgias, dores torácicas, náuseas, vómitos, conjuntivite, faringite e linfoadenopatias.

Poderá surgir uma fase subaguda ou pós-aguda, iniciada após os 21 dias e prolongando-se por 2 a 3 meses, rara na idade pediátrica, caracterizada essencialmente por poliartralgias incapacitantes associadas a tenossinovites.

Descreve-se ainda uma fase crónica, com artralgias acentuadas e incapacitantes, de duração superior a 3 meses, também rara em idade pediátrica.

Existe uma forma clínica de infecção perinatal por CHIKV: quando uma mãe está sintomática no período periparto (entre 4 dias antes e 1 dia após o parto), o risco de transmissão vertical do vírus é de 50%. Em tal circunstância, as manifestações clínicas no RN surgem em geral cerca de 4 a 9 dias após o parto: febre, edema nas extremidades, irritabilidade, prostração, recusa alimentar e exantema. A médio e longo prazo poderá verificar-se alteração no neurodesenvolvimento, convulsões, e paralisia cerebral.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se em critérios clínicos, epidemiológicos e laboratoriais. Os critérios clínicos e epidemiológicos permitem identificar, respectivamente, caso possível e caso provável

Critérios clínicos: febre de início abrupto > 38,5ºC e artrite ou artralgia acentuada; nesta circunstância faz-se o diagnóstico diferencial com dengue, malária endémica ou doença com artrite (caso possível).

Critérios epidemiológicos: residência em, ou visita a, área endémica dentro do período de 15 dias precedendo o início de sintomas (caso provável).

 Critérios laboratoriais: fundamentalmente, importa avaliar os seguintes parâmetros: isolamento do vírus, presença de ARN vírico, anticorpos (IgM específica e IgG com títulos determinados seriadamente em períodos separados 2 a 3 semanas. Bastará a positividade de apenas 1 (caso confirmado).

Quanto às provas laboratoriais como instrumento de avaliação citam-se: PCR-RT (reacção em cadeia da polimerase com transcriptase inversa) para identificação de virémia, a realizar nos primeiros 5-7 dias após início dos sintomas; provas serológicas para IgM e IgG, sendo de anotar que com as provas serológicas se poderá verificar reactividade antigénica cruzada com outros arbovírus.

Diagnóstico diferencial

Faz-se com as seguintes situações: dengue, zica, malária, leptospirose, influenza, febre amarela, sépsis, rubéola, sarampo, e infecções por alfaviroses (vírus Mayaro, Ross River, Barmah Forest, O´nyong e Sindbis).

Prevenção e tratamento

Como medidas preventivas gerais citam-se as seguintes:

  • Evitar picadas de mosquitos, limitando a exposição aos mesmos;
  • Restringir as viagens a áreas endémicas, incluindo, claro, das grávidas;
  • Usar vestuário protector e repelentes de insectos;
  • Providenciar ambiente interior com ar condicionado.

Quanto ao tratamento, perante a inexistência de fármacos anti- CHIKV, são adoptadas medidas gerais de suporte. A hospitalização está indicada perante: febre alta > 5 dias, sintomatologia neurológica, irritabilidade, vómitos, oligúria, quadro clínico em RN e presença de comorbilidade.

INFECÇÃO POR VÍRUS ZICA

Consultar Capítulo “Infecção Congénita” na Parte sobre Perinatologia e Neonatologia (XXXI).

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Definição e importância do problema

Descrito pela primeira vez em 1976, o vírus Ébola é altamente contagioso, patogénico e associado a elevada taxa de letalidade. Esta última, combinada com a ausência de tratamento e vacinação específicos, tornam-no uma ameaça para a saúde pública; por outro lado, tal agente microbiano constitui uma potencial arma de bioterrorismo.

Aspectos epidemiológicos

O vírus Ébola foi descoberto em 1976 em doentes com quadro de febre hemorrágica em dois locais próximos: inicialmente, no sul do Sudão e, depois, no norte do Zaire (actual República Democrática do Congo). O agente identificado foi nomeado de acordo com um rio no norte da República Democrática do Congo, o rio Ébola.

A posteriori foi reconhecido que as epidemias haviam sido provocadas por estirpes diferentes, a estirpe Sudão e Zaire, respectivamente.

Em 1994 foi identificada pela primeira vez a terceira espécie de vírus Ébola, a estirpe Côte d’Ivoire ou Tai Forest, isolada num etnólogo. Este tinha trabalhado na floresta Tai, na Costa do Marfim e realizado a autópsia de um chimpanzé originário de região onde tinham falecido vários pacientes afectados por febre hemorrágica.

A quarta espécie, a espécie Bundibugyo, isolada no Uganda em 2007, é geneticamente semelhante à estirpe Côte d’Ivoire. Por último, a espécie Reston, foi descrita em 1989 em Reston, nos Estados Unidos da América do Norte, em macacos importados das Filipinas; relativamente à mesma, não são conhecidos, até à data, casos de doença em seres humanos.

Desde a sua descoberta em 1976 até 2012, foram registados 2.387 casos de infecção por vírus Ébola e 1.590 mortes (taxa de letalidade 66,6%), designadamente, na África equatorial (Gabão, Sudão, República Democrática do Congo e Uganda), em que o vírus Ébola é endémico.

No final de 2013 a doença pela estirpe Zaire ebolavirus foi identificada pela primeira vez na África ocidental, mais precisamente na Guiné-Conacri, tendo sido confirmada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Março de 2014.

Atingindo posteriormente os países vizinhos (Libéria, Serra Leoa, Nigéria, Senegal e Mali), segundo dados da OMS a infecção por vírus Ébola passou a ser considerada a maior epidemia da história da doença, tendo-se contabilizado, até Março de 2016, 28.608 casos confirmados, suspeitos e prováveis, incluindo 11.305 mortes.

O aparecimento da doença pela primeira vez numa zona urbana, a elevada densidade populacional dos países atingidos, o vasto movimento de pessoas entre estes, os rituais religiosos praticados e os precários cuidados de saúde são apontados como os principais factores causais da elevada magnitude da epidemia.

Na idade pediátrica registaram-se mais de 5.000 casos, com uma mortalidade de 80% em crianças abaixo dos 5 anos (e 95% abaixo de um ano de idade); estes valores são superiores aos registados nos adultos (faixa etária 15-44 anos, com mortalidade de 70,8%). De salientar que mais de 16.000 crianças ficaram órfãs.

Curiosamente, é baixa a proporção de crianças doentes (17%), não sendo conhecido o motivo pelo qual as crianças são menos atingidas do que os adultos. Equaciona-se que a incidência referida esteja relacionada, não só com uma menor susceptibilidade à infecção, mas também, e sobretudo, com uma menor exposição à doença.

Etiopatogénese

O género Ebolavirus é composto por vírus RNA de cadeia única, não segmentado, com 80 nm de diâmetro e comprimento variável que pode atingir 14.000 nm. Juntamente com o género Marburgvirus, constitui a família Filoviridae (do latim “filum”, filamentoso). (Figura 1)

Trata-se de vírus citoplasmáticos intracelulares que atingem principalmente as células endoteliais e os macrófagos (target cells). Sendo resistentes ao frio, e susceptíveis à radiação solar, à luz artificial, ao calor e a químicos como sabão, álcool e outros antissépticos, a sua sobrevivência depende do hospedeiro.

Vírus Ébola e Marburgo, embora antigenicamente distintos, causam doença semelhante, anteriormente classificada como “Febre hemorrágica”. Contudo, esta designação actualmente é considerada incorrecta para a Doença por Vírus Ébola (DVE), uma vez que, apenas numa baixa percentagem de doentes se desenvolve hemorragia significativa, habitualmente já na fase terminal.

Como referido anteriormente, são conhecidas cinco estirpes de vírus Ébola, apelidadas de acordo com a região onde foram identificadas pela primeira vez: Zaire, Sudão, Costa do Marfim (Tai forest ebolavirus), Bundibugyo e Reston.

FIGURA 1. Estrutura do vírus Ébola (In Center for Disease Control and Prevention).

Destas, apenas a estirpe Reston não provoca doença conhecida no humano. A mais virulenta é a estirpe Zaire, com taxas de mortalidade 55%-85%, seguindo-se a estirpe Sudão, com taxas de 50%, e a Bundibugyo, com 30%. A estirpe Côte d’ Ivoire infectou apenas uma pessoa, que sobreviveu.

O vírus Ébola infecta apenas mamíferos, sendo a doença considerada uma zoonose. O principal reservatório animal é o morcego, cuja infecção é assintomática, ao contrário do que acontece nos restantes mamíferos. Sequências do genoma de Ebolavirus foram encontradas em três espécies de morcegos: Myonycteris torquata, morcego da fruta, implicado no surto de Ébola da África Ocidental, e dois morcegos da fruta, mais raros, o Hepomops franquetti e o Hypsignathus monstrosus, habitando na floresta da África central.

O vírus é transmitido ao Homem através do contacto com animais infectados, como morcegos, macacos e várias espécies de roedores. Por sua vez, o caso index transmite facilmente o vírus, atendendo à sua rápida replicação celular e elevada carga vírica no sangue e fluídos corporais.

O contágio faz-se através do contacto com órgãos, sangue ou outros fluidos corporais (saliva, urina, vómito) de doentes infectados, cadáveres ou materiais contaminados, não estando ainda esclarecidas outras possíveis vias de contágio em que o vírus foi identificado (leite materno e aerossóis).

Manifestações clínicas

Após um período de incubação, em média, de quatro a sete dias (limites ~ 2-21 dias), a doença manifesta-se de forma abrupta e inespecífica através de febre, astenia, mialgias, cefaleia frontal intensa e odinofagia (fase prodrómica com duração média de 10 dias).

Cinco a sete dias após o início dos sintomas, surge exantema maculopapular não pruriginoso no tronco e membros superiores, que se generaliza, tornando-se frequentemente hemorrágico e, posteriormente, descamativo. O exantema é acompanhado de enantema do palato duro, conjuntivite e edema das mucosas.

Na segunda fase da doença surge envolvimento gastrintestinal traduzido por anorexia, náuseas, dor abdominal, vómitos e diarreia, que poderão provocar desidratação, hipotensão e choque. Pode ocorrer ainda envolvimento neurológico, incluindo meningoencefalite ao 10º dia (alteração do estado de consciência, convulsões, rigidez da nuca), e envolvimento ocular com uveíte ao 14º dia (fotofobia e visão “turva”).

Em mais de metade dos casos surgem sinais e sintomas de discrasia hemorrágica prolongada (sobretudo, diarreia com sangue, epistaxe, hematemese, petéquias, equimoses), traduzindo habitualmente a fase final de doença, com falência multiorgânica, coma e morte.

Diagnóstico

Caso suspeito

A OMS define como caso suspeito o que preenche os critérios descritos no Quadro 1

FONTE: Orientação da OMS nº 012/2014, actualizada a 13/11/2015, pela DGS: Doença por vírus Ébola. Definição de Caso e Procedimentos Gerais

Critérios clínicos

e

Critérios epidemiológicos

Febre associada ou não aos seguintes sintomas/sinais:

    • Náuseas, vómitos, diarreia, anorexia, dor abdominal
    • Mialgias, astenia, cãibras, odinofagia
    • Cefaleia, estado de confusão, prostração
    • Conjuntivite, faringe hiperemiada
    • Exantema maculopapular, predominante no tronco
    • Tosse, dor torácica, dificuldade respiratória e/ou dispneia;
    • Hemorragias

Em estádios mais avançados da doença poderá ocorrer insuficiência renal e hepática, distúrbios da coagulação, entre os quais coagulação intravascular disseminada (CIVD) e evolução para falência multiorgânica.

Estadia (viagem ou residência) em área afectada num período de 21 dias antes do início dos sintomas.

ou

Contacto de proximidade com doente nos últimos 21 dias.

Caso provável

  • Doente preenchendo os critérios de caso suspeito e tenha sido validado por profissional de saúde;
  • Caso suspeito falecido no qual não tenha sido possível recolher produtos biológicos para análise, mas que tenha tido ligação epidemiológica comprovada com um caso confirmado, ou ligação epidemiológica a uma área afectada e sintomatologia compatível com doença por vírus Ébola.

Caso confirmado

Caso provável com confirmação laboratorial.

Exames complementares

Os resultados dos exames laboratoriais evidenciam: leucopénia (linfopénia e, posteriormente, neutrofilia; granulócitos imaturos e linfócitos anormais); trombocitopénia; elevação das transaminases; coagulopatia (tempo de protrombina e tempo parcial de tromboplastina prolongados, D-dímeros aumentados); insuficiência renal aguda (creatinina e ureia séricas aumentadas); proteinúria; distúrbios hidro-electrolíticos (hiponatrémia, hipocaliémia, hipomagnesiémia e hipocalcémia).

O diagnóstico é confirmado pela detecção de ARN, no sangue ou noutros fluidos corporais, por ensaio imunoenzimático, ou por teste de ácidos nucleicos (polymerase chain reaction ou PCR). Esta última técnica, com sensibilidade e especificidade elevadas, permite diagnóstico com rapidez; contudo, é dispendiosa.

Durante a epidemia de 2014-2015, foram usados testes rápidos para diagnóstico, através da identificação de sequências específicas de ARN no sangue do doente pela técnica de PCR (Rapid Test PCR). Na maioria dos casos, a infecção é detectada por este método, o qual permite identificar ARN do vírus três dias depois do início dos sintomas. A repetição do teste poderá ser necessária quando o mesmo tiver sido efectuado antes deste período de tempo. A doença é excluída se o resultado da PCR for negativo, passadas mais de 72 horas após o início dos sintomas.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da DVE faz-se com gripe, malária, febre tifóide, sarampo, dengue, febre de Lassa, doença meningocócica e doença de Marburgo.

Actuação perante caso suspeito

Na presença de um doente que tenha estado até 21 dias antes em país atingido pelo surto de Ébola, e que apresente febre ou outra sintomatologia sugestiva (caso suspeito), deve: – evitar-se o contacto físico com outras pessoas; – manter-se uma distância mínima de dois metros; e – permanecer em área de isolamento com máscara cirúrgica. Cabe ao profissional de saúde calçar luvas e validar o caso suspeito através de linhas de apoio da DGS.

Caso se confirme que se trata, de facto, de um caso suspeito, este deve ser transferido para um dos hospitais de referência, onde ficará internado em quarto de isolamento com pressão negativa.

Somente os profissionais com formação específica e treinados podem ter contacto directo com o doente, e todo o material (de equipamento e de terapêutica) deve ser guardado no quarto. Todos os procedimentos, limitados ao necessário de forma a minorar a exposição à doença, devem ser efectuados utilizando o Equipamento de Protecção Individual (EPI).

Os produtos biológicos são posteriormente enviados em condições de segurança para o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) para realização de PCR, habitualmente entre o 3º-10º dias após o início dos sintomas.

Deve ser realizado em simultâneo diagnóstico diferencial com infecção por vírus Marburgo e Lassa, e por Plasmodium sp.

 Tratamento

Medidas gerais

Todos os doentes devem ser internados em isolamento para monitorização cardiorrespiratória, balanço hidroelectrolítico e tratamento de suporte. Este deve ser iniciado o mais precocemente, com o objectivo de evitar a depleção de volume intravascular, corrigir distúrbios como hiponatrémia, hipocaliémia, hipomagnesiémia e hipocalcémia) e evitar complicações do choque.

Volumes maciços de solutos cristalóides (soro fisiológico ou lactato de Ringer) poderão ser necessários. Outras medidas sintomáticas incluem analgésicos e antipiréticos, antieméticos, e derivados de sangue, em caso de coagulopatia ou hemorragia.

Sendo o vírus transmitido através do contacto directo ou indirecto com sangue ou outros fluidos corporais (incluindo urina, fezes, vómito, suor, lágrimas, sémen, leite materno e saliva), gotículas ou órgãos de doentes, reitera-se que todos os profissionais de saúde devem usar material de protecção adequado (EPI) e cumprir protocolos de prevenção da infecção no âmbito da assistência a estes doentes. A colocação e remoção correctas do EPI tem elevada importância. Salientando que o momento de remoção está associado a maior risco de contaminação, conclui-se que o mesmo deverá ser supervisionado por outro profissional treinado.

O EPI deve cobrir toda a pele e mucosas, deve ser impermeável, de uso único, e composto por: fato de bloco operatório, fato de protecção integral, bata, cogula, touca, óculos de protecção, viseira de protecção facial total, protecção respiratória (máscara FFP3), luvas e protecção de calçado.

 Tratamento específico

Até à data, não estão aprovados fármacos específicos, quer para o tratamento de doentes infectados, quer para profilaxia pós-exposição. Importa referir que estão em estudo o favipiravir (análogo nucleósido que inibe a replicação de vírus ARN, disponível para crianças com idade superior a 1 ano) e o frincidofovir (análogo acíclico nucleósido em fase III de investigação, usado no tratamento de infecções porcitomegalovírus, poxvírus e outros vírus ADN).

Plasma e sangue de doentes convalescentes foram amplamente usados durante o surto da África ocidental. Porém, o seu benefício continua controverso dada a escassez de estudos aleatorizados duplamente cegos e de estudos que avaliem a sua eficácia enquanto tratamento isolado. Trata-se de uma terapêutica segura, sem efeitos secundários a curto prazo, prática, e com a vantagem de conferir anticorpos contra a estirpe do vírus em circulação durante um surto. Contudo, de acordo com os resultados dos estudos realizados nesta área, não se verificou diminuição da mortalidade com a sua utilização, excepto em crianças com menos de 5 anos e em grávidas. Por outro lado, existe a possibilidade de o plasma e o sangue administrados ter proveniência de convalescentes com coinfecções, eventualmente não detectadas quando a técnica não é realizada em condições adequadas, ou quando os dadores não são correctamente seleccionados. De salientar que este possível “cenário” poderá verificar-se em países em desenvolvimento durante um surto.

Vários estudos têm comprovado protecção contra o vírus em mamíferos não-humanos com a utilização de anticorpos monoclonais, em especial com ZMapp; este composto, resultando de uma combinação de três diferentes anticorpos monoclonais específicos do vírus Ébola, deve ser administrado em 3 doses (dias 0, 3 e 6). Tendo sido demonstrada a eficácia de tal terapêutica nas seguintes circunstâncias:

  • No tratamento de macacos infectados sintomáticos; e
  • Em dois profissionais de saúde que contraíram a doença durante o surto de 2015, poderá concluir-se que a mesma tem vantagens em relação à administração de plasma e sangue de doentes convalescentes. Contudo, não está disponível.

Prognóstico

Os doentes que sobrevivem, habitualmente mostram sinais de melhoria entre o 6º e 10º dias de doença, altura em que a virémia diminui e os resultados das serologias específicas evidenciam positividade (IgM e IgG). Nestes casos, a OMS recomenda a alta hospitalar dos doentes assintomáticos com dois testes negativos pela técnica PCR, com intervalo de 48 horas.

São considerados factores de mau prognóstico: idade superior a 45 anos; presença de manifestações gastrintestinais (diarreia), hipoxémia, hipotensão e choque; e carga vírica ≥ 10 milhões de cópias/mL.

Durante o surto da África Ocidental, foram identificadas várias sequelas de início precoce durante a recrudescência, admitindo-se estarem relacionadas com uma elevada carga vírica durante a infecção. As manifestações mais frequentes são: articulares (artralgia em 76% dos casos, sobretudo oligoarticular e bilateral), oftalmológicas em 60% (visão “turva” 38%, uveíte 18%) e auditivas (24%, sendo mais frequentes os acufenos e diminuição subjectiva da acuidade auditiva).

Nas crianças e adolescentes, a prevalência de sequelas precoces é mais baixa, de acordo com estudo realizado na Serra Leoa: uveíte – 20%, e restantes manifestações oculares – 22%; sequelas auditivas – 22%, e artralgias – 20%.

Recorrência e reactivação

O vírus pode persistir em locais imunologicamente protegidos, como leite humano, sémen, fluidos vaginais, urina, suor e humor aquoso, levando ao reaparecimento de sintomas em sobreviventes, isto é, à recorrência. O potencial de infecção é confirmado através de exame cultural, e não por PCR, esta última negativando mais tardiamente. A persistência do vírus nestes locais tem como risco a transmissão do mesmo a partir de indivíduos assintomáticos ou em recrudescência, bem como o risco de reactivação da DVE.

O fenómeno de reactivação foi pela primeira vez comprovado numa médica, na qual se desenvolveu uveíte nove semanas após DVE (situação clínica associada a vírus viável no humor aquoso). Posteriormente, o fenómeno de reactivação verificou-se também: – em doentes com meningite e vírus Ébola viável no LCR; e – em grávidas com virémia negativa, mas com carga vírica persistente no líquido amniótico, placenta e no feto. Esta última situação tem como implicações práticas a necessidade de protecção durante o parto.

A transmissão da DVE através de fluidos de doentes assintomáticos que recuperaram da DVE ainda não é certa, tendo sido comprovada apenas num caso em que houve contágio por via sexual, 6 meses depois, verificando-se similitude do perfil genético da estirpe identificada nos dois doentes. O reconhecimento desta via de transmissão é de elevada importância para a Pediatria, pelo risco de transmissão vertical e pelas opções relativamente ao aleitamento materno.

Para além da persistência crónica do vírus, há também risco de reinfecção, ou seja, de susceptibilidade para novas infecções por vírus Ébola em sobreviventes. Este aspecto é controverso pois, apesar de se considerar imune um doente que tenha tido DVE, na verdade sabe-se que perante elevada carga vírica, pode haver reinfecção. Este risco é muito variável, mas alerta para a necessidade de indivíduos, que tenham tido DVE, continuarem a usar meios de protecção ao contactar com doentes, especialmente profissionais de saúde.

Notas importantes:

1 – O nível de anticorpos necessário para conferir protecção ainda não está determinado; 2 – A carga vírica necessária para haver reinfecção também ainda não está determinada.

Prevenção

  • O cumprimento de medidas de prevenção e controlo da doença, bem como o uso de equipamentos de protecção pessoal pelos profissionais de saúde, são essenciais para o controlo do surto.
  • Por outro lado, todos os indivíduos assintomáticos, que tenham sido expostos ao vírus, devem ser vigiados durante 21 dias após o último contacto com o doente de forma a identificar precocemente sinais e sintomas da doença.
  • A transmissão assintomática por outros fluidos, nomeadamente leite materno e por via sexual, continua controversa, obrigando a medidas de protecção após recuperação clínica por um período de tempo ainda indeterminado.
  • O vírus Ébola permanece no leite materno até 15 dias após o início dos sintomas; todavia, até à data, não está comprovado que o aleitamento com leite humano seja uma via de transmissão.
  • Ainda assim, mães com suspeita de infecção não devem amamentar até exclusão da doença. Contudo, a OMS alerta para o risco-benefício desta medida em países em desenvolvimento, uma vez que o risco de desnutrição e de infecções é superior ao risco de contágio.
  • Relativamente à via sexual, devem ser usados métodos barreira durante 12 meses após a cura, uma vez que o vírus permanece em fluidos corporais (no sémen até nove meses e em secreções vaginais até um mês), mesmo na ausência de virémia.
  • Tal como já referido anteriormente, devem ser usados meios de protecção durante o parto de grávidas que tenham tido DVE.
  • Por fim, apesar de não ter sido provado cientificamente em oito estudos publicados que o vírus está presente na saliva, vómito e expectoração durante a fase de convalescença, são necessários mais estudos para confirmar este facto.
  • Várias vacinas encontram-se em fase experimental, não tendo sido aprovada nenhuma até à actualidade.
  • Demonstrou-se que duas das referidas vacinas são seguras e imunogénicas:
    • uma, incluindo adenovírus tipo 3 de chimpanzé (ChAd3) com glicoproteínas de superfície da estirpe Zaire ebolavirus; e
    • outra, que usa o vírus da estomatite vesicular (VSV) com glicoproteínas
  • Relativamente a esta última (em fase III de estudo), admite-se que possa prevenir a doença quando administrada após exposição.
Em artigo recente da revista Lancet, era publicada a seguinte afirmação. “On Nov 12, 2019, WHO announced the first prequalification of an Ebola vaccine.”

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Nomenclatura e importância do problema

Os fungos são seres vivos eucarióticos (estruturas somáticas filamentosas) que, por definição, e ao contrário das bactérias, possuem parede celular composta de quitina, núcleo e organelos (ou organitos) intracelulares.*

A classificação dos fungos não é um assunto fácil. Entre os estudiosos e especialistas existem diferentes opiniões, o que traduz que ainda muito se desconhece sobre a estrutura e fisiologia destes seres vivos. Assim, a interpretação que cada um faz conduz a uma falta de uniformidade nos critérios de definição de determinadas espécies fúngicas.

De acordo com literatura científica, os fungos integram o reino Eumycota; os fungos, também designados Eumycetes (Eumicetas ou fungos verdadeiros), dividem-se em três classes de acordo com o tipo de reprodução sexuada: antigo Zycomycetes (actual Mucorales e Entomophthorales), Ascomycetes e Basidiomycetes. A classificação dos fungos tem sido modificada pela aplicação de novas técnicas moleculares e de espectrofotometria. De facto, hoje em dia a taxonomia baseia-se não só no modo de reprodução sexuada, mas também na concordância das sequências de DNA de zonas hipervariáveis. Surgiu assim a noção de espécies morfologicamente semelhantes, distintas apenas geneticamente e com padrões distintos de susceptibilidade aos antifúngicos, as espécies crípticas, com implicações clínicas importantes.

*Células eucarióticas são aquelas em que há uma divisão nítida entre o núcleo (com membrana nuclear e mais que 1 cromossoma) e o citoplasma (com organitos específicos, por ex. mitocôndrias). Estas células variam muito em tamanho [por ex. diâmetro entre 6-10 um (levedura pequena), até 2 mm de diâmetro e 3-5 cm de comprimento (por ex. a alga unicelular Acetabularia)]. Células procarióticas, são aquelas em que não há divisão entre núcleo e citoplasma; são de menores dimensões e menos complexas estrutural e funcionalmente que as eucarióticas – por ex. são do tamanho dos organitos destas – As bactérias são células procarióticas.

De uma forma geral, de acordo com a morfologia e tipo de crescimento, os fungos podem ser classificados em 3 tipos:

  • Leveduriformes, unicelulares, reproduzindo-se por gemulação, processo pelo qual a célula mãe origina outra, idêntica a si própria (por ex. Cryptococcus);
  • Filamentosos, multicelulares, sendo designados por hifas os filamentos longos, os quais, no conjunto formam um micélio; os tecidos são parasitados como filamentos, ou como filamentos e esporos;
  • Dimorfos; possuem características completamente diferentes in vivo e in vitro; nos tecidos revelam-se como células leveduriformes (Histoplasma, Blastomyces, Sporotrichum), esferas cheias de endosporos (Coccidioides imitis) ou células fumagóides (agentes de cromomicose); e em meios de cultura correntes e a 24ºC, originam colónias

Das particularidades biológicas poderá resultar alguma confusão dos nomes atribuídos às diferentes formas; por ex., à forma unicelular de determinado fungo dá-se o nome de Cryptococcus neoformans, e de Filobasidiella neoformans à forma hifa. O agente Pneumocystis jiroveci (ex- carinii), anteriormente considerado protozoário, é hoje englobado na categoria dos fungos.

Das cerca de 100.000 espécies de fungos existentes, apenas uma pequena minoria é patogénica para o ser humano, designando-se por micoses as infecções causadas por fungos.

Numa perspectiva simples, de prática clínica, uma das classificações considera os seguintes tipos, de acordo com a localização da infecção: 1 – superficiais (cutaneomucosas); 2 – subcutâneas; 3 – sistémicas ou profundas.

Na criança saudável, as infecções sistémicas graves por fungos são pouco frequentes. Nas últimas duas décadas, tem-se verificado um aumento de infecções fúngicas graves em crianças imunodeprimidas, o que pode estar relacionado com estratégias terapêuticas cada vez mais agressivas, podendo levar a neutropénia prolongada.

Com efeito, cerca de 8% a 10% dos episódios febris em doentes imunocomprometidos são devidos a infecções invasivas por fungos. Os agentes etiológicos mais frequentes nestas situações são Candida albicans, Aspergillus fumigatus e Cryptococcus neoformans.

Contudo, mais recentemente, em parte devido à utilização profiláctica de fármacos antifúngicos, têm emergido outros fungos como causa de doença invasiva.

Etiopatogénese

Estão descritos três mecanismos principais pelos quais é adquirida a doença infecciosa por fungos:

  1. Inoculação/contaminação; em geral, o fungo afecta o hospedeiro imunocompetente, sendo a infecção resultante da contaminação cutânea ou inoculação, como por exemplo as dermatofitoses ou dermatofitias (por fungos filamentosos com afinidade específica para as estruturas ceratinizadas) e as candidíases mucocutâneas;
  2. Doença sistémica (primária); nesta categoria estão incluídas as infecções por fungos com virulência suficiente para infectar um hospedeiro imunocompetente. São exemplos: histoplasmose, coccidioidomicose, blastomicose e paracoccidioidomicose;
  3. Doença/micose oportunista; neste tipo de mecanismo estão englobados agentes com menor virulência que raramente causam doença invasiva no hospedeiro imunocompetente. São exemplos: candidíase invasiva, aspergilose e criptococose.

Neste capítulo é dada ênfase às infecções fúngicas superficiais e sistémicas.

As infecções subcutâneas: a – Esporotricose (por Sporothrix schenckii); b – Micetomas (por Madurella micetomi e outras espécies); c – Cromomicose (por Fonsecae pedrosoi); d – Rinosporidiose (por Rinosporidium seeberi) são habitualmente do domínio do Dermatologista.

1. INFECÇÕES FÚNGICAS SUPERFICIAIS

1.1 Dermatofitoses mais comuns

Os fungos dermatófitos alojam-se na camada superficial da epiderme, unhas e cabelo, onde proliferam. Não invadem as camadas inferiores da epiderme ou derme. Os agentes mais frequentemente implicados são Trichophyton, Microsporum e Epidermophyton.

No que respeita à epidemiologia, verifica-se distribuição mundial. A infecção é adquirida por contacto directo com humanos ou animais infectados ou, no caso de dermatófitos geofílicos, por contacto com o solo.

Nesta alínea são abordadas as dermatofitias mais frequentes, a pitiríase versicolor e as candidíases mucocutâneas.

Tinea capitis

Esta dermatofitia é causada por fungos do género Trichophyton e Microsporum, tais como M. canis, M. audouinii, M. mentagrophytes e T. tonsurans (90% dos casos nos EUA). Os agentes causais variam consoante a área geográfica.

É muito frequente em idade pediátrica, sobretudo em crianças com 3-7 anos. As crianças e os adultos podem ser portadores assintomáticos. A incidência é maior em afro-americanos, condições de higiene deficitárias e baixo nível socioeconómico.

Pode atingir o couro cabeludo, sobrancelhas e pestanas, sendo a apresentação clínica variável: dermatose descamativa não inflamatória, inflamação com lesões eritematosas e descamativas acompanhadas de alopécia, podendo progredir para lesões mais acentuadas, tipo foliculite (kerion); pode manifestar-se igualmente por nódulos supurativos ou por lesões tipo favo (escútula fávica/tinha favosa, com crostas e escamas amareladas e aderentes); por vezes acompanha-se de febre e adenopatias satélites. Após cicatrização, pode haver alopécia definitiva. A evolução depende da interacção agente-hospedeiro. (Figura 1)

FIGURA 1. Tinea capitis. (NIHDE)

O diagnóstico é clínico, mas deve ser confirmado através da observação do fungo por microscopia óptica, sobretudo na tinha do couro cabeludo. O exame cultural é o meio de identificação do agente específico.

O tratamento é feito com griseofulvina PO, 10-20 mg/kg/dia, em 1 dose diária, durante 6 a 12 semanas; terbinafina (< 20 Kg, 62,5 mg/dia; 20-40 kg, 125 mg/kg; > 40 kg, 250 mg/dia), 2 a 6 semanas, itraconazol 3 a 5 mg/kg/dia 2 a 4 semanas ou fluconazol 6 mg/kg/dia 2 a 4 semanas. Os champôs com sulfureto de selénio a 2,5% ou à base de cetoconazol a 2% reduzem a propagação da infecção.

Tinea unguium

A tinha das unhas deriva da invasão das lâminas ungueais por dermatófitos, sendo que a designação de onicomicose é mais lata do que a de tinha das unhas; com efeito, aquela inclui toda a distrofia ungueal causada por qualquer espécie de fungos, sejam dermatófitos, Candida, ou outros.

Os agentes mais frequentes da tinha das unhas são T. rubrum e T. interdigitale.

As manifestações clínicas variam entre pequenas manchas esbranquiçadas até espessamento com destruição da lâmina da unha e hiperceratose subungueal. Distinguem-se dois tipos clínicos: o distal, mais frequente, e o proximal, iniciado na prega peri-ungueal, em regra perto da lâmina. Observa-se discromia (cor esbranquiçada ou amarelada), superfície irregular, por vezes baça, fendilhação e descolagem que chega a separar a unha em duas lâminas. A onicólise total é rara. A doença atinge uma ou várias unhas. É raro que todas estejam alteradas, o que constitui elemento de diagnóstico em relação a outras afecções como a psoríase.

O diagnóstico faz-se através da identificação do agente por microscopia óptica e exame cultural. O tratamento da tinha das unhas é feito com griseofulvina, durante 6 a 12 meses ou terbinafina 6-12 semanas. Outras opções terapêuticas são o itraconazol e o fluconazol, de modo contínuo ou cíclico. Geralmente os antifúngicos tópicos são ineficazes pois não atingem as camadas inferiores do leito ungueal, mas poderão ser utilizados em associação com a terapêutica sistémica.

O tratamento da onicomicose por Candida é abordado na alínea 1.2.

Tinea corporis

A tinha do corpo ou tinea corporis atinge as áreas de menor pilosidade e não apenas a verdadeira pele glabra, como a das palmas das mãos e a das plantas dos pés. Pode atingir a face, tronco e extremidades.

Os agentes etiológicos são fungos do género Trichophyton (espécies T. rubrum, T. mentagrophytes, T. tonsurans), Microsporum (M. canis) e Epidermophyton (E. floccosum).

A lesão mais comum é a impigem, pruriginosa. Após período de incubação de 3 a 30 dias, o fungo desenvolve-se dentro e paralelamente à superfície da camada córnea. A lesão inicia-se por algumas vesículas com aspecto herpético. Estas vesículas passam por vezes despercebidas. Atenuam-se e surge em seguida a figura anular/circular designada classicamente como “herpes circinado”, com bordo vesiculoso, mais ou menos inflamatório, centro descamativo, e crescimento centrífugo. Da confluência de várias lesões resulta por vezes um aspecto policíclico. O prurido na zona da impigem é factor de disseminação pela coceira que origina, sobretudo em indivíduos com alteração imunológica local ou geral, congénita ou devida a terapêutica imunossupressora. (Figura 2)

FIGURA 2. Tinea corporis: impigem. (NIHDE)

Tinea pedis (pé de atleta)

As lesões dos pés (tinha dos pés ou “pé de atleta”) são provocadas por fungos do género Epidermophyton (E. floccosum) e Trichophyton (T. rubrum, T. mentagrophytes). Situam-se nos espaços interdigitais, na planta e no bordo. São constituídas por vesículas e pústulas que rebentam, secam e descamam, às quais sucedem maceração, fissuras, hiperceratose e alterações das unhas. A evolução é geralmente cíclica, com exacerbação no tempo quente e tendência para a cronicidade. O quadro clínico pode ser complicado por agentes piogénicos. Por vezes aparece linfangite.

A designação de “pé de atleta” deve o seu nome ao facto de ser muito comum entre desportistas praticando em ginásios, balneários e piscinas, assim como nos casos de uso prolongado de calçado favorável à acumulação de humidade. Contudo, este tipo de micose pode afectar qualquer indivíduo.

Tinea cruris

Certos factores predisponentes (pele fina, obesidade, atrito/roupa apertada, temperatura e humidade), agravados por certos tipos de vestuário, condicionam as características clínicas e a evolução da tinha das virilhas, também chamada tinea cruris.

Esta micose é provocada por fungos do género Epidermophyton (E. floccosum) e Trichophyton (T. rubrum, T. mentagrophytes).

As manifestações clínicas iniciam-se por pápula ou pequena área eritematosa, elevada, a qual invade as pregas das virilhas, períneo, e por vezes nádegas, onde a expressão clínica é a de impigem. O centro das lesões das virilhas é habitualmente castanho-avermelhado. Por vezes verifica-se descamação ou maceração e mesmo fissura; em certos casos há apenas descamação. É mais frequente em rapazes após a puberdade. Pode haver transmissão interpessoal.

O tratamento antifúngico indicado nas situações de tinea corporis, tinea pedis e tinea cruris é tópico (nistatina, terbinafina, clotrimazol ou miconazol) durante 4 semanas; contudo, nas lesões crónicas, por vezes múltiplas e recidivantes de tinea corporis da pele glabra, em que se perde o carácter de impigem e a dermatose passa a assemelhar-se a eczema ou psoríase, ou assume forma difusa granulomatosa (rara) com invasão da profundidade dos tecidos e dos gânglios, torna-se necessário tratamento sistémico e, em casos específicos, incisão e drenagem de lesões supuradas.

Pitiríase versicolor (Tinea versicolor)

Trata-se de uma micose muito comum devida a Malassezia furfur. Tem distribuição mundial, mas aparece com maior frequência nas regiões tropicais e subtropicais, e afecta sobretudo adolescentes e adultos jovens; pode verificar-se transmissão interpessoal quando em fase de descamação.

Como manifestações clínicas, referem-se lesões maculares hipo ou hiperpigmentadas, policíclicas, com descamação furfurácea; a sua patogénese não está esclarecida (a descamação não parece funcionar como filtro solar, sendo que se admite um defeito no transporte dos grânulos de melanina, secundário à infecção). As referidas máculas discrómicas têm dimensões variadas, de contornos nítidos ou difusos, por vezes confluentes; localizam-se sobretudo na metade superior do tronco, braços e região cervical, mais ou menos simetricamente.

Muitas vezes, a doença é detectada poucos dias após a exposição da pele ao sol porque nas áreas da pele afectadas pela micose a pele não se bronzeia. No Inverno, as lesões tomam uma coloração escurecida, castanho-avermelhada. É característica desta micose a cor variável (versicolor) associada à descamação que se torna mais nítida por raspagem com a unha – sinal clássico no diagnóstico diferencial com outras alterações discrómicas da pele.

O diagnóstico é habitualmente fácil. Apoia-se nos factos clínicos, na pesquisa do agente nas escamas por microscopia óptica e no exame da pele com radiação ultravioleta negra – luz de Wood. O exame cultural raramente é necessário.

Está indicado tratamento antifúngico tópico (hipossulfito de sódio a 20%, ou cetoconazol a 1%, ou derivados tópicos do imidazol, entre outros); em função do contexto clínico poderá estar indicada terapêutica com antifúngico oral (cetoconazol na dose de 3 mg/kg/dia durante 10 dias). As recaídas são frequentes.

1.2 Candidíase

A candidíase (ou candidose) é um tipo de micose provocada pelo fungo do género Candida. O habitat natural é o tubo digestivo e génito-urinário, onde vive como comensal. C. albicans encontra-se raramente na pele sã, embora seja habitual em mucosas sem alterações.

Mais de 150 espécies foram descritas, e pelo menos 17 podem causar doença invasiva. Na idade pediátrica a estirpe mais frequente é C. albicans, responsável por cerca de metade (44% a 49%) dos casos, logo seguida por C. parapsilosis (22,2% a 34%) que tem aumentado nos últimos anos. C. glabrata e C. krusei são menos frequentes em pediatria, mas estão associadas a resistência aos triazóis.

Os principais factores de virulência são: – as adesinas, que permitem a adesão e colonização; – a produção de enzimas proteolíticas; – a formação de biofilmes (associados ao aparecimento de resistência aos antifúngicos); e – a capacidade de evolução para as formas invasivas (hifas).

As respostas inata e adaptativa são fundamentais no combate à infecção. A resposta inata inicial do hospedeiro envolve o reconhecimento de padrões moleculares dos microrganismos (PAMP) pelos receptores de reconhecimento de padrões (PRR). Esta resposta é fundamental para desencadear a resposta do hospedeiro, nomeadamente através de neutrófilos, macrófagos e monócitos, impedindo a disseminação da infecção.

Também o sistema adaptativo, em especial as células T, são importantes. Em 2005 foi identificado um subtipo de células TCD4+Th17 cruciais para o controlo de C. albicans ao nível da mucosa. De facto, admite-se que os doentes com candidíase crónica mucocutânea (CMC), seja autossómica dominante (por defeito STAT1), por síndroma de hiperIgE (defeito STAT3) ou por produção de autoanticorpos contra a citocina 17, como na poliendocrinopatia autoimune com candidíase (APECED), têm um defeito nesta via.

Candidíase oral

Também vulgarmente conhecida como “sapinhos”, monilíase oral (Monilia sinónimo de Candida na taxonomia clássica), é a mais frequente de todas as formas de candidíase, sobretudo nos primeiros meses de vida; pode ocorrer entre 2%-5% de RN considerados saudáveis. É muito frequente nos doentes com infecção por VIH, neoplasias e outras imunodeficiências, embora possa ocorrer em crianças saudáveis, sobretudo após corticoterapia inalada e antibioticoterapia sistémica.

Como manifestações clínicas há a referir pequenas pápulas ou placas brancas “leitosas” (assemelhando-se a ”restos de leite”) com base eritematosa, confluentes, muito aderentes, dispersas por toda a mucosa (gengivas, língua, e particularmente na mucosa jugal). Quando removidas deixam a descoberto superfície vermelha e sangrenta.

O tratamento pode ser efectuado com antifúngicos tópicos:

  • Nistatina em suspensão oral (100 000 U/mL), PO, 1-2 mL no lactente e 4-6 mL na criança mais velha, 4 vezes/dia, durante 7-10 dias; ou
  • Miconazol a 20% em gel, PO, 1-2 mL no lactente; 3 a 5 mL na criança mais velha, 3-4 vezes/dia; a duração do tratamento é 7-10 dias, salientando-se a conveniência de prolongar o tratamento alguns dias após cura clínica para evitar recidivas.

A prevenção implica a execução de algumas medidas de higiene como esterilização de chupetas e biberões; nos lactentes alimentados ao peito, deve ser observada a glândula mamária (mamilo/aréola) no sentido de detectar eventuais sinais de candidíase, a qual deve ser tratada.

Na doença grave a moderada, sobretudo no doente imunodeprimido, pode ser necessário antifúngico oral, habitualmente fluconazol 3 a 6 mg/kg/dia, 7 a 14 dias.

Candidíase perineal

Surge tipicamente na região do períneo. Caracteriza-se por lesões eritematosas, de bordos elevados, por vezes com pápulas, vesículas ou pústulas na região perianal. Pode estar associada a candidíase oral. O tratamento consiste em antifúngico tópico (por ex. clotrimazol a 1%, miconazol, cetoconazol), 2-3 vezes/dia, durante 7-10 dias.

Uma vez que esta situação pode estar associada a dermatite das fraldas, está indicada a aplicação, em alternância, de pasta de óxido de zinco. Como medidas preventivas, e em complemento, cabe salientar: mudança frequente de fraldas (na idade das fraldas) e secagem cuidadosa da pele.

Outras infecções superficiais por Candida

Citam-se, de modo sucinto:

  1. Glossite (que pode surgir após antibioticoterapia);
  2. Boqueira (sinónimos: ângulo infeccioso ou perlèche) ou lesões de eritema e pequenas fissuras nas comissuras bucais, havendo por vezes factores predisponentes como atopia, imunodepressão, irritação local com pasta dentífrica, elixir, taninos, etc.. Nestas duas situações (glossite e boqueira) aplicam-se os princípios enunciados para o tratamento da candidíase oral;
  3. Dermatoses eritematosas maculovesiculares, por vezes papulares ou em placas, em zonas de pele húmida ou tapada (espaços interdigitais, axilas, virilhas);
  4. Onicomicose (rara, muito difícil de erradicar), a qual pode ser observada em adolescentes manuseando água com frequência. Este quadro poderá associar-se a candidíase mucocutânea.

Candidíase esofágica

Geralmente observada nas crianças imunodeprimidas, é uma doença que pode surgir nas situações de síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA). São factores de risco da citada candidíase a imunossupressão por neoplasia, transplante, imunodeficiência primária, exposição a corticóides e antibioterapia de largo espectro.

Os sintomas mais comuns incluem odinofagia, dor retroesternal ou epigástrica e disfagia. Está frequentemente associada a candidíase da orofaringe. Na endoscopia observam-se placas brancas, eritematosas, com edema, ulceração e por vezes estenose da mucosa esofágica. O diagnóstico histológico é fundamental, evidenciando invasão dos tecidos pelo fungo. O tratamento implica antifúngico sistémico, geralmente fluconazol durante 14 a 21 dias.

2. INFECÇÕES FÚNGICAS SISTÉMICAS

Nesta alínea são descritas algumas formas clínicas de infecção fúngica sistémica, salientando-se (dentro da raridade) a sua ocorrência mais frequente nos doentes em estado grave, em geral hospitalizados, e portadores de imunodeficiência de etiologia diversa.

2.1 Candidíase sistémica ou invasiva

Etiopatogénese e importância do problema

Na idade pediátrica, a incidência de candidíase invasiva tem aumentado nos últimos anos, variando entre 35 a 50/100 000 internamentos. A disseminação surge em 8,3% a 17% dos casos e está associada a uma mortalidade elevada (7,7% a 26%).

Merecem referência como grupos mais afectados: o RN pré-termo MBP e os doentes com infecção por VIH/SIDA, cancro e os transplantados com compromisso do estado imunitário.

Mais recentemente, em crianças com patologia gastrintestinal, nomeadamente síndroma do intestino curto ou submetidos a intervenções cirúrgicas complexas, verifica-se incremento do risco.

São poucos os estudos que definem os factores de risco de doença invasiva por Candida na idade pediátrica. A presença de cateter venoso central, alimentação parentérica, prescrição prévia de vancomicina ou de antibióticos com espectro de acção para anaeróbios, e a terapêutica imunossupressora em doentes transplantados ou com doença oncológica, foram alguns dos factores identificados.

Manifestações clínicas

Os sinais clínicos de candidíase sistémica são os de sépsis por outros agentes. No lactente e RN é mais frequente a meningite, o choque séptico e a candidémia persistente. A candidíase congénita é rara, mas pode surgir no recém-nascido de termo, manifestando-se como eritema difuso e neutrofilia nas primeiras 24 horas de vida. A candidíase disseminada pode afectar meninges, olhos, coração, pulmões, rins ou ossos. É muito frequente no doente oncológico, sobretudo após transplante de medula óssea. Se não tratada, pode evoluir para um quadro de choque séptico (forma aguda) ou para candidíase crónica disseminada (forma crónica).

A doença renal é manifestada por candidúria; contudo, o isolamento de Candida na urina poderá traduzir eventual colonização, cistite ou pielonefrite com ou sem micetomas (bolas de fungos). Poderão surgir microabcessos, necrose papilar, distorção dos cálices e obstrução da via excretora (do lume ou exterior ao lume).

A meningoencefalite é mais comum no RN, a endocardite surge habitualmente em crianças com valvulopatia e a osteomielite, rara, é mais frequente em lactentes e crianças pequenas. O envolvimento ocular pode surgir no contexto de candidémia e doença disseminada, como endoftalmite/retinopatia.

Diagnóstico

O diagnóstico de candidíase sistémica implica o isolamento de Candida de locais habitualmente estéreis. A hemocultura é o exame de eleição, com uma sensibilidade que se aproxima dos 50%. No caso de infecção disseminada, a cultura de tecidos por biópsia poderá ser fundamental para o diagnóstico. O isolamento de Candida nas secreções respiratórias indica colonização e raramente necessita de terapêutica antifúngica.

Nas infecções invasivas é fundamental determinar a susceptibilidade aos triazóis das estirpes isoladas. A detecção de antigénios (como β-D-gulcano) e as técnicas de biologia molecular (PCR) não estão ainda padronizadas para a idade pediátrica.

Em função do contexto clínico, outros exames devem ser realizados:

  • Exame oftalmológico para detecção de retinite ou outras alterações do sistema ocular; aliás, na infecção fúngica sistémica este exame torna-se obrigatório;
  • Hemoculturas seriadas até ficarem negativas;
  • Na suspeita de meningite deve ser analisado o LCR por punção lombar (em particular no RN), na ausência de contraindicação;
  • Sugere-se a avaliação renal, cardíaca e hepática nos doentes imunodeprimidos graves e nos doentes com fungemia persistente;
  • Outros exames de imagem (ecografia, TAC, RM, outros) devem ser ponderados em função do território afectado.

Tratamento

Nos últimos anos têm sido emitidas várias recomendações das sociedades americanas e europeias sobre a terapêutica da candidíase sistémica na idade adulta, com algumas indicações para a pediatria. Salienta-se, contudo, que a terapêutica deve ser sempre adaptada à epidemiologia local, nomeadamente ao tipo de doente, à estirpe isolada e à exposição prévia a antifúngicos.

Assim, de um modo geral, perante a suspeita de candidíase sistémica no doente não neutropénico, a terapêutica empírica inclui fluconazol (8 a 12 mg/kg/dia) ou anfotericina B (habitualmente a lipossómica, na dose de 3-5 mg/kg/dia), ou equinocandina (caspofungina 70 mg/m2/dia, seguida por 50 mg/m2/dia ou micafungina 2-4 mg/kg/dia).

Nos doentes hemodinamicamente instáveis, com doença grave, sob terapêutica profiláctica com fluconazol, ou com infecção prévia por C. krusei ou C. Glabrata, deve dar-se preferência a uma equinocandina ou a anfotericina B lipossómica. No doentes com infecção por C. parapsilosis é preferível optar por fluconazol ou anfotericina B lipossómica.

No período neonatal pode ser utilizada a anfotericina B convencional, uma vez que a toxicidade renal é menos frequente. Nos casos de infecção grave do SNC e endocardite deve associar-se à anfotericina B lipossómica a flucitosina (50-100 mg/kg/dia, em 4 doses com doseamento sérico bissemanal).

A terapêutica deve ser iniciada o mais precocemente possível e mantida durante 14 dias após candidémia negativa, desde que se exclua foco não resolvido ou não haja imunodeficiência grave. Havendo cateter venoso central, o mesmo deverá ser removido, se possível.

Nos casos de terapêutica empírica iniciada com equinocandina, com estabilidade hemodinâmica, estirpe isolada susceptível ao fluconazol e hemoculturas repetidas negativas, recomenda-se a transição para fluconazol.

No caso de disseminação, a terapêutica deverá ser prolongada de acordo com a focalização e doença de base.

Prognóstico

O prognóstico depende da focalização e do estado imunitário do doente, com uma mortalidade que varia entre 7,7% a 26% nas séries pediátricas.

Nos RN prematuros as infecções invasivas por Candida estão associadas a atraso no neurodesenvolvimento e elevada mortalidade (35% a 66%).

2.2 Aspergilose

Importância do problema

A aspergilose evidencia uma incidência crescente nos últimos anos, associada ao aumento de doentes com imunossupressão grave. A doença invasiva tem geralmente uma mortalidade elevada, sendo actualmente a causa mais frequente de morte por micose sistémica.

Trata-se duma infecção fúngica de larga distribuição mundial. Estão descritas aproximadamente 185 espécies de Aspergillus, das quais cerca de 19 estão associadas a doença humana, na sua maioria por Aspergillus fumigatus e, em menor grau a A. flavus, A. niger, A. terreus e A. nidulans; a identificação destas espécies é importante por motivos terapêuticos.

Aspergillus spp é um membro dos Eumicetas (fungos verdadeiros), produzindo micélio e esporos assexuados (conídias) que são libertados para a atmosfera, podendo ser encontrados em qualquer local, incluindo o ambiente hospitalar.

Etiopatogénese, manifestações clínicas e diagnóstico

Na maioria dos casos, a doença por Aspergillus afecta o pulmão na medida em que o primeiro evento para que aquela surja é a inalação do fungo. Em muitos casos verifica-se a circunstância de obras de construção civil com libertação de poeiras contaminadas com esporos do fungo.

Os neutrófilos e macrófagos são fundamentais na defesa contra a doença invasiva. Os macrófagos alveolares, a primeira defesa, são responsáveis pela eliminação das conídias inaladas. Numa segunda fase os neutrófilos impedem a infecção invasiva.

Ao abordar o tema relacionado com este fungo, é importante falar nas micotoxinas, uma das quais, a aflatoxina, produzida por algumas espécies de A. flavus, que pode contaminar os cereais e outros alimentos; também é um potente carcinogénio cujo papel na doença humana não está esclarecido.

Salienta-se que o agente Aspergillus é altamente angiotrópico.

A infecção por Aspergillus spp pode manifestar-se como 3 síndromas distintas relacionadas com a imunocompetência do hospedeiro:

  • Duas formas de aspergilose não invasiva são observadas em doentes com sistema imune normal ou ligeiramente alterado: aspergiloma pulmonar e aspergilose broncopulmonar alérgica (ABPA); e
  • Outra forma, aspergilose invasiva, podendo a invasão ser local ou disseminada, afectando os hospedeiros gravemente imunossuprimidos.(#)

(#)Para além das formas descritas, descrevem-se ainda as chamadas síndromas não invasivas saprofíticas em crianças imunocompetentes, traduzidas essencialmente por colonização com o fungo ao nível do canal auditivo externo (otomicose) e aspergiloma pulmonar.

 

No caso da ABPA, existe uma resposta alérgica a Aspergillus spp (adquiridos por inalação), por hipersensibilidade de tipo I e III.

No aspergiloma, como o nome parece indiciar, existe acumulação de fungos (micélios) em forma de bola, ocupando uma cavidade pulmonar pré-existente.

A aspergilose invasiva, a forma de apresentação mais grave, ocorre no contexto de doentes com imunodeficiência grave primária (em particular doença granulomatosa crónica), ou adquirida (sobretudo imunossupressão pós-transplante, corticoterapia prolongada, e neutropénia).

A aspergilose pulmonar invasiva manifesta-se de forma subtil e heterogénea nos doentes imunodeprimidos, com tosse seca, febre, dificuldade respiratória, dor pleurítica e novos infiltrados pulmonares como sinais radiográficos; com a progressão da infecção pode associar-se hemoptise (por vezes maciça) e taquicárdia. Cerca de 2-3 semanas depois pode verificar-se cavitação pulmonar no contexto de imunodeficiência e de estado geral grave símile septicémia bacteriana e eventual disseminação. Ao contrário dos doentes neutropénicos em que a doença é aguda e rapidamente progressiva, nos doentes com doença granulomatosa crónica a apresentação é crónica e insidiosa, com astenia, presença ou não de febre, aumento da velocidade de sedimentação e sinais de pneumonia. Neste grupo particular de doentes não ocorre angioinvasão.

No contexto de imunodeficiência e de estado geral grave surge a possibilidade de formação de focos metastáticos em diversos órgãos [seios perinasais (sinusite recorrente, polipose)], pele (placas eritematosas que evoluem para escaras-ecthyma gangrenosum), globo ocular (retinite, celulite orbitária, etc.), SNC (meningite, enfartes e abcessos cerebrais), osso (osteomielite), e coração (endocardite).

O diagnóstico da infecção, considerada de modo global, implica a documentação histopatológica e com exames culturais.

Na prática clínica, para o diagnóstico da ABPA, considera-se imprescindível a verificação dos seguintes critérios: história de obstrução brônquica, eosinófilos no sangue > 500/mm3, IgE total sérica elevada, detecção de precipitinas para Aspergillus, aumento da IgE específicas para Aspergillus, prova cutânea positiva para Aspergillus, sinais radiográficos evidenciando infiltrados pulmonares e bronquiectasias centrais.

De salientar que o diagnóstico da doença invasiva é difícil. Considera-se este diagnóstico se houver identificação de Aspergillus por microscopia ou cultura em tecidos habitualmente estéreis, obtidos por biópsia (tendo em atenção que, encontrando-se no ambiente o Aspergillus, será preciso demonstrar a sua presença intratecidual. Importa referir que a hemocultura é geralmente negativa, mesmo na forma disseminada.

Tratamento

  • Nas síndromas de hipersensibilidade estão indicados corticóides sistémicos: prednisona oral (0,5 a 1 mg/kg/dia durante 14 dias, e depois em dias alternados durante 6 a 8 semanas, com redução progressiva). A remissão clínica e radiológica, assim como a redução dos nível de IgE sérico, determinam a interrupção do tratamento.
    Nos doentes que necessitam de uma dose elevada de corticóides recomenda-se a associação de itraconazol 5 mg/kg durante 16 semanas, com monitorização dos níveis séricos.
    Dado que a doença se correlaciona com níveis elevados de IgE relacionada com a carga fúngica, está em investigação o emprego de anticorpos anti-IgE (omalizumab) associados a antifúngicos na forma broncopulmonar alérgica.
  • Em situações específicas de aspergiloma está indicada ressecção cirúrgica associada a antifúngicos, ponderados os riscos.
  • Na aspergilose invasiva, o voriconazol (PO ou IV) é considerado o agente de primeira linha:
    • IV: dose de carga 9-14 mg/kg/dose, seguido de 8 mg/kg de 12/12h; nos adolescentes a dose será semelhante aos adultos (dose de carga 6 mg/kg/dose de 12/12h, seguidas de 4 mg/kg/dose de 12/12h); oral: 9 mg/kg/dose 12/12h (acima dos 50 kg, dose de adulto 200 mg 12/12h).

Este tratamento requer monitorização do nível sérico “em vale” com valores superiores a 1,0 μg/mL). Como agentes alternativos de segunda linha emprega-se a anfotericina B lipossómica (3-5 mg/kg/dia), posaconazol, caspofungina ou micafungina.

A duração do tratamento depende da gravidade da imunossupressão, da localização da doença e da evolução clínica; o mesmo pode ser iniciado IV, passando a PO à medida que se verifica a melhoria.

Prognóstico

O prognóstico é reservado nas formas invasivas, comportando mortalidade ~ 70%; o mesmo está também condicionado pela doença de base.

Prevenção

Nos doentes de alto risco (com cancro, neutropénia e submetidos a quimioterapia) tem sido preconizada a administração de anfotericina B em aerossol, ou de itraconazol PO (2,5-5 mg/kg/dia em duas doses diárias) como quimioprofilaxia. Tendo em conta a etiopatogénese, tais doentes deverão ser afastados de zonas de obras e de poluição.

2.3 Criptococose

Importância do problema 

A criptococose é uma doença fúngica invasiva provocada por C. neoformans, uma levedura monomórfica capsulada. Cursa habitualmente com meningoencefalite e pneumonia e afecta tanto doentes imunodeprimidos como imunocompetentes, sendo menos frequente em crianças.

O agente, de distribuição mundial, tem 4 serótipos (A, B, C, D): os serótipos B e C, antes conhecidos por C. neoformans var. gatti e actualmente designados por C. gattii, relacionam-se com infecções prevalentes nas regiões tropicais e subtropicais, designadamente em certas regiões da Austrália e afectam mais frequentemente imunocompetentes; os serótipos A (C. neoformans var. grubii) e D (C. neoformans var. neoformans) são geralmente considerados agentes oportunistas e estão associados a infecções em doentes com imunodeficiência congénita, ou adquirida, sobretudo em relação com infecção por VIH/SIDA e terapêutica imunossupressora em doenças linfoproliferativas.

Etiopatogénese

Admite-se que, na maior parte dos casos, a infecção seja adquirida por inalação de esporos, não se verificando transmissão de pessoa a pessoa. Raramente a infecção pode ser adquirida por via cutânea ou ocular.

As estirpes virulentas de C. neoformans possuem uma cápsula espessa constituída por polissacáridos, que protege o agente infeccioso da fagocitose por macrófagos e neutrófilos. A imunidade celular T é fundamental na defesa contra a infecção, sendo a resposta Th1 protectora e a resposta Th2 facilitadora da infecção. Atingidos os pulmões, pode surgir um quadro de pneumonia com formação de granulomas contendo leveduras, em geral de localização subpleural. Nas circunstâncias de falência do sistema imune para conter a infecção, o agente ultrapassa a barreira alvéolo-capilar e atinge, por via hematogénica, outros órgãos e sistemas (meninges, cérebro, pele, globo ocular, próstata e sistema esquelético). Ou seja, a infecção disseminada pode ocorrer secundariamente a doença pulmonar em doentes com disfunção imunitária de células T, incluindo crianças com leucémia ou linfomas, submetidas a transplante de órgãos sólidos ou com imunodeficiência congénita ou adquirida (SIDA).

Manifestações clínicas

As principais manifestações são:

  • Meningite subaguda ou crónica com cefaleias intensas associadas a alterações inespecíficas como febre, astenia, náuseas e vómitos. Podem surgir alterações do comportamento e personalidade, sinais neurológicos focais e, por vezes, sinais de hipertensão intracraniana; trata-se da forma mais grave e frequente (~ 50% dos casos);
  • Pneumonia, geralmente assintomática ou ligeira, com sintomas inespecíficos como tosse, toracalgia, dificuldade respiratória, perda ponderal e fadiga (~ 30% dos casos);
  • Doença grave disseminada (em geral nos doentes com SIDA), assumindo um quadro clínico símile septicémia com disfunção multiorgânica e prognóstico reservado;
  • Infecção cutânea (lesões nodulares, podendo ulcerar, pústulas ou celulite) (Figura 3);
  • Infecção esquelética com compromisso frequente das vértebras;
  • Infecção ocular (coriorretinite);
  • Linfadenopatia generalizada.

FIGURA 3. Lesões cutâneas nodulares de Criptococose [regiões nasal (ulceradas), labial, geniana, auricular e retroauricular]. (NIHDE)

Diagnóstico

O diagnóstico específico depende da demonstração do fungo (observação directa com microscópio, ou após cultura) ou do seu antigénio capsular no LCR, sangue, ou outros locais atingidos pela infecção; salienta-se, no entanto, que o C. neoformans pode estar presente na expectoração na ausência de doença.

O exame do LCR poderá não revelar alterações, sobretudo nos doentes com SIDA. Nos estudos pediátricos verificou-se que a celularidade é normal em 50% dos casos, podendo variar entre 10-300/mm3 nos restantes casos; existe sempre predomínio de linfócitos.

Habitualmente a glicorráquia e proteinorráquia são também normais. No LCR a formação de um halo com coloração de tinta da china tem uma sensibilidade de 50% a 80%.

No mercado existem kits que permitem a detecção do antigénio capsular no soro ou LCR, com uma sensibilidade e especificidade de 95% no LCR. Falsos negativos surgem quando as concentrações do antigénio são muito baixas ou muito elevadas (Prozona), a estirpe não é capsulada ou o doente é ligeiramente pouco imunodeprimido.

A radiografia do tórax pode evidenciar opacidades nodulares e/ou linfadenopatia hilar.

Na meningoencefalite criptocócica as alterações imagiológicas são inicialmente parcas. Através da RM, pode verificar-se captação meníngea em 15% dos casos. Ocasionalmente pode surgir hidrocefalia, edema cerebral ou massas granulomatosas denominadas criptococomas.

Diagnóstico diferencial

Perante quadro de infecção sistémica acompanhada de meningite, o diagnóstico diferencial inclui investigar, entre diversas causas de meningite, em particular, a tuberculose. As lesões cutâneas impõem que o mesmo se faça com molluscum contagiosum e histoplasmose, designadamente nos doentes com SIDA.

Tratamento e prognóstico

  1. Nos doentes com doença do sistema nervoso central ou outra forma grave associa-se a anfotericina B convencional (1 mg/kg/dia) ou lipossómica (3 a 6 mg/kg/dia) com a 5-flucitosina (100 mg/kg/dia, para níveis séricos entre 30 a 80 μg/mL) durante duas semanas (terapêutica de indução), seguida de fluconazol 12 mg/kg/dia durante 8 semanas (máximo 800 mg; terapêutica de manutenção); deve ser realizada punção lombar após duas semanas para documentar a esterilização. Nos doentes com cultura positiva às 2 semanas a terapêutica deverá ser prolongada.
  2. Nos casos de disfunção imunitária (SIDA e outras) em que são frequentes as recaídas após paragem do tratamento deverá manter-se a terapêutica supressiva com fluconazol (6 a 10 mg/kg/dia).
  3. Nos casos de doença pulmonar sintomática: fluconazol 10 a 12 mg/kg/dia, sendo a duração do tratamento guiada pela evolução clínica, serológica e radiográfica. As novas gerações de azóis (voriconazol e posaconazol) são também efectivas contra a infecção por Cryptococcus; tal não acontece, no entanto, com as equinocandinas (micafungina e caspofungina).

Com a terapêutica antiretrovírica associada nos casos de SIDA o prognóstico melhorou. Uma das complicações da meningite por criptococose é a hidrocefalia obstrutiva.

Prevenção

A administração profiláctica de fluconazol em doentes com infecção por VIH poderá reduzir significativamente o risco de criptococose; contudo, na prática, este tipo de quimioprofilaxia não está indicado, tendo em conta a reduzida prevalência de tal patologia fúngica associada.

2.4 Blastomicose

Importância do problema 

A blastomicose é uma doença fúngica rara causada por Blastomyces dermatitidis, fungo dimorfo (micelar quando na natureza, e leveduriforme, com cápsula espessa, quando nos tecidos). Trata-se duma doença endémica, rara em idade pediátrica (abaixo dos 15 anos, corresponde a ~ 2%-10% dos casos notificados em todas as idades). Estão descritos casos em todos os continentes, sendo a maioria dos casos da região central da América do Norte, alguns locais de África e Médio Oriente. O agente, difícil de isolar no solo, aparece sobretudo em cursos de água. A doença adquire-se por inalação de esporos (na espécie humana e em animais), não se transmitindo de pessoa a pessoa. A infecção também pode ser adquirida através de lesão cutânea.

Etiopatogénese

O local primário de infecção é, em geral, o pulmão. Os esporos, atingindo os alvéolos, iniciam germinação, passando a formas leveduriformes. Embora, na maioria das vezes, os esporos sejam fagocitados pelos macrófagos antes de surgir infecção, os que sobrevivem originam pneumonite, podendo seguir-se disseminação hematogénica. Como resposta imune à invasão do agente, neutrófilos e macrófagos migram para os tecidos infectados. O resultado final é uma resposta piogranulomatosa associada a necrose e ulterior fibrose. As lesões cutâneas podem ser secundárias a disseminação hematogénica ou a inoculação directa.

Manifestações clínicas

A infecção por Blastomyces dermatitidis pode ser assintomática, autolimitada, e, por isso, não diagnosticada. Os sinais e sintomas são muito variáveis, entre: pneumonia aguda autolimitada associada a sinais gerais e inespecíficos como tosse, febre, perda ponderal, cefaleias, dor abdominal, sudorese nocturna; e quadro de doença aguda, crónica ou fulminante.

De salientar que a pneumonia aguda por blastomicose poderá não regredir espontaneamente e manifestar-se por vezes como infecção pulmonar subaguda ou crónica, manifestando-se como perda de peso, astenia e tosse, semelhante à tuberculose, sarcoidose e histoplasmose. Por vezes acompanha-se de eritema nodoso. A apresentação como nódulos ou derrame pleural é muito menos frequente.

As manifestações extrapulmonares incluem, entre outras, alterações cutâneas (a manifestação extrapulmonar mais frequente, sob a forma de lesões verrugosas ou ulcerações), lesões osteoarticulares (osteomielite), génito-urinárias e do sistema reticuloendotelial (fígado, baço, gânglios linfáticos, medula).

Diagnóstico

A blastomicose, embora rara na idade pediátrica, deve ser suspeitada em doentes vivendo em áreas endémicas, com lesões granulomatosas e ulceradas da pele ou mucosas, tendendo para a cronicidade. A forma crónica não se distingue da tuberculose, histoplasmose ou coccidioidomicose.

O diagnóstico definitivo faz-se através de exame directo em microscopia e de isolamento por cultura do fungo a partir das lesões (tecidos e fluidos corporais infectados).

É possível a detecção de antigénio específico na urina (método ELISA, por ex.) mas existem reacções cruzadas com outros fungos; um resultado negativo não exclui infecção. Os métodos serológicos têm uma sensibilidade baixa e não devem ser usados.

O exame radiográfico do tórax pode evidenciar sinais de consolidação, infiltrados intersticiais e alveolares, geralmente sem cavitação.

Tratamento

O tratamento da blastomicose depende da gravidade da infecção, envolvimento do SNC e a integridade do sistema imune. O tratamento é recomendado para todos os doentes pelo risco de disseminação.

A anfotericina B convencional (0,7-1 mg/kg/dia) ou a anfotericina B lipossómica (3-5 mg/kg/dia, preferida se houver envolvimento do SNC) são recomendadas na terapêutica inicial da doença grave; nas formas moderadas a ligeiras ou após estabilidade clínica nas formas graves recomenda-se itraconazol oral (10 mg/kg/dia). O tratamento deverá durar 6-12 meses, sendo no mínimo de 12 meses nas infecções do SNC e osteomielite.

2.5 Coccidioidomicose   

Importância do problema

A coccidioidomicose, também designada por febre de São Joaquim (nome derivado do vale de São Joaquim na Califórnia, onde a doença tem alta prevalência), é uma doença causada por um fungo dimórfico (Coccidioides immitis), existindo no solo sob a forma micelar/filamentosa, e nos tecidos sob a forma esporular. Uma segunda espécie (C. posadasii) com idêntica patogenicidade foi isolada em áreas fora da Califórnia.

Endémica em certas regiões da América do Norte, México, América Central e América do Sul incluindo Brasil, pode afectar hospedeiros com e sem imunodeficiência. A doença confere imunidade permanente (resposta TH1 ou T helper 1).

Etiopatogénese

A doença adquire-se através das conídias na fase micelar saprofítica (altamente infecciosas) que podem ser inaladas com a poeira do solo ou penetrar na pele em que se verifica solução de continuidade. Após inalação pode surgir doença cerca de 3 dias depois, coincidindo com a evolução para a forma esporular (esférula endosporo). A reacção tecidual é inflamatória, com influxo de neutrófilos e formação de granuloma. Não existe transmissão pessoa a pessoa (exceptuando a eventualidade de através de órgãos transplantados), mas foi descrita transmissão vertical mãe-feto.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos a sintomatologia é semelhante à de síndroma gripal (cefaleias, febre, artralgias e mialgias), por vezes associada a pneumonia, com recuperação espontânea. Como sequelas pulmonares poderão aparecer ocasional e paulatinamente nódulos ou cavidades, sobretudo em doentes com diabetes; tal achado pode verificar-se após radiografia do tórax, o que demonstra que tal evolução é assintomática ou oligossintomática.

A infecção aguda pode estar associada a exantema, eritema multiforme, assim como eritema nodoso. Verifica-se disseminação extrapulmonar (osteoarticular, do SNC, renal e cutâneo) em 0,5% dos casos, associada a imunodeficiência. Os locais mais frequentes de disseminação são a pele, o sistema osteoarticular e o sistema nervoso central.

Diagnóstico

O diagnóstico pode ser confirmado por:

  • Exame microscópico directo e por cultura da expectoração, pus ou sangue;
  • Provas serológicas (fixação do complemento, EIA) para doseamento de IgG e IgM; em 50% a 90% das infecções primárias a IgM é positiva entre a primeira e a terceira semana de doença; títulos de IgG > 1/16 estão em geral associados a infecções mais graves;
  • Detecção do antigénio na urina, soro ou lavado broncoalveolar, evidenciando uma sensibilidade mais elevada na doença grave (podem ocorrer reações cruzadas);
  • Exame radiográfico do tórax poderá evidenciar sinais de infiltrados com adenopatia hilar, de derrame ou de cavitações (nas formas complicadas).

O diagnóstico diferencial faz-se essencialmente com a tuberculose, tendo em consideração o quadro febril, os achados radiológicos torácicos e o eritema nodoso.

Tratamento e prognóstico

A coccidioidomicose primária raramente exige tratamento que não seja sintomático.

O tratamento específico (que engloba vários esquemas) deve ficar reservado para as formas graves associadas a títulos de anticorpos fixadores do complemento IgG > 1/16 (pós-primárias, primárias graves, disseminadas, ou de evolução subaguda ou crónica).

Nestes casos recomenda-se fluconazol (10 mg/kg/dia), ou itraconazol (nível > 1 μg/ml) PO 2,5-5 mg/kg/ dia, 3 a 6 meses.

A anfotericina B lipossómica está indicada nas formas disseminadas, em doses até 3-5 mg/kg/dia. Se houver compromisso do SNC pode ser dada também por via intratecal (0,1-0,5 mg/kg/dia), designadamente se se tratar de C. immitis. O tratamento deve durar até resolução da sintomatologia, em regra, e no mínimo, ~ 6 meses.

O prognóstico da coccidioidomicose é excelente, o da pós-primária é bom, e o da forma disseminada é muito reservado a mau, sobretudo se houver infecção meníngea.

Prevenção

A prevenção diz respeito à evicção da exposição a conídias. Uma vez que as vacinas holocelulares mortas são ineficazes, presentemente está em fase de investigação uma vacina subcelular.

2.6 Histoplasmose

Importância do problema

A histoplasmose é uma infecção pelo fungo dimórfico Histoplasma capsulatum cujas formas infectantes são as macro e microconídeas (esporos) das formas micelares; as mesmas encontram-se no solo rico em nitratos, com dejectos de aves e morcegos, e em zonas de pó com prédios e madeiras em ruínas. Os esporos podem ser transportados nas asas das aves.

Esta infecção tem distribuição mundial (estimando-se cerca de 200 000-500 000 casos anuais), sendo endémica nas regiões oriental e central dos EUA e América Latina. Na Europa e Ásia têm sido descritos casos esporádicos. Pode afectar crianças com e sem imunodeficiência. Não se transmite de pessoa a pessoa.

Etiopatogénese

A infecção surge pela inalação das microconídeas. Nos pulmões, os esporos germinam, evoluindo para formas leveduriformes que, provocando influxo de neutrófilos, linfócitos e macrófagos, levam à formação de granulomas. As formas leveduriformes podem sobreviver nos macrófagos e sistema reticuloendotelial durante anos.

As anomalias primárias ou adquiridas da função de imunidade celular, assim como a imaturidade relativa da imunidade celular na primeira infância, são factores de risco quanto a disseminação do microrganismo.

Verificando-se disfunção dos linfócitos T, o foco infeccioso inicial pode expandir-se e disseminar-se. A probabilidade de infecção é directamente proporcional à carga de inóculo, sendo que aquela poderá ser assintomática e autolimitada em 10%-50% dos casos.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos as infecções são subclínicas ou autolimitadas, não requerendo confirmação laboratorial.

Quando sintomática, a infecção pode ser pulmonar, extrapulmonar ou disseminada; e ainda, aguda ou crónica. Na maioria, apresenta-se sob a forma pulmonar aguda, com sintomas ligeiros (febre, tosse, mal-estar geral, adenopatia hilar e escassos infiltrados pulmonares). Nalguns casos pode surgir também envolvimento do mediastino, artrite, pericardite ou eritema nodoso.

Nas áreas endémicas pode ser observada uma forma cutâneo-mucosa com formação de granulomas. Nas referidas áreas endémicas, em crianças com aparente bom estado geral, uma radiografia torácica eventualmente realizada, evidenciando sinais compatíveis com granulomas típicos, poderá determinar a realização de exames laboratoriais.

A histoplasmose disseminada é uma doença progressiva mais rara, cujo foco inicial tem como ponto de partida a infecção primária do pulmão. Surgindo quase exclusivamente em crianças com imunodeficiência, pode seguir-se à infecção aguda, ou manifestar-se anos mais tarde, com febre prolongada (semanas ou meses), hepatosplenomegália progressiva, choque e disfunção multiorgânica com insuficiência hepática, renal, aplasia medular, compromisso do SNC e CIVD (quadro septicémico).

Diagnóstico

Dum modo geral, a realização de exames laboratoriais poderá ser necessária em doentes sintomáticos com quadro clínico podendo sugerir outros agentes patogénicos tais como Mycobacterium tuberculosis, Blastomyces dermatiditis, ou outros, susceptíveis de provocar inflamação granulomatosa.

O diagnóstico implica um elevado índice de suspeita numa criança que viva (ou tenha estado) em zona endémica e a eventual realização dum conjunto de exames complementares a saber:

  • Exame cultural para isolamento do agente (sangue, LCR, urina, lavado broncoalveolar, biópsias de tecidos infectados);
  • Detecção de antigénio por método ELISA (soro, urina, lavado broncoalveolar);
  • Detecção de anticorpos/fixação do complemento (sendo possível surgir reacções cruzadas); títulos > 1/32 ou aumento superior a 4 vezes o título cerca de 4-6 semanas após exposição ao fungo sugerem o diagnóstico.

O diagnóstico diferencial, tendo em conta a doença pulmonar e o padrão radiográfico do tórax, faz-se fundamentalmente com a tuberculose miliar.

Tratamento

Verificando-se a infecção pulmonar primária nos doentes sem imunodeficiência, não está indicado tratamento específico em tais circunstâncias. Como se pode depreender, estão indicadas medidas habituais de suporte para as infecções das vias respiratórias inferiores como oxigenoterapia, fluidoterapia, etc..

Não se verificando melhoria clínica do quadro de infecção pulmonar ao final de 1 mês, está indicado o tratamento com itraconazol 5 mg/kg/dia 6 a 12 semanas (níveis séricos > 1 μg/ml). Nos casos pulmonares graves sugere-se anfotericina B lipossómica (3 mg/kg/dia) IV durante 1-2 semanas, seguida de itraconazol PO (2-5 mg/kg/dia) durante 12 semanas. Nas crianças com imunodeficiência, a terapêutica poderá ser mais prolongada, até 1 ano.

Nas crianças com imunodeficiência, designadamente com infecção por VIH vivendo em zonas endémicas, poderá ser considerada a quimioprofilaxia com itraconazol (2-5 mg/kg cada 12 ou 24 horas).

A corticoterapia, num período curto e sempre concomitantemente com a terapêutica anti-fúngica, deverá ser reservada para as situações com alteração ventilatória secundária a adenopatias importantes, levando a obstrução da via respiratória.

2.7 Pneumocistose

Importância do problema

A infecção por Pneumocystis jiroveci (anteriormente designado P. carinii) origina um quadro de pneumonia intersticial (sigla habitual do inglês – PCP, significando Pneumocystis pneumonia) no contexto de determinados factores predisponentes (imunodeficiência), na maioria dos casos em crianças antes dos 4 anos. Nos doentes imunocompetentes a infecção é geralmente subclínica e não diagnosticada.

Mesmo nas formas mais graves de infecção, com raras excepções, a doença localiza-se no pulmão. Actualmente, este agente é classificado como fungo e não como protozoário (com base na análise da sequenciação do DNA), apesar de possuir diversas semelhanças morfológicas e biológicas com os protozoários.

Uma vez que o microrganismo pode também infectar outras espécies animais, designadamente mamíferos, alguns autores continuam a utilizar a nomenclatura P. carinii seguida da sigla f.sp (forma specialis) para designar especificamente a infecção em determinados hospedeiros; por ex. P. carinii f.sp.ratti, P. carinii f.sp muris, P. carinii f.sp. hominis, etc..

Aspectos epidemiológicos e etiopatogénese

O microrganismo está distribuído por todo o mundo. De acordo com estudos serológicos, a maior parte das pessoas é infectada antes dos 2 anos de idade; as infecções em crianças imunocompetentes são geralmente assintomáticas, demonstrando-se a presença de anticorpos em cerca de 75% dos casos.

Os factores predisponentes de pneumonia são: imunodeficiência congénita ou adquirida (designadamente infecção por VIH), desnutrição, doenças do foro oncológico, doentes submetidos a transplante de órgãos, corticoterapia, terapêutica imunossupressora, sobretudo com anti-TNF, etc.. Segundo alguns estudos, o microrganismo foi isolado nos pulmões de lactentes com síndroma de morte súbita, sem se ter concluído sobre a possível relação causa-efeito.

O habitat natural e o modo de transmissão ao homem são desconhecidos. A transmissão entre animais faz-se por via inalatória, sendo provável que a transmissão inter-humana se faça da mesma maneira; a transmissão animal-homem é pouco provável pelo facto de determinadas espécies do agente infectarem determinadas espécies de hospedeiros (ver atrás forma specialis).

Nos espaços alveolares encontram-se 2 formas de P. jiroveci (cuja terminologia deriva da similitude com a morfologia dos protozoários): quistos com 5-8 um de diâmetro contendo esporozoítos intraquísticos; e trofozoítos extraquísticos. O microrganismo, atingido o alvéolo, adere aos pneumatócitos de tipo I com o auxílio de proteínas adesivas como a fibronectina.

A capacidade de o agente provocar lesão anátomo-patológica pulmonar depende fundamentalmente da normalidade dos mecanismos de imunidade celular. Com efeito, em estudos realizados em doentes com SIDA, verificou-se aumento da incidência de pneumonia relacionada com a diminuição do número de linfócitos T CD4+ (sobretudo no grupo etário 3-6 meses).

Admite-se que os referidos linfócitos tenham papel importante na depuração dos microrganismos interagindo com fagócitos, complemento, e activação dos macrófagos; em caso de disfunção deste processo, produz-se lesão inflamatória conduzindo a destruição do surfactante, entre outros efeitos.

As consequências anátomo-patológicas são a génese de 2 quadros morfológicos: pneumonite intersticial de plasmócitos (sobretudo em lactentes com desnutrição, em que predominam plasmócitos no processo inflamatório, e se verifica infiltração com espessamento dos septos alveolares); e pneumonite alveolar descamativa difusa (sobretudo em crianças e adultos com imunodeficiência, em que há exsudado alveolar sem compromisso dos septos alveolares, e sem plasmócitos).

De salientar que a quimioprofilaxia associada a terapêutica anti-retrovírica activa na actual chamada “era HAART “(highly active antiretroviral therapy), contribuíram para reduzir significativamente o nº de casos/100 doentes-ano: de 5,8 (anteriormente) para 0,3.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas, em geral de início insidioso, incluem febre, dificuldade respiratória de grau variável, tosse não produtiva e sinais de hipóxia. Em geral, os sinais auscultatórios são discretos ou ausentes. A intensidade dos sinais e sintomas varia, podendo ser aguda ou fulminante, dependendo da imunossupressão do doente. (Figura 4)

Exames complementares e diagnóstico

A radiografia do tórax revela infiltrado intersticial difuso ou alveolar e, mais raramente, lesões lobares, miliares ou nodulares; contudo, pode não surgir qualquer alteração radiológica nas fases iniciais da doença. (Figura 5)

Para o diagnóstico etiológico, torna-se fundamental identificar o agente (por diversas técnicas como imunofluorescência, por técnica altamente específica e sensível empregando anticorpo monoclonal conjugado com fluorescência, ou PCR, com boa sensibilidade, mas especificidade inferior a 85%-90%) no lavado broncoalveolar, em expectoração induzida (crianças mais velhas), ou por métodos invasivos (por ex. biópsia pulmonar).

FIGURA 4. Criança com SIDA. Aspecto geral emagrecido associado a pneumonia por P. jiroveci. (NIHDE)

FIGURA 5. Padrão radiológico de pneumonia por P. jiroveci no contexto de SIDA/VIH. Opacidades nodulares confluentes ocupando o ⅓ inferior do campo pulmonar direito (incidências póstero-anterior e perfil direito). (NIHDE)

Tratamento

  1. TMP/SMX – ( TMP 15-20 mg/kg/dia; SMX 75-100 mg/kg/dia, dividida em 3 a 4 doses) PO ou IV, durante 14-21 dias – o tratamento de eleição; como alternativa, nos doentes que não toleram o TMP/SMX, ou em que se verifica falência terapêutica, poderá optar-se por:
    • Pentamidina na dose de 4 mg/kg/dia IV, durante 14-21 dias (pode ser alterada para atovaquona ao fim de 7 a 10 dias);
    • Atovaquona PO, na doença ligeira a moderada, 30-40 mg/kg/dia (se 1-3 meses de idade ou > 24 meses); 45 mg/kg/dia (se 4-24 meses de idade) durante 14-21 dias.
  1. Corticóides – foram comprovados benefícios do seu emprego em adolescentes e adultos infectados por VIH e com pneumonia por PCP moderada a grave. Nas crianças, contribuem para reduzir a gravidade da insuficiência respiratória aguda, a necessidade de ventilação e a mortalidade. As doses recomendadas de prednisolona oral (em idades > 13 anos) são: 80 mg/dia divididas em duas doses, nos primeiros 5 dias, 40 mg/dia de D6-D10, e 20 mg/dia D11-D21. Nas crianças mais novas (< 13 anos): 1 mg/kg/dose de 12/12 horas durante 5 dias; 0,5 mg/kg/dose de 12/12 horas de D6-D10 e 0,5 mg/Kg/dia, dose única de D11-D21.
  1. Tratando-se duma pneumonia, tal obriga a medidas de suporte geral abordadas na Parte sobre Pneumologia.

Quimioprofilaxia

A verificação de determinados factores de risco estabelecem a indicação de quimioprofilaxia: doentes imunodeprimidos com um episódio prévio de pneumonia por Pneumocystis jiroveci, crianças com imunodeficiência celular grave, receptores de transplante de órgãos, doenças linfoproliferativas ou outro tipo de neoplasias que requerem quimioterapia intensa, crianças com infecção VIH suspeita ou confirmada.

Nestes últimos, deve ser efectuada profilaxia desde as 4 a 6 semanas até um ano de idade, até exclusão de infecção VIH (por ex. lactentes de mães com infecção por VIH).

Após um ano de idade, a necessidade de quimioprofilaxia é orientada pela percentagem e número de linfócitos T CD4+. O fármaco de primeira linha é o TMP-SMX (respectivamente 5 mg/kg – 25 mg/kg/dia), dividido em duas tomas diárias, 3 dias por semana, consecutivos). A pentamidina aerossolizada, a atovaquona e dapsona são alternativas de segunda linha se o TMP-SMX não for tolerado.

Prognóstico

O prognóstico da pneumonia por Pneumocystis jiroveci depende da imunodeficiência subjacente, comporta mortalidade que poderá oscilar entre 25% e 40% nos doentes com neoplasias e 5% a 10% nos doentes com SIDA. Sem tratamento é, em geral, fatal.

2.8 Outras infecções fúngicas sistémicas

Citam-se, por fim, e de modo sucinto, dois tipos de infecções fúngicas sistémicas, mais raras, as quais fazem parte duma lista mais vasta:

  • Paracoccidioidomicose (Blastomicose sul-americana) causada por Paracoccidioides brasiliensis;
  • Micetoma eumicótico, tendo como agentes mais frequentes Madurella mycetomatis (70%) e Pseudallerscheria boydii e Leptosphaeriae senegalensis (10%), entre outros.

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Definições

Considera-se parasita o organismo que, durante uma parte ou a totalidade da sua existência, se nutre permanente ou temporariamente com substâncias produzidas por outro ser vivo, excepto nos casos relativamente raros em que os parasitas são excessivamente numerosos. Parasitismo pode definir-se genericamente de três modos: 1) condição de um organismo que vive como parasita de outro organismo; 2) estado de um organismo infestado por parasitas; 3) presença de parasitas num ser vivo ou em certos órgãos (parasitismo intestinal, hepático, sanguíneo, etc.).

Noutra perspectiva, mais específica, surge o termo de simbiose, ligado à relação íntima e obrigatória entre dois organismos. Esta associação pode ser benéfica para ambos (mutualismo), benéfica para um e quase indiferente para o outro (comensalismo) ou benéfica para um em detrimento do outro (parasitismo). O organismo em que o parasita vive chama-se hospedeiro (definitivo ou intermediário), sendo o parasita, habitualmente, dependente deste. Por vezes, para manter o ciclo de vida do parasita, é necessária a acção de um vector (transportando o parasita de um hospedeiro para outro).

Parasitose é, pois, qualquer afecção devida a parasitas e o conjunto de manifestações patológicas que aqueles provocam. Na natureza, praticamente todos os animais estão parasitados.

A este respeito convém uma referência ao termo infestação por contraposição a infecção. Infestação corresponde a parasitose externa (pele e faneras), enquanto no termo infecção estão abrangidas as parasitoses internas (por ex. ascaridiose, filariose, esquistossomose, etc.).

Os parasitas constituem uma enorme variedade de organismos, com ciclos de vida mais ou menos complexos e com tamanhos que podem variar entre 5 μm a mais de 20 metros. Ao longo dos séculos, adaptando-se a todos os tipos de ambientes e de hospedeiros, podem viver fora das células do hospedeiro como no intestino, sangue, linfa ou no seu interior, como glóbulos vermelhos, músculo, etc..

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

A distribuição geográfica das parasitoses é muito heterogénea salientando-se que as regiões mais afectadas são as tropicais e subtropicais. Globalmente, a mais importante é a malária que será descrita noutro capítulo. As estimativas para outras parasitoses não são, no entanto, mais optimistas. No mundo deverão existir 230 milhões de pessoas infestadas com Schistosoma, 120 milhões com filariose linfática, seis milhões com tripanossomose americana e dois biliões com nemátodos intestinais. No ocidente, ao longo dos últimos anos, a prevalência de parasitoses na população pediátrica diminuiu de forma muito acentuada.

Em Portugal, apesar da ausência de estudos epidemiológicos recentes em larga escala, as parasitoses mais frequentes são devidas ao protozoário Giardia lamblia e aos helmintas Enterobius vermicularis, Ascaris lumbricoides e Trichuris trichiura. Mais raramente poderão ser encontrados Strongyloides stercoralis, Ancylostoma duodenale, Taenia solium e Taenia saginata. Num estudo datado de 2001 na região de Lisboa, num grupo de crianças entre os 5 e 14 anos foi encontrada uma taxa de parasitismo intestinal por helmintas de 5,1%, excluindo Enterobius vermicularis. Os helmintas identificados foram: Trichuris trichiura (3,3%), Ascaris lumbricoides (1,9%), ancilostomídeos (1,4%), Strongyloides stercoralis (0,9%) e céstodes (0,5%); a taxa de poliparasitismo foi de 2,8%. As crianças filhas de emigrantes foram a população mais afectada.

Na região de Coimbra, mais recentemente (2008), excluindo também Enterobius vermicularis, a taxa de parasitismo intestinal em idade pediátrica foi inferior a 4%, exclusivamente por Giardia lamblia.

No entanto, a prevalência das parasitoses poderá ser muito diferente de umas regiões para outras, podendo existir focos endémicos e/ou epidémicos em determinadas zonas do país. Por outro lado, o incremento das viagens transcontinentais poderá levar à importação de parasitoses próprias de outras regiões do mundo e, eventualmente, à (re)introdução de algumas delas no País.

Em Portugal, apenas duas parasitoses são doenças de declaração obrigatória: leishmaniose visceral (provocada por protozoário) e equinococose (provocada por helminta). No período de 2008 a 2012, foram registados em Portugal até aos 15 anos de idade, 17 casos de leishmaniose visceral e nenhum caso de equinococose.

O objectivo deste capítulo é abordar, de modo integrado e sucinto, aspectos clínicos de doenças provocadas por protozoários e helmintas.

1. PROTOZOÁRIOS

Nomenclatura e características biológicas

Os protozoários são um tipo muito heterogéneo de organismos unicelulares, com morfologia mais diversificada do que as bactérias, com formas de replicação sexuada ou assexuada, possuindo organelos destinados a funções determinadas; citam-se como exemplos: os pseudópodos, flagelos, cílios ou membranas ondulantes para a locomoção; e pseudópodos ou sistemas pinocitóticos para a ingestão de alimentos. Podem apresentar duas formas: trofozoíto (forma adulta) e latente (quisto). Compreendem seis classes, havendo em todas elas membros que são patogénicos para o Homem. Muitos são saprófitas e, por vezes isolados das fezes humanas (por ex. Entamoeba coli, Endolimax nana). No Quadro 1 são descritas as classes de protozoários patogénicos, com exemplos.

QUADRO 1 – Classificação dos protozoários patogénicos (Classe: alguns exemplos).

Amebae: Entamoeba histolytica, Naegleria, Acanthamoeba, Blastocystis hominis

Ciliados: Balantidium coli

Flagelados: Giardia lamblia, Chilomastix mesnili, Leishmania spp, Trypanosoma spp, Trichomonas vaginalis

Coccidia: Cryptosporidium, Cyclospora, Isospora, Toxoplasma gondii

Sporozoa: Plasmodium spp, Babesia spp

Microsporidia: Enterocytozoon bieneusi, Encephalitozoon spp

Etiopatogénese, síntese clínica e tratamento

No que respeita à localização no organismo, são considerados dois grupos: os protozoários intestinais e os protozoários sanguíneos e teciduais. Nos primeiros, a transmissão faz-se pela via fecal-oral, e nos segundos, através da picada de um insecto vector. A excepção é a tripanossomose americana, cuja transmissão ocorre pela exposição a fezes contaminadas do insecto vector.

Os protozoários mais importantes para a espécie humana estão sistematizados no Quadro 2. A leishmaniose visceral (calazar), a malária, a giardiose, a tripanossomose americana (doença de Chagas) e a pneumocistose são descritas com mais pormenor em capítulos próprios.

QUADRO 2 – Protozoários que parasitam o Homem.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Amebiose E. histolytica Mundial (endémica em África, América Latina e Índia) Fecal-oral Intestinal: assintomática, diarreia com muco e sangue, tenesmo. Hepática: febre, dor abdominal, hepatomegália dolorosa. Paromomicina, furoato de diloxanida, metronidazol, tinidazol.
Meningoencefalite amebiana Naegleria, Acanthamoeba, Balamuthia Mundial Inalação/aspiração Aguda: cefaleias, náuseas, vómitos, meningite e encefalite. Granulomatosa: défices focais, convulsões, alteração de comportamento e do estado de consciência. Anfotericina B. pentamidina, cetoconazol, flucitosina.
Criptosporidiose Cryptosporidium spp. Mundial Fecal-oral, interpessoal, animal-homem Assintomática, diarreia aquosa, cólicas, fadiga, anorexia, perda de peso. Diarreia crónica em imunodeprimidos. Nitazoxanida, paromomicina com azitromicina.
Giardiose G. lamblia Mundial Fecal-oral Assintomática, diarreia aguda ou crónica, dor abdominal, anorexia, malabsorção, perda de peso, atraso de crescimento. Metronidazol, tinidazol, albendazol, paromomicina.
Leishmaniose visceral Leishmania donovani, Leishmania spp. Regiões tropicais, subtropicais e temperadas Phlebotumus Febre, anorexia, perda de peso, hepatoesplenomegália, anemia, leucopénia, trombocitopénia, hipergamaglobulinémia. Anfotericina B lipossómica, antimoniais pentavalentes, miltefosina.
Leishmaniose cutânea Leishmania spp. Bacia mediterrânica, América do Sul Phlebotumus Mácula, nódulo, úlcera indolor em áreas expostas da pele. Leishmaniose cutânea difusa: rara.
Leishmaniose mucosa Leishmania spp. América do Sul Lutzomya Eritema, edema, epistaxe, úlcera com mutilação do septo nasal, palato, lábios, faringe e laringe.
Malária Plasmodium spp. Região intertropical Anopheles spp. Febre, anemia, disfunção respiratória, alterações do estado de consciência. Derivados da artemisinina, quinino, atovaquona-proguanil cloroquina, primaquina.
Pneumocistose Pneumocystis Mundial Respiratória Febre, tosse, taquipneia, dispneia, hipóxia. TMP-SMX, primaquina + clindamicina.
Toxoplasmose Toxoplasma gondii Mundial Oral Assintomática. Febre, adenopatias, exantema, hepatomegália, coriorretinite. Infecção congénita: assintomática, SGA, prematuridade, icterícia exantema, adenopatias, hepatoesplenomegália, trombocitopénia, convulsões, microcefalia, hidrocefalia, coriorretinite, calcificações cerebrais. Pirimetamina-sulfadiazina, espiramicina, leucovirina.
Tripanossomose africana (Doença do sono) T. b. gambiense T. b. rhodesiense África ocidental Glossina palpalis Cancro de inoculação. Fase hemolinfática: febre, cefaleias, adenopatia cervical posterior, exantema. Fase neurológica: irritabilidade, sonolência e insónia, alterações de comportamento, alucinações, tremor, rigidez, ataxia, caquexia. Pentamidina, suramina, eflornitina, melarsoprol.
África oriental Glossina morsitans
Tripanossomose americana (Doença de Chagas) T. cruzi América do Sul e Central Triatoma, Rhodnius, Panstrongylus Doença aguda: cancro de inoculação (chagoma), febre, adenopatias, hepatoesplenomegália, miocardite, meningoencefalite. Doença crónica: cardiomiopatia, megaesófago, megacólon. Benznidazol, nifurtimox.

2. HELMINTAS

Nomenclatura e características biológicas

A palavra helminta (derivada do Grego helmins significando verme) representa uma classe de parasitas muito complexos. Os helmintas são organismos cujo tamanho varia, de menos de um milímetro (Taenia canis) a vários metros (T. saginata).

Os dois principais grupos de helmintas são: nemátodos (vermes cilíndricos) e platelmintas (vermes achatados). Os nemátodos são parasitas que possuem aparelho digestivo completo e cujos sexos são separados. Na sua maioria, parasitam vertebrados e, alguns deles, o Homem. Como exemplos de nemátodos parasitas de animais (cão, gato, etc.) que acidentalmente infectam o Homem, citam-se Ancylostoma braziliense, Toxocara canis, Toxocara cati. Os platelmintas compreendem duas classes: 1) céstodes; com a forma de fita, são segmentados (segmentos ou proglótides) no estado adulto, desprovidos de tubo digestivo e munidos de órgãos de fixação (ventosas e ganchos) na sua extremidade cefálica (escólex). Cada segmento ou anel é hermafrodita e contém órgãos genitais dos dois sexos. 2) tremátodos; com corpo não segmentado, provido de tubo digestivo sem ânus, têm uma ou mais ventosas. Incluem-se nesta ordem os distómios (fascíolas).

Etiopatogénese, síntese clínica e aspectos gerais do diagnóstico

Os nemátodos, céstodes e tremátodos mais importantes para o Homem estão sistematizados nos Quadros 3, 4, 5, 6 e 7, com referência a aspectos essenciais da etiopatogénese, clínica e tratamento. Duma forma geral não se reproduzem no hospedeiro e a sua transmissão pode ser por via oral, penetração através da pele ou pela picada de um vector.

Sendo os nemátodos os parasitas que mais frequentemente infectam a espécie humana, designadamente os intestinais, é dada ênfase nesta alínea ao referido grupo, descrevendo nas alíneas seguintes aspectos específicos do diagnóstico e tratamento de algumas parasitoses referidas em quadros anteriores.

O verme adulto localiza-se no intestino; no seu ciclo de vida, alguns deles limitam-se ao tubo digestivo (Enterobius vermicularis, Trichuris trichiura), enquanto outros migram através do pulmão (Ascaris lumbricoides, Toxocara), ou através da pele (Ancylostoma duodenale, Necator americanus, Strongyloides stercoralis).

QUADRO 3 – Nemátodos cujo verme adulto reside no intestino.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Ascaridiose A. lumbricoides Mundial Fecal-oral Assintomática. Pneumonite, febre e eosinofilia (Síndroma de Loffler), obstrução intestinal. Albendazol, mebendazol, pamoato de pirantel.
Ancilostomose A. duodenale, N. americanus Ásia, África, América, Sul da Europa Larva penetra a pele sã Dor e prurido no local da penetração pela pele, dor abdominal, diarreia, anemia, malnutrição.
Enterobiose E. vermicularis Mundial Fecal-oral Assintomática. Prurido anal.
Strongiloidose S. stercoralis Regiões tropicais e subtropicais Fecal-oral, autoinfecção Pápulas pruriginosas, pneumonite, dor abdominal, diarreia, malabsorção, perda de peso, lesões perianais, eosinofilia. Pode ocorrer disseminação em imunodeprimidos. Ivermectina, albendazol, tiabendazol.
Trichuris Trichuris thrichiura Mundial Fecal-oral Dor abdominal, tenesmo, diarreia sanguinolenta, prolapso rectal, anemia, má progressão ponderal. Albendazol, mebendazol, ivermectina.


As filárias são nemátodos que sobrevivem no Homem durante muitos anos produzindo uma enorme quantidade de microfilárias que infectam o mosquito vector aquando da picada. As horas do dia em que estas se encontram no sangue ou em determinadas áreas da pele é diferente nas várias regiões, denotando uma adaptação positiva aos hábitos de picada do vector. O verme adulto não se multiplica no Homem.

Dracunculus medinensis transmite-se pela ingestão do hospedeiro intermediário; a sua erradicação seria possível se fosse utilizada água potável. O Quadro 4 refere-se aos nemátodos cujo verme adulto reside no sangue, sistema linfático ou tecido subcutâneo.

QUADRO 4 – Nemátodos cujo verme adulto reside no sangue, sistema linfático ou tecido celular subcutâneo.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Filariose linfática Wuchereria bancrofti Brugia malayi Brugia timori Regiões tropicais e subtropicais Culex, Aedes, Anopheles Febre, cefaleias, mialgias, linfadenite recorrente, linfadenopatias, edema progressivo dos membros e genitais (elefantíase). Síndroma da hipereosinofilia pulmonar tropical. Dietilcarbamazina.
Sudoeste da Ásia e Índia
Indonésia, Timor
Loose Loa loa África Central e Ocidental Chrysops spp. Edema migratório (Edema de Calabar), doloroso e pruriginoso, conjuntivite com edema palpebral. Dietilcarbamazina
Oncocercose Onchcerca volvulus África e América Simulium Nódulos subcutâneos, dermatite pruriginosa crónica e generalizada, ceratite, uveíte, coriorretinite e cegueira. Ivermectina
Dracunculose Dracunculus medinensis África Central e Ocidental e subcontinente Indiano Oral (água contaminada com Cyclops) Úlcera dolorosa no pé ou perna provocada pela saída do verme adulto. Extracção do verme, metronidazol, mebendazol.

 

Nalguns casos são as larvas, e não os parasitas adultos, que causam doença no Homem. Este é hospedeiro intermediário e a sua infestação não interfere com o ciclo de vida do parasita. (Quadro 5)

QUADRO 5 – Formas larvares de nemátodos que causam doença no Homem.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Toxocarose
Toxocara canis,
Toxocara catis
Mundial Fecal-oral Assintomática. Larva migrans visceral: febre, pieira, hepatomegália, anemia, leucocitose, eosinofilia. Larva migrans ocular: perda de visão unilateral, dor ocular, estrabismo, endoftalmite, leucocoria. Albendazol, mebendazol.
Triquinose
Trichinella spiralis
Ásia, África e América Oral (carne crua ou mal cozida) Diarreia, dor abdominal, febre, edema periorbitário, urticária, mialgias, fadiga, dispneia, miocardite. Albendazol, mebendazol.
Larva migrans cutânea
Ancylostoma braziliense,
Ancylostoma caninum
Regiões tropicais e subtropicais Larva penetra na pele sã Pápula no local da penetração e erupção pruriginosa causada pela migração do parasita. Tiabendazol, Mebendazol.

A Figura 1 mostra aspecto de Ascaris lumbricoides eliminada por via rectal.

A Figura 2 mostra um aspecto de dermatite pruriginosa ao nível da nádega numa criança de 6 anos contactando com cães – lesão cutânea de larva migrans provocada por Ancylostoma caninum – edema, rubor e lesão filiforme e serpiginosa provocada pelo avanço subcutâneo da respectiva larva penetrando na pele, proveniente do intestino.

Os tremátodos necessitam dum caracol específico (hospedeiro intermediário) para o seu desenvolvimento, sendo este a principal condicionante da sua distribuição geográfica. As larvas penetram através da pele ou são ingeridas com alimentos migrando até aos locais onde se encontram os parasitas adultos (sangue venoso, intestino, sistema biliar e pulmão). (Quadro 6)

QUADRO 6 – Tremátodos mais importantes que parasitam o Homem.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Esquistossomose ou Bilharziose Schistosoma mansoni, S. intercalatum, S. japonicum, S. mekongi, S. hematobium Regiões tropicais Larva penetra através da pele sã Dermatite pruriginosa. Forma aguda: febre, arrepios, adenopatias, hepatoesplenomegália, eosinofilia. Forma crónica: disúria, hematúria, uropatia obstrutiva (S. hematobium), dor abdominal, diarreia, hepatoesplenomegália, fibrose hepática com hipertensão portal, hematemeses. Praziquantel, oxamniquina.
Fasciolose Fasciola hepatica Mundial Oral Febre, dor no hipocôndrio direito, icterícia, eosinofilia, hepatomegália, fibrose e cirrose. Triclabendazol.
Paragonimiose Paragonimus spp. Ásia, África, América Central e do Sul Oral Tosse, dispneia, dor torácica, suores nocturnos, hemoptises, fibrose pulmonar. Praziquantel, triclabendazol.

FIGURA 1. Ascaris lumbricoides. (NIHDE)

FIGURA 2. Larva migrans. (NIHDE)

Os céstodes no estado adulto são parasitas do tubo digestivo, vivendo no respectivo lume; no estado larvar fixam-se às vísceras (Quadro 7). Trata-se de parasitas prevalentes em todos os continentes, excepto na zona Antárctica, salientando-se que não existem sinais nem sintomas que se possam atribuir de modo distintivo a qualquer das formas no estádio de adulto, excepto no que toca ao Diphyllobothrium latum. Os estádios intermédios de alguns céstodos tais como Taenia solium e Echinococcus são invasivos e formam estruturas quísticas que produzem lesões em diversos tecidos por efeito de massa ou por reacção inflamatória.

Assim, as formas adultas podem ser facilmente diagnosticadas pelo achado de ovos ou de segmentos destacados nas fezes; para o diagnóstico das formas intermediárias/larvares, dada a sua localização em diversos tecidos, recorre-se a técnicas imagiológicas ou serológicas. (ver adiante)

De modo sucinto, e sem pormenorizar os respectivos ciclos evolutivos, para melhor compreensão das manifestações clínicas (com implicações no tratamento), recordam-se algumas noções fundamentais (cisticercose, hidátide e hidatidose ou doença hidática).

QUADRO 7 – Principais céstodes que parasitam o Homem.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Teniose Taenia solium, T. saginata, Diphyllobothrium latum, Hymenolepis nana Mundial Oral (porco, vaca, peixe) Assintomática. Astenia, dor abdominal, diarreia, perda de peso, deficiência em vitamina B12 (D. latum).   Praziquantel, niclosamida, nitazoxanida.
Cisticercose T. solium Mundial Fecal-oral Neurocisticercose: cefaleias, mialgias, eosinofilia, “encefalite”, convulsões, hidrocefalia, sinais de hipertensão intracraniana. Medular: radiculopatia, mielite transversa. Ocular: dor, escotomas, visão turva, descolamento da retina. Albendazol, praziquantel.
Hidatidose Echinococcus granulosus, Echinococcus multilocularis Mundial Hemisfério Norte Oral Assintomáticos, desconforto abdominal, náuseas, vómitos, hepatomegália, massa abdominal. Tosse, hemoptises, pleurisia. Hipertensão intracraniana, convulsões, hidrocefalia. Pode ocorrer ruptura ou sobreinfecção bacteriana do cisto. Cada escólex pode originar um novo quisto. Albendazol. Remoção cirúrgica.
  • Cisticercose → Infecção causada por cisticercos (larvas de vermes do género Taenia), que sobrevém após ingestão de ovos embrionados presentes nos alimentos crus (nomeadamente nos legumes contaminados por matérias fecais), cujos embriões, libertados no tubo digestivo, penetram em diversos tecidos e órgãos (olho, cérebro, coração, etc.), provocando lesões graves. Trata-se da forma parasitária mais comum e mais grave do SNC como resultado da infecção com a forma intermediária de solium, o céstode do porco. Este parasita, ao contrário de T. saginata, infecta a espécie humana e invade preferencialmente o SNC. T. solium pode existir também em água ou alimentos contaminados, não necessariamente carne de porco.
  • Hidátide → Fase larvar dos céstodos Echinococcus granulosus ou Echinococcus multilocularis que tem a forma de uma vesícula mais ou menos volumosa, com forma esférica, cheia de líquido incolor, e que contém cabeças/proto-escólexes dos mesmos. (Figura 3)
  • Hidatidose, equinococose ou doença hidática → Zoonose transmitida através de ovos de granulosus ou E. multilocularis existentes no intestino/fezes de animais domésticos/cães, gado, ou selvagens diversos. O Homem é contaminado ingerindo água ou alimentos contaminados com ovos, ou por contacto directo com cães infectados.

Existem duas formas clínicas de doença hidática:

  1. Doença quística hidática por E. granulosus;
  2. Doença alveolar, mais maligna, por E. multilocularis.

Após ingestão, as formas intermediárias penetram no tubo digestivo e, por via sanguínea ou linfática, atingem o fígado, pulmões e, menos frequentemente, outros tecidos. (Figs. 4, 5 e 6)

Nestes tecidos formam-se hidátides durante anos, sendo que o hospedeiro delimita a formação inicial que, entretanto, vai crescendo, formando-se, no caso de E. granulosus, um invólucro fibroso. Interiormente, o parasita produz uma camada celular germinal que produz milhares de parasitas ligados à parede interior da estrutura quística ou flutuando em líquido incolor, aquoso, no seu interior.

Tratando-se de E. multilocularis, a estrutura inicial não é tão delimitada, o que permite que os parasitas cresçam para o exterior, se disseminem nas estruturas vizinhas, tecidos e vasos, e metastizem, conferindo a esta forma clínica, características de malignidade.

Diagnóstico de algumas parasitoses intestinais

Exceptuando nos casos em que o parasita é visualizado, poderá ser necessário recorrer a exames complementares, designadamente laboratoriais, incluindo técnicas de biologia molecular. São referidos aspectos práticos relativamente a alguns parasitas (protozoários e helmintas).

  1. A observação microscópica das fezes permitirá a detecção de ovos, quistos ou trofozoítos. A colheita deve ser feita em três dias consecutivos, idealmente com intervalo de 48 horas, conservando-se as amostras no frigorífico a 4ºC até serem entregues no laboratório. Havendo diarreia, haverá maior probabilidade de detecção de trofozoítos. No caso de suspeita de Ascaris lumbricoides bastará uma amostra.
  2. Enterobius vermicularis pode ser detectado ocasionalmente nas fezes, mas os respectivos ovos em apenas ~ 5% dos casos. A forma mais simples de fazer o diagnóstico é identificar os ovos colocando uma fita-cola sobre a região anal durante a noite (período em que as fêmeas fazem a postura dos ovos); sendo retirada a fita-cola pela manhã, a mesma é colada a uma lâmina de microscópio para se proceder à visualização em microscópio.
  3. Tendo em conta distinguir entre Entamoeba histolytica e E. dispar (esta última mais frequente, mas não invasiva), podem ser utilizadas técnicas PCR ou enzimáticas.
  4. Cryptosporidium: os oócistos podem ser visualizados nas fezes ou na superfície de tecido de biópsia; contudo torna-se necessário proceder a técnicas específicas de coloração (por ex. Ziehl-Neelsen). Há também a possibilidade de utilizar técnicas de imunofluorescência (IFA), imunoenzimáticas (EIA) e de biologia molecular.
  5. Ténias: a visualização das proglótides é sinal patognomónico.
  6. Strongyloides stercoralis: as larvas poderão ser procuradas nas fezes (cultura de larvas durante 1 a 7 dias), no conteúdo duodenal e na expectoração.
  7. A colheita de sangue tem escassa utilidade, sendo clássica a eosinofilia (> 500 eosinófilos/mmc) ou hipereosinofilia (> 1.500 eosinófilos/mmc) associada a helmintíases com envolvimento tecidual. Pode verificar-se anemia por espoliação (por ex. nos casos de ancilostomose, ou por carência de vitamina B12 e folato (por ex. em parasitação por Strongyloides stercoralis).

Tratamento de situações específicas

Nesta alínea, em relação com o tratamento antiparasitário, é dada ênfase às parasitoses adiante discriminadas; de salientar que a giardiose, a doença de Chagas, a leishmaniose visceral e a malária integram capítulos próprios.

Amebiose

Quer se trate de doença invasiva (colite ou abcesso hepático), quer de colonização intestinal assintomática, utiliza-se o seguinte esquema: de início, metronidazol ou tinidazol, seguido de paromomicina ou iodoquinol.

– metronidazol → 35-50 mg/kg/dia, em 3 doses, durante 7-10 dias; – tinidazol → 50 mg/kg/dia, 1 dose, durante 3 dias (na colite), ou 5 dias (no abcesso hepático); – paromomicina → 25-35 mg/kg/dia, em 3 doses, durante 7 dias; – iodoquinol → 30-40 mg/kg/dia, em 3 doses, durante 20 dias.

Criptosporidiose (Cryptosporidium spp)

– nitazoxanida → 100 mg PO, duas doses diárias, (se 1-3 anos de idade), ou 200 mg (se 4-11 anos), ou 500 mg (se > 11 anos), durante período de diarreia; ou

– paromomicina → 25-35 mg/kg/dia, em 3 doses + azitromicina → 10 mg/kg/dia, 1 dose diária, durante 4 semanas, seguindo-se monoterapia com paromomicina durante mais 8 semanas (no contexto de infecção por VIH).

Toxoplasmose adquirida (Toxoplasma gondii)

– pirimetamina → 2 mg/kg/dia (dose de impregnação: 2 dias), seguindo-se 1 mg/kg/dia, (dose máxima de 50 mg/dia) + sulfadiazina (se > 1 ano de idade) → 100 mg/kg/dia (dose máxima de 4 g/dia) + leucovirina → 5-20 mg, 3 vezes/semana, durante 4-6 semanas.

Notas importantes:

    • as formas clínicas tendo como única manifestação linfadenopatias, sem compromisso de órgãos, como globo ocular/coriorretinite, miocárdio/miocardite, não necessitam de tratamento específico;
    • a toxoplasmose congénita é abordada na Parte referente a Perinatologia.

Ascaridiose (Ascaris lumbricoides)

– albendazol → 400 mg PO, dose única; ou
– mebendazol → 100 mg PO, duas doses diárias, durante 3 dias.

FIGURA 3. Aspecto de hidátide. (NIHDE)

FIGURA 4. Hidatidose pulmonar. Opacidade redonda ocupando o ⅓ superior do campo pulmonar esquerdo (Radiografia póstero-anterior). (NIHDE)

FIGURA 5. Hidatidose hepática. Observação de frente (A) e perfil direito (B) do hipocôndrico direito e epigastro permitindo visualizar procidência da parede abdominal por estrutura quística subjacente com superfície lisa palpável. (NIHDE)

FIGURA 6. Imagens redondas de limites bem definidos (estruturas quísticas) no parênquima hepático relacionadas com hidatidose. A) TAC; B) Ecografia. (NIHDE)

Enterobiose (Enterobius vermicularis)

– albendazol → 400 mg PO, dose única (repetir 2 semanas depois); ou
– mebendazol → 100 mg PO, dose única (repetir 2 semanas depois).

Ancilostomose (Ancylostoma duodenale, Necator americanus)

– albendazol → 400 mg PO, dose única; ou
– mebendazol → 100 mg PO, duas doses diárias, durante 3 dias.

Estrongiloidose (Strongyloides stercoralis)

– ivermectina → 200 mcg/kg/dia PO, 1 dose diária, durante 1-2 dias; ou
– tiabendazol → 25 mg/kg/dia PO, 2 doses diárias, até dose máxima de 3 g/dia na síndroma de hiperinfecção durante 7-10 dias.

Tricuriose (Trichuris thrichiura)

– albendazol → 400 mg PO, durante 1-3 dias ; ou
– mebendazol → 100 mg PO, duas doses diárias, durante 3 dias, ou 500 mg PO em dose única; ou
– nitazoxanida → 100 mg PO, duas doses diárias, (se 1-3 anos de idade), ou 200 mg (se 4-11 anos), ou 500 mg (se > 11 anos), durante 3 dias.

Toxocarose (Toxocara canis e Toxocara catis)

– albendazol → 400 mg duas vezes por dia PO, durante 5 dias; ou
– mebendazol → 100-200 mg duas vezes por dia PO, durante 5 dias;
– corticosteróide associado (prednisolona → 1 mg/kg/dia durante 2-4 semanas).

Triquinose (Trichinella spiralis)

– albendazol → 400 mg duas vezes por dia PO, durante 8-14 dias; ou
– mebendazol → 200-400 mg três vezes por dia PO, durante 3 dias, seguindo-se → 400-500 mg três vezes por dia, durante 10 dias.

Larva migrans cutânea (Ancylostoma braziliense e Ancylostoma caninum)

– albendazol → 400 mg PO, durante 1-3 dias; ou
– ivermectina → 200 mcg/kg/dia PO, 1 dose diária, durante 1-2 dias.

Esquistossomose (Schistosoma)

– praziquantel → 40 mg/kg/dia PO, em duas doses diárias, durante 1 dia para S. heamatobium, S. mansoni e S. intercalatum; 60 mg/kg/dia para S. japonicum e S. mekongi.

Fasciolose (Fasciola hepatica)

– triclabendazol → 10-20 mg/kg/dia PO, 1 ou 2 doses diárias até total de 10-15 doses; ou
– bitionol → 30-50 mg/kg/dia PO, dose diária única, em dias alternados, até 10-15 doses.

Paragonimiose (Paragonimus spp)

– praziquantel → 75 mg/kg/dia PO, em três doses diárias, durante 2 dias.

Teniose (Taenia solium, T. saginata, Diphyllobothrium latum, Hymenolepis nana)

– praziquantel → 5-10 mg/kg PO, dose única; ou
– niclosamida → 50 mg/kg PO, dose única.

Cisticercose (Taenia solium)

– albendazol → 15 mg/kg/dia PO em duas doses diárias durante 28 dias, até dose máxima de 800 mg/dia; ou
– praziquantel → 50-100 mg/kg/dia PO em três doses diárias durante 28 dias; poderá equacionar-se a associação a corticóides, iniciados 2-3 dias antes da 1ª dose de praziquantel, e a cimetidina – inibidor do sistema citocrómio P450 – o que poderá contribuir para a eficácia do tratamento.

Hidatidose ou Equinococose (E. granulosus, E. multilocularis)

– albendazol → 15 mg/kg/dia PO, em duas doses diárias, durante 1-6 meses;
– como alternativa ao tratamento cirúrgico de remoção do quisto hidático, e em associação ao tratamento com albendazol, alguns centros aplicam a estratégia, conhecida pela sigla PAIR, nos casos de quistos mais acessíveis (aspiração percutânea, instilação de soro salino hipertónico ou outro agente que provoque destruição do escólex, e re-aspiração).

Notas importantes:

De salientar, que nem todos os parasitas intestinais são patogénicos: 1) Amibas: Entamoeba dispar, Entamoeba coli, Entamoeba hartmani, Entamoeba moshkoushii, E chattoni, Endolimax nana, Iodamoeba buetschilii, Entamoeba gingivalis, Entamoeba polecki; 2) Protozoários flagelados: Trichomonas hominis, Chilomastix mesnili, Embadomonas intestinalis, Enteromonas hominis, Dientamoeba fragilis, Trichomonas tena; 3) Nemátodes: Capillaria hepatica, Dioctophima enale, Dipatelonema streptocerca, Mansonella ozzardi, Syngamus larnygeus, Ternides deminutus.

Prevenção

  1. Os aspectos da prevenção de infecções e infestações descritos noutros capítulos e, designadamente, no Capítulo sobre Viagens, fundamentam-se na interrupção do ciclo epidemiológico; tal é conseguido, essencialmente, através de: medidas de higiene individual, saneamento público básico, controlo de vectores, quimioprofilaxia e uso de vacinas.
  2. No caso especial de crianças imigrantes, provenientes de áreas endémicas para certos parasitas, está indicado o exame parasitológico das fezes, mesmo na ausência de sintomas.
  3. De acordo com recomendações da OMS, apenas nos países com taxas de prevalência de parasitismo intestinal superiores a 20% está indicada a administração profiláctica de rotina com anti-helmínticos (albendazol ou mebendazol). Salienta-se que em Portugal não se justificam as “desparasitações de rotina” se não estiver provado o estado de parasitação do paciente.
  4. A quimioterapia em massa é também uma importante medida de prevenção para parasitoses como a filariose linfática (dietilcarbamazina) e a oncocercose (ivermectina).
  5. Vacinas. Nos últimos anos têm sido feitos progressos no sentido de desenvolver vacinas contra algumas das parasitoses mais importantes (nomeadamente para malária, esquistossomose, leishmaniose, giardiose e helmintíases intestinais). No entanto, com excepção da malária, vacinas eficazes não deverão estar disponíveis nos próximos anos.

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Generalidades sobre leishmanioses

As leishmanioses constituem um grupo heterogéneo de doenças causadas por protozoários do género Leishmania, parasitas intracelulares das células endoteliais ou dos leucócitos do sangue. Existem múltiplas espécies provocando doença no Homem, com expressão clínica na pele, mucosas e sistema reticuloendotelial de diversos órgãos.

Cada forma clínica tem particularidades em relação com: a distribuição geográfica, a espécie do agente implicado, a ecologia, os mamíferos como reservatórios e os insectos hematófagos como vectores, e o estado imunitário do paciente. Assim, o agente Leishmania pode provocar infecção numa larga gama de vertebrados e, em particular, em canídeos, roedores, e primatas, incluindo humanos.

São descritas as seguintes formas clínicas de Leishmaniose: Cutânea localizada, Cutânea difusa, Disseminada no contexto de imunodeficiência, Mucosa e Sistémica visceral.

A doença cutânea é ligeira, podendo originar sequelas com repercussão cosmética. As formas de leishmaniose mucosa e visceral, pelo contrário, comportam maior grau de morbilidade.

Neste capítulo é abordada apenas a forma clínica visceral, a qual predomina na idade pediátrica.

Definição e aspectos epidemiológicos

A forma de Leishmaniose Visceral, designada classicamente como Calazar ou Kala-azar é uma doença infecciosa sistémica não contagiosa que afecta sobretudo crianças com < 5 anos de idade. O termo calazar significa “febre negra” de acordo com a descrição da doença na Índia em 1903 pelos investigadores Leishman e Donovan.

A leishmaniose visceral é considerada uma zoonose na maior parte das zonas do globo, uma vez que a doença também afecta diversas espécies animais como cães e raposas; com efeito, há que referir que nalgumas zonas como a Índia e África Oriental o Homem também poderá ser o reservatório do protozoário. Os vectores de Leishmania são insectos hematófagos com escassa autonomia de voo, Phlebotomus ou Lutzomyia. O contágio inter-humano é possível mas raro, podendo ocorrer por transfusões de sangue, partilha de seringas e transmissão materno-fetal.

Em Portugal, o cão é o principal reservatório; o protozoário transmite-se de cão a cão, ou de cão ao Homem (hospedeiro final). Ou seja, o cão tem um papel relevante na disseminação e manutenção da infecção humana.

De acordo com a OMS, surgem em todo o mundo cerca de 300.000 novos casos anuais, dos quais resultam 20.000 mortes; cerca de 90% dos casos fatais ocorrem em apenas seis países, incluindo Índia, Bangladesh, Sudão, Sudão do Sul, Etiópia e Brasil.

Assim, a leishmaniose é considerada a terceira doença parasitária mais frequente a seguir à toxoplasmose a criptosporidiose. A distribuição da doença coincide com a distribuição do vector acometendo populações pobres, vulneráveis, subnutridas e habitando em zonas sem saneamento básico e sem acesso a cuidados preventivos de saúde.

Em Portugal Continental, com base em estudos de seroprevalência, podem ser consideradas zonas endémicas Trás-os-Montes e Alto Douro, Cova da Beira (entre as serras da Estrela e da Gardunha), regiões de Lisboa e Vale do Tejo (onde actualmente existe o maior número de casos) e Alto Alentejo.

Há décadas, o calazar era considerado tradicionalmente uma doença das zonas rurais, de ocorrência endémica e esporádica. Actualmente este panorama modificou-se à mercê de um conjunto de circunstâncias tais como:

  • Fenómenos migratórios de populações não imunes para áreas em que o vector está presente;
  • A urbanização/domesticação dos focos zoonóticos naturai

Segundo dados do INSA e da DGS, em Portugal entre 2008 e 2013 foram notificados 42 casos de leishmaniose, na sua maioria afectando crianças entre 1 e 4 anos de idade e do sexo masculino. A incidência real deverá ser superior, dada a subnotificação desta doença. Actualmente, têm sido relatados casos de coinfecção com o VIH em zonas de elevada prevalência das duas situações.

Etiopatogénese

São descritas três espécies de Leishmania que causam leishmaniose visceral:

  • donovani, prevalente sobretudo na Ásia;
  • infantum, prevalente sobretudo na Europa (incluindo Portugal), Ásia e África;
  • chagasi, prevalente nas Américas.

Após inoculação do protozoário no organismo verifica-se disseminação hematogénica, salientando-se o viscerotropismo do agente etiológico; ou seja, a doença comporta-se como doença sistémica afectando as células do sistema reticuloendotelial (SRE) de todos os órgãos, com especial relevância para fígado, baço, medula óssea, e gânglios linfáticos.

A infecção por Leishmania, no ciclo evolutivo, pode assumir duas formas: uma, arredondada ou ovóide, de escassa mobilidade, sem flagelo, designada amastigota, residente no interior das células do SRE/fagócitos mononucleares dos vertebrados, onde se replica; e outra, alongada, com flagelo e grande mobilidade, designada promastigota, e presente no tubo digestivo dos insectos vectores; isto é, a forma promastigota, ao entrar no macrófago, transforma-se em amastigota.

A transmissão da leishmaniose visceral dá-se quando o flebótomo/vector adquire o protozoário ao picar um reservatório infectado (como se referiu atrás, na maioria dos casos um animal) e, após completado o ciclo parasitário no vector, transmite o referido protozoário (formas promastigotas na saliva) ao hospedeiro definitivo humano através de picada. As formas promastigotas são fagocitadas pelos macrófagos do referido hospedeiro, onde resistem ao estresse oxidativo dentro de vacúolos. Isto condiciona uma activação do sistema imunitário, nomeadamente através do eixo IL12-IFN gama numa tentativa de aumentar a capacidade oxidativa dos fagócitos.

A ineficácia e hiperactivação do sistema imunitário conduz a:

  • Redução progressiva da produção de eritrócitos, granulócitos e plaquetas;
  • Aumento de dimensões do fígado e baço com áreas de inflamação, necrose e ulterior fibrose, explicável pela própria proliferação dos macrófagos.

Nas formas graves verifica-se a presença de histiócitos (o elemento fundamental do tecido reticuloendotelial, dotado de grande poder fagocitário), contendo Leishmanias em todos os órgãos (miocárdio, rim, pulmões, etc.).

As características genéticas do hospedeiro influenciam o desenvolvimento da doença. Em particular, mutações no gene NRAMP1 desempenham um papel fundamental na susceptibilidade para doença visceral. Outros factores que determinam o grau de expressão clínica são a virulência e magnitude do inóculo do parasita, assim como o genótipo do vector.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de leishmaniose visceral são, de um modo geral, semelhantes nas zonas endémicas, independentemente da área geográfica.

O período de incubação do calazar varia entre 10 dias e 2 anos, com um período médio de 2 a 6 meses. Em regra, o início da sintomatologia é abrupto nas crianças pequenas, e insidioso nas crianças maiores; acompanha-se de sinais inespecíficos como adinamia, anorexia, mal-estar geral, perda de peso e palidez. A febre prolongada, oscilando entre 37,5ºC e 40ºC, pode evidenciar diversos padrões em termos de periodicidade e intermitência, os quais não são característicos da doença.

À medida que a doença evolui são notórios os seguintes sinais, evoluindo progressivamente: palidez, emagrecimento, adenomegálias e aumento do volume abdominal. Este aumento do volume abdominal explica-se sobretudo por esplenomegália indolor de consistência elástica ou ligeiramente dura, a qual pode atingir proporções enormes ultrapassando por vezes a cicatriz umbilical; acompanha-se em geral de hepatomegália importante, embora mais discreta. Uma pequena minoria pode apresentar uma úlcera no local da picada do insecto (Leishmanioma). (Figura 1)

Outras manifestações associadas incluem insuficiência renal, diarreia, vómitos, obstipação, hemorragias (epistaxe, petéquias, gengivorragias), sinais respiratórios sobreponíveis aos verificados em infecções víricas comuns, dificuldade respiratória, artralgias, mialgias, etc.. Existem por vezes manifestações neurológicas, como neuropatia periférica ou de pares cranianos em relação com degenerescência axonal e desmielinização.

Dado que as alterações provocadas por Leishmania são de natureza sistémica, em zona endémica, perante quadro de febre prolongada, anemia, espleno-hepatomegália e manifestações hemorrágicas, deverá ser evocada a hipótese diagnóstica de calazar.

Estão descritas, no entanto, formas assintomáticas, oligossintomáticas ou subclínicas, que se poderão traduzir fundamentalmente por febre, ou tosse, ou diarreia, hipersudorese, adinamia, ou hepatomegália e esplenomegália ligeiras, etc..

Este quadro, se não tratado, poderá persistir durante 3 a 6 meses evoluindo, ou no sentido de regressão espontânea, ou de calazar dito clássico, atrás referido.

Duas notas importantes acerca da leishmaniose visceral surgindo em situações de imunodeficiência:

  • Em doentes infectados com o VIH/SIDA, salientam-se esplenomegália e envolvimento do tracto gastrintestinal, pulmão, esófago menos frequentes;
  • Nos casos de doença granulomatosa crónica ou de defeitos do eixo interferão gama–IL 12, evolução mais grave e prolongada, com frequentes recaídas e compromisso multiorgânico.

No que respeita a complicações, cabe uma referência especial a dois quadros clínicos:

FIGURA 1. Calazar: Hepatoesplenomegália. (NIHDE)

Síndroma hemofagocítica

Trata-se duma das complicações mais graves desta doença, sobretudo em lactentes, consideradas como o reflexo de uma resposta imunológica ineficaz. A “explosão” de citocinas conduz a um quadro sistémico com as seguintes características: febre alta, agravamento da esplenomegália e da pancitopénia, ferritina elevada, hipertrigliceridémia, hipofibrinogenémia, muitas vezes em associação a instabilidade hemodinâmica e insuficiência renal. Apesar de habitualmente se verificar resposta à terapêutica dirigida para a parasitose, por vezes é necessário frenar a resposta imune com fármacos imunossupressores ou imunomoduladores.

Dermatose por Leishmania pós-calazar

Esta complicação pode surgir até 3 anos após o calazar, consistindo em máculas hipopigmentadas e/ou pápulas/nódulos generalizados. Não se associam a morbilidade ou mortalidade mais elevadas, mas podem ter um importante impacte cosmético. Ocorre muito mais frequentemente após infecção com L. donovani.

Exames complementares

Existe frequentemente pancitopénia, citólise hepática, elevação da gama-GT, da fosfatase alcalina, e hipergamaglobulinémia policlonal, evidente na electroforese de proteínas. As alterações nefrológicas podem traduzir-se por hematúria e proteinúria.

Quanto ao contributo dos vários exames complementares para o diagnóstico, procedeu-se à sistematização que se segue, e à elaboração do Quadro 1.

Diagnóstico parasitológico

Decorre da demonstração de formas amastigotas em esfregaços de tecido (gânglio linfático, medula óssea ou baço, com sensibilidades crescentes, 55%, 70% e 95%) obtidos por punção aspirativa e coloração pelo método de Giemsa.

Continua a ser o método “padrão de ouro”, embora evidenciando uma sensibilidade baixa.

Diagnóstico serológico

Baseia-se na detecção de antigénios do parasita ou de anticorpos contra a Leishmania. Existem vários testes com diferentes sensibilidades e especificidades.

Diagnóstico molecular

Actualmente, as técnicas de biologia molecular como a da reacção em cadeia da polimerase (PCR), com especificidade e sensibilidade elevadas, permitem a identificação do material genético de parasitas em amostras de punção biópsia, e também de sangue periférico. A sensibilidade é maior nos tecidos (por exemplo, baço ou medula óssea); e é variável no sangue periférico, provavelmente porque a carga de parasitas no sangue varia com a gravidade da doença. Não estão disponíveis na maior parte dos países com doença endémica.

Teste cutâneo (Leishmania Skin Test)

Este teste, também conhecido como prova de Montenegro, testa a hipersensibilidade tardia. Sendo positivo somente ~ 2-4 meses após a cura, não tem qualquer interesse diagnóstico.

Relativamente aos exames complementares, importa destacar:

  • Teste de aglutinação directa, onde é feita a incubação do soro do doente contra o antigénio do promastigota. Ao final de 18 horas existe aglutinação visível no caso de existirem anticorpos no soro. A possibilidade de leitura a “olho nu” promove a sua utilização em países em vias de desenvolvimento;
  • ELISA: detecta a presença de anticorpos, salientando-se que a sua sensibilidade depende do antigénio usado. A utilização de antigénios solúveis tem sido insatisfatória, sendo que actualmente se usam antigénios recombinantes, de que o antigénio K28 é o mais utilizado. Os maiores problemas do teste são a possibilidade de, em zonas endémicas, pessoas com infecção assintomática evidenciarem teste positivo e o facto de os títulos, permanecendo positivos após o tratamento, não poderem ser utilizados como monitorização da resposta à terapêutica;
  • Testes rápidos: apesar de usados de forma generalizada nos países endémicos, a sensibilidade varia muito de acordo com a localização e com os antigénios usados. A sua elevada sensibilidade permite a sua utilização como teste de rastreio, apesar de se dever sempre confirmar a doença com outro método;
  • Aglutinação em látex: permite a detecção do antigénio na urina. Tem uma elevada especificidade (desde que a urina seja fervida durante 5 minutos), mas a sensibilidade é baixa, limitando a sua utilização.

Nota Importante – Dado que os testes serológicos evidenciam menor sensibilidade, deverá ser dada preferência aos métodos de diagnóstico parasitológico ou de biologia molecular.


O Quadro 1 permite elucidar com pormenor sobre um largo espectro de exames complementares.

Quadro 1 – Leishmaniose visceral e exames complementares.

 MétodosAmostra utilizadaTempo exigidoDificuldade

Sensibilidade

(%)

Especificidade

(%)

Diagnóstico parasitológico

 

Biópsia aspirativa esplénicaTecido de baçoHorasAlta93-99100
Biópsia aspirativa medularMedula ósseaHorasAlta53-86100
Biópsia ganglionarGânglio linfáticoHorasAlta53-65100
CulturaBaço ou medula ósseaDiasMédia97-100100
Diagnóstico serológicoIFATSoro/plasmaHorasAlta80-10096-100
Teste de aglutinação directaSoro/plasmaDiasMédia94,8097,10
ELISASoro/plasmaHorasMédia93-10097-98
SalivaHorasMédia83,3088,6-100
Tira de teste rápidoSoroMinutosBaixa96,3-10090,1-100
SangueMinutosBaixa96-10090,8-100
SalivaMinutosBaixa82,5084,6-91,48
UrinaMinutosBaixa96,4066,2-100
Ensaio de immunoblottingSoro/plasmaHorasMédia83-9490
IFN- 𝛾 release assay (IGRA)Sangue totalDiasMédia80-85100
Aglutinação em látexUrinaHorasMédia48-8789-100
Diagnóstico molecularPCRSangue totalHorasAlta70-10085-99
Zaragatoa bucalHorasAlta8390,56
UrinaHorasAlta88100
Medula ósseaHorasAlta95,3092,60
PCR ELISASangue totalHorasAlta83,90100
qPCRSangue totalHorasAlta91,3-10095-100
Oligo C-testSangue totalHorasAlta96,290
Gânglio linfáticoHorasAlta96,8NA
Medula ósseaHorasAlta96,9NA
LAMPSangue totalHorasMédia8398
Buffy coatHorasMédia90,7100
Diagnóstico imunológico IFAT
Teste de aglutinação directa
ELISA
Tira de teste rápido
Ensaio de immunoblotting
IFN- 𝛾 release assay (IGRA)
Aglutinação em látex

Tratamento

Aplicam-se as medidas gerais de suporte em casos de doenças febris com compromisso do estado geral (anemia, síndroma hemorrágica, leucopénia, etc.). Neste capítulo é dada ênfase ao tratamento farmacológico específico anti-Leishmania;

As alternativas terapêuticas disponíveis incluem a anfotericina B, os antimoniais pentavalentes, a paromomicina e o miltefosine. A sensibilidade a cada um deles varia de região para região em todo o globo.

Anfotericina B

A anfotericina B convencional, apesar de eficaz, deixou de ser utilizada pelo melhor perfil de segurança da anfotericina B lipossómica.

Pode ser usada em diversos esquemas mas a dose cumulativa preconizada pela OMS é de 20 mg/Kg. A grande diversidade de esquemas terapêuticos reflecte provavelmente o facto de o fármaco se acumular nas vísceras e ser depois libertado progressivamente.

Antimoniais pentavalentes

Em todo o mundo os fármacos mais utilizados são os antimoniais pentavalentes (Sb v) cujo mecanismo de acção se relaciona provavelmente com o efeito leishmanicida intramacrófago. Os dois sais mais frequentemente disponíveis e empregues são o estibogluconato de sódio (Pentostam®) e o antimoniato de N-metil-glucamina (Glucantime®), este último o mais utilizado em Portugal. A eficácia e perfil de segurança são comparáveis.

Ambos os compostos podem ser administrados por via IM ou IV. De acordo com recomendações da OMS, deverá ser administrada a dose de 20 mg/kg/dia numa ou duas doses diárias durante 28-30 dias seguidos. Se, após esta série, se verificar a existência de sinais clínicos ou a presença de parasitas na medula óssea, deverá proceder-se a novo curso terapêutico com igual duração.

Dados os efeitos adversos do tratamento (cardiotoxicidade, hepatotoxicidade, pancreatite, artralgias etc.), o mesmo deverá ser acompanhado de vigilância clínica rigorosa, laboratorial e electrocardiográfica (para detecção de possíveis alterações da repolarização, inversão da onda T e aumento do intervalo Q-T).

Está descrita resistência aos antimoniais em cerca de 1% a 2% dos casos.

Miltefosine

É o único componente oral aprovado para o tratamento da doença em adolescentes e adultos com peso mínimo de 30 kg. A dose é de 2,5 mg/kg/dia durante 28 dias.

Apesar de ter um perfil de segurança aceitável, não pode ser utilizado na grávida; por outro lado, em percentagem significativa de doentes (20% a 65%) pode surgir diarreia e vómitos. As transaminases surgem com valores alterados.

A semivida prolongada e a potencial baixa adesão ao tratamento, levanta questões relativamente à possível emergência de resistências.

Paromomicina

Este aminoglicosídeo apresenta actividade contra o parasita, mas os esquemas posológicos variam de acordo com a região (e respectiva Leishmania prevalente). Mais frequentemente a dose usada é de 15 mg/kg/dia durante 21 dias.

Todos os doentes deverão ser seguidos clinicamente durante 1 ano para detecção de eventuais recorrências que poderão surgir, em geral, até 6 meses após conclusão da terapêutica.

Prognóstico

Excluindo as formas subclínicas e assintomáticas, na ausência de tratamento o calazar tem evolução fatal em cerca de 80% dos casos, sendo o risco mais elevado em crianças com menos de 5 anos (síndroma de disfunção multiorgânica traduzido fundamentalmente por edema, síndroma hemorrágica, anemia, insuficiência hepática, pancitopénia e infecções associadas).

Prevenção

As medidas preventivas correspondem, afinal, à intervenção em vários pontos do elo protozoário🡪 reservatório🡪 vector: tratamento dos casos identificados, diminuindo o contacto do homem com o vector, e destruindo os reservatórios e os vectores. Este desiderato é concretizado através de medidas de saneamento e de educação para a saúde coordenadas, identificando as zonas de risco. Na prática, os repelentes e os insecticidas têm papel importante. A vacina aplicada a humanos ainda não está disponível, mas já existe para administração a caninos.

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Generalidades sobre tripanossomíases

As tripanossomíases (T) são doenças provocadas por tripanossomas, protozoários flagelados com corpo fusiforme alongado, parasitas do sangue de grande número de animais e do Homem, fáceis de identificar por terem diâmetro maior do que dos elementos constituintes do sangue.

São descritos dois grandes grupos de tripanossomíase (T):

  1. T. africana (doença do sono) causada pelas espécies: – Trypanosoma brucei gambiense, explicando 98% das T. africanas, relacionada com a Gâmbia e estendendo-se na África Central e Ocidental; – Trypanosoma brucei rhodesiense, relacionada com a antiga Rodésia e estendendo-se na África do Sul e Oriental. A região do Uganda é a única zona africana onde coexistem as duas espécies. A T. Africana é transmitida pela picada da mosca tsé-tsé e evolui após um estado febril com lesões cutâneas (tripanides), adenopatias generalizadas, lesões viscerais e meningoencefalite difusa associada a sonolência permanente. Daí, o nome da doença;
  2. T. americana (doença de Chagas) causada pela espécie: – Tyipanosoma cruzi. Esta tripanossomíase tem como principais vectores os insectos da família Reduviidae, subfamília Triatominae, incluindo Triatoma infestans, Rhodinius prolixus e Panstronylus megistus – genericamente chamados triatominas.

Neste capítulo é dada ênfase à doença de Chagas.

Definição e importância do problema

A doença de Chagas ou tripanossomíase americana é uma antropozoonose causada, como foi referido, pelo parasita protozoário Trypanosoma cruzi (T. cruzi). A transmissão ocorre geralmente através de vector (insecto hematófago), ou por via transplacentar (partindo de mulheres grávidas com infecção crónica por T. cruzi); outras modalidades são adiante discriminadas.

Esta patologia afecta mais de 120 milhões de pessoas na América Latina (~ 25%).

A primeira descrição desta doença emergente (com três fases clínicas: aguda, indeterminada e crónica) foi feita por Carlos Chagas em 1909, o qual identificou o vector e o parasita (agente etiológico) como uma causa da doença febril aguda de trabalhadores brasileiros de caminhos-de-ferro. A OMS coloca-a no grupo das 17 doenças tropicais negligenciadas porque:

– afecta preferencialmente populações vulneráveis, com baixos rendimentos;

– constitui uma das principais causas de morbilidade crónica e mortalidade nos países afectados.

Embora historicamente não tenha sido considerada prioritária na atribuição de recursos por governos e organizações, para a investigação e prevenção, na última década foi uma das doenças emergentes mais estudadas. Na ausência de tratamento eficaz, a infecção persiste toda a vida.

Aspectos epidemiológicos

A doença de Chagas estende-se desde o Sul dos Estados Unidos ao Chile e Argentina; a par da maior prevalência no Brasil, Argentina, Bolívia e Venezuela, regista-se inexistência de casos nas Caraíbas, Belize, Suriname e Guiana.

Considerando globalmente a América Latina, em 2010 foi estimada uma prevalência da infecção por T. cruzi de 5,7 milhões, na sequência de valores anteriores de 18 milhões de doentes em 1991.

No entanto, apesar dos progressos ao longo dos anos, a doença de Chagas mantém-se como a doença parasitária ocidental mais importante, sendo responsável pela perda de anos de vida ajustados à incapacidade, 7 vezes superior à malária.

Em cerca de 20%-30% dos doentes infectados existe a probabilidade de desenvolvimento de doença crónica com risco de vida, a qual pode ser tipificada por casos de miocardiopatia e distúrbios gastrintestinais graves.

Para melhor compreensão dos modos de transmissão, importa uma referência ao ciclo de vida do agente Trypanosoma cruzi, implicando eventualmente repetição de conceitos.

Ciclo de vida

O ciclo de vida do parasita T. cruzi* compreende duas fases: de vector e humana. Importa salientar que o vector (insecto hematófago) pode parasitar diferentes animais domésticos e selvagens.

(*) No hospedeiro mamífero, o agente T. cruzi evidencia 3 fases morfogenéticas: amastigotas, tripomastigotas e epimastigotas. Os amastigotas são formas intracelulares encontradas nos tecidos dos mamíferos, esféricas com um curto flagelo, assumindo a forma oval dentro dos tecidos infectados. Os tripomastigotas são formas extracelulares, fusiformes, encontrando-se no sangue e sendo responsáveis pela transmissão da infecção ao insecto vector e pela disseminação da infecção de célula a célula. Os epimastigotas encontram-se no intestino do insecto vector, multiplicando-se no intestino médio e recto dos artrópodes, diferenciando-se em formas metacíclicas. Os tripomastigotas metacíclicos são as formas infecciosas para os humanos, sendo libertados sobre a sua pele ao serem defecados na proximidade da zona da picada, entrando através da pele lesada ou das membranas mucosas. Os tripomastigotas no interior das células do hospedeiro diferenciam-se em amastigotas e replicam-se, diferenciando-se depois em tripomastigotas que, após lise celular, se difundem de novo para a corrente sanguínea.

 

A fase de vector inicia-se quando o vector ingere tripomastigotas no sangue de um hospedeiro mamífero infectado. Os tripomastigotas diferenciam-se em epimastigotas (estádio replicativo nos invertebrados) no intestino médio e migram para o intestino posterior, onde se diferenciam em tripomastigotas infecciosos metacíclicos para serem excretados nas fezes.

A fase humana ocorre quando os tripomastigotas entram através de um local de inoculação ou membrana mucosa intacta e invadem células nucleadas. No citoplasma diferenciam-se em amastigotas intracelulares e replicam-se (tempo de duplicação de 12 horas num período de quatro a cinco dias) até:

  • se transformarem em tripomastigotas e;
  • a lise celular provocar a sua libertação para a circulação sanguínea.

Os tripomastigotas circulantes, não só perpetuam o ciclo de invasão e replicação celular, como podem infectar vectores.

Modos de transmissão

Na fase aguda o parasita transmite-se de diversos modos.

  • Transmissão por vector (mais frequente)
    Trata-se de insectos hematófagos ingerindo tripomastigotas presentes no sangue de mamíferos infectados. De acordo com o ciclo de vida antes descrito, passando aqueles a tripomastigotas metacíclicos, são excretados com as fezes e urina, entrando ulteriormente no corpo humano através da pele, lesada com picada ou abrasão, ou mucosa.
    A transmissão por vector, limitada ao continente americano, é tipicamente rural. Os triatomídeos alimentam-se no período nocturno e podem viver numa variedade de ambientes próximos das habitações, incluindo fendas e buracos nas paredes, tectos e andares de estruturas habitacionais precárias.
    Sabe-se que a transmissão por fezes de um vector infectado não é muito eficaz; contudo, em contexto endémico, a transmissão contínua resulta num aumento significativo da prevalência ao longo do tempo. Tal facto, associado à persistência da infecção para toda a vida, explica que nalgumas regiões da América Central e do Sul, consideradas livres dos vectores domésticos, a seroprevalência de T. cruzi permaneça elevada em adultos.
  • Transmissão congénita/transplacentar (vertical)
    Este modo de transmissão, seguindo-se em frequência ao anterior, ocorre nos países da América Latina onde a doença de Chagas é prevalente em mulheres em idade reprodutiva. Apontam-se percentagens oscilando entre menos de 1% no Brasil e 7% ou mais na Bolívia, Chile e Paraguai.

A maioria das mulheres com infecção por T. cruzi não evidencia sintomas, sendo grande parte das infecções congénitas não diagnosticada com base na apresentação clínica.
O principal determinante biológico do risco de transmissão é a parasitémia materna; quanto maior a carga parasitária em circulação, maior o risco de transmissão materno-fetal. A idade jovem materna tem sido apontada como factor de alto risco segundo alguns estudos (embora outros não corroborem tal), assim como a proveniência de meio rural.
Existem dados limitados que sugerem uma taxa de transmissão superior em mulheres coinfectadas com VIH, o que pode estar relacionado com parasitémia mais elevada (habitual em doentes coinfectados), imunossupressão materna ou ambos. Também as crianças coinfectadas com VIH e T. cruzi têm maior probabilidade de apresentar sintomas, principalmente neurológicos.
Portanto, a determinação da verdadeira taxa de transmissão só é possível através de estudos prospectivos de grávidas infectadas. Em cerca de 20 estudos de coorte desde 1980, a prevalência de infecção por T. cruzi entre mulheres grávidas varia entre 0,7% e 54%. O risco global estimado de infecção por T. cruzi em crianças nascidas de mães infectadas ronda os 5%. A Organização de Saúde Pan-Americana estima mais de 15.000 casos de infecção congénita por ano na América Latina.

 

  • Transfusão de hemoderivados
    Nesta modalidade, o risco de transmissão é ~ 25%. Nesta perspectiva, a migração de pessoas infectadas para países onde não existe a patologia em análise, é uma ameaça. De acordo com a literatura, referem-se as seguintes seroprevalências avaliadas em dadores de sangue (anos de 2001 e 2002), quanto a positividade para T cruzi: Bolívia- 99/1000; Equador- 1,5/1000; USA- 0,01% a 0,20%.
  •  Ingestão de alimentos e bebidas contaminados (por ex. leite)
    De referir que existe a possibilidade (rara) de transmissão através do leite materno em lactantes infectadas. Na fase aguda da infecção materna, o aleitamento está contra-indicado até se verificar a cura pós-tratamento.

Na fase crónica, a interrupção do aleitamento materno não é recomendada na generalidade em mães; deverá, sim, ser ponderada perante parasitémia elevada (fase aguda ou reactivação) ou a presença de fissuras mamilares.

Nalguns casos, pode ser considerado o tratamento térmico do leite materno extraído antes da sua administração. A localização geográfica (e, consequentemente, a estirpe do parasita) foi apontada como factor de risco, dada a variação das taxas de transmissão. No entanto, os resultados de estudos ainda não demonstraram diferenças entre estirpes infectando mães que transmitem, ou não, a infecção.

 

  • Outras formas de transmissão
    Incluem: por transplantação de órgãos sólidos ou de medula óssea, e manipulação de animais infectados ou de material de laboratório, no contexto de doentes previamente infectados por VIH ou de imunossupressão.

Patogénese

No momento da infecção por T. cruzi, existe um período de parasitémia que, com oscilações, pode durar até 2 anos. Após este período, o parasita localiza-se nos tecidos, onde permanece toda a vida.

Existem períodos de parasitémia transitória coincidentes com situações de imunodepressão (por ex. alterações hormonais ao nível do eixo hipotálamo-suprarrenal, tratamentos com imunossupressores, gravidez, etc.).

Tal como foi referido anteriormente, quanto à história natural da doença, podemos distinguir três fases ou estádios evolutivos, os quais têm correspondência com a clínica: aguda, indeterminada e crónica.

Como resultado da resposta imunitária da fase aguda da infecção por T. cruzi, verifica-se o controlo da replicação parasitária, a resolução sintomática espontânea e o desaparecimento da parasitémia.

A sobrevivência na fase aguda depende, pois, da resposta inflamatória, a qual envolve as células imunes inatas e os macrófagos activados pelo interferão-gama e factor de necrose tumoral α.

Na fase crónica, existindo uma falha na contrarregulação da resposta inflamatória, influenciada por factores do parasita e do hospedeiro, a imunidade mediada por células T mantém a replicação parasitária.

Os resultados de estudos sugerem que a resposta imunitária inflamatória do hospedeiro constitui o maior determinante da progressão de doença, sendo a virulência de T. cruzi e o tropismo tecidual possíveis factores contribuintes.

O papel da resposta imunitária materna e neonatal também tem sido investigado, admitindo-se que a activação imune neonatal possa conferir protecção parcial de infecção congénita.

Assim, a patogénese da doença de Chagas, complexa e não totalmente compreendida, parece resultar da combinação de:

    • Lesão celular e neuronal, mediada directamente pelo parasita vivo e;
    • Lesão indirecta, causada pela resposta imunitária contra o parasita e antigénios do hospedeiro.

Outros factores, tais como os genéticos do hospedeiro e do parasita, a carga parasitária, o modo de transmissão, o número de reinfecções e a resposta imunitária inicial e tardia do hospedeiro, poderão influenciar o início, a gravidade e o espectro de manifestações clínicas.

Manifestações clínicas

A doença de Chagas integra diversas formas clínicas dependendo da fase evolutiva de tal patologia (aguda, indeterminada e crónica) e do modo de transmissão. Efectivamente, para um correcto planeamento diagnóstico e terapêutico, importa uma correcta classificação clínica de cada caso.

São esboçadas a seguir as particularidades de cada fase:

    • Fase aguda: pós-infecção, parasita no sangue, duração de 4-8 semanas, assintomática, geralmente evoluindo em 90%-95% dos casos para a fase seguinte, indeterminada e, em 5%-10% dos casos, para a fase crónica;
    • Fase indeterminada: entre 2 e 4 meses após a infecção, parasita quiescente nos tecidos, com parasitémias transitórias, duração de 10-30 anos, assintomática (excepto nos períodos de parasitémia), evoluindo em 30%-40% dos casos para a fase crónica, ou permanecendo nesta fase toda a vida, em 60%-70% dos casos;
    • Fase crónica: entre 4 meses e 30 anos pós-infecção, sintomatologia relacionada com a replicação tecidual crónica, salientando-se tipicamente sintomatologia cardíaca, esofágica e intestinal.

Transpondo os conceitos básicos da epidemiologia e patogénese para a clínica, distinguem-se dois grandes grupos fisiopatológicos de Doença de Chagas:

  • Forma aguda (vectorial, congénita, oral, transfusão e transplante, reactivação no caso de infecção prévia por VIH ou de imunossupressão); e
  • Forma crónica, traduzindo fundamentalmente as repercussões da infecção ao nível tecidual cardíacas, gastrintestinais e indeterminadas).

Pela importância epidemiológica e de saúde pública da modalidade aguda congénita, a mesma é individualizada, resultando, assim, três entidades:

Doença de Chagas Aguda

Após o período de incubação de uma a duas semanas (também referido na literatura entre 5 e 40 dias), inicia-se a fase aguda com a duração de quatro a oito semanas. A maioria dos doentes infectados apresenta sintomas e sinais moderados e inespecíficos, como febre, dor abdominal, anorexia, mal-estar geral, linfadenopatia, hepatoesplenomegália e linfocitose atípica. Contudo, poderá verificar-se ausência de sintomatologia, razão pela qual muitos infectados não são diagnosticados.

Nalguns doentes, poderá verificar-se exantema morbiliforme e ser visível o local de inoculação: uma lesão edematosa, pouco dolorosa, eritematoviolácea, de consistência elástica com adenomegália satélite, designada chagoma. Surge habitualmente na face e extremidades; por vezes, podem ser observados parasitas na lesão.

A inoculação na conjuntiva origina o chamado sinal de Romana (constituído por constelação de achados: edema indolor unilateral característico das pálpebras superior e inferior de coloração violácea, com hiperemia conjuntival e frequentemente associado a linfadenopatia pré-auricular).

O coração, SNC, gânglios periféricos e SRE poderão ser parasitados, determinando gravidade do quadro clínico; o coração é o órgão afectado em primeiro lugar, com inflamação e dilatação das quatro câmaras traduzindo miocardite difusa, a que se associa alteração na condução e sequela de fibrose. Tal pode acontecer em 30% dos casos nesta fase aguda. Pode igualmente verificar-se anemia, linfocitose e trombocitopénia.

Em menos de 1% dos infectados poderá ocorrer derrame pericárdico ou meningoencefalite. A taxa de mortalidade é de 5%-10% na fase aguda, particularmente em crianças pequenas.

Doença de Chagas Congénita

A transmissão de T. cruzi materno-fetal transplacentar pode ocorrer em 0,7%-10% dos casos de grávidas infectadas em qualquer fase da gestação, mais provavelmente no terceiro trimestre.

Da infecção congénita poderá resultar abortamento espontâneo, morte fetal e parto prematuro. No RN vivo com este tipo de infecção congénita, poderá verificar-se anemia, hepatoesplenomegália, púrpura petequial, diátese hemorrágica, icterícia, cardiomegália associada a diminuição da espessura da parede ventricular e mionecrose, e convulsões relacionadas com menigoencefalite. O prognóstico deste quadro é altamente reservado, com sequelas neurológicas diversas, com sobrevivência que raramente ultrapassa a puberdade. O esófago e o cólon, também frequentemente afectados, evidenciam sinais de dilatação e disfunção na motilidade em relação com destruição das células gangliónicas do músculo. Não existe indicação para parto por cesariana nas grávidas com infecção por T. cruzi.

Doença de Chagas Crónica

A manifestação mais frequente de doença de Chagas crónica é a cardiomiopatia crónica, ocorrendo em 30%-40% dos doentes, sobretudo após a puberdade. Os respectivos sinais e sintomas são secundários a insuficiência cardíaca, arritmia, alterações endomiocárdicas e complicações embólicas por arteriolite necrosante da microvasculatura. Os aneurismas apicais ventriculares esquerdos são patognomónicos da doença de Chagas.

As alterações ao nível do sistema gastrintestinal, ocorrendo com mais baixa frequência (8%-10%), envolvem, designadamente, lesão nos neurónios da cadeia parassimpática do plexo intramural da musculatura lisa. Na prática, verificam-se disfunções várias e, mais frequentemente, a existência de megaesófago e megacólon, disfagia, obstipação crónica, odinofagia, tosse, pneumonia de aspiração, entre outra sintomatologia do foro digestivo e respiratório.

Diagnóstico

Na fase aguda, o elevado nível de parasitémia permite a detecção de tripomastigotas móveis por exame microscópico de sangue fresco não coagulado ou em camada leucoplaquetária. Podem também ser visualizados em esfregaços de sangue corados com Giemsa e, em meios específicos, proceder-se a hemocultura.

O nível de parasitémia diminui após 90 dias, mesmo na ausência de tratamento. A reacção em cadeia da polimerase (PCR), evidenciando elevada sensibilidade na fase aguda, é o melhor método para a detecção precoce de infecção num receptor de órgão transplantado de dador infectado, ou após exposição acidental. Os resultados positivos por PCR surgem dias a semanas antes da detecção de tripomastigotas por microscopia.

O diagnóstico da infecção crónica assenta nos testes serológicos IgG, por técnicas ELISA de imunofluorescência indirecta (IFA). Nenhum teste isolado na fase crónica tem sensibilidade e especificidade suficientes; assim, a confirmação diagnóstica exige resultados positivos em dois testes distintos, de preferência de antigénios diferentes (lisado de parasita completo e antigénio recombinante).

A PCR tem sido usada em investigação e monitorização. A sua sensibilidade é muito variável, dependendo designadamente da carga parasitária, do processamento da amostra, das características da população, dos primers e dos métodos de PCR. Por outro lado, um resultado negativo não exclui a infecção.

Os testes quantitativos são úteis na monitorização da reactivação, uma vez que o aumento da carga parasitária ao longo do tempo é o indicador mais precoce e sensível.

No contexto de infecção congénita, o diagnóstico assume aspectos particulares, conforme ocorra antes ou após os nove meses de vida. Nos primeiros seis a nove meses de vida, a demonstração dos parasitas em sangue venoso periférico ou do cordão umbilical por microscopia directa tem elevada especificidade.

Por outro lado, os métodos de concentração revelam maior sensibilidade; entre eles, situa-se o método de micro-hematócrito, amplamente usado na América Latina. Embora tais métodos requeiram uma pequena quantidade de sangue (0,5 mL) e menor processamento, são, no entanto, necessárias amostras repetidas para obter melhoria da sensibilidade (limiar de detecção de 40 parasitas/mL). Esta limitação, em parte explicada pelo aumento progressivo dos níveis de parasitémia nos doentes infectados após o nascimento, com um pico máximo aos 30-60 dias de vida, nem sempre é aceite pelos pais e dificulta um rastreio em larga escala.

As técnicas de biologia molecular apresentam maior sensibilidade, permitindo o diagnóstico de infecções congénitas mais precocemente.

Admite-se que a PCR (reacção em cadeia da polimerase) venha a ser o método padrão para o diagnóstico da doença congénita, logo que a técnica esteja mais disponível, nomeadamente, com o desenvolvimento de kits comerciais.

Nos recém-nascidos sintomáticos, outros exames complementares de diagnóstico recomendados são: hemograma completo, parâmetros de bioquímica, análise sumária de urina, radiografia de tórax, electrocardiograma, ecocardiograma, ecografias abdominal e transfontanelar, fundoscopia e potenciais evocados.

Na ausência de diagnóstico na data do nascimento, recomenda-se o diagnóstico por serologia IgG após os seis a nove meses de idade, período em que se verifica o desaparecimento dos anticorpos maternos em circulação e a passagem à fase crónica.

Segundo as recomendações espanholas, após o primeiro ano de vida, deve pesquisar-se doença de Chagas em qualquer criança proveniente de área endémica ou recém-nascido de mãe com doença de Chagas, em que não se verificou seguimento no período neonatal.

Tratamento

Os únicos fármacos aprovados com eficácia comprovada na doença de Chagas são o benznidazol e o nifurtimox. (Quadro 1)

Na fase aguda e nos casos de infecção congénita diagnosticada precocemente, ambos reduzem a gravidade dos sintomas, diminuem o curso clínico da doença e reduzem a duração da parasitémia detectável.

Na referida fase aguda, estima-se uma taxa de cura de 80% a 90% (e de 90% a 100% nos casos de infecção congénita), antes do primeiro ano de vida. Após o primeiro ano, e até aos 15 anos, a eficácia ronda os 60%. Quanto mais precoce for a instituição de terapêutica na criança, maior será a taxa de seroconversão.

Na fase crónica sintomática, a taxa de sucesso é de 10%-20%; contudo, continua por esclarecer se existe benefício no tratamento para a forma indeterminada.

Os estudos observacionais confirmaram que nas mulheres infectadas, tratadas antes da gravidez, existe um risco significativamente menor de transmitir a infecção por T. cruzi à descendência do que nas mulheres não tratadas. O paradigma actual assenta essencialmente no diagnóstico precoce e no tratamento de crianças, assim como no tratamento de adolescentes e mulheres em idade reprodutiva.

Os referidos fármacos estão contraindicados na gravidez, com base em estudos de animais que apontam para teratogenicidade. Contudo, a exposição acidental não constitui critério para interrupção da gravidez.

Em relação ao aleitamento materno, os dados são limitados para ambos os fármacos (discutido adiante). Habitualmente, o tratamento de mulheres em fase crónica é protelado até ao final da lactação.

QUADRO 1 – Esquema posológico para o tratamento da Doença de Chagas em crianças e adolescentes.

Benznidazol (2x dia, per os, 60 dias)
Idade < 12 anos5-7,5 mg/kg/dia
Idade 12 anos ou >5-7 mg/kg/dia
Nifurtimox (3 a 4 tomas, per os, 90 dias)
Idade < 12 anos15-20 mg/kg/dia
Idade 12 – 17 anos12,5-15 mg/kg por dia
Idade > 17 anos8-10 mg/kg por dia

 

Benznidazol

Derivado nitroimidazol, constitui o tratamento de primeira linha pelas suas propriedades tripanossomicidas superiores ao nifurtimox e pelo perfil de efeitos secundários.

A dosagem recomendada para crianças encontra-se descrita no Quadro 1. Em relação ao tratamento da infecção congénita, num ensaio aleatorizado de tratamento de curta duração com benznidazol (7,5 mg/kg em dose única, durante 30 dias, versus a posologia padrão) confirmou-se a eficácia de ambas as estratégias terapêuticas.

Benznidazol encontra-se disponível apenas sob a forma de comprimidos de 50 ou 100 mg. A sua fraca solubilidade impede a obtenção de formulação de solução oral; assim, para uso na população pediátrica, habitualmente os comprimidos são divididos, esmagados e dispensados em pacotes para dispersão em sumo de fruta ou leite; contudo estes procedimentos podem condicionar erros de dosagem, dissolução incompleta e risco de efeitos adversos.

Recentemente foi desenvolvida uma suspensão líquida oral, com 1% de benznidazol, a partir dos comprimidos, com excipientes seguros e passível de ser preparada em farmácia hospitalar: trata-se, pois, duma alternativa que garante a eficácia, segurança e confiança do tratamento.

Os efeitos secundários mais frequentes são os dermatológicos, em especial a erupção cutânea que regride com administração de anti-histamínico. No entanto, pode progredir para dermatite grave, ou esfoliativa, ou associada a febre e linfadenopatia.

A neuropatia periférica é dose-dependente e ocorre após tratamento prolongado, enquanto a supressão de medula óssea é rara.

Todos os efeitos graves descritos devem motivar a suspensão da terapêutica. Dados recentes sugerem que o benznidazol poderá ser compatível com o aleitamento devido à limitada transferência para o leite materno.

Nifurtimox

Este fármaco é um nitrofurano que inibe a síntese de ácido pirúvico e interrompe o metabolismo glucídico de T. cruzi. A dosagem varia com a idade, conforme foi referido no Quadro 1. Por vezes, são utilizadas doses mais elevadas nas crianças mais pequenas; a tolerância na idade pediátrica é superior à que se verifica nos adultos.

Os efeitos secundários são sobretudo gastrintestinais e neurológicos (sobretudo, anorexia, perda ponderal, tremores, irritabilidade e insónia). Poderão também ocorrer reacções graves, como neuropatia periférica, psicose e anemia hemolítica associada a deficiência de glicose 6-fosfato desidrogenase; tais reacções são dose-dependentes, surgem na fase final do tratamento; habitualmente há reversão interrompendo o fármaco.

Num estudo incidindo sobre série de casos de crianças com infecção congénita, os efeitos adversos foram comuns, na sua maioria, moderados (recusa alimentar em 24%, irritabilidade em 14,5% e vómitos em 6,5% dos casos); em cerca de 5% verificou-se leucopénia e trombocitopénia reversíveis.

A exposição da criança ao nifurtimox parece ser baixa durante o aleitamento materno, embora o risco não esteja bem estabelecido na espécie humana.

Avaliação do tratamento

Durante o tratamento, e quatro semanas após a interrupção terapêutica, a criança deverá ser monitorizada clínica e laboratorialmente, apresentando-se o Quadro 2.

QUADRO 2 – Monitorização clínica e analítica durante a terapêutica.*

*Adaptado de MI González-Tomé et al. Enferm Infecc Microbiol Clin 2013;31(8):535-542
Dias de tratamento15 3045607590
Clínica
Geral: peso, adenopatias, mialgias, artralgias, cansaçoXXXX  
Gastrintestinais: vómitos, anorexia, dor abdominal, diarreiaXXX   
SNC: cefaleia, insónia, alucinações, parestesias, polineuropatiaXXXXXX
Dermatológicas: dermatite, vesículas, erupção cutânea, púrpura, edemaXX    
Análises
Hemograma: anemia, leucopénia, trombocitopéniaXXXXXX
Bioquímica: hipoglicémia, perfil hepático e renalXXXXX 

 

A resposta à terapêutica traduz-se na diminuição dos títulos de anticorpos específicos, a qual se deverá manter após o tratamento. Para demonstração de seroconversão negativa devem ser realizados dois testes com antigénios diferentes. Quer se trate de recém-nascidos tratados, quer de lactentes com início de terapêutica após os nove meses, a seroconversão negativa deve manter-se em, pelo menos, dois resultados negativos, com intervalos de 6 a 12 meses.

Em paralelo, deve ser realizada a detecção de parasitémia por exame parasitológico ou por micro-hematócrito, assim como por testes moleculares. Habitualmente, na primeira semana após o tratamento, desaparece a parasitémia; um resultado positivo indica a persistência do parasita, o que implica o prolongamento ou substituição da terapêutica.

Um mês após o final do tratamento, a obtenção de resultado positivo (testes parasitológicos ou PCR positivos) relaciona-se com falência terapêutica.

No caso de imunodepressão, os resultados dos testes parasitológicos são os únicos relevantes para o seguimento após o tratamento.

Seguimento

Na forma congénita está recomendado um seguimento mínimo de 12 meses para o diagnóstico de transmissão de T. cruzi. Na maioria dos estudos em países endémicos realça-se:

  • Uma diminuição de seguimento da ordem de 80% após os seis meses;
  • Que em menos de 50% dos casos de infecção congénita o diagnóstico e tratamento são correctos.

O seguimento clínico após o tratamento depende da fase da doença, aquando do início da terapêutica. No caso de doença na forma indeterminada, recomenda-se a realização de electrocardiograma e radiografia de tórax, anualmente, até à cura. Quando existe lesão orgânica ou imunodepressão, o seguimento deverá ser individualizado.

Prognóstico

O prognóstico depende da fase clínica e das suas complicações. Na fase aguda, em crianças com menos de 2 anos, é mais reservado, e fatal perante quadro de meningoencefalite, cardiomiopatia e insuficiência cardíaca. A infecção simultânea com VIH agrava ambas as situações.

Os critérios de cura são a eliminação do parasita em circulação, o desaparecimento de anticorpos e a evolução clínica favorável. Em indivíduos com infecção em fase crónica recente (adolescentes) e em adultos, após tratamento, o critério de cura recai sobretudo sobre a seroconversão negativa, com diminuição de, pelo menos, três vezes o título de anticorpos.

Prevenção

Em 2010, a OMS recomendou a promoção do desenvolvimento de medidas de saúde pública em países endémicos e não-endémicos, com especial enfoque nas áreas endémicas, para a prevenção da transmissão por transfusão sanguínea e por transplantação de órgãos, e para a detecção precoce da transmissão congénita.

As medidas de saúde pública para controlo da doença de Chagas congénita assentam em três pilares: prevenção primária, secundária e terciária.

A prevenção primária incide na prevenção da infecção materna, pelo que os programas de controlo de vectores são essenciais. Além disso, o rastreio e tratamento de crianças do género feminino com infecção por T. cruzi pode diminuir o risco de transmissão congénita na idade adulta.

A prevenção secundária baseia-se no rastreio pré-natal para identificação de mulheres seropositivas e respectivo tratamento. De acordo com as recomendações espanholas (país não endémico), deve ser realizado o rastreio:

  • Às grávidas de origem latino-americana (à excepção das Caraíbas);
  • Às grávidas que residiram em zonas endémicas (sobretudo áreas rurais) durante um período prolongado; e
  • Às grávidas nascidas de mães da América do Sul, mesmo que o parto tenha ocorrido numa região não-endémica.

Caso a grávida seja seropositiva, deve ser realizado um exame completo para avaliação de envolvimento visceral (alguns exames poderão ter de ser protelados para o período pós-parto).

No caso de doença materna, o seguimento deverá ser efectuado em consulta de alto risco. Também deve ser realizado o rastreio aos restantes filhos da mãe infectada.

A prevenção terciária, mais promissora, é consubstanciada pelo diagnóstico e tratamento de recém-nascidos infectados, considerando as elevadas taxas de cura. Porém, a inexistência de um teste sensível, específico e prático de rastreio dos recém-nascidos constitui um obstáculo.

A abordagem actual para o rastreio baseia-se na identificação de grávidas seropositivas e no exame parasitológico directo dos recém-nascidos ou lactentes por técnica do micro-hematócrito no cordão umbilical; e, nos casos não diagnosticados, na serologia convencional após os nove meses de idade. Desta abordagem decorrem vários obstáculos, como a sensibilidade do método de micro-hematócrito e a perda de seguimento no primeiro ano de vida, o que dificulta o rastreio sistemático em países endémicos.

Torna-se necessário desenvolver:

    • Melhores testes diagnósticos para permitir o rastreio da infecção congénita;
    • Uma vacina eficaz;
    • Fármacos mais eficazes, seguros e com posologias mais adequadas para o tratamento, em especial na fase crónica.

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Definição e importância do problema

A malária (palavra sinónima de paludismo ou sazonismo) é uma doença potencialmente fatal, causada pelo parasita protozoário Plasmodium spp. e transmitida ao ser humano pela picada de algumas espécies de mosquitos do género Anopheles. Existem cinco espécies de Plasmodium que infectam o ser humano: P. falciparum, P. vivax, P. ovale, P. malariae e P. knowlesi. Esta última espécie, causadora de malária em macacos, foi descrita como sendo causa de doença em humanos no Sueste Asiático.

A afecção que faz parte deste capítulo caracteriza-se fundamentalmente por paroxismos de febre, sudação, fadiga, anemia e esplenomegália. Pelo facto de anualmente ocorrerem em todo o mundo cerca de 216 milhões de casos com 445.000 mortes, e por ser endémica em aproximadamente 100 países, é considerada a doença parasitária com maior impacte a nível global.

Por fim, salientando que a África subsaariana continua a ser a região com mais casos de malária (88% dos casos), sendo responsável por 90% das mortes, e que cerca de 70% das mortes em termos globais ocorreu em crianças com menos de cinco anos de idade, é legítimo concluir que metade da população mundial vive exposta ao risco de a contrair.

Aspectos epidemiológicos

As principais áreas de transmissão correspondem a África, Ásia e América do Sul, entre latitudes de 40ºN e 30ºS.

A quase totalidade dos casos de malária grave relaciona-se com a espécie P. falciparum, a qual predomina na África ao sul do Saara; contudo, também é a espécie predominante no Bangladesh, Camboja, Filipinas, Haiti, Índia, Indonésia, Laos, Myanmar, Papua Nova Guiné e Timor-Leste.

Nas regiões temperadas, nomeadamente na América Central, Afeganistão e Paquistão predomina a espécie P. vivax. Em conjunto, P. vivax e P. falciparum predominam no Sueste da Ásia, América do Sul e Oceania. P. ovale, a espécie menos comum, ocorre quase exclusivamente em África. A transmissão é mais propícia durante a estação das chuvas nos climas tropicais; contudo, na região equatorial ocorre durante todo o ano.

A transmissão da malária foi praticamente eliminada nos EUA e Canadá, Europa, Austrália, Chile, Japão, Coreia, Israel, Líbano e Taiwan. (Figura 1)

Nos países ocidentais a doença tem surgido sobretudo em viajantes ou imigrantes de áreas endémicas. Em Portugal, a doença é de declaração obrigatória; de acordo com as estatísticas (que se referem a “malária importada”), no quadriénio 2009-2012 foram notificados 217 casos (média anual de 54,2), correspondendo quatro a idades < 14 anos, e doze a idades entre 15-24 anos. No Hospital de Dona Estefânia, Lisboa, foram observados 79 casos no decénio 1998- 2007, sem ocorrência de óbitos.

Etiopatogénese

O parasita é transmitido ao homem pela picada da fêmea do mosquito do género Anopheles. Na África subsaariana, o vector mais importante na transmissão pertence à espécie Anopheles gambiae. A malária pode também ser transmitida através da transfusão de sangue ou derivados, transplantes, agulhas de seringas com sangue contaminado, e de modo vertical, durante a gravidez via transplacentar mãe-feto (pré-natal), ou intraparto (perinatal).

FIGURA 1. Distribuição geográfica da malária e estádios evolutivos. (Tirada de OMS, Global Malaria Mapper, 2016)

O ciclo de vida do protozoário em análise é complexo, estando adaptado à sobrevivência em diferentes meios celulares, quer no hospedeiro humano (na fase assexuada), quer no mosquito vector (na fase sexuada, com produção de gâmetas). Em termos quantitativos, a reprodução traduz-se no incremento de número de protozoários no organismo humano, da ordem de ~102 para ~1014, em duas fases (1ª fase, nas células parenquimatosas hepáticas – fase exoeritrocitária; e 2ª fase, nos eritrócitos – fase eritrocitária).

A fase exoeritrocitária começa com a picada do mosquito (entre o anoitecer e amanhecer), o qual injecta pequena quantidade de saliva contendo esporozoítos. Em minutos, os esporozoítos veiculados pelo sangue entram nos hepatócitos, onde se multiplicam assexuadamente (esquizontes ou esporozoítos em fase de multiplicação assexuada); cerca de 1-2 semanas depois os esporozoítos, transformando-se em merozoítos, provocam rupturas nos hepatócitos, libertam-se e entram na circulação sanguínea. A invasão dos eritrócitos ocorre através de receptores de superfície dos eritrócitos, específicos para cada uma das espécies de Plasmodium.

A fase eritrocitária inicia-se com a entrada nos eritrócitos de merozoítos, provenientes do fígado. O crescimento dos parasitas nos eritrócitos leva ao consumo do conteúdo eritrocitário, fundamentalmente a hemoglobina. No caso de P. falciparum, este começa a exibir após algumas horas nos eritrócitos, a proteína Plasmodium falciparum erythrocyte membrane protein 1 (PfEMP1), no exterior da superfície dos eritrócitos infectados, que medeia a ligação dos eritrócitos ao endotélio vascular; este mecanismo está associado às formas mais graves.

Uma vez no interior dos eritrócitos, os parasitas assumem a forma em anel, o qual aumenta de dimensões – é a evolução para trofozoítos (trofozoítos em fase precoce). Por sua vez, os trofozoítos multiplicam-se assexuadamente nos eritrócitos para produzirem um pequeno número de merozoítos eritrocitários os quais são libertados para a corrente sanguínea com a ruptura da membrana eritrocitária; esta invasão do sangue é acompanhada de febre.

Com o tempo, alguns merozoítos libertados dos eritrócitos diferenciam-se sexualmente, com formação de microgâmetas (gametócitos macho/M) e macrogâmetas (gametócitos fêmea/F), que são ingeridos durante uma refeição de sangue, através da picada do hospedeiro humano pela fêmea do mosquito Anopheles. No estômago do mosquito os microgâmetas penetram os macrogâmetas, dando origem ao zigoto que, após transformações sucessivas, origina os esporozoítos que migram para as glândulas salivares. O mosquito está agora em condições de inocular esporozoítos no próximo hospedeiro aquando da picada para se alimentar de sangue deste, completando o ciclo de vida de Plasmodium spp. Como particularidades deste ciclo há a referir que algumas formas de P. vivax e P. ovale – os hipnozoítos – poderão permanecer no fígado durante longos períodos e provocar recidivas, meses ou anos mais tarde.

Este processo biológico complexo gera alterações patológicas (febre, anemia, distúrbios imunopatológicos e hipóxia tecidual), as quais permitem compreender as manifestações clínicas.

A febre – como atrás foi dito – surge quando se verifica ruptura eritrocitária e libertação de merozoítos na circulação. A anemia explica-se pela hemólise, sequestração de eritrócitos no baço e outros órgãos, assim como pela repercussão sobre as células progenitoras eritropoiéticas da medula óssea dos mediadores libertados inflamatórios. Os distúrbios imunopatológicos associados à malária incluem essencialmente activação policlonal com diversas consequências: hipergamaglobulinémia, formação de imunocomplexos, imunodepressão, e excessiva formação de citocinas pró-inflamatórias (especialmente o factor de necrose tumoral alfa (TNF-α), interferão gama (IFN-γ) e interleucina-1 (IL-1)) com efeito patogénico multiorgânico incluindo hipóxia tecidual.

A adesão dos eritrócitos infectados ao endotélio vascular – ocorrendo mais frequentemente com P. falciparum – pode levar a obstrução do lume vascular e diminuição do débito sanguíneo, assim como a ruptura capilar com extravasão de sangue/plasma, fuga proteica e hipóxia tecidual. Como resultado da hipóxia, o metabolismo em anaerobiose origina hipoglicémia e acidose láctica.

Em suma, o conjunto destas alterações fisiopatológicas repercute-se em vários territórios com risco elevado de disfunção multiorgânica (designadamente ao nível do cérebro, coração, intestino e fígado).

A imunidade para a malária pode ser inata (isto é, geneticamente determinada), ou adquirida. A imunidade inata contribui para a destruição dos parasitas, através do baço, dos macrófagos e monócitos, principalmente os macrófagos da zona marginal do baço, através:

  • de receptores de reconhecimento de padrões (PRR), como os Toll-like receptors (TLR) e NOD-like receptors (NLR), que reconhecem padrões moleculares associados ao patogénio altamente conservados;
  • do papel activo do sistema complemento.

A imunidade adquirida pode ser passiva ou activa; a passiva pode ser devida à passagem transplacentar (mãe-feto) de anticorpos IgG anti-plasmódio; a activa desenvolve-se lentamente como resposta à infecção por plasmódios.

Nos mecanismos de imunidade contra plasmódios intracelulares têm papel fundamental os mediados por células (linfócitos T, macrófagos, polimorfonuclares, sistema reticuloendotelial do baço, etc.), enquanto os relacionados com anticorpos IgM, IgG e IgA (imunidade humoral) actuam fundamentalmente nos plasmódios extracelulares.

A imunidade após infecção por Plasmodium é incompleta, possibilitando ao hospedeiro evitar, até certo ponto, formas graves de doença, mas não a eliminação do parasita ou prevenir futuras infecções. Nalguns casos, a circulação de parasitas em pequeno número, na ausência de multiplicação rápida durante tempo prolongado, poderá originar formas clínicas não graves. No entanto, é possível que surjam episódios repetidos de doença, quando o parasita cria respostas imunes invasivas, tais como replicação intracelular, adesão eritrocitária ao endotélio vascular impedindo a sua passagem pelo baço, rápida variação antigénica e supressão ou depressão da resposta imune do hospedeiro.

Os eritrócitos contendo Hb S, Hb F, os que não têm antigénios do sistema Duffy, assim como os ovalócitos, são mais resistentes à malária.

Manifestações clínicas

O período médio de incubação da malária, considerando as várias espécies, é respectivamente: P. falciparum: 9-14 dias; P. knowlesi: 1-12 dias; P. vivax: 12-17 dias; P. ovale: 16-18 dias; P. malariae: 18-40 dias. Contudo, estes períodos podem ser mais longos, por vezes meses ou mesmo anos. Os grupos populacionais de maior risco são: crianças com idade inferior a cinco anos, grávidas e viajantes provenientes de áreas não endémicas.

Nalguns doentes ocorre um período prodrómico de 2-3 dias antes de os parasitas serem detectados no sangue, constituído por cefaleias, mialgias, febre ligeira, dor torácica e abdominal, artralgias e mal-estar geral. As manifestações clínicas da malária não grave, comuns nas cinco espécies, dependem do estado imunitário prévio dos pacientes e da idade. A maioria dos casos graves de malária ocorre em crianças entre os seis meses e os três anos de idade. Os sintomas mais leves ocorrem em crianças mais velhas e adultos, cuja parasitémia é geralmente mais baixa.

Na sua forma clássica, a malária tem um quadro de apresentação que raramente é observado noutras doenças infecciosas: paroxismos (com febre alta, arrepios, sudação intensa, cefaleias, dificuldade respiratória, mialgias, dores lombares e abdominais, anorexia, náuseas, vómitos, diarreia, palidez e icterícia), alternando com períodos de relativo bem-estar, embora com certo grau de fadiga.

Os referidos paroxismos coincidem com a ruptura dos esquizontes que ocorre com intervalos de 48 horas nos casos de P. vivax e P. ovale, e de que resultam “picos febris” em dias alternados; nos casos de P. malariae a referida ruptura ocorre com intervalos de 72 horas, com consequentes “picos febris” de 3-3 ou de 4-4 dias. A periodicidade torna-se menos aparente com P. falciparum, P. knowlesi e infecções mistas.

Os doentes com infecção primária, tais como viajantes provenientes de regiões não endémicas, podem também ter episódios sintomáticos irregulares durante 2-3 dias antes do início dos paroxismos regulares. Nas crianças com mais de dois meses não imunes, as manifestações clínicas de malária podem variar muito, entre febrícula e cefaleia, e febre alta associada a vómitos, diarreia, palidez, cianose, anemia, hepatoesplenomegália, trombocitopénia, leucopénia, por vezes em combinação.

As manifestações mais frequentes de malária grave (em geral associadas a P. falciparum) são alterações do estado de consciência que podem culminar no coma, dificuldade respiratória e anemia. Outras manifestações de gravidade incluem acidose metabólica, desidratação e sinais neurológicos (convulsões focais, rigidez de descerebração ou de descorticação, opistótono, reflexos plantares anormais, reflexos abdominais ausentes, etc.).

Quando a alteração do estado de consciência nos casos de malária por P. falciparum não pode ser explicada por hipoglicémia, convulsões ou qualquer outra causa, utiliza-se o termo de malária cerebral.

Descreve-se hoje um quadro de retinopatia da malária, não observável noutras infecções: áreas discretas de “branqueamento” da retina e aspecto de pequenos vasos de cor prateada, alaranjada ou esbranquiçada, em pequenos focos dispersos.

Outro aspecto particular ligado à malária por P. falciparum é a chamada esplenomegália hiperreactiva (associada a elevação de IgM, títulos elevados de anticorpos antimaláricos e a linfocitose sinusal hepática).

O Quadro 1 descreve a frequência relativa das manifestações clínicas e laboratoriais associadas a valor prognóstico, segundo critérios da OMS.

A recrudescência após ataque primário pode ocorrer devido à sobrevivência de formas eritrocitárias na corrente sanguínea. A recaída a longo prazo é provocada pela libertação de merozoítos a partir de fonte exoeritrocitária no fígado (P. vivax e P. ovale), ou persistência eritrocitária (P. malariae). A verificação de sintomatologia típica várias semanas após retorno de viajante de zona endémica é a favor de infecção por P. vivax, P. ovale ou P. malariae.

A malária por P. falciparum associada a mais intensa parasitémia corresponde, como foi referido, à forma mais grave, implicando medidas médicas de emergência. Com efeito, nesta forma a parasitémia em termos quantitativos relativos pode ser > 60% (explicável por infectar eritrócitos maturos e imaturos); em comparação, a parasitémia considerando em conjunto P. ovale e P. vivax (infectando somente eritrócitos imaturos), e P. malariae, (infectando somente eritrócitos maturos), é muito menor: < 2%.

Quadro 1 – Frequência relativa das principais manifestações de malária grave em crianças e adultos (valor prognóstico).

Fonte: OMS 2000; *Escala de relevância; +→++→+++;+/- = achado pouco frequente
Valor prognóstico*

 

Manifestações clínicas e laboratoriais

Frequência*
criançasadultoscriançasadultos
+?prostração++++++
+++++alteração da consciência+++++
++++++dificuldade respiratória++++
+++convulsões++++
++++++colapso circulatório++
++++++edema pulmonar+/-+
+++++hemorragia+/-+
+++icterícia++++
++hemoglobinúria+/-+
++anemia grave++++
++++++hipoglicémia++++
++++++acidose+++++
++++++hiperlactacidémia+++++
+/-++hiperparasitémia+++
++++alteração da função renal++++

De salientar, ainda, as particularidades seguintes:

  1. A malária por P. vivax, embora menos grave do que a malária por P. falciparum, comporta maior risco de ruptura do baço;
  2. A malária por P. malariae tem como características fundamentais a maior benignidade, e também a maior tendência para a cronicidade, estando descritas formas com recrudescimento vários anos após ataque agudo;
  3. A malária por P. ovale é a forma mais rara, mais frequentemente associada a P. falciparum, e evidenciando-se de modo semelhante à provocada por P. vivax.

A passagem transplacentar de Plasmodium spp, com taxas de transmissão entre 10% e 54%, é comum em áreas endémicas.

Em mães não imunes, a malária congénita, mais comum, pode ser relacionada com qualquer espécie de Plasmodium. Os sinais surgem em geral entre os 10 e 30 dias de vida (com ampla variação entre 14 horas e vários meses): irritabilidade, febre, vómitos, dificuldade alimentar, diarreia, cianose e hepatoesplenomegália.

Surgindo a malária durante a gravidez, o quadro mórbido verificado na grávida poderá ter repercussões sobre o feto ou RN pela infecção da placenta, independentemente de haver, ou não, transmissão mãe🡪filho.

Diagnóstico

Como regra, pode presumir-se que qualquer caso de criança ou adolescente com febre e sinais de doença sistémica, e que tenha viajado para ou residido em zonas endémicas de malária há menos de um ano, possa estar afectada por malária, mesmo que tenha sido submetida a quimioprofilaxia. (ver adiante)

Nos casos com uma ou mais das seguintes condições, existe elevada probabilidade de etiologia pela espécie P. falciparum:

  1. Os sintomas ocorrendo < 1 mês após o regresso;
  2. Parasitémia > 2%;
  3. Parasitas em forma de anel (trofozoítos precoces);
  4. Eritrócitos infectados com mais de um parasita.

Para que haja maior probabilidade de detectar os parasitas, deve colher-se o sangue durante os ataques febris e antes da administração de qualquer agente terapêutico. Devem ser examinadas as preparações de sangue em gota espessa, em três ocasiões diferentes (por vezes, é necessário repetir o procedimento cada 4 horas/dia, sendo que o diagnóstico só deve ser excluído após um mínimo de três pesquisas negativas, com intervalo de 12 horas), procedendo-se à coloração pelo método de Giemsa (superior ao de Wright ou de Leishman). Os parasitas da malária apresentam-se como corpos corados de vermelho (material nuclear) e de azul (citoplasma) com grânulos negros ou castanhos, nas últimas fases de desenvolvimento, que ocorrem no interior dos eritrócitos.

Outros métodos (não dispensando o descrito exame microscópico, de primeira linha) que podem ser utilizados são:

  • Detecção de anticorpos da malária através da imunofluorescência indirecta (IFA) e do imunoensaio enzimático (ELISA);
  • Prova com anticorpo monoclonal;
  • Estudo molecular por PCR (reacção em cadeia da polimerase);
  • Detecção de antigénios da malária, sendo o mais significativo a imunocromatografia, que é a base dos testes de diagnóstico rápido comerciais disponíveis actualmente.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da malária faz-se com larga série de doenças víricas ou bacterianas (sépsis, meningite, encefalite, endocardite, brucelose, febre recorrente, febre tifóide, etc.), doença de Hodgkin, colagenoses, entre outras.

Tratamento

O tratamento da malária consiste fundamentalmente em:

  • Medidas gerais de suporte;
  • Medidas específicas (farmacoterapia antimalárica); e
  • Tratamento das complicações, descritas adiante.

A base do tratamento da malária simples ou não complicada por P. falciparum, recomendada pela OMS, são as combinações dos derivados da artemisinina (ACT). Como alternativa, poderá ser utilizada a combinação atovoaquona/proguanil, a mefloquina ou o quinino. A cloroquina é o fármaco indicado para malária não falciparum. (Quadros 2 e 3)

O fármaco recomendado pela OMS no tratamento inicial da malária grave é o artesunato endovenoso ou intramuscular durante, pelo menos, 24 horas, até que haja tolerância oral.

As alternativas existentes são o artemeter e o quinino em associação à doxiciclina ou clindamicina, por via endovenosa, durante sete dias. O quinino, por via parentérica deve ser substituído, logo que possível, pela via oral. A doxiciclina não deverá ser utilizada em crianças com menos de oito anos de idade.

QUADRO 2 – Fármacos recomendados pela OMS para o tratamento da malária não complicada, 2015.

Fármaco Dose e número de tomas
1ª linha
Arteméter + lumefantrina  (1 comprimido <> 20 mg de arteméter + 120 mg de lumefantrina) Via oral: 5 e 15 kg – 1cp 12/12h, 3 dias; 15 e 25 kg – 2 cp 12/12h, 3 dias; 25 e 35 Kg – 3 cp 12/12h, 3 dias; > 35 kg – 4cp 12/12h 3 dias. Nota: existem esquemas alternativos para administração em 60 h
Artesunato + amodiaquina 4 mg/kg/dia de artesunato e 10 mg/kg/dia de amodiaquina, 1id, 3 dias
Artesunato + mefloquina 4 mg/kg/dia de artesunato, 1id, 3 dias e 25 mg/kg de mefloquina, que poderá ser divido em 2 dias em 15 mg/kg e 10 mg/kg ou em 3 dias com 8,3 mg/kg/dia, 1id, 3 dias
Artesunato + sulfadoxina-pirimetamina 4 mg/kg/dia de artesunato, 1id, 3 dias e uma administração única de 25/1,25 mg/kg sulfadoxina-pirimetamina em D1
Artenimol + piperaquina 5 e 7 kg: 10 mg de artenimol + 80 mg de piperaquina; 7 e 13 kg: 20 mg de artenimol + 160 mg de piperaquina; 13 e 24 kg: 1 comprimido (1 comprimido <> 40 mg de artenimol + 320 mg de piperaquina); 24 e 36 kg: 2 cp (1 cp <> 40 mg de artenimol + 320 mg de piperaquina); Administrar durante 3 dias consecutivos num total de 3 doses
2ª linha
Artesunato + tetraciclina ou doxiciclina ou clindamicina artesunato (2 mg/kg, 1id ) tetraciclina (4 mg/kg, 6/6h) doxiciclina (3,5 mg/kg, 1id) clindamicina (10 mg/kg, 2id) tempo de tratamento: 7 dias
Quinino + tetraciclina ou doxiciclina ou clindamicina tetraciclina (4 mg/kg, 6/6h) doxiciclina (3,5 mg/kg, 1id) clindamicina (10 mg/kg, 2id) tempo de tratamento: 7 dias

QUADRO 3 – Fármacos recomendados pela OMS para o tratamento da malária grave, 2015.

Fármaco Dose e número de tomas
Artesunato 2,4 mg/kg por via endovenosa ou intramuscular na admissão e depois às 12h e às 24h após a admissão, seguido de uma dose diária nos restantes dias de tratamento
Artemeter 3,2 mg/kg por via intramuscular na admissão e depois 1,6 mg/kg/dia
Quinino (associado à Clindamicina ou Doxiciclina) 20 mg do sal/kg na admissão por via endovenosa ou dividido em duas doses por via intramuscular, seguido de 10 mg/kg cada 8h

Complicações

Para além da referência já feita à malária cerebral, cabe referir de modo sucinto outras complicações, em geral sistematizadas como manifestações clínicas de malária grave:

  • Anemia, complicação frequente da malária grave em crianças, sendo a etiopatogénese de natureza multifactorial: – 1. destruição de eritrócitos parasitados e não parasitados e da redução da sua deformabilidade; – 2. diminuição de reticulocitose por disfunção da resposta da medula óssea por uma eritropoiese ineficaz e produção inadequada de eritropoietina; – 3. efeitos sistémicos da inflamação na eritropoiese; – 4. infecções bacterianas concomitants; e – anormalidades nutricionais prévias;
  • Insuficiência renal, complicação frequente no contexto de malária por falciparum, surge por hemoglobinúria maciça no contexto de hemólise grave com deposição de Hb nos túbulos renais, associada a diminuição do débito sanguíneo renal;
  • Edema pulmonar, complicação associada à doença (pelo aumento da permeabilidade capilar) e também iatrogénica em relação com fluidoterapia excessiva; no entanto, é mais comum nos adultos do que nas crianças;
  • Hipoglicémia, frequentemente associada à doença e ao tratamento com quinino;
  • Trombocitopénia, por vezes integrada no contexto de CIVD;
  • Ruptura esplénica, já referida; por vezes iatrogénica ao proceder-se a palpação intempestiva num quadro de esplenomegália importante;
  • Choque e síndroma de disfunção multiorgânica.

Prevenção

Os aspectos gerais da prevenção, incluindo os relacionados com a quimioprofilaxia e protecção contra insectos foram descritos no capítulo sobre Viagens, sugerindo-se a respectiva consulta. A este respeito é importante reforçar: 1 – o papel protector da roupa contra o mosquito, cobrindo a totalidade do corpo; 2 – a utilização, sempre que viável, de ambiente com ar condicionado, de mosquiteiros impregnados com permetrina durante a dormida, assim como de repelentes cujo composto padrão é DEET (N-N- dietil-m-toluamida), sendo considerados equivalentes os produtos contendo picaridina (icaridina) ou IR3535.

O desenvolvimento duma vacina eficaz é o grande desafio para o controlo da doença. Como dificuldade na sua fabricação cita-se designadamente a grande variedade antigénica do parasita nas fases eritrocitária e exoeritrocitária.

De salientar a investigação levada a cabo no CISM (Centro de Investigação em Saúde de Manhiça, com o patrocínio da Fundação Bill Gates) em Moçambique (Vacina RTS.S/ASO2A). Com o composto, utilizando um antigénio da fase pré-eritrocitária – a proteína CSP – demonstrou-se um efeito protector de 35% contra a malária clínica em crianças entre 1 e 4 anos, prevendo-se uma redução em 40% das formas mais graves e em 65% da incidência em recém-nascidos.

Considerando os casos de mães que amamentam e submetidas a medicação com antimaláricos, cabe referir que o teor do fármaco transferido mãe-filho por esta via não envolve risco para o bébé, mas não permite neste último a profilaxia da malária.

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Definição e importância do problema

A amebíase é uma doença parasitária provocada por diferentes espécies do género Entamoeba, com elevada prevalência a nível mundial. Trata-se dum protozoário flagelado não móvel, correspondendo a espécie E. histolytica o principal agente implicado.

Tal afecção constitui a terceira causa mundial de morte por infecções parasitárias.

Aspectos epidemiológicos

A E. histolytica é responsável a nível mundial por cerca de 50 milhões de infecções sintomáticas e de 100.000 mortes /ano.

As zonas do globo mais atingidas, com baixo nível socioeconómico e sanitário e prevalência superior a 50%, correspondem ao Sueste Asiático, Índia, América Central, América do Sul e África.

Etiopatogénese

O tracto intestinal é colonizado por diferentes espécies do género Entamoeba. Embora se considere classicamente que a E. histolytica é a única espécie patogénica, em estudos recentes foi admitida a possível comparticipação doutras como E. dispar e E. moshkowskii.

A infecção produz-se pela ingestão de quistos presentes na água, alimentos ou mãos contaminadas, ou por contacto fecal-oral. Na mucosa intestinal, a ruptura dos quistos leva à libertação de trofozoítos (formas intraluminais de trofozoítos). Não estão descritos casos de transmissão vertical.

Numa pequena proporção, pela lesão da mucosa intestinal, poderá verificar-se disseminação de trofozoítos por via hematogénica, atingindo o fígado e outros órgãos, ocasionando quadro de doença invasiva (formas invasoras de trofozoítos). A gravidade da situação depende sobretudo da susceptibilidade do hóspede e da virulência do parasita.

Manifestações clínicas

Salientando que, na sua maioria, as infecções amebianas são assintomáticas, a sintomatologia mais habitual é a de diarreia de intensidade moderada e de dor abdominal. Com base no esquema etiopatogénico atrás descrito, são descritas duas formas clínicas: amebíase intestinal e amebíase extraintestinal.

Amebíase intestinal

Após um período de incubação de 2 a 4 semanas, surge febre, tenesmo, dor abdominal e diarreia ligeira a grave, com muco e sangue, durando entre 1 e 3 semanas e levando a perda de peso. A desnutrição e a corticoterapia contribuem para incrementar a susceptibilidade.

Poderão surgir raramente complicações, descrevendo-se perfuração intestinal, colite fulminante e peritonite. No caso de surgir diarreia crónica, as características do quadro clínico aproximam-se das de doença inflamatória intestinal.

Amebíase extraintestinal

Forma clínica mais rara, as respectivas manifestações decorrem sobretudo de patologia hepática, pulmonar, cardíaca ou do SNC.

Exames complementares

Fundamentalmente, os métodos de diagnóstico incluem exame microscópico das fezes para detecção de quistos e trofozoítos, detecção antigénica para diferenciação morfológica das diversas espécies com especificidade > 90%, serologia para detecção de anticorpos e técnicas moleculares para detecção de ADN por PCR.

A colonoscopia tem indicação em situações selecionadas.

Os exames de imagem estão indicados no âmbito da amebíase extraintestinal. A ecografia tem grande utilidade para avaliar a resposta ao tratamento do abcesso amebiano.

Tratamento

Com o tratamento pretende-se a eliminação das formas invasoras de trofozoítos e das formas intraluminais intestinais.

Como regras gerais, importa salientar:

  • o metronidazol, o tratamento de primeira linha, deve associar-se sempre a fármaco amebicida com actividade intraluminal;
  • o regime terapêutico poderá variar em função da sintomatologia e não em função da espécie;
  • a infecção por E. histolytica deve tratar-se independentemente da sintomatologia.

Situações específicas

Infecção assintomática

O metronidazol não é efectivo contra os quistos de Entamoeba. Neste contexto, deve administrar-se um amebicida com actividade intraluminal como a paramomicina (25-35 mg/kg/dia em três doses, durante 7 dias) e o iodoquinol (30-40 mg/kg/dia em três doses, durante 20 dias) ou, em alternativa, o furoato de diloxanida (20 mg/kg/dia em três doses, durante 10 dias).

Amebíase invasiva (intestinal e extraintestinal)

O tratamento de eleição é o metronidazol (35-50 mg/kg/dia em três doses, durante 7-10 dias). Como alternativas, citam-se: o tinidazol, o ornidazol, o secnidazol, a cloroquina e a nitazoxanida. Como foi referido, ao metronidazol deve associar-se sempre um fármaco amebicida com actividade intraluminal.

O tratamento cruento/cirúrgico poderá estar indicado nos casos de ausência de resposta ao tratamento e nos casos de complicações. Verificando-se abcesso amebiano, está indicada punção e drenagem com o apoio ecográfico.

Prevenção

Não existindo ainda vacinas, são reforçadas as medidas gerais de higiene pessoal, de saneamento básico e de boa qualidade da água para consumo público.

Salienta-se que os quistos são resistentes às concentrações de cloro para o tratamento da água potável.

Os viajantes para zonas endémicas devem evitar o consumo de água não tratada, de comida não cozinhada e de verduras e frutos lavados com água não tratada.

BIBLIOGRAFIA

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Sistematização

Neste capítulo são abordados dois tópicos fundamentais:

  1. Fenda labial e fenda alvéolo-palatina; e
  2. Anomalias da boca.

As anomalias das orelhas constam do capítulo seguinte.

1. FENDA LABIAL E FENDA ALVÉOLO-PALATINA

Aspectos epidemiológicos 

Estes defeitos, considerados entidades distintas, têm afinidades embriológicas, funcionais e genéticas. Por vezes usa-se o termo de “lábio leporino” (ou semelhante ao do coelho) como sinónimo de fenda labial.

Podem surgir isoladamente ou associados. A incidência de fenda labial, com ou sem fenda alvéolo-palatina, é cerca de 1/800 RN caucasianos, com predomínio no sexo masculino; quanto à fenda palatina, surgindo isoladamente, a incidência é cerca de 1/2.500 RN caucasianos. Estudos epidemiológicos apontam para incidências mais elevadas na Ásia, e menos em África.

São descritos os seguintes padrões:

  1. Fenda isolada ao nível do palato mole (podendo manifestar-se apenas por úvula bífida);
  2. Fenda labial com ou sem fenda do palato duro, podendo envolver, ou não, a arcada alveolar do maxilar superior.

As anomalias descritas podem ser unilaterais ou bilaterais, e completas ou incompletas. A fenda palatina isolada está mais frequentemente associada a outras anomalias congénitas, designadamente dentes deformados, supranumerários ou ausentes. A combinação de fenda palatina e de fenda labial predomina no sexo masculino.

Etiopatogénese

Estão descritas diversas teorias sobre o processo embriológico que origina tais defeitos. Relativamente à fenda labial admite-se, como explicação mais provável, hipoplasia do folheto mesenquimatoso, com falência de fusão dos processos maxilar e nasal mediais. A fenda palatina parece resultar de não aproximação ou fusão das placas palatinas direita e esquerda, no sentido lateral       medial.

A testemunhar a forte componente genética desta anomalia é a demonstração de risco elevado de recorrência (que pode ser da ordem de 50%), havendo antecedentes em familiares do primeiro grau afectados. Há, com efeito, casos descritos dos referidos defeitos, herdados de modo dominante (síndroma de van der Woude).

Por outro lado, a demonstrar o papel possível do factor ambiente, tem sido verificado o efeito teratogénico de determinadas substâncias, tais como fenitoína, ácido valpróico, talidomida, álcool, tabaco, dioxinas, certos herbicidas, etc..

Os referidos defeitos podem também estar associados a determinadas síndromas com ou sem anomalias cromossómicas (Parte III).

Manifestações clínicas

A existência de fenda labial e de fenda alvéolo-palatina pode repercutir-se em diversas funções e no processo de erupção dentária, o que pode ser agravado pela associação a outros defeitos.

Assim, pode verificar-se:

  • Interferência na função de sucção – deglutição, determinando dificuldade de alimentação, sobretudo nos primeiros meses (o que implica frequentemente o uso de tetinas especiais e, inclusivamente, o recurso a gastrostomia nos casos mais complexos);
  • Nos casos de fenda palatina, sobretudo do palato duro, havendo comunicação entre as cavidades oral e nasal, interferência na fonação e audição.

São considerados factores agravantes, a bilateralidade, a existência de defeitos associados, tais como deformação e assimetria do maxilar superior e hipoplasia muscular e óssea regionais.

Nota importante: a verificação dos defeitos em análise não constitui contra-indicação para alimentação ao peito, embora tal acto implique vigilância e cuidados especiais, assim como aprendizagem por parte da mãe lactante, designadamente quanto a riscos existentes (por ex. aspiração de leite para a via respiratória, hipóxia, etc.). Assim, na fase inicial deste processo está indicada a vigilância da oxigenação tecidual através da oximetria de pulso (% de saturação em oxigénio, transcutânea).

Tratamento

Para além dos cuidados gerais inerentes aos vários tipos de disfunção descritos antes, no que respeita à correcção cirúrgica, obviamente indicada, a mesma deverá ser efectuada em centro especializado de cirurgia pediátrica.

Como se pode depreender, a prestação de cuidados implica a colaboração de uma vasta equipa multidisciplinar de enfermeiros, médicos (no âmbito da Pediatria Geral, Medicina Familiar, Cirurgia Pediátrica, Estomatologia, Ortodôncia, Cirurgia Maxilofacial, Otorrinolaringologia, Fisiatria, Genética, etc.), psicólogos, terapeutas da fala, etc..

O seguimento em ambulatório pode ser levado a cabo em instituições com menor nível de diferenciação, a cargo do médico assistente, sendo desejável uma interligação harmoniosa, sem esquecer o papel cooperante e imprescindível da família.

A idade para intervenção cirúrgica é abordada adiante, noutro capítulo, em comparação com a indicada para outros problemas do foro cirúrgico pediátrico.

Complicações

As complicações mais frequentes relacionam-se, sobretudo, com cicatrizes inestéticas, má-oclusão dentária, rinolália, défice auditivo, dificuldades da fala (implicando, por vezes terapia específica), e maior probabilidade de otite média recorrente.

2. ANOMALIAS BUCAIS

Sistematização

O exame objectivo da cavidade bucal (pela inspecção e palpação) permite, na maior parte das vezes, o diagnóstico, não só de alterações congénitas, como adquiridas.

Na perspectiva do cirurgião pediátrico, as principais situações clínicas (algumas correspondendo a variantes fenotípicas) identificadas pelo pediatra ou médico de família que poderão requerer consultadoria ou, eventualmente, intervenção cruenta, são discriminadas a seguir. Dum modo geral, ao encaminhar o caso ao cirurgião, não será necessário proceder a exames complementares.

Rânula

A rânula (do latim Rana = rã) é uma tumefacção esferóide de cor rósea-azulada, que corresponde a quisto de localização sublingual, de dimensões variáveis (tamanho de pequena ervilha ou maior); pode estar em relação com obstrução de canal excretor da glândula sublingual ou de glândula mucosa.

O tratamento é cirúrgico electivo.

Mucocele

A mucocele é uma bolsa quística das glândulas salivares, resultante de obliteração do orifício excretor do canal de Wharton. Pode igualmente tratar-se de quisto com muco acumulado por dificuldade de drenagem de glândula mucosa.

Não tem indicação cirúrgica por ser auto-limitado. (Figura 3)

FIGURA 1. Lábio leporino bilateral.

FIGURA 2. Fenda palatina.

FIGURA 3. Mucocele do lábio inferior.

Anquiloglóssia

Esta variante fenotípica consiste no encurtamento exagerado do freio do lábio inferior impedindo a protusão da língua para além do bordo labial. Sob o aspecto estritamente médico não constitui um verdadeiro problema; contudo, origina certo grau de ansiedade na família pelo facto de “poder dificultar a fala”, o que é controverso. Há casos descritos em que foi demonstrada certa dificuldade na amamentação. Nos casos em que o esforço de protusão origina aspecto de bifidez intermitente da extremidade da língua (desaparecendo quando a mesma se recolhe dentro da boca), nalguns centros, por razões de psicoterapia anti-ansiedade da criança e família, procede-se à incisão do referido freio.

Inserção baixa do freio labial superior

Nesta variante fenotípica, o freio do lábio superior pode ter base de inserção atingindo o bordo gengival superior, o que leva ao afastamento dos incisivos superiores (diastema). Em geral a situação corrige-se até à erupção da dentição definitiva.

No caso de tal não acontecer, nalguns centros procede-se à incisão do freio, o que contribuirá para diminuir ou corrigir completamente o diastema.

Nota importante: poderá verificar-se tumefacção ou dilatação global da glândula sublingual (a glândula que mais directamente está em relação com a cavidade bucal) resultante de obstrução (recorrente) do canal excretor por cálculo. Esta situação, que é mais frequente na submaxilar e parótida (não em relação directa com a mucosa bucal), poderá estabelecer a indicação de sialografia. Como medida simples, está indicado que a criança chupe pastilhas e faça exercícios de mastigação (obviamente em idades apropriadas) no sentido de estimular o débito da secreção salivar; pode proceder-se a massagem/compressão da glândula e, em caso de infecção, a antibioticoterapia.

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Sistematização

Neste capítulo, para além das entidades clínicas de origem embriológica branquial (fístulas e quistos da cabeça e pescoço propriamente ditos), incluem-se outras situações de etiopatogénese diversa, mas com certas afinidades morfológicas (quistos, fossetas, apêndices pré-auriculares, alterações da morfologia e posição dos pavilhões auriculares, quisto do canal tiroglosso, e quistos dermóide e epidermóide).

ANOMALIAS DA FENDA BRANQUIAL

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Durante a 4ª e 8ª semanas de gestação, no embrião humano desenvolvem-se:

  • A partir da mesoderme, quatro pares de arcos branquiais;
  • A partir da ectoderme, quatro pares de fendas intermédias;
  • A partir da endoderme, quatro pares de bolsas faríngeas.

São estes esboços ou primórdios que dão origem futuramente às estruturas da cabeça, faringe e do pescoço.

Não cabendo no âmbito deste livro uma descrição exaustiva das alterações da morfogénese que determinam tais defeitos, cabe sintetizar que a deficiente maturação e a persistência aberrante de determinadas estruturas embrionárias precursoras do desenvolvimento da cabeça, da faringe e do pescoço, se traduzem pela presença de determinados defeitos tais como depressões ou fossetas ou seios, fístulas, quistos e resíduos cartilaginosos.

Na perspectiva do desenvolvimento embriológico pode estabelecer-se a seguinte correspondência com a clínica:

  • As anomalias do 1º arco branquial são raras e apresentam-se como quistos, fossetas ou fístulas (anteriores, posteriores, ou inferiores em relação ao pavilhão auricular, ou na região submaxilar). Cerca de 1/3 abre-se no canal auditivo externo e o trajecto atravessa a parótida; devido à proximidade do nervo facial haverá que ter grande cuidado na sua excisão. As fossetas e as fístulas passam muitas vezes despercebidas, sendo somente notadas quando se verifica uma pequena descarga de secreção mucóide pelo microrifício exterior.
  • As anomalias do 2º arco branquial (quistos branquiais) são mais frequentes e localizam-se ao longo do bordo anterior do músculo esternocleidomastoideu (em geral no 1/3 superior), provenientes da zona do osso hióide. São bilaterais em 10% dos casos. Podem manifestar-se muitas vezes:
  • Pela formação de abcessos, devido à incapacidade de drenagem espontânea para o exterior; ou
  • Drenando através da pele, deixando sair um líquido claro e levemente bronzeado, sem a viscosidade que é notada no conteúdo do quisto tiroglosso, mas com abundantes cristais de colesterol (ver adiante); ou
  • Evidenciando “poro” de saída, o qual é assinalado por vezes por uma prega cutânea ou por um resíduo de cartilagem, podendo palpar-se o trajecto subcutâneo. (Figura 1)
  • As anomalias do 3º arco branquial muito raras, seguindo um trajecto semelhante às do 2º arco; desembocam no seio piriforme.
  • As fístulas e quistos do 4º arco são extremamente raras e de diagnóstico diferencial difícil com os laringoceles, por exemplo.

FIGURA 1. Quisto do 2° arco branquial à direita. (NIHDE)

Diagnóstico diferencial

As fístulas e fossetas são fáceis de diagnosticar com base apenas nos dados semiológicos clínicos.

Os quistos, traduzidos semiologicamente por tumores esferóides laterais do pescoço, impõem o diagnóstico diferencial com situações clínicas com as quais partilham algumas características morfológicas: tumores da zona mandibular, adenopatias, higromas quísticos do pescoço (linfangiomas), quistos dermóides, quistos sebáceos, condromas, quistos ou tumores da parótida e lesões linfáticas neoplásicas primárias ou metastáticas.

Para esclarecimento etiológico poderá recorrer-se à transiluminação e à ecografia (de preferência doppler) para identificação de estruturas vasculares associadas.

Tratamento

A excisão cirúrgica completa deve ser levada a cabo quando feito o diagnóstico e antes de surgir infecção. Se esta última constituir a primeira manifestação, deve proceder-se a antibioticoterapia e drenagem quando indicada, somente tentando a excisão quando o processo inflamatório tiver regredido. Nesta situação a intervenção cirúrgica exigirá mais cuidado com os nervos adjacentes (facial, em especial).

No caso das fístulas, todo o trajecto deve ser excisado após visualização com azul de metileno.

ANOMALIAS DAS ORELHAS INCLUINDO QUISTOS, FOSSETAS,
E APÊNDICES PRÉ-AURICULARES

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Quistos, fossetas e apêndices, de localização pré-auricular, não são de origem branquial, antes traduzem a existência de restos ou inclusões ectodérmicos relacionados com o desenvolvimento aberrante dos tubérculos auditivos. As fossetas têm um trajecto curto e terminação cega. Não comunicam com o ouvido externo nem com a trompa de Eustáquio.

São geralmente descobertos pelos pais ou pelo médico logo após o nascimento. Raramente evidenciam drenagem de líquido sebáceo, que é de cheiro intenso; a presença do referido líquido traduz, em princípio, comunicação provável com quistos subcutâneos.

As anomalias congénitas verificadas nas orelhas (ou pavilhões auriculares) traduzem-se fundamentalmente por alterações da morfologia, das dimensões, da implantação (baixa ou normal), do ângulo de inserção, e associação a defeitos na área limítrofe e/ou do canal auditivo externo, ou do ouvido em geral. Discriminam-se a seguir a microtia e o hellix valgum.

Microtia

Microtia ou orelhas de dimensões reduzidas associa-se em geral a outros defeitos morfológicos e funcionais do foro ORL. Em geral fazem parte de síndromas plurimalformativas hereditárias. Após exame clínico rigoroso, a criança deve ser encaminhada para ORL para avaliação funcional auditiva. Em geral, torna-se necessária a cooperação doutros especialistas e profissionais de saúde.

Hellix valgum

Esta situação traduz-se por afastamento exagerado das orelhas da região mastoideia, dando o aspecto “em apagador de velas”.

Tratamento

É cirúrgico devendo ser levado a cabo antes que haja infecção, o que agrava o prognóstico (intervenção mais difícil e possível formação de cicatriz inestética). Neste tipo de defeitos raramente é evidenciada drenagem de líquido sebáceo; se surgir, a excisão é prioritária dada a eventualidade de infecção secundária (em geral por estafilococo).

Poderá verificar-se recidiva.

QUISTO DO CANAL TIROGLOSSO

Etiopatogénese e importância do problema

O quisto do canal tiroglosso é uma tumefacção redonda na zona do osso hióide, correspondendo a um resíduo ectodérmico; desenvolve-se junto à linha de descida da glândula tiroideia, da base da língua para o lobo piramidal da referida glândula.

A porção média do canal permanece como um tubo microscópico descontínuo, de epitélio indiferenciado, que passa através do osso hióide, ou que não ultrapassa o periósteo deste.

Trata-se da massa cervical mais frequente da linha média do pescoço, raramente se manifestando na data do nascimento; é observado com mais frequência entre os 2 e 10 anos. Em cerca de 30% dos casos pode ser identificado no referido quisto tecido tiroideu ectópico e, em 10%, tecido adenocarcinomatoso papilar.

Manifestações clínicas e diagnóstico

O referido quisto pode desenvolver-se desde a base da língua até à zona retrosternal. O exame físico revela, na linha média do pescoço, massa quística lisa, mole e indolor (excepto quando se verifica infecção secundária), a qual se movimenta com a deglutição ou exteriorização da língua (no caso de quisto dermóide não se verifica tal mobilidade). Como resultado da infecção verifica-se na pele.

O diagnóstico diferencial deve fazer-se, para além do quisto dermóide, com a tiroideia ectópica, com o tumor da tiroideia e com a linfadenite submentoniana. A ecografia pode dar contributo importante.

Para evitar a ressecção inadvertida de tecido tiroideu ectópico no âmbito da tentativa de ressecção do quisto tiroglosso, está indicada a realização em casos seleccionados de estudo funcional da tiroideia, incluindo cintigrafia.

Tratamento

Uma vez feito o diagnóstico, deve proceder-se à excisão do quisto e do trajecto até à base da língua, englobando a porção média do osso hióide (operação de Sistrunk). Como em toda a cirurgia do pescoço, deve ser deixado um dreno fino que se retira às 24 horas.

Está indicada antibioticoterapia nos casos com infecção.

QUISTOS DERMÓIDE E EPIDERMÓIDE

Estas estruturas nodulares ou semi-esferóides (com algumas características comuns quanto à etiopatogénese, e sempre com indicação cirúrgica), têm tamanhos variáveis, consistência elástica, e desenvolvem-se por inclusão de restos de células epidérmicas, na derme ou epiderme. Em ambas as situações se pode verificar infecção secundária e/ou fistulização.

Os quistos epidermóides (também chamados quistos de inclusão epidérmica) constituem as lesões nodulares mais frequentes na idade pediátrica. Podem resultar, quer da oclusão dos folículos pilo-sebáceos, quer da implantação de células epidérmicas na derme como resultado de lesão traumática da epiderme, quer a partir de restos de células epidérmicas. A sua parede (que pode sofrer ruptura e levar a infecção secundária, designadamente por S. aureus) deriva do infundíbulo folicular, sendo que o conteúdo da cavidade está preenchido por material queratinizado semelhante a queijo.

Os quistos dermóides têm a particularidade de estarem localizados na linha média, alinhados com as suturas ósseas do crânio, o que implica o diagnóstico diferencial com situações relacionadas com defeitos do tubo neural e, designadamente com encefalocele, fibroma, glioma e meningocele. Tal característica implica cuidado especial ao decidir por intervenção cirúrgica, obrigando a aplicar a regra semiológica muito simples, mas muito importante: toda e qualquer tumefacção da linha média, desde o nariz até ao cóccix, até prova em contrário, poderá estar relacionada com defeito de encerramento do tubo neural.

Nos dois tipos de quistos, a infecção secundária implica obviamente antibioticoterapia (em princípio, antiestafilocócica).

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Definição e importância do problema

A designação de hérnia diafragmática (HDC) refere-se à comunicação/orifício de dimensões variáveis, entre as cavidades abdominal e torácica, com ou sem presença de vísceras abdominais na cavidade torácica. Tal defeito, que pode estar associado a grau variável de hipoplasia pulmonar e a outras anomalias, pode ter diversas localizações no diafragma, sendo a póstero-lateral a mais frequente (~90%), designada “hérnia de Bochdalek”. Assim, na maior parte das vezes quando nos referimos a hénia diafragmática congénita, admitimos em perincípio que se trata de hérnia de Bochdalek, a qual é objecto de estudo mais pormenorizado neste capítulo.

Sobre as outras localizações do orifício diafragmático, procede-se à respectiva descrição noutra alínea, adiante.

Verificando-se a presença de vísceras abdominais na cavidade torácica, considera-se que a hipoplasia pulmonar e a má-rotação intestinal, fazendo parte da entidade clínica, não são consideradas anomalias associadas.

A incidência da hérnia de Bochdalek é variável, sendo relatada em diversas séries a proporção de 1/2.000 a 5.000 nascimentos. Com os progressos da terapia intensiva ao longo dos anos, a taxa de sobrevivência nos países com recursos sofisticados passou de ~50% para >90%.

Aspectos embriológicos

A maioria dos casos de HDC/hérnia de Bochdalek ocorre de modo esporádico e, aparentemente, sem incidência familiar. No entanto, há descritos casos familiares, por vezes associados a síndromas, como é o caso da síndroma de Fryns, o que leva a admitir o possível papel de factores genéticos. Por outro lado, em cerca de 6% dos RN com HDC foram identificadas anomalias cromossómicas. Entretanto, foram identificados dois genes (NR2F2 e CHD2) localizados na região 15q26.1-15q26.2, possivelmente implicados na patogénese da HDC.

O desenvolvimento do diafragma realiza-se entre a 4ª e 12ª semana de gestação, resultando da formação de quatro esboços:

  • Porção anterior, que representa a maior parte do septum transversum crescendo no sentido ântero-posterior;
  • Pregas dorsolaterais ou pleuroperitoneais que se originam na parede lateral e crescem em direcção ao dorso;
  • Porção única dorsal e média derivada da mesoderme esofágica; e
  • Porções circulares que tapetam a periferia das membranas pleuroperitoneais.

O encerramento dos canais pleuroperitoneais realiza-se entre a 9ª e 10ª semana, para tal contribuindo as chamadas membranas ou pregas pleuroperitoneais de dupla camada, constituídas por peritoneu de um lado, e por pleura, do outro. A última parte a encerrar-se é a posterior e, sobretudo, o lado esquerdo onde persiste por mais tempo um orifício triangular.

Qualquer defeito no desenvolvimento dum ou mais componentes embrionários do diafragma, ou a falta de fusão duma das suas porções, condiciona o aparecimento de hérnia. Se a anomalia se verificar numa fase mais precoce, os órgãos herniados ficam em contacto directo com o parênquima pulmonar; se a reintegração for mais tardia, uma vez já verificada a junção dos dois folhetos peritoneal e pleural, estes são empurrados pelas vísceras abdominais através do foramen de Bochdalek, originando uma hérnia com saco; se o diafgragma estiver formado ao verificar-se a reintegração, não é possível a constituição da hérnia. Neste último caso, a única anomalia possível é uma insuficiência qualitativa ou quantitativa das fibras musculares do diafragma, conduzindo à chamada eventração diafragmática afectando toda a superfície duma cúpula cuja tradução funcional é o relaxamento ou hipotonia do músculo em questão. A eventração diafragmática é abordada em capítulo próprio.

No âmbito da embriologia, importa uma referência especial a certos factores determinantes do crescimento e desenvolvimento in utero do sistema respiratório em geral, e em especial do diafragma, os quais nos ajudam a compreender certas medidas de prevenção e tratamento da HDC, quer in utero, quer ex utero.

De acordo com a investigação nas últimas décadas, demonstrou-se que:

  • A magnitude do incremento do líquido pulmonar fetal, expandindo o pulmão fetal é um importante determinante do crescimento pulmonar fetal. O líquido pulmonar fetal é segregado pelo epitélio pulmonar (pneumatócitos de tipo I) para o lume do tracto respiratório, fluindo dos pulmões para o líquido amniótico, através da traqueia;
  • Que a hipoplasia pulmonar precede o defeito diafragmático, e que se a traqueia for obstruída, o líquido pulmonar não eflui, ocorrendo maior grau de expansão pulmonar. Este fenómeno constitui um potente estímulo para o crescimento pulmonar fetal, aumentando o peso pulmonar, bem como o ADN e o conteúdo proteico. Concomitantemente aumenta o diâmetro alveolar, a sua área e o número de alvéolos;
  • Os glucocorticóides têm um efeito favorável no desenvolvimento e distensibilidade alveolar (compliance) e na diminuição do espessamento dos vasos pulmonares, em modelos animais com HDC; para além disso, promovem a produção de surfactante, o que é importante no tratamento da HDC, uma vez que estudos bioquímicos indicam que estes pacientes apresentam deficiência secundária de surfactante;
  • A vitamina A, embora seja um agente teratogénico, constitui um indutor do crescimento pulmonar em fetos com HDC, promovendo a ramificação brônquica e dando ao pulmão embrionário um potencial de crescimento adicional, nos estádios de desenvolvimento seguinte;
  • A grelina, ligando endógeno para o receptor secretagogo de hormona de crescimento – GHS-R, parece estar envolvida no crescimento pulmonar fetal (principalmente no estádio pseudoglandular de maturação pulmonar);
  • A angiotensina II, sendo um regulador da morfogénese pulmonar, poderá explicar o facto de a administração de IECA e de antagonistas dos receptores da angiotensina durante a gravidez induzir hipoplasia pulmonar fetal.

Tipos de hérnia diafragmática

As HDC no sentido lato podem classificar-se de acordo com:

  • Localização do orifício ou solução de continuidade;
  • Constituição da referida hérnia.

Quanto à localização do orifício, distinguem-se:

A – Hérnias das cúpulas

Surgem em cerca de 80%-90% dos casos no lado esquerdo; as hérnias bilaterais, podendo ocorrer em cerca de 0,5%-1% dos casos, são na maioria dos casos fatais. As dimensões da solução de continuidade são muito variáveis (desde pequeno orifício a agenésia completa. Subdividem-se nos seguintes tipos:

  1. Hérnias póstero-laterais, as mais frequentes (designadas classicamente por hérnias de Bochdalek); (Figuras 1(A) 2- , 1(B))
  2. Hérnias por aplasia completa do hemidiafgagma, de prognóstico muito grave;
  3. Hérnias anterolaterais das cúpulas, mais raras, surgindo em idêntica proporção à direita e à esquerda.
B – Hérnias retrocostoxifoideias (anteriores)

São ainda chamadas hérnias pela fenda de Larrey ou pelo foramen de Morgagni; na realidade, trata-se de hérnias por aplasia (transformação das duas fendas de Larrey num orifício único, anterior, mediano e retrosternal, com diâmetro transverso superior ao ântero-posterior). Habitualmente são designadas por hérnias de Morgagni (correspondendo a cerca de 2-6% das hérnias HDC). (Figura 1(A) 3-)

C – Hérnias paresofágicas

São raras e diferentes das verdadeiras hérnias hiatais. Trata-se, de facto, de hérnias por deslizamento, estando o orifício herniário situado na vizinhança do orifício hiatal (ver adiante). Com efeito, na hérnia hiatal verdadeira o orifício herniário é comum com o orifício hiatal uma vez que existe agenesia do pilar direito do diafragma e da fita muscular pertencente ao anel muscular do orifício esofágico. (Figura 1(A) 1)

FIGURA 1. A) Secção horizontal esquemática do diafragma; B) Secção parassagital esquerda (hérnia póstero-lateral).

Quanto à constituição da hérnia, há que distinguir:

A – As hérnias com e sem saco

Na maior parte dos casos não há saco, continuando-se a pleura com o peritoneu.

Em função do conteúdo, pode afirmar-se que todas as vísceras abdominais, excepto o duodeno, pâncreas e parte terminal da sigmoideia podem estar presentes na cavidade torácica; o intestino delgado, cólon direito e transverso estão sempre implicados.

As hérnias das cúpulas ou póstero-laterais são as que se manifestam de modo mais precoce e exuberante desde os primeiros momentos da vida extrauterina com um quadro de insuficiência respiratória obrigando a medidas de terapia intensiva do recém-nascido (RN).

Notas importantes:

    • Reitera-se, assim, que na prática clínica corrente a designação de hérnia diafragmática se reporta, em geral, à hérnia das cúpulas ou hérnia diafragmática propriamente dita (de Bochdalek), entidade que é abordada com realce neste capítulo;
    • Salienta-se que o diagnóstico pré-natal ultrassonográfico de HDC é possível desde as 15-16 semanas de gestação, o que tem implicações quanto às estratégias de abordagem pré-natal, inclindo medidas de tratamento in utero.

Fisiopatologia

A partir da década de 90 do século XX, o conhecimento da fisiopatologia da HDC evoluiu significativamente, demonstrando-se que a principal causa de dificuldade respiratória e mortalidade pós-natal era a hipoplasia pulmonar associada a uma anormal muscularização arteriolar, conduzindo a hipertensão pulmonar (HTP) mantida no período pós-natal.

A hipoplasia vascular resulta duma diminuição efectiva dos ramos arteriais, bem como da diminuição da área de secção das arteríolas pré-acinares pequenas e intra-acinares, devido a um fenómeno de hipermuscularização. Esta hipoplasia vascular é responsável, por si só, pela manutenção da HTP no RN.

A hipoplasia alveolar resultante da diminuição da ramificação normalmente existente, coincidindo com a maturação pulmonar, perturba a capacidade ventilatória do RN. Tal resulta em hipóxia e hipercápnia mantidas.

A hipóxia, por sua vez, contribui para acentuar a vasoconstrição pulmonar, o que contribui para a manutenção e agravamento progressivo da HTP.

Mantendo-se a HTP no RN com HDC, a derivação circulatória direita-esquerda através do ductus arteriosus mantém-se concomitantemente, com consequente mistura de sangue mais oxigenado com menos oxigenado, o que leva a hipóxia tecidual caudal.

Esta hipóxia gera, além de vasoconstrição pulmonar, vasodilatação periférica, que desencadeia o conhecido fenómeno de “ruptura capilar” e consequente edema; este último origina compromisso da oxigenação dos tecidos, facilitando o metabolismo anaeróbio e consequente produção de lactato.

Instala-se seguidamente acidose metabólica a qual intensifica a vasoconstrição pulmonar provocada pela hipóxia. Com esta vasoconstrição é, então, mantida a HTP.

Entra-se, assim, num círculo vicioso difícil de reverter, o qual tende para falência multiorgânica.

Em suma, compreende-se que esta anomalia congénita comprometa a adaptação do feto à vida extrauterina. (Figura 2)

FIGURA 2. Fisiopatologia da adaptação do feto com HDC à vida extra-uterina.

Diagnóstico pré-natal

Como foi referido antes, o diagnóstico pré-natal ultrassonográfico de HDC é possível desde as 15-16 semanas de gestação. Por outro lado, a RM fetal pode estabelecer o diagnóstico diferencial com outras anomalias congénitas, como a malformação adenomatóide cística congénita, o sequestro pulmonar, o teratoma cístico mediastínico, os cistos broncogénicos, os tumores neurogénicos e o sarcoma pulmonar primário.

Uma vez confirmado o diagnóstico pré-natal de HDC, importa proceder ao rastreio de cromossomopatias/anomalias associadas (Figura 3). Para tal, deve realizar-se amniocentese e ecocardiografia fetal. Na verdade, a presença de cromossomopatias e de defeitos estruturais em geral, está associada a mau prognóstico, com mortalidade de ~90%.

Na ausência de alterações genéticas atrás referidas, e excluindo as condições que se consideram constituir a síndroma de HDC (hipoplasia pulmonar, ductus arteriosus e foramen ovale persistentes, e má-rotação), aproximadamente um terço dos RN com HDC tem outras anomalias associadas, das quais a maioria corresponde a defeitos cardíacos estruturais ou génito-urinários.

No caso de serem detectadas anomalias cromossómicas ou anomalias congénitas major, vários autores propõem interrupção médica da gravidez (IMG). Nos restantes há que estratificar o prognóstico, por forma a seleccionar aqueles que previsivelmente terão uma boa capacidade de adaptação pós-natal e aqueles cuja adaptação pós-natal será problemática beneficiando, por isso, de tratamento antenatal.

FIGURA 3. Algoritmo de abordagem de fetos com diagnóstico pré-natal de HDC. As setas a tracejado representam estratégias sob investigação experimental. IMG: interrupção medicamente assistida; LHR: right lung area to head circumference ratio.

Manifestações clínicas e exames complementares

Hérnia de Bochdalek

No período pós-natal, a expressão clínica da hérnia de Bochdalek é muito variável, o que está em relação com um amplo espectro de variantes anatómicas do próprio defeito; salienta-se que nem sempre existe uma relação directa entre a magnitude da hérnia e a sintomatologia.

Os sinais clínicos dependem essencialmente da hipoplasia pulmonar, da hipertensão pulmonar, e do défice ou disfunção do surfactante pulmonar.

Na sua forma mais típica de apresentação, o pós-parto imediato é caracterizado por má adaptação cardiorrespiratória à vida extrauterina (depressão respiratória neonatal, taquipneia, retracção costal, cianose, insuficiência respiratória progressiva na ausência de manobras de ressuscitação imediata e ventilação mecânica subsequente).

Verifica-se abdómen escavado, diminuição ou ausência do murmúrio vesicular do lado da hérnia e ruídos cardíacos audíveis no lado direito nos casos de hérnia póstero-lateral esquerda. Por vezes, auscultam-se no hemitórax correspondente ao lado do defeito, ruídos hidroaéreos. No entanto, há formas clínicas em que o diagnóstico é realizado mais tardiamente, pelo segundo ou terceiro dia de vida, quando o preenchimento gasoso progressivo do tracto intestinal passa a comprimir significativamente a cavidade torácica, exercendo efeito de massa sobre o mediastino ou sobre o pulmão contralateral.

O exame radiológico tóraco-abdominal é em geral suficiente para o diagnóstico, designadamente nos casos em que não se tenha realizado a vigilância pré-natal.

Podem ser observados sinais de preenchimento torácico por estômago ou ansas intestinais, vísceras sólidas como fígado ou baço, assim como de parênquima pulmonar não totalmente expandido, unicamente arejado no ápex, com empurramento do mediastino para o lado oposto. (Figura 4)

Em caso de dúvida, poderá introduzir-se tentativamente uma sonda radiopaca por via oral no estômago, avaliando ulteriormente a posição da respectiva extremidade: tórax ou abdómen.

A ecografia tóraco-abdominal permite definir a ausência de integridade diafragmática e a confirmação de presença de vísceras maciças no toráx, como o baço na hérnia diafragmática esquerda, e o fígado na hérnia diafragmática direita.

O ecocardiograma deverá ser efectuado na admissão na UCIN, às 24 horas de vida, antes da cirurgia, antes da alta (para documentar o valor de pressão pulmonar) e sempre que clinicamente se justificar (por exemplo face a agravamento hemodinâmico para avaliação funcional e da pressão arterial pulmonar).

Com efeito, um valor de pressão arterial pulmonar superior a 2/3 da pressão arterial sistólica sistémica, medida em simultâneo, sugere HTP grave, salientando-se, no entanto, que se trata duma avaliação indirecta da pressão arterial pulmonar, com limitações relacionadas, sobretudo, com a compressão cardíaca pelas vísceras abdominais em posição torácica.

Têm sido publicados diferentes estudos demonstrando o valor do doseamento do fragmento N terminal do péptido natriurético do tipo B (NT-pro BNP) na hipertensão pulmonar do adulto e do RN. Os níveis séricos deste péptido, produzido no miocárdio ventricular em resposta ao aumento da pós-carga causado por HTP, correlacionam-se com o valor de pressão na artéria pulmonar.

Os valores séricos no RN são habitualmente mais elevados do que no adulto, não estando absolutamente definido o intervalo de referência normal nesse grupo etário. No entanto, mais do que a medição instantânea do NT-proBNP, a sua avaliação seriada permite prever a evolução da HTP.

Assim, recomenda-se o doseamento de NT-proBNP às 24 horas de vida e, seriadamente, durante o período de estabilização, até à intervenção cirúrgica.

FIGURA 4. Aspecto radiográfico de HD de Bochdalek à esquerda. (UCIN-HDE)

Hérnia de Morgagni

Com este tipo de hérnia, dum modo geral, os doentes estão assintomáticos fazendo-se o diagnóstico após o período neonatal quando a criança é submetida a radiografia do tórax por qualquer razão.

A radiografia póstero-anterior evidencia uma estrutura sobreposta à sombra cardíaca; e a de perfil localiza uma imagem de massa retrosternal.

A TAC confirma o diagnóstico.

Os sinais clínicos, quando ocorrem, traduzem-se por infecções respiratórias recorrentes, tosse e/ou vómitos. Em casos raros pode surgir encarceramento do conteúdo herniário.

Hérnia paresofágica (peri-hiatal)

A hérnia paresofágica distingue-se da hérnia do hiato porque a junção gastresofágica está em localização normal. A herniação (do estômago em direcção à cavidade torácica, ou de parte do estômago adjacente à região gastresofágica) poderá conduzir a encarceração, estrangulamento ou perfuração. (Figura 5)

FIGURA 5. Aspecto radiográfico de hérnia peri-hiatal (contraste esofágico). (NIHDE)

Abordagem pré-natal

Técnicas

Numa perspectiva histórica importa uma referência à obstrução da traqueia aplicada em fetos humanos, técnica denominada PLUG (Plug the Lung Until it Grows). Para isso tem-se procurado desenvolver estratégias que permitam ocluir a traqueia, utilizando-se desde clips externos (~pinças), até balões intratraqueais.

Inicialmente, dado que a PLUG provocava elevada taxa de morbilidade e mortalidade, devida a problemas resultantes da histerotomia (parto pré-termo), desenvolveu-se outra, aparentemente menos traumática, designada pela sigla FETENDO (Video-Assisted Fetal Endoscopy), a qual permitia realizar a oclusão da traqueia sem histerotomia.

Os resultados do FETENDO, no entanto, têm sido contraditórios. Enquanto a escola americana não valorizou os resultados obtidos, segundo a escola europeia a FETENDO poderá ter utilidade na abordagem dos RN com HDC.

Foi neste contexto que surgiu a necessidade de investigar estratégias farmacológicas dirigidas ao feto com o objectivo de promover o crescimento e a maturação pulmonares.

Fármacos

De acordo com a investigação experimental, a utilização de glucocorticóides baseava-se no efeito favorável quanto ao desenvolvimento e distensibilidade alveolares (compliance) e à diminuição do espessamento dos vasos pulmonares; acrescentava-se ainda o efeito de produção de surfactante com base na verificação de deficiência secundária de surfactante em modelos animais com HDC.

Na espécie humana, no entanto, os benefícios da administração pré-natal de glucocorticóides no contexto pré-natal de hérnia de Bochdalek não se confirmaram.

Quanto à vitamina A, valorizou-se o efeito indutor do crescimento pulmonar em fetos com HDC, promovendo a ramificação brônquica e dando ao pulmão embrionário um potencial de crescimento adicional nos estádios de desenvolvimento seguintes.

Contudo, a administração profiláctica de vitamina A às grávidas não é viável, pois esta vitamina e os outros retinóides têm efeito teratogénico.

Correcção cirúrgica

O primeiro caso de correcção cirúrgica pré-natal de HDC, num feto humano, foi descrito em 1990. Desde então, a técnica praticada sofreu várias modificações. Inicialmente, realizava-se uma histerotomia e reparava-se o defeito diafragmático.

Posteriormente, numa perspectiva de avaliação dos resultados, a estratégia passou a considerar dois grupos de fetos com HDC: – com liver-down (fígado abdominal); e – com liver-up (fígado torácico).

Dado que em ambas as circunstâncias, os resultados foram desastrosos, os investigadores têm continuado a estudar métodos alternativos no âmbito da terapia pré-natal.

Abordagem pós-natal

Dando ênfase à HDC (Bochdalek), importa reter as seguintes noções:

Cuidados gerais

Para o êxito do tratamento dum problema clínico complexo como a HDC torna-se obrigatório o cumprimento dum conjunto de requisitos, destacando-se:

  1. Equipa especializada multidisciplinar;
  2. UCIN num hospital com centro de cirurgia neonatal, no pressuposto de que o parto foi planeado e realizado na respectiva instituição após transferência atempada da grávida;
  3. Vigilância pré-natal adequada.

Alguns destes aspectos, da maior relevância, são analisados na Parte sobre Neonatologia.

Antigamente, a HDC era entendida como uma emergência cirúrgica, ou seja, admitia-se que a insuficiência respiratória pós-natal era secundária à compressão pulmonar pelos órgãos herniados para o hemitórax. Assim, a redução da hérnia permitiria a reexpansão pulmonar.

Estando hoje estabelecido que a principal causa de dificuldade respiratória e mortalidade pós-natal é a hipoplasia pulmonar associada a hipertensão pulmonar (HTP), a correcção cirúrgica deve ser protelada até ao momento em que for atingida estabilidade hemodinâmica e ventilatória.

Nesta perspectiva e tendo em consideração os objectivos e características deste livro, é dada ênfase ao tratamento pré-operatório.

  • Na sala de partos, a prestação de cuidados ao RN, nomeadamente a sua reanimação, deve estar a cargo da equipa de neonatologia.
    É responsabilidade desta, estabelecer as funções dos respectivos componentes com o objectivo de actuar rapidamente e com estratégia coordenada; contudo, torna-se obrigatório que todos os gestos e atitudes terapêuticas sejam providenciados com extremo cuidado e manuseamento mínimo face ao risco de os estímulos mecânicos externos agravarem a hipertensão pulmonar.
  • Após admissão na UCIN deve realizar-se ecocardiograma. (ver alínea anterior)
  • O RN deve ser entubado imediatamente após o nascimento, com um tubo orotraqueal e sonda orogástrica (8 F), assegurando-se a monitorização cardiorrespiratória. Após a colocação de acesso vascular (de preferência cateter percutâneo – epicutâneo-cava), deverá ser iniciada perfusão de soluto glicosado, com um suprimento hídrico a programar em função do balanço hídrico e da diurese; dum modo geral, até realização da intervenção cirúrgica, não deverá ser ultrapassado o suprimento de fluidos para além de 80 mL/kg/dia. Tal justifica-se pela necessidade de evitar a sobrecarga cardíaca, o edema associado à fuga de fluidos por via transcapilar e a disfunção cardíaca. (ver atrás)
    A utilização de colóides está contraindicada, nomeadamente a utilização de albumina. Exceptua-se o sangue ou seus derivados, que serão ministrados de forma a manter Hb com valor ~14 g/dL.
  • Deve proceder-se ao cateterismo da artéria umbilical para determinação de pH e gasometria sanguíneos e à colocação de dois sensores cutâneos de oxímetro de pulso, respectivamente em território pré e pós-ductal.
  • A acidose metabólica deve ser corrigida se pH < 7,2.
  • Utiliza-se dopamina ao ritmo de 3 mcg/kg/min, independentemente da pressão arterial.

Não sendo objectivo da abordagem terapêutica da hérnia de Bochdalek pormenorizar o protocolo utilizado nas UCIN, são referidos apenas os aspectos essenciais.

Ventilação mecânica

Esta tem como objectivo diminuir a HTP e/ou rendibilizar as trocas gasosas minorando simultaneamente os barotrauma, volutrauma e atelectrauma pulmonares induzidos pela ventilação artificial. É neste contexto que se têm desenvolvido técnicas de ventilação cada vez mais sofisticadas, menos invasivas, a que se faz referência em capítulo próprio. (Parte de Parinatologia/Neonatologia – Problemas respiratórios)

  • No sentido de reduzir o barotrauma, a pressão inspiratória (PIP) é cuidadosamente monitorizada, mantendo-a a < 25 cm H2O, e adopta-se estratégia de hipercápnia permissiva (PaCO2 de 45 a 60 mmHg), mantendo pH > 7,3. Salienta-se que os factores que contribuem para HTP são fundamentalmente hipóxia, acidose e hipotermia, devendo obviamente ser evitados.

De modo sucinto, salienta-se que actualmente são utilizados ventiladores de nova geração designados “com volume garantido/VG”, significando que, com moderna tecnologia de automatismo do ventilador, a PIP aumenta ou diminui de forma a manter um volume corrente aproximado do volume-alvo inicial marcado, desejável em função da situação clínica.

No caso da HDC, em RN de termo, o volume corrente inicial programado no ventilador é ~4-5 mL/kg/ciclo.

  • No pré-termo com idade gestacional ≤ 34 semanas de gestação e/ou nos casos em que o padrão radiográfico do tórax sugira imaturidade pulmonar, está indicada a administração de surfactante.
  • Deve ser evitada a utilização por rotina de morfina e vecurónio, estando estes fármacos reservados para situações particulares: i) o vecurónio poderá ser ponderado se houver dificuldade na ventilação; ii) nos RN muito reactivos está indicada a sedação com midazolam e, eventualmente, a administração de vecurónio, para o transporte para a UCIN, se a actividade motora e a agitação interferirem na ventilação.
  • Se o RN evidenciar má perfusão periférica e/ou hipotensão arterial, está indicado bolus de soro fisiológico (10 mL/kg), que poderá ser repetido uma vez, se necessário. No entanto, é fundamental evitar o excesso de volume, ajustando-se, se necessário, a perfusão de dopamina.
  • A ventilação é considerada adequada se saturação periférica de Hb-O2 pré-ductal (SpO2) > 95%, PaO2 pré-ductal > 75 mmHg e PaCO2 pós-ductal < 65 mmHg.

Nas situações de PaCO2 > 65 cm H2O, com aumento mantido, está indicado recorrer à ventilação de alta frequência (HFOV). Nos casos de HTP/hipoxémia refractária à ventilação mecânica e ao uso de surfactante, torna-se necessário recorrer a fármacos ou a técnicas ventilatórias que promovam diminuição de tal resistência.

  • Recomenda-se a utilização de dobutamina nos casos de disfunção ventricular esquerda, demonstrada por ecocardiografia, ao ritmo de 5-10 mcg/kg/min.
  • Nas situações de hipotensão associada a disfunção ventricular grave determinada por ecocardiografia, pode ser ponderada a utilização de milrinona.
  • Se se verificar hipotensão resistente aos vasopressores, ou a outras modalidades de ventilação (alta-frequência ou por per-fluido-carbonetos), deverá ser ponderada a instituição de ECMO (sistema de oxigenação por membrana e circulação extracorporal) nos centros em que esteja disponível.

Notas complementares:

    • Dada a dificuldade em controlar farmacologicamente a HTP, o tratamento ideal destina-se a prevenir o seu aparecimento e/ou agravamento; torna-se, por isso, fundamental controlar os factores desencadeantes, minorando a manipulação e procedendo a aspirações do tubo endotraqueal suaves, e apenas quando efectivamente necessárias.
    • A acidose, a hipercápnia excessiva (> 60 mmHg, admitindo-se, como foi dito, a hipercápnia permissiva ou ~45-60 mmHg) e a hipóxia devem ser identificadas e tratadas precocemente.
    • O efeito vasodilatador pulmonar do oxigénio justifica a oxigenoterapia com FiO2 elevada, até a pressão arterial pulmonar estimada por ecocardiografia atingir valor < 2/3 ao da pressão arterial sistémica.
    • Apesar de não ser consensual, nalguns centros tem sido utilizado óxido nítrico inalado (iNO) na abordagem da HTP grave. O iNO tem uma acção vasodilatadora pulmonar específica pelo aumento dos níveis de cGMP no músculo liso das artérias pulmonares, promovendo o seu relaxamento.

São critérios para iniciar terapêutica com iNO:

  • HTP grave documentada por ecocardiografia e instabilidade hemodinâmica;
  • Diferencial significativo entre SpO2 pré e pós-ductal (pós-ductal 10 pontos percentuais menor do que a pré-ductal); e
  • PaO2 pós-ductal < 100 mmHg com FiO2 100%.

Se, ao fim de 6-12 horas de terapêutica, não se verificar resposta, o iNO deve ser suspenso. Nos RN em que se verifica resposta vasodilatadora, o iNO deve ser mantido até a pressão arterial pulmonar sistólica estimada ser inferior a 2/3 da pressão arterial sistémica e, eventualmente, até à correcção cirúrgica do defeito diafragmático.

Outra opção terapêutica válida no tratamento da HTP poderá ser o sildenafil (Viagra®). Este fármaco é um inibidor da fosfodiesterase tipo 5, responsável pela degradação do cGMP, pelo que promove a vasodilatação pulmonar. Pondera-se a sua utilização na HTP grave confirmada por ecocardiografia e, muitas vezes, na fase de interrupção da terapêutica com iNO. A sua utilização na criança não está autorizada, pelo que exige sempre o consentimento esclarecido por parte dos pais.

Correcção cirúrgica

Hérnia de Bochdalek

A HDC (Bochdalek) tem sempre indicação operatória; o objectivo da intervenção cirúrgica é a redução do conteúdo herniário e a correcção do defeito anatómico diafragmático. De referir que nalguns centros (entre eles, o de JCP) está actualmente a ser aplicada a técnica correctiva do defeito, minimamente invasiva, por via laparoscópica ou toracoscópica (também padrão de ouro). A correcção cirúrgica faz-se habitualmente por laparotomia transversa ou oblíqua no hipocôndrio direito.

Recentemente, no entanto, há relatos que descrevem a abordagem minimamente invasiva laparoscópica ou toracoscópica como uma opção possível. Em Portugal, segundo Jorge Correia Pinto (Universidade do Minho, em Braga), liderando equipa pioneira, a correcção consiste na redução das vísceras herniadas para o abdómen e encerramento do defeito diafragmático com suturas não absorvíveis, sendo nalguns casos necessário recorrer ao uso de prótese.

Os critérios para a correcção cirúrgica são os seguintes:

  • Período de 24 horas de ventilação com parâmetros de FiO2 < 50%, PIP < 25 cm H2O ou MAP < 12 cm H2O (se, em HFOV);
  • Sinais de resolução da hipertensão pulmonar (gradiente pré vs pós-ductal da SpO2 < 10 mmHg, pressão pulmonar estimada e NT-proBNP a diminuirem de modo mantido);
  • Ausência de sinais de desequilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base;
  • Pressão sistémica estável; e
  • Valor de Hb > 14 g/dL.

Os peritos no âmbito do CDH-EURO-Consortium, adoptaram os seguintes critérios para a referida intervenção:

  • Pressão arterial normal para a idade gestacional;
  • SpO2 pré-ductal entre 85% e 95% com FiO2 < 50%;
  • Lactato sérico < 3 mmol/L;
  • Diurese > 2 mL/kg/hora.

De acordo com estudos de metanálise, com a aplicação da técnica minimamente invasiva por toracoscopia na própria UCIN, concluiu-se que as taxas de recorrência e o tempo operatório são superiores em comparação com a técnica cirúrgica clássica, embora as taxas de sobrevivência sejam semelhantes.

Hérnia de Morgagni

O tratamento é cirúrgico, uma vez feito o diagnóstico. A abordagem por via laparoscópica está a ser progressivamente considerada padrão de ouro.

Hérnia paresofágica (peri-hiatal)

O tratamento é cirúrgico logo que a situação seja diagnosticada. A abordagem por via laparoscópica está também a ser progressivamente considerada padrão de ouro.

Prognóstico

Aspectos gerais

Após a alta, a maioria das crianças tem um neurodesenvolvimento próximo do normal. No entanto, existe uma maior propensão para o desenvolvimento de problemas respiratórios (bronquiolite), displasia broncopulmonar, problemas neurocognitivos e sensoriais (designadamente nos doentes anteriormente submetidos a ECMO), atraso de crescimento, escoliose, pectus excavatum e doença do refluxo gastresofágico.

Nesta perspectiva, com a coordenação do médico assistente, as crianças deverão ser encaminhadas para consultas de subespecialidade em função do contexto clínico para resolução de eventuais problemas surgidos ou previstos, pelo menos, durante os dois primeiros anos de vida.

Aspectos específicos

Desde cedo se percebeu que a sobrevivência associada à cirurgia fetal não superava a obtida com o tratamento pós-natal.

Perante estes resultados desastrosos, procurou-se desenvolver métodos alternativos para o tratamento pré-natal de fetos com prognóstico reservado ou mau.

Para além das cromossomopatias e/ou de anomalias malformativas associadas, são vários os factores de prognóstico que têm sido propostos para seguimento dos fetos com HDC: a presença do fígado no tórax, a razão área pulmonar-área transversa do tórax pequena, a presença do estômago no tórax, a diminuição dos componentes do surfactante no líquido amniótico, o lado e o tamanho do defeito, a hipoplasia da cavidade abdominal, a hipoplasia ventricular esquerda, a impedância da artéria pulmonar esquerda, a razão do tempo de aceleração/tempo de ejecção do VD, a diminuição do espaço morto e aumento da distensibilidade (compliance) dinâmica, mães com índice de massa corporal pré-concepcional igual ou menor que 19, e a idade materna (mulheres com 38 ou mais anos). Contudo, muitos destes índices não têm sido universalmente aceites.

De acordo com os resultados de estudos com grandes séries, os factores de prognóstico mais relevantes são: a posição do lobo hepático esquerdo, a avaliação ecográfica da razão entre a área pulmonar direita e o perímetro cefálico (LHR – right lung area to head circumference ratio), a idade gestacional aquando do diagnóstico pré-natal, coexistência de poli-hidrâmnio e o desvio acentuado do mediastino.

De um modo genérico, apontam-se os seguintes valores: a ausência de herniação hepática permite prever um bom prognóstico, com 93% de sobrevivência, enquanto a herniação hepática está associada apenas a 43% de sobrevivência.

A importância destes índices de prognóstico reside no facto de se poder estratificar com certa confiabilidade o prognóstico dos fetos com diagnóstico de HDC, de forma a seleccionar aqueles cujo prognóstico, com o tratamento pós-natal existente na actualidade, é previsivelmente insatisfatório.

Assim, é para este grupo de fetos que o tratamento antenatal surge como uma esperança e um estímulo para a investigação. Como perspectivas futuras, a terapia génica in utero (transferência de determinados genes para o feto), tendo como alvo preferencial o pulmão em desenvolvimento.

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Definição e importância do problema

A eventração diafragmática consiste numa elevação marcada do diafragma, uni ou bilateral, susceptível de originar respiração paradoxal. Esta alteração, mais frequente no lado esquerdo, pode ser congénita ou adquirida. (Figura 1)

Na forma congénita, o diafragma tem menor espessura por hipodesenvolvimento da componente muscular e maior desenvolvimento do tecido fibroso. Pode igualmente resultar de anormal desenvolvimento dos nervos frénicos. Não existindo em geral associação a hipoplasia pulmonar, a mesma poderá verificar-se relativamente a cardiopatia congénita, trissomias e sequestração pulmonar.

A forma adquirida poderá resultar de lesão iatrogénica do nervo frénico associada a intervenção cirúrgica, ou a lesão traumática do mesmo nervo relacionável com o parto distócico.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas integram essencialmente um quadro de dificuldade respiratória (taquipneia, retracção costal, cianose) de gravidade variável, menos exuberante do que na hérnia diafragmática póstero-lateral (de Bochdalek).

Existem formas clínicas assintomáticas e ainda formas reconhecidas por pneumonia recorrente em relação com o compromisso ventilatório verificado no pulmão do lado diafragmático afectado.

O exame físico poderá identificar hipomobilidade do hemitórax do lado afectado e, por radioscopia, o chamado movimento paradoxal da porção

afectada do diafragma: elevação na inspiração e abaixamento na expiração (ao contrário da normalidade). (Figura 2)

Tratamento

Nos casos assintomáticos o tratamento é conservador; nos casos sintomáticos poderá haver necessidade de assistência ventilatória. Nas formas graves está indicada a intervenção cirúrgica (plicatura).

FIGURA 1. Eventração diafragmática em esquema: secção parassagital direita.

FIGURA 2. Radiograma PA do tórax em RN: aspecto de eventração congénita diafragmática; elevação do fígado e cúpula direita (forma unilateral). (URN-HDE)

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Definição e importância do problema

A atrésia do esófago (AE) é uma anomalia congénita que consiste na interrupção da continuidade do esófago; na maioria dos casos (cerca de 85%-90% conforme as estatísticas) existe trajecto permeável entre a traqueia e o coto esofágico distal, estabelecendo-se, por isso, uma comunicação entre o aparelho digestivo e o aparelho respiratório.

A incidência da AE oscila entre 1/3.000 e 1/8.000 nascimentos com uma relação de 1,5/1 entre sexo masculino e sexo feminino. Trata-se da anomalia congénita do esófago mais frequente.

Etiopatogénese

Durante a embriogénese (por volta da 5ª semana de gestação), a partir do chamado tubo intestinal faríngeo (intestino primitivo), forma-se um divertículo ventral em “dedo de luva”, o qual origina a traqueia. Ulteriormente forma-se um septo que divide o tubo intestinal primitivo numa porção ventral – o tubo laringotraqueal – e, numa porção dorsal – o esófago.

A atrésia do esófago é precisamente a consequência de um desvio posterior do septo tráqueo-esofágico, sendo que o referido desvio provoca uma separação incompleta entre o esófago e o tubo laringotraqueal, surgindo, na maioria das vezes, uma comunicação (fístula) entre o esófago e a traqueia. A ocorrência de AE sem fístula é rara, sendo atribuída esta situação a não recanalização do esófago por volta da 8ª semana de gestação.

Classificação e aspectos epidemiológicos

Entre 1984 e 1993 (9 anos) foram hospitalizados na UCIN do Hospital Dona Estefânia-Lisboa, 2645 RN; esta amostra inclui 59 crianças com o diagnóstico de atrésia do esófago (AE) – (2,2% dos doentes).  

A classificação dos diversos tipos de AE decorre da verificação ou não de fístula e da respectiva localização.

Na referida amostra foram obtidos os seguintes dados: o tipo mais frequente (76,1% dos casos) é o que evidencia um coto proximal em fundo cego associado a fístula tráqueo-esofágica (FTE) distal; em geral a fístula comunica com a traqueia junto à carina; o segundo tipo mais frequente (13,1%) corresponde à forma de AE sem fístula; a seguir, surgem a fístula tráqueo-esofágica sem atrésia ou fístula em H (4,3%), a AE com fístula tráqueo-esofágica proximal (4,3%) e AE com dupla fístula (2%). (Figura 1)

FIGURA 1. Representação esquemática e prevalência da atrésia do esófago e defeitos tráqueo-esofágicos.

Anomalias associadas

Em cerca de 50% dos casos de AE existem outras anomalias associadas, em geral da linha média. Os defeitos cardíacos são os mais frequentemente encontrados; outros incluem: defeitos músculo-esqueléticos, do tracto urinário, digestivo, etc..

Cabe salientar, a propósito, a entidade clínica conhecida por associação VATER/VACTERL (sigla da língua inglesa que traduz a ocorrência associada das seguintes anomalias: V (vertebral), A (ano-rectal), C (cardíaca), TE (tráqueo-esofágica), R (renal), L (limb ou membro). Refira-se que a forma de AE sem fístula é a que mais frequentemente surge com anomalias associadas; situação contrária se verifica em relação à forma com fístula em H isolada.

Apesar da baixa incidência de casos familiares, está provado que os factores genéticos (mutações em genes, <> →) poderão desempenhar papel significante em determinadas síndromas integrando AE; é o que acontece com a síndroma de Feingold (→ N-MYC), a associação CHARGE (→ CHD7), e a síndroma anoftalmia-esófago-genital (→ SOX2).

Manifestações clínicas e diagnóstico

O diagnóstico provável de AE pode ser eventualmente realizado, já no período pré-natal, por meio de ecografia morfológica obstétrica evidenciando sinais de poli-hidrâmnio, de ausência de “bolha” gástrica e de distensão do topo esofágico superior (bolsão esofágico cervical).

No período pós-natal, a suspeita de AE é fundamentada pela verificação de um conjunto de sinais, mais valorizáveis se existirem os antecedentes pré-natais aludidos: sialorreia abundante com secreções “com bolhas de ar”, impossibilidade de deglutição, com ou sem dificuldade respiratória (cianose, retracção costal, cianose, etc.); de salientar que os sinais poderão regredir parcialmente após aspiração de secreções, recorrendo depois, por acumulação de saliva não deglutida, a qual provoca obstrução das vias respiratórias superiores.

Se existir fístula pode verificar-se aumento de volume abdominal nos quadrantes superiores explicável pela dilatação gástrica por acumulação de ar proveniente da via respiratória; nas situações não acompanhadas de fístula, pelo contrário, pode observar-se certo grau de depressão epigástrica.

Nos casos em que o diagnóstico não é realizado no período pós-parto imediato (hoje em dia, situação rara uma vez que a pesquisa de permeabilidade esofágica faz parte dos procedimentos sistemáticos do primeiro exame físico do recém-nascido em muitas maternidades), o quadro clínico de apresentação pode ser o de infecção respiratória relacionável com aspiração para a via aérea de saliva colectada no coto proximal e com refluxo gastresofágico provocado pelo volume gástrico, favorecido pela fístula tráqueo-esofágica.

Nos casos de fístula em H isolada (fístula tráqueo-esofágica sem atrésia do esófago), o diagnóstico poderá ser feito mais tardiamente, sobretudo quando aquela é longa e tem posição oblíqua.

O procedimento a realizar em casos de suspeita de atrésia do esófago (ou como atitude sistemática no âmbito do primeiro exame físico do recém-nascido) consiste em introduzir sonda oro ou nasogástrica nº 8 ou 10. Se a sonda chegar ao estômago em situação de esófago permeável, o líquido aspirado (gástrico, com pH ácido), em contacto com papel azul de tornesol, promove a viragem de cor deste para azul.

Nos casos em que se verifica resistência na progressão da sonda, existindo atrésia, a mesma dobra-se ou enrola-se em U, formando uma ansa que poderá ser evidenciada em radiografia tóraco-abdominal simples se for radiopaca (Figuras 2 e 3). Na radiografia, caso não exista FTE, não se verifica sinal de ar abdominal (em negativo, aspecto de abdómen “branco”).

Persistindo a suspeita diagnóstica deve proceder-se a radiografia simples do tórax e abdómen em posição póstero-anterior e em perfil com o doente em posição vertical, tanto quanto possível; a verificação de sinais de ar infradiafragmático leva à conclusão de que existe fístula tráqueo-esofágica, podendo ser igualmente conclusiva quanto à eventualidade de existirem anomalias do tracto digestivo associadas (tais como atrésia duodenal com o sinal da “dupla bolha”), cardíacas (por exemplo arco aórtico à direita), vertebrais, das costelas, sinais de pneumonia, etc.).

FIGURA 2. Imagem radiográfica tóraco-abdominal com visualização de sinais de ar infradiafragmático testemunhando comunicação tracto respiratório-digestivo.

FIGURA 3. Imagem radiográfica de sonda em U.

Nesta mesma radiografia tóraco-abdominal simples poderá comprovar-se a posição da sonda radiopaca enrolada em U atrás referida, (em geral entre as vértebras C7 e D3), o que tem implicações práticas para o cirurgião.

Até há cerca de 3 décadas, procedia-se à introdução, pela sonda, de meio de contraste radiopaco (hoje abandonado pelo risco de aspiração para a via respiratória); este procedimento permitia visualizar com precisão o fundo de saco cego do coto proximal do esófago.

Tratamento

Medidas gerais

A AE, é uma situação que deverá ser assistida em centro especializado do nível mais elevado de diferenciação, com possibilidade de terapia intensiva.

Tratando-se duma anomalia incompatível com a vida se não for corrigida, tem sempre indicação operatória. Porém, o procedimento operatório não constitui uma emergência cirúrgica; com efeito, para além de ser indispensável que o doente chegue ao bloco operatório em situação de estabilização hemodinâmica, a probabilidade de anomalias associadas implica a realização prévia de um conjunto de estudos diagnósticos complementares (por exemplo estudo ecográfico cardíaco, nefro-urológico) para detecção da patologia de que se suspeita; entretanto, poderá ser submetido a ventilação mecânica e nutrição parentérica.

Exemplificando, se concomitantemente ocorrerem outros problemas clínicos que exijam solução prioritária como problemas respiratórios graves, anomalias cardíacas ou do tracto urinário, a intervenção cirúrgica esófagica será diferida de modo electivo e controlado.

As medidas gerais dizem respeito, essencialmente, à aspiração de secreções, fluidoterapia endovenosa para garantia de equilíbrio hídro-electrolítico e ácido-base, nutrição parentérica, manutenção de oxigenação adequada e eventual assistência ventilatória. A antibioticoterapia empírica inicial constitui outro aspecto das medidas gerais cujo esquema depende do contexto clínico individualizado.

Nalguns casos poderá estar indicada gastrostomia prévia para evitar refluxo e garantia de melhores condições operatórias.

Tratamento cirúrgico

A correcção cirúrgica da AE consiste fundamentalmente numa abordagem por toracotomia lateral pelo 4º ou 5º espaço intercostal direito (esquerdo se existir arco aórtico à direita), acesso ao mediastino posterior por via extrapleural, laqueação da crossa da veia de ázigos, laqueação selectiva da fístula tráqueo-esofágica e esófago-esofagostomia término-terminal.

Actualmente, nalguns centros (designadamente no Hospital de Braga/ por um de nós – JCP) está a ser utilizada a técnica por via toracoscópica, com bons resultados a curto e longo prazo.

Complicações pós-operatórias

As complicações associadas a esta técnica cirúrgica prendem-se com a segurança da laqueação da fístula tráqueo-esofágica e a possibilidade de realização de esófago-esofagostomia término-terminal sem tensão.

A deiscência parcial da anastomose esofágica e a estenose no local da anastomose são complicações que podem ocorrer entre 5% e 15% dos casos, sendo que, na maior parte destes, a respectiva resolução é possível com terapêutica conservadora.

Nos casos em que existe deiscência total da anastomose esofágica ou refistulização tráqueo-esofágica, é necessário realizar uma revisão cirúrgica da complicação, com correcção da refistulização tráqueo-esofágica e reanastomose esofágica directa ou, optar por construir uma derivação esofágica cervical com gastrostomia descompressiva temporária. Posteriormente, será necessário reconstruir o segmento esofágico por meio de reanastomose directa ou por cirurgia substitutiva esofágica com estômago ou segmento intestinal ileal ou cólico.

Seguimento

O seguimento pós-operatório destes doentes é de extrema importância devido à prevalência de traqueomalácia e de refluxo gastresofágico (RGE) acompanhantes.

A traqueomalácia deve-se à própria natureza embrionária da lesão como já foi referido anteriormente. O RGE é originado pelo invariável encurtamento esofágico obtido após a anastomose, e também pelos mecanismos anti-refluxo deficitários tais como o alargamento do ângulo de His, incompetência do cárdia e peristaltismo pós-anastomótico ineficaz.

O seguimento relacionado com o impacte no sistema respiratório deverá incluir uma vigilância rigorosa de episódios de estridor laríngeo e traqueal (devido, sobretudo à traqueomalácia) e de dificuldade respiratória (devido essencialmente a RGE grave com risco de aspiração com desencadeamento de quadros de pneumonite de repetição e de hipoxémia). Uma das complicações é a doença do refluxo gastresofágico.

Quanto ao sistema digestivo, está indicada a endoscopia digestiva alta, a realizar depois da terceira semana pós-operatória, para detecção de esofagite e de estenose anastomótica com eventual necessidade de dilatação. Para além do RGE, é habitual o atraso do esvaziamento gástrico.

Importa igualmente especial atenção para a possibilidade de deformidades da grelha costal e da coluna tóraco-lombar associadas aos antecedentes de toracotomia para correcção cirúrgica.

Prognóstico

O prognóstico da AE pode ser classicamente definido em três patamares ou classes, segundo os Critérios de Spitz. De acordo com este autor, as classes prognósticas valorizam o peso de nascimento e a presença de anomalia cardíaca como os factores preponderantes para o prognóstico final dos RN portadores de AE.

Assim, os RN com peso < 1.500 gramas e anomalia cardíaca têm o pior prognóstico, com 22% de sobrevivência. Pelo contrário, os RN com peso de nascimento > 1.500 gramas e sem anomalia cardíaca têm o melhor prognóstico, com cerca de 97% de sobrevivência. Actualmente, na unidade de cuidados intensivos neonatais do Hospital Dona Estefânia a sobrevivência global é > 90%, dado comparável ao divulgado por outros centros europeus e americanos.

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Definição e importância do problema

A onfalocele (sinónimo de exônfalo) é uma anomalia congénita na linha média da parede anterior do abdómen, caracterizada pelo alargamento do orifício umbilical e pela protusão, através do próprio defeito da parede (anel umbilical), de conteúdo intrabdominal, recoberto por saco ou película peritoneal (peritoneu e membrana amniótica), sem pele suprajacente. O cordão umbilical insere-se neste saco. O conteúdo intrabdominal pode ser constituído por vísceras maciças como o fígado, ou ocas, como estômago ou ansas intestinais. (Figura 1)

Considerando o diâmetro do orifício, a onfalocele classifica-se de major, se aquele for superior a 4 cm, e minor, se for inferior a tal valor.

A sua incidência é cerca de 1/3.000 a 1/10.000 nascimentos, sem predomínio de sexos.

Tratando-se de um erro da morfogénese, a onfalocele, ao contrário da gastrosquise (Capítulo 337), está mais frequentemente associada a outras anomalias congénitas (sobretudo na modalidade major: ~ 30-40%).

FIGURA 1. Aspecto de onfalocele com saco intacto. (URN-HDE)

Anomalias associadas

Estas anomalias associadas são de natureza muito lata abrangendo, desde alterações do tubo neural, a anomalias crânio-faciais, a atrésia intestinal, defeitos do diafragma, cardíacos e do aparelho génito-urinário. A má-rotação intestinal está, por definição, sempre presente.

A verificação de alterações graves da morfogénese dos sómitos laterais abdominais, pode concorrer para o surgimento de dois tipos de defeitos: por um lado, a onfalocele epigástrica, associada a hérnia diafragmática anterior, fenda esternal e anomalia cardíaca; e, por outro, a onfalocele hipogástrica, associada a extrofia da bexiga ou a fissura vésico-intestinal ou extrofia da cloaca.

Citam-se a seguir outros tipos de defeitos que costumam acompanhar a onfalocele: anomalias cromossómicas como trissomias 13, 18 e 21, síndroma de Beckwith-Wiedemann (macroglossia, gigantismo, hipoglicémia por hiperinsulinismo, microcefalia e nevus flameus congénito), e pentalogia de Cantrell (ectopia cordis, hérnia diafragmática, defeitos cardíacos, defeitos esternais e pericárdicos).

Manifestações clínicas e diagnóstico

No período pré-natal o diagnóstico de onfalocele pode ser obtido nos exames ecográficos endovaginais a partir das 10 semanas de gestação (diagnóstico pré-natal). A imagem de ausência de encerramento do orifício umbilical e a presença de exteriorização de ansas intestinais contidas num saco peritoneal é muito sugestiva.

Nos casos de ruptura do saco, observa-se o conteúdo abdominal flutuando na cavidade amniótica, tal como se verifica na gastrosquise (ver adiante); no entanto, no caso da onfalocele rota, o fígado pode estar exposto. O saco pode romper-se também durante ou após o parto.

Em função do contexto clínico, poderá realizar-se amniocentese para realização de cariótipo. A análise do líquido amniótico, tratando-se de onfalocele evidenciará valores normais de acetilcolinesterase, ao contrário do que acontece em situações de gastrosquise em que existe elevação de tal marcador biológico. De referir também que em 90% dos casos de onfalocele existe elevação dos valores de alfa-fetoproteína no soro materno.

Após o nascimento, o diagnóstico é óbvio: procidência (de grandes dimensões na modalidade major), em forma de saco esferóide de parede brilhante e transparente permitindo visualizar as vísceras, salientando-se que a cavidade abdominal aparenta ser de menores dimensões por conter menos vísceras.

Pelas razões apontadas, a entidade onfalocele, uma vez confirmada no RN, obriga à detecção doutras anomalias acompanhantes, nomeadamente cardíacas, independentemente de eventual estudo com tal objectivo realizado durante a gestação. Deverá ser realizado igualmente estudo citogenético na tentativa de detectar anomalias cromossómicas, ou identificar loci patológicos específicos. Esta metodologia deve ser levada a cabo após o nascimento nos casos em que não se tenha procedido ao estudo citogenético pré-natal por análise do líquido amniótico ou do sangue fetal.

Tratamento

Tratando-se duma situação clínica com indicação cirúrgica, importará abordar em primeiro lugar um conjunto de cuidados da responsabilidade da equipa de pediatria neonatal/perinatal, iniciados no bloco de partos e continuados na UCIN. Pressupõe-se que a criança nasce no hospital/maternidade dotado de equipa cirúrgica e UCIN, e que o diagnóstico pré-natal da situação determinou o transporte in utero. O transporte do bloco de partos à UCIN deve ser realizado em incubadora de transporte.

Os referidos cuidados, em ambiente de assépsia, têm como objectivo essencial promover a estabilização pré-operatória, com especial realce para a prevenção da hipotermia e da hipovolémia, garantindo função ventilatória eficaz, e evitando a infecção. Dependendo da clínica e dos resultados dos exames laboratoriais, poderá haver indicação para ventilação mecânica, mais provavelmente nos casos major.

No pós-parto imediato, na criança colocada em decúbito lateral, são realizados os seguintes procedimentos:

  • Aplicação de sonda nasogástrica (para drenagem do conteúdo gastrintestinal, facilitando a função respiratória) e de sonda de enteróclise (para diminuir a distensão abdominal);
  • Venoclise para fluidoterapia (para garantir o equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base);
  • Detecção de anomalias associadas;
  • Prevenção e detecção de hipoglicémia e correcção da mesma, caso se verifique;
  • Antibioticoterapia profiláctica com ampicilina e gentamicina.

Quanto a cuidados locais:

  • Na onfalocele rota: aplicação de compressas esterilizadas molhadas em soro fisiológico aquecido, por sua vez envolvendo as vísceras com compressas num saco de plástico esterilizado, ou de celofane esterilizado; não é aplicado qualquer desinfectante tópico (procedimento igual ao aplicado à gastrosquise;
  • Na onfalocele intacta: os cuidados são os mesmos que se aplicam ao coto do cordão umbilical normal, caso esteja prevista a cirurgia a curto prazo; se a cirurgia correctiva não for possível a curto prazo, promove-se a epitelização do cordão herniado com aplicação de solução alcoólica iodada.

Sempre que possível, dá-se preferência à modalidade de tratamento cirúrgico designada por encerramento primário da parede abdominal (desde que o mesmo não provoque elevação excessiva da pressão intrabdominal), utilizando várias técnicas cuja descrição ultrapassa o âmbito deste livro.

Nos casos de saco roto, a intervenção é considerada urgente; e electiva (nas primeiras 24 horas, uma vez garantida a estabilização hemodinâmica) em situação inversa.

Se o defeito não permitir, pela sua dimensão, o encerramento primário, deverá ser realizada a contenção do conteúdo da onfalocele por meio de um saco de polímero de silastic (designado, na gíria cirúrgica como silo), promovendo o encerramento ulterior (diferido, por fases – técnica de Schuster). Também poderão ser utilizados agentes escarificantes ou pensos biológicos até haver possibilidade de realizar com segurança a reintrodução do referido conteúdo, e de corrigir o defeito da parede abdominal, sem tensão pronunciada.

O encerramento forçado da parede não deverá ser tentado pelo risco de compressão da veia cava inferior (diminuição do retorno venoso, do débito cardíaco, hipotensão), de compressão da emergência das artérias renais (comprometendo a perfusão parenquimatosa renal, originando oligúria), e do aumento da pressão intrabdominal (comprometendo a motilidade diafragmática); trata-se da chamada síndroma compartimental que importa prevenir. Por outro lado, o encerramento sob extrema tensão pode originar deiscência da sutura da parede abdominal ou compromisso isquémico da ansa intestinal subjacente.

Complicações pós-operatórias

As complicações pós-operatórias são decorrentes de aumento de pressão intrabdominal associadas ao encerramento primário forçado (já descritas anteriormente), ou decorrentes de complicações sépticas locais associadas à utilização de materiais heterólogos para o encerramento primário ou secundário por fases de onfaloceles muito volumosas.

Em ambos os casos, é necessário efectuar uma revisão cirúrgica da situação com extracção do material heterólogo infectado ou promover a diminuição da pressão intrabdominal. O internamento poderá durar > 3 meses.

Seguimento

O período pós-operatório não é, em geral, problemático. Na ausência doutras anomalias ou de complicações cirúrgicas a evolução clínica é rápida e não acidentada.

O seguimento pós-operatório a médio ou longo prazo, não coloca problemas ao pediatra, uma vez que não há compromisso da permeabilidade do tracto digestivo, salientando-se que o início e a progressão da diversificação alimentar decorrem, em geral, sem problemas.

Prognóstico

O prognóstico destes doentes depende directamente da existência de anomalias associadas, nomeadamente cardíacas, assim como das complicações resultantes de infecção, oclusão, isquémia e perfuração intestinais. A longo prazo, pela repercussão anátomo-funcional (sequelas) no tubo digestivo, poderá surgir quadro de oclusão intestinal. A taxa de sobrevivência varia entre 75-80%.

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GASTROSQUISE

Definição e importância do problema

A gastrosquise é uma anomalia congénita da parede anterior do abdómen caracterizada por:

  • Ausência do encerramento da parede abdominal atingindo todas as camadas (fáscia-músculo-pele), na maioria das vezes à direita da inserção (normal) do cordão umbilical; e
  • Exteriorização, por esse defeito, da parede (que varia entre 0,5 e 3 cm), de conteúdo intrabdominal.

O conteúdo intrabdominal é constituído por vísceras ocas como estômago ou ansas intestinais, não cobertas por peritoneu ou membrana amniótica (ao contrário da onfalocele).

A incidência deste defeito é cerca de 1/5.000 a 1/10.000 nascimentos não se verificando predomínio de sexos. Actualmente, de acordo com estudos de várias séries internacionais, existe uma tendência de aumento progressivo da frequência desta anomalia; as razões deste facto são desconhecidas.

Etiopatogénese e anomalias associadas

A gastrosquise (surgindo, como regra, isoladamente, ao contrário da onfalocele) é de etiologia desconhecida. De acordo com alguns estudos epidemiológicos, especula-se sobre a acção teratogénica de certas substâncias, designadamente da cocaína.

Igualmente se tem demonstrado o efeito nocivo do líquido amniótico em contacto directo com as ansas intestinais, o que é relacionado com a acção de citocinas e mediadores pró-inflamatórios como a IL-6 e IL-8. Tal efeito, intensificado proporcionalmente à duração da gestação, e mais agressivo se o líquido amniótico contiver mecónio eliminado in utero, tem sido demonstrado ao nível do plexo nervoso mientérico e das células de Cajal.

A alteração da integridade da parede abdominal poderá ser decorrente de uma regressão prematura de uma das duas artérias onfalomesentéricas. Esta regressão vascular poderá ser responsável por alterações isquémicas da parede abdominal contribuindo para o defeito morfológico fáscio-músculo-cutâneo. Alguns investigadores não distinguem a patogénese da gastrosquise da da onfalocele. Assim, a gastrosquise poderia ser originada pela ruptura do saco peritoneal que recobre as ansas intestinais.

Após o nascimento verifica-se que as ansas intestinais, pelo contacto prolongado com o líquido amniótico, estão aderentes entre si, com consistência superior ao habitual, o que é explicável pela existência de exsudado gelatinoso que as recobre como pequena “carapaça” ou peel. Este fenómeno pode originar inflamação no peritoneu (peritonite meconial), edema da parede intestinal, formação duma película de fibrose assim como compressão das artérias mesentéricas e das fibras nervosas entéricas, sendo que o próprio orifício para-umbilical poderá também ter efeito compressivo sobre os vasos; como consequências, poderão surgir:

  • Ulterior desenvolvimento de volvo, estenose, atrésia e encurtamento intestinais por necrose isquémica extensa;
  • Dismotilidade intestinal;
  • Dificuldade na reintrodução das ansas na cavidade abdominal.

Torna-se, assim, fácil compreender as anomalias anatómicas e funcionais, sobretudo do foro digestivo que poderão acompanhar a gastrosquise, numa proporção ~10%. A má-rotação intestinal está, por definição, sempre presente na gastrosquise.

Manifestações clínicas e diagnóstico

O diagnóstico pré-natal da gastrosquise pode ser obtido nos exames ecográficos realizados após a 12-14ª semana de gestação. A imagem de exteriorização amniótica de ansas intestinais por meio de um defeito para-umbilical, não contidas num saco peritoneal é muito sugestiva; de referir que a probabilidade de diagnóstico ecográfico pré-natal de defeitos da parede abdominal, designadamente no que se refere à gastrosquise, oscila entre 57 e 95%. Em função do contexto clínico, poderá estar indicado estudo citogenético pré-natal no líquido amniótico e/ou no sangue do cordão. (Figura 1)

O soro materno em situações de gastrosquise no período pré-natal evidencia em 100% dos casos valores séricos elevados de alfa-fetoproteína. A acetil colinesterase no líquido amniótico tem também valores elevados, ao contrário do que acontece na onfalocele.

A evidência ecográfica pré-natal de gastrosquise implica necessariamente a detecção doutras anomalias acompanhantes, nomeadamente cardíacas, embora estas sejam raras, ao contrário da onfalocele.

FIGURA 1. Gastrosquise (vísceras exteriorizadas sem saco) (Arq. JMVA, 1976).

O estudo ecográfico deverá incidir especialmente sobre a caracterização das ansas intestinais no que respeita ao espessamento da parede e permeabilidade do lume, aspectos que têm valor prognóstico quanto à evolução a curto, médio e longo prazo. Deverá igualmente ser realizado por amniocentese o estudo citogenético, designadamente para detecção de cromossomopatias associadas e/ou identificação de loci patológicos específicos.

Não está provado que o parto programado por via alta tenha vantagens relativamente ao parto vaginal.

No RN o diagnóstico é óbvio; contudo, deve inspeccionar-se cuidadosamente o orifício umbilical, dada a eventualidade de diagnóstico diferencial com onfalocele rota in utero (e no pressuposto de não se ter realizado ecografia pré-natal).

Sob o ponto de vista da prática clínica, a gastrosquise é habitualmente classificada utilizando uma escala de gravidade e de estratificação de risco (escala de Le Fort pontuando situações de I a IV). Com efeito, esta escala não se relaciona tanto com o diâmetro do orifício, mas com o estado de vitalidade e função global das ansas intestinais no que respeita a serosite, edema da parede, presença de atrésia e encurtamento intestinal por necrose extensa de ansa. Estes aspectos patológicos estão associados à exposição amniótica e urinária e às lesões isquémicas do intestino que podem ser originadas pela compressão vascular – mesentérica do orifício para-umbilical. (ver atrás)

A detecção de anomalias associadas deverá ser ponderada em função do contexto clínico.

Tratamento

Quanto à gastrosquise aplicam-se os mesmos princípios gerais, designadamente quanto a local do parto e cuidados pré-operatórios. Dados os efeitos lesivos do líquido amniótico e do mecónio eliminado in utero, em contacto permanente com as ansas fetais, efeitos que aumentarão com a idade gestacional, discute-se hoje sobre a decisão de antecipar o parto (segundo alguns para as 36-37 semanas) tendo em vista minorar os referidos efeitos atrás descritos.

No pós-parto imediato, a criança deve ser (também) colocada em decúbito lateral para evitar a angulação dos vasos do mesentério.

Na UCIN do Hospital de Dona Estefânia, o procedimento é o seguinte: as vísceras exteriorizadas são envolvidas com compressas esterilizadas molhadas em soro fisiológico aquecido, envolvendo-se depois aquelas num saco de plástico esterilizado ou em celofane esterilizado. Não se aplica qualquer desinfectante tópico.

O objectivo do tratamento cirúrgico da gastrosquise é a reintrodução das ansas intestinais e o encerramento primário da parede abdominal utilizando diversas técnicas que ultrapassam o âmbito deste livro.

Nos casos em que não é possível realizar o encerramento primário, pela presença de gastrosquise muito volumosa ou pelo endurecimento seroso das ansas intestinais, deverá ser proposta a contenção das ansas intestinais por meio de um saco de polímero de silastic, suturado à orla do orifício para-umbilical. Este método promove a restituição das ansas para a cavidade peritoneal por fases, com encerramento definitivo diferido.

O encerramento forçado da parede não deverá ser tentado pelos riscos apontados a propósito da onfalocele. Como particularidade relativamente à gastrosquise, cabe salientar que o encerramento sob extrema tensão, com ansas intestinais de parede edemaciada e pouco dúctil, poderá originar deiscência da sutura abdominal ou compromisso isquémico da ansa intestinal subjacente por compressão mesentérica.

Complicações pós-operatórias

As complicações pós-operatórias são decorrentes de aumento de pressão intrabdominal associadas ao encerramento primário forçado (já descritas anteriormente), ou decorrentes de complicações sépticas locais associadas à utilização de materiais heterólogos para o encerramento primário, ou secundário por fases.

É frequente verificar-se no período pós-operatório, face às alterações mecânicas, bioquímicas e neuroentéricas das ansas intestinais, um período de adaptação intestinal longo e difícil aos nutrientes por via entérica. A dependência da nutrição parentérica poderá ser prolongada, nomeadamente nos casos em que coexiste atrésia segmentar ou necrose isquémica extensa, conducente a encurtamento intestinal, com desenvolvimento de síndroma de intestino curto.

Devido à serosite parietal, poderão ocorrer com alguma frequência, quadros suboclusivos por aderências ou bridas. Estas manifestações, quando não têm resolução clínica conservadora, podem implicar terapêutica cirúrgica para excisão de bridas e aderências.

Prognóstico

O prognóstico depende fundamentalmente da existência de lesões e dismotilidade intestinais relacionadas com a eliminação de mecónio in utero, e de complicações graves de tipo mecânico, metabólico e neuroentérico. Nesta perspectiva realçam-se a síndroma de intestino curto e as complicações associadas ao cateterismo central de longa duração. A sobrevivência é actualmente cerca de 95%.

A presença de defeitos gastrintestinais associados, a prematuridade e a necessidade de introdução mais tardia da alimentação entérica por disfunção intestinal constituem factores de risco e de agravamento do prognóstico.

OUTROS DEFEITOS DA PAREDE ABDOMINAL

Aplasia da musculatura abdominal (Síndroma de Eagle Barrett)

Faz-se uma referência breve a esta síndroma rara (com uma incidência de cerca de 1/40.000 recém-nascidos), também chamada síndroma “prune belly” (aspecto de “barriga” em passa de ameixa ou de abrunho).

Trata-se da associação de aplasia da musculatura abdominal (determinando que o abdómen seja flácido e alargado para os lados, e a respectiva pele fique “engelhada”, com pregas ou ondulada), distopia testicular, e anomalias do tracto urinário relacionáveis com obstrução da uretra no período fetal: megabexiga, mega uréter, hidronefrose e graus diversos de displasia renal. Oligoâmnio e hipoplasia pulmonar constituem complicações frequentes no período perinatal. As costelas inferiores podem fazer saliência para fora, comprometendo a dinâmica respiratória, o que predispõe a infecções. As anomalias do úraco podem também fazer parte desta síndroma.

Em cerca de 10% dos casos verifica-se associação, também, a defeitos cardíacos e em 50% a anomalias do sistema músculo-esquelético. Na maioria dos casos (mais de 95%) os doentes são do sexo masculino.

Uma vez diagnosticada obstrução do uréter ou uretra, estão indicados procedimentos de drenagem emergente (vesicostomia ou pielostomia) para preservação da função renal, os quais são mantidos até à idade da intervenção cirúrgica reconstrutiva. O prognóstico depende do grau de hipoplasia pulmonar e de displasia renal. Em casos seleccionados poderá estar indicada transplantação renal.

Ectopia cardíaca (Ectopia cordis)

Esta anomalia rara traduz-se por “tumor” pulsátil situado entre o apêndice xifoideu, que é curto, e o umbigo. No sentido anatomofisiológico, a saliência pulsátil é uma hérnia cujo saco é formado pelo pericárdio. Poderá haver associação a defeitos cardíacos septais.

Úraco patente

A esta situação clínica foi feita referência no capítulo sobre Alterações da Bexiga. Recorda-se, a propósito, que úraco é a parte superior da alantoideia que se dirige para o umbigo; no embrião humano transforma-se precocemente num cordão fibroso que se estende como ligamento da bexiga ao umbigo. Excepcionalmente, essa estrutura inicialmente canalicular não se transforma em estrutura fibrosa, permitindo que, através do umbigo, seja eliminada urina; é o úraco patente. Por vezes formam-se dilatações quísticas no seu trajecto; são os quistos do úraco.

O úraco patente pode estar associado a divertículos da bexiga.

    1. Fístula completa do canal vitelino
    2. Divertículo de Meckel com filum terminale (banda filamentosa) entre o íleo e o umbigo
    3. Divertículo de Meckel
    4. Filum terminale
    5. Quisto forrado por mucosa no trajecto do filum terminale
    6. Quisto de Roser (subumbilical intraparietal)
    7. Fístula incompleta do canal vitelino
    8. Pólipo umbilical (eversão de fístula incompleta)

FIGURA 2. Defeitos relacionados com remanescências do canal onfalomesentérico.

Canal onfalomesentérico (ou vitelino) vestigial

Os vestígios do canal onfalomesentérico (estrutura que liga, entre a 5ª e 7ª semana de vida intra-uterina, o saco vitelino ao intestino primitivo, podem ter expressão clínica diversa ao nível da parede abdominal (Figura 2): canal patente simile fístula ligando o umbigo ao intestino delgado; corda fibrosa ligando a face interna da região umbilical ao intestino, provocando depressão ou fosseta ao nível do umbigo por retracção deste; pequeno pólipo no umbigo (cuja superfície é constituída por mucosa intestinal) associado a corda fibrosa anteriormente descrita; pequeno quisto forrado internamente por mucosa intestinal no trajecto do cordão fibroso antes referido; divertículo intestinal cujo lume comunica com intestino delgado ao nível do bordo antimesentérico, a distância variável da válvula ileocecal (divertículo de Meckel).

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Definição e importância do problema

A hérnia define-se como procidência ou saída de uma víscera (ou de uma parte de víscera) para fora dos seus limites normais, através das paredes enfraquecidas da cavidade que a contém, ou por um orifício (natural, acidental ou patológico). Este conceito abrange as hérnias externas (de que as mais frequentes são as verificadas através da parede abdominal, traduzindo-se em tumefacções redutíveis nas regiões: abdominal, abdominal-inguinal e escrotal), e as hérnias internas (de que é exemplo a hérnia diafragmática).

Neste capítulo é feita referência às hérnias da parede abdominal.

HÉRNIA INGUINAL

Importância do problema

A hérnia inguinal é uma das condições mais frequentemente observadas na idade pediátrica (ver alínea seguinte). Quando não devidamente diagnosticada e tratada, pode pôr em risco a vida ou resultar na perda de um órgão (como o ovário ou o testículo em caso de estrangulamento). Na população pediátrica ocorre em cerca de 3-5% dos indivíduos, sendo a proporção superior (10-30%) em crianças com antecedentes de prematuridade. É ~6-10 vezes mais frequente no sexo masculino, e 2 vezes mais frequente do lado direito, devido à descida testicular mais tardia deste lado. Cerca de metade dos casos surge no primeiro ano de vida, na sua maioria antes dos 6 meses.

A incidência de hérnias bilaterais é mais elevada no sexo feminino (~20-30%). Em cerca de 10% dos casos há antecedentes familiares.

Aspectos embriológicos e etiopatogénese

O testículo, no seu trajecto de descida do abdómen para a bolsa escrotal, através do canal inguinal, “empurra“ à sua frente um divertículo peritoneal – o canal peritoneovaginal (CPV) ou processus vaginalis – que se transformará na camada ou túnica vaginal do testículo. Na fase em que o testículo atinge o fundo da bolsa (por volta do 7º a 8º mês de gestação), o referido canal sofre involução (isto é, fica obliterado), deixando de haver comunicação entre o escroto e a cavidade abdominal. Quando se verifica anomalia desta involução, o CPV persiste (fica patente), criando-se condições para a constituição de hérnia inguinal.

  1. → Surge hérnia inguinal quando conteúdo intrabdominal se “escapa” da cavidade abdominal “entrando” na região inguinal através do CPV patente (sendo que nem em todos os doentes com CPV patente se desenvolve hérnia inguinal). Dependendo da extensão ou comprimento do CPV patente, assim a hérnia poderá ficar confinada à região inguinal, ou continuar a descer até atingir o escroto:
      • A obliteração distal do CPV (em torno do testículo), mantendo-se patente a porção proximal do mesmo, resulta em hérnia inguinal indirecta clássica (ou funicular), com protusão no canal inguinal (Figura 1-A);
      • A falência completa da obliteração do CPV, mantendo-se patente o CPV em toda a sua extensão (proximal+ distal), predispõe à formação da chamada hérnia inguinal completa, caracterizada por protusão do conteúdo intrabdominal no canal inguinal, podendo atingir o escroto (Figura 1-B).

As situações tipificadas nas Figuras 1-A e 1-B correspondem à maioria dos casos de hérnias inguinais (indirectas) no lactente e criança (~99%). Outros tipos de tumefacções redutíveis visíveis exteriormente ao nível da região inguinal incluem:

      • As hérnias inguinais directas (~0,5-1%), fazendo procidência ao nível, ou um pouco para baixo e para dentro do orifício superficial do canal inguinal, parecendo de localização superior à prega inguinal; resultam de defeito muscular ou de fraqueza do pavimento do canal inguinal; são geralmente consideradas adquiridas, podendo surgir como sequela de anterior correcção de hérnia inguinal indirecta;
      • As hérnias femorais ou crurais (< 0,5%) correspondendo a procidência ao nível da extremidade superior e interna do triângulo de Scarpa, mais lateralmente que as hérnias inguinais (consultar Glossário), e parecendo de localização inferior à prega inguinal; são mais frequentes no sexo feminino.
  1. → Se no CPV existir fluido seroso, gera-se o hidrocelo (ou a hidrocele), definido como acumulação de líquido seroso na túnica vaginal dos testículos ou no tecido que envolve o cordão espermático; se a tumefacção existir somente no escroto, constitui-se o hidrocelo escrotal; se ao longo do cordão espermático, a tumefacção verifica-se no próprio cordão espermático, constitui-se o hidrocelo do cordão espermático (também chamado quisto do cordão, correspondendo à situação de reabsorção incompleta do CPV); se se estender do escroto, através do canal inguinal até ao abdómen, constitui- se o hidrocelo abdominal-escrotal.
    O hidrocelo designa-se comunicante se o saco contendo fluido variar de dimensões (“enchendo-se ou esvaziando-se” no sentido cavidade peritoneal-escroto ou vice-versa). (Figuras 2-A, 2-B e 2-C)
    Em crianças mais velhas, determinadas condições como traumatismos, inflamação ou tumores do testículo podem originar hidrocelos secundários (adquiridos).

FIGURA 1. Representação esquemática de: A – Hérnia inguinal indirecta clássica (tipo funicular); B – Hérnia inguinal indirecta completa.

FIGURA 2. A – Situação normal: obliteração completa do CPV; B – Hidrocele devido a CPV patente; C – Hidrocele do cordão (ou quisto do cordão).

A incidência de hérnias é mais elevada em presença de determinados factores predisponentes como os sintetizados no Quadro 1. Nas situações de fibrose quística e de problemas urogenitais estão em causa alterações da embriogénese de estruturas vizinhas do abdómen e canal inguinal, como as derivadas dos canais de Wolff, entre outras.

QUADRO 1 – Factores predisponentes de hérnia.

Doença respiratória crónica
(fibrose quística)
Fluido intraperitoneal aumentado
(ascite, derivação ventriculoperitoneal, cateter de diálise peritoneal)
Pressão intrabdominal aumentada
(pós-correcção cirúrgica de defeitos da parede abdominal, ascite grave, peritonite meconial)
Doenças do tecido conectivo
(síndromas de Ehlers-Danlos, de Marfan, de Hunter- Hurler, etc.)
Prematuridade
Factores urogenitais
(hipospadia, epispadia, extrofia da bexiga, ambiguidade genital, criptorquidia)

Manifestações clínicas e diagnóstico

A hérnia inguinal traduz-se por aumento de volume intermitente na região inguinal, aumento que se pode estender ao escroto ou grande lábio em relação com o choro, tosse ou esforço correspondendo a aumento transitório da pressão intrabdominal. (Figura 2)

O diagnóstico de certeza somente pode ser obtido quando se palpa e se tenta reduzir a referida tumefacção. A criança deve ser examinada de pé, se necessário a encher um balão (o que tipifica a chamada manobra de Valsalva), ou a saltar. O exame deve também ser feito com a criança em decúbito dorsal com os membros superiores estendidos sobre a cabeça, e fazendo pressão sobre a zona púbica. No rapaz, as regiões inguinais devem ser palpadas após se verificar que os testículos estão nas bolsas. Nos recém-nascidos e lactentes o diagnóstico é mais difícil.

No âmbito do exame clínico de qualquer tumefacção redutível da região inguinoscrotal importa recordar algumas manobras semiológicas simples na perspectiva do diagnóstico diferencial: palpação do cordão espermático e palpação da região inguinal combinada com a do escroto.

Palpação do cordão espermático

Realiza-se apertando a raiz do escroto entre o indicador e polegar, o que torna fácil de apreciar o cordão espermático pela sua dureza relativa; nos casos de torção do testículo, a pressão exercida sobre o mesmo torna-se muito dolorosa. No caso de hérnia inguinal, uma vez reduzida, deve proceder-se à palpação cuidadosa e comparativa do cordão espermático de ambos os lados, o que permite comprovar o seu aumento de espessura no lado afectado pela presença do saco herniário; e igualmente, quando se tem experiência, uma sensação conhecida como sinal da ”luva de seda”, ou das várias camadas do saco herniário. Se a alteração for bilateral, pode ser mais duvidosa a interpretação dos achados.

Palpação da região inguinal e escroto

Palpando a região inguinal e o escroto, podem ser identificadas a hérnia escrotal e o quisto do cordão. A primeira pode reduzir-se e produzir ruídos hidroaéreos característicos (gorgolejo) na tentativa da mesma redução; o segundo é de consistência dura, mais que o hidrocelo, de superfície lisa, de forma invariável e não redutível. Quanto à palpação do anel inguinal externo, com importância para possíveis hérnias inguinais latentes, a mesma tem pouco valor no lactente pela abundância do panículo adiposo.

Na criança maior utiliza-se a seguinte técnica: o dedo indicador ou o mínimo, invaginando por empurramento o escroto no sentido escroto → anel inguinal, atinge e atravessa o referido anel inguinal na ausência de hérnia; havendo hérnia que, entretanto, foi reduzida, a manobra de esforço do doente permite que a extremidade do dedo sinta o fundo de saco da hérnia em movimento no sentido anel inguinal → escroto.

Perante tumefacção redutível na região inguinal, esta manobra também permite distinguir hérnia inguinal de hérnia femoral; se o canal inguinal estiver “vazio”, tratar-se-á de hérnia femoral e não de inguinal; por outro lado, a hérnia femoral localiza-se mais externamente (mais lateral) que as hérnias inguinais indirecta e directa (mais mediais). (ver atrás)

Para distinguir hérnia inguinoscrotal (caso em que o intestino chega ao escroto) de hidrocelo ou de quisto do cordão, faz-se a expressão da bolsa aumentada de volume; se a mesma se esvaziar tratar-se-á de hérnia. Caso tal não suceda o diagnóstico será hidrocelo ou quisto do cordão, desde que não haja encarceramento herniário (ver adiante). A transiluminação contribui também para esta diferenciação (difusão positiva em caso de hidrocelo). A ecografia poderá ser esclarecedora nos casos duvidosos.

A hérnia inguinal pode sofrer processos de encarceração (hérnia encarcerada), e de estrangulamento (hérnia estrangulada). O conteúdo da hérnia pode ser intestino delgado, apêndice, epíploo, cólon, ou raramente, divertículo de Meckel; no sexo feminino tal conteúdo poderá incluir também ovário ou trompas.

A encarceração consiste na impossibilidade de redução da hérnia para a cavidade abdominal (12-17% dos casos, sendo que ~ 2/3 das mesmas surgem no primeiro ano de vida). No estrangulamento, para além da encarceração, existe forte constrição ao nível da passagem pelo anel inguinal, o que comporta risco elevado de isquémia e gangrena das estruturas herniadas (sendo o risco tanto maior quanto menor o diâmetro do anel). Esta complicação, causa frequente de obstrução intestinal no lactente, manifesta-se por irredutibilidade da massa ou tumefacção na virilha ou escroto, edema e eritema da pele suprajacente, febre, irritabilidade, e choro relacionável com cólica abdominal. Os vómitos podem ser sinal indiciador de obstrução intestinal.

O diagnóstico diferencial de hérnia com adenopatias inguinais é fácil (pela irredutibilidade destas e diferente consistência) na ausência de encarceração herniária.

Tratamento

O tratamento é sempre cirúrgico, pois não se verifica resolução espontânea. Idealmente, a intervenção deverá ser electiva nas hérnias redutíveis (hérnia diagnosticada = hérnia a operar). Exceptuam-se os casos de prematuridade com doença pulmonar crónica grave cuja data de intervenção será ponderada tendo em conta o risco de estrangulamento em confronto com o risco anestésico. Em casos especiais (quando o adiamento comporta riscos acrescidos), poderá estar indicada anestesia local, a ponderar em função do contexto clínico e idade. A intervenção é simples, consistindo na laqueação alta do CPV, por vezes com reforço da parede posterior do canal; poderá ser feita em regime ambulatório.

Actualmente, em cada vez maior número de centros cirúrgicos, é utilizada a técnica minimamente invasiva, por via laparoscópica.

Notas importantes:

    1. O hidrocelo poderá evoluir espontaneamente para a regressão até aos 6-12 meses. Quando tal não acontecer, deve suspeitar-se de comunicação com a cavidade abdominal – hidrocelo comunicante; a estratégia de terapêutica cirúrgica é igual à aplicável à hérnia inguinal. No que respeita à data da intervenção, sugere-se a consulta do último capítulo desta Parte do livro.
    2. Situações de hérnia irredutível acompanhadas das manifestações atrás descritas deverão ser encaminhadas de imediato para centro cirúrgico, dadas as possibilidades de encarceração ou estrangulamento. A hérnia estrangulada constitui uma emergência cirúrgica; a hérnia encarcerada deverá ser reduzida ou operada, no máximo, até 24 horas.

HÉRNIA UMBILICAL

Importância do problema

Esta modalidade de hérnia surge quando o anel umbilical não se encerra após a separação do cordão umbilical. Verifica-se maior proporção de casos em crianças com antecedentes de prematuridade e/ou baixo peso de nascimento, síndroma de Down, síndroma de Beckwith-Wiedemann e hipotiroidismo congénito.

Manifestações clínicas

A hérnia umbilical manifesta-se por procidência da região umbilical, coincidindo com aumento da pressão abdominal. Esta modalidade raramente encarcera, verificando-se evolução natural para o encerramento espontâneo até cerca dos três anos de idade.

Tratamento

O tratamento cirúrgico está indicado nos casos de persistência para além dos 4 anos, tendo em conta a tendência para encerramento espontâneo.

HÉRNIA DA LINHA BRANCA

As hérnias da linha branca correspondem a tumefacções redutíveis por protusão de gordura pré-peritoneal ou de saco peritoneal através de fibras de entrecruzamento da linha branca. Conforme a localização, consideram-se as modalidades epigástrica, justa-umbilical e sub-umbilical.

Como exemplo será abordada a hérnia epigástrica.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A hérnia epigástrica manifesta-se por uma ou mais tumefacções redutíveis (anteriormente descritas) na linha média em qualquer localização no trajecto entre o apêndice xifoideu e o umbigo, por vezes acompanhadas de dor. O estrangulamento é raro.

Este problema clínico não deve ser confundido com a chamada diastase dos rectos abdominais, situação considerada fisiológica nos lactentes (tumefacção rectilínea em toda a região da linha branca, mais notória quando a criança contrai o abdómen, com regressão espontânea com a idade).

Tratamento

O tratamento das hérnias epigástricas é cirúrgico electivo, sendo a idade de intervenção ponderada em função de eventuais queixas e da idade.

GLOSSÁRIO

Triângulo de Scarpa → Espaço da região inguinocrural, na face anterior e superior da coxa, limitado em cima pela arcada femoral, do lado externo pela saliência do músculo costureiro, e do lado interno pela saliência do músculo médio adutor da coxa. O triângulo de Scarpa é atravessado pelos vasos femorais, nervo crural e seus ramos.

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Aspectos embriológicos e etiopatogénese

Pela 5ª semana da vida embrionária inicia-se uma fase de crescimento rápido do intestino médio (porção do tracto intestinal desde o duodeno até meio do cólon transverso). O intestino em crescimento dirige-se à cavidade celómica, e a respectiva porção distal liga-se ao canal onfalomesentérico.

Até à 10ª semana, continuando fora da cavidade abdominal do embrião, verifica-se aumento progressivo do comprimento do intestino, o qual é irrigado pela artéria mesentérica superior. A partir da 10ª semana o intestino reintroduz-se novamente na cavidade abdominal ao mesmo tempo que se verifica o processo de rotação que leva à sua fixação na parede abdominal posterior.

Não cabendo nos objectivos do livro uma descrição exaustiva do desenvolvimento embrionário do tubo digestivo, importa sintetizar que diversas perturbações verificadas neste processo podem ter várias consequências em termos de oclusão, ou de risco de oclusão, susceptível de se manifestar em diversos períodos da vida pós-natal. Eis alguns exemplos:

  • Má rotação ou rotação incompleta;
  • Atrésias intestinais explicáveis por diversos mecanismos, tais como: deformação de estruturas em desenvolvimento; acidentes vasculares intra-uterinos originando isquémia e necrose; volvo, encarceramento ou invaginação intestinais intra-uterinos;
  • Ausência de células ganglionares nos plexos mioentéricos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Os principais dados da anamnese que poderão sugerir a existência de quadro de oclusão incluem: hidrâmnio, baixo peso de nascimento, vómitos biliosos, complicações pulmonares, presença ou ausência de mecónio e suas características, anomalias congénitas associadas, etc..

A realização de ecografia pré-natal permite o diagnóstico de oclusão intestinal em número significativo de casos.

O exame objectivo do recém-nascido realizado de modo sistemático permite igualmente a recolha de dados fundamentais salientando-se: pesquisa da permeabilidade esofágica e da permeabilidade anal utilizando procedimentos simples como a introdução de sondas; observação atenta do abdómen no sentido de detectar, quer aumento de volume ou distensão (indiciando, por exemplo, oclusão de grau variável do tracto digestivo inferior), quer depressão (sugestiva, por exemplo, hérnia diafragmática de Bochdaleck por ocupação torácica de vísceras abdominais ou atrésia do esófago sem fístula tráqueo-esofágica). Outros dados a pesquisar são: edema da parede, sinais de onfalite e a existência de circulação colateral.

Em suma, vómitos, distensão abdominal e ausência de dejecções/parésia intestinal, em graus variáveis, são sinais comuns nas diversas formas de oclusão. Os vómitos serão biliosos se a obstrução se localizar abaixo da ampola de Vater, e não biliosos se acima desta; a distensão abdominal é tanto mais acentuada quanto mais baixo o nível de obstrução; quando a distensão é muito acentuada, a elevação do diafragma pode originar dificuldade respiratória; por sua vez, a perda de secreções gástrica, biliar, pancreática e intestinal pode originar quadros de desidratação, choque hipovolémico, desequilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base.

No que respeita a exames complementares indispensáveis, realça-se a radiografia abdominal simples (se possível em posição vertical) e a ecografia, os quais, na grande maioria das vezes permitem o diagnóstico.

Sistematização

Considerando os diversos quadros clínicos de oclusão do tracto digestivo numa perspectiva prática, neste capítulo procede-se a uma sistematização anatomofuncional das mesmas, com objectivo didáctico, no sentido craniocaudal (estômago, duodeno, jejuno-íleo e cólon-recto). Diversas entidades que se podem considerar abrangidas no conceito global de oclusão do tubo digestivo, como estenose hipertrófica do piloro, enterocolite necrosante e anomalias ano-rectais, integram capítulos específicos nesta Parte XXX do livro; o RGE e a doença de Hirschprung foram abordados em capítulos próprios.

ESTÔMAGO

Atrésia do piloro e outros defeitos do antro

Uma referência muito breve a uma situação rara – a atrésia do piloro – correspondendo (juntamente com outras anomalias obstrutivas do antro como “diafragmas” ou membranas) a 0,5% a 1% de todas as anomalias do tracto gastrintestinal. De acordo com a literatura, foram descritos casos familiares, admitindo-se transmissão hereditária autossómica recessiva. Tem sido associada à epidermólise bolhosa. Na maioria dos casos há antecedentes de poli-hidrâmnio. A ecografia pré-natal evidencia sinais de distensão gástrica.

As manifestações clínicas da atrésia do piloro são dominadas por distensão gástrica e vómitos não biliosos desde o primeiro dia de vida. Pela distensão gástrica impõe-se, pois, a aplicação de sonda gástrica para aspiração, obtendo-se como regra, > 20 mL de aspirado. Estão descritos casos de ruptura do estômago nas 1as 24 horas de vida. A ecografia e a radiografia abdominal simples feitas ao RN revelam sinais de distensão gástrica.

Nos casos de obstrução parcial (de grau variável) por membranas, o quadro manifesta-se mais tardiamente por vómitos, não progressão ponderal e dores abdominais. A endoscopia feita a crianças mais velhas permite evidenciar as pregas do antro.

O tratamento da síndroma de obstrução do antro gástrico inicia-se com a correcção do desequilíbrio hidroelectrolítico, desidratação e da alcalose hipoclorémica. Os vómitos persistentes obrigam a descompressão nasogástrica. Após estabilização do doente, procede-se à correcção (cirúrgica por laparotomia, ou por via endoscópica), em função do contexto clínico e idade.

Volvo gástrico

Este quadro verifica-se na sequência da torção do estômago sobre si mesmo superior a 180º; tal torção, que se pode concretizar segundo eixo longitudinal (volvo organoaxial) ou transversal (mesentérico-axial), resulta de ausência ou disfunção/hiperdistensão de determinados ligamentos de fixação gástrica (gastrofrénico, fazendo fixação segundo eixo transversal; e gastrosplénico, gastro-hepático e gastrocólico, segundo o eixo longitudinal).

Trata-se dum problema clínico raro, por vezes subdiagnosticado. Pode manifestar-se de forma aguda e crónica (esta última, mais frequente em crianças mais velhas); pode também estar associado a outros defeitos como má-rotação intestinal e asplenia.

As manifestações clínicas são inespecíficas, traduzindo-se por vómitos incoercíveis não biliosos e dor abdominal entre as refeições. O diagnóstico, uma vez suspeitado, obrigará a exames imagiológicos com contraste; verificam-se sinais de dilatação gástrica. Conforme o tipo de volvo, poderá observar-se sinal de nível líquido duplo com imagem “em bico” perto da junção gastresofágica no volvo mesentérico-axial, e de nível líquido simples sem o característico “bico” no volvo organoaxial.

O tratamento do volvo agudo constitui uma emergência cirúrgica, uma vez estabilizado o doente (gastropexia, precedida eventualmente por gastrostomia paliativa). Em casos seleccionados de volvo crónico, em doentes mais velhos (não lactentes), poderá estar indicado tratamento cirúrgico por via endoscópica. No pós-operatório está indicado tratamento médico anti-RGE.

Duplicação gástrica

Este defeito raro, explicável por falência da recanalização do intestino primitivo aquando do seu estádio “sólido, maciço ou acanalicular”, traduz-se pela existência de estruturas quísticas ou tubulares aderentes à parede interna do estômago (em geral de dimensões < 12 cm), em geral não comunicando com a cavidade gástrica. Em cerca de 35% dos casos há outros defeitos congénitos associados.

As manifestações clínicas são as de obstrução parcial ou completa da junção gastroduodenal (distensão gástrica e vómitos); nos casos de comunicação com a cavidade gástrica, poderão surgir ulceração, hematemeses e melenas. Por vezes, a estrutura anómala quística é palpável (~1/3 dos casos). Os exames de imagem (ecografia ou TAC) permitem esclarecer a situação clínica.

O tratamento consiste na excisão cirúrgica.

DUODENO

As oclusões localizadas no duodeno podem ser originadas por atrésia, estenose ou compressão extrínseca. Ao contrário das manifestações surgindo no contexto de oclusão jejunal ou ileal, nas oclusões duodenais não se verifica distensão abdominal e os vómitos não são biliosos (excepto quando o obstáculo é a jusante da ampola de Vater).

Atrésia e oclusão intrínseca e extrínseca do duodeno

Classificação e etiopatogénese

A oclusão do lume do duodeno pode ser completa ou incompleta, e de causa intrínseca ou extrínseca; de referir que poderão surgir diversos tipos de combinações das referidas modalidades de oclusão.

A oclusão incompleta ou parcial, de grau variável, surge como consequência de estreitamento ou estenose do lume duodenal e está, em geral, associada a compressão extrínseca do duodeno; pode ter várias causas:

  1. Bridas mesentéricas ou aderências peritoneais anómalas (bandas de Ladd) que acompanham situações de má rotação do cólon (oclusão extrínseca);
  2. Tecido pancreático aberrante, pâncreas anular, veia cava de localização pré-duodenal (oclusão extrínseca);
  3. Membrana ou diafragma parcialmente formados, ou fenestrados (oclusão intrínseca).

A causa mais frequente de compressão extrínseca é o pâncreas anular.

Na atrésia verifica-se oclusão total do lume duodenal, como resultado de anomalia do desenvolvimento embrionário (vacuolização incompleta do duodeno primitivo). Tal anomalia compreende três tipos:

  1. Diafragma ou membrana, completa e intacta (estrutura incluindo mucosa e submucosa);
  2. Cordão fibroso unindo dois “fundos de saco” os quais correspondem, respectivamente, aos segmentos proximal e distal do duodeno, sendo que o mesentério está intacto;
  3. Situação semelhante à anterior, mas sem cordão fibroso a unir os dois fundos de saco; neste tipo o mesentério está ausente.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Nos exames imagiológicos pré-natais, em qualquer das situações atrás descritas, é possível detectar em cerca de um terço dos casos, presença de hidrâmnio associado a dilatação bolhosa gastroduodenal. A atrésia do duodeno está por vezes associada a outras anomalias do tubo digestivo, salientando-se a associação muito frequente a síndroma de Down (em cerca de 30% dos casos).

O quadro clínico pós-natal manifesta-se essencialmente por sinais de obstrução intestinal alta, isto é, com resíduo biliar gástrico volumoso e/ou esvaziamento gástrico demorado e incompleto; reitera-se, mais uma vez, a ausência de distensão abdominal.

No recém-nascido a presença de resíduo gástrico bilioso é sempre suspeita de oclusão duodenal. A eliminação de mecónio dependerá da verificação de oclusão completa ou incompleta e de lesões obstrutivas baixas associadas.

O estudo imagiológico a realizar com prioridade é o radiograma simples do abdómen em posição ortostática permitindo identificar o sinal característico e patognomónico da “dupla bolha” relacionável com oclusão completa/atrésia duodenal: a primeira “bolha” corresponde à distensão gástrica, e a segunda, à dilatação da primeira porção do duodeno. Por outro lado, não são observados sinais de “ar” nas ansas intestinais a jusante. (Figura 1)

Seguidamente, poderá proceder-se a estudo gastroduodenal, com contraste hidrossolúvel. Este estudo pode fornecer informações mais pormenorizadas sobre a arquitectura duodenal, o local da interrupção luminal ou a eventual presença de modelagem duodenal por compressão extrínseca. A Figura 2 mostra a imagem de distensão gástrica no contexto de atrésia da junção duodenojejunal. A ecografia abdominal poderá fornecer dados sobre a emergência dos vasos mesentéricos e a sua orientação no caso de má rotação intestinal; o estudo ecográfico da área pancreática pode fornecer dados sugestivos de pâncreas anelar.

Tratamento

O diagnóstico de oclusão duodenal implica sempre, qualquer que seja a anomalia em causa, uma abordagem cirúrgica correctiva.

A intervenção destina-se a tornar permeável o lume duodenal. Uma vez que cerca de oitenta e cinco por cento das oclusões duodenais têm como origem a região periampola, a correcção cirúrgica é realizada por meio de uma derivação a esse ponto por duodenoduodenostomia laterolateral.

No caso de oclusão intrínseca incompleta pode ser realizada uma duodenotomia seguida de exploração endoluminal e excisão do obstáculo mucoso, quer seja um diafragma fenestrado, quer seja uma manga (wind-sock). Nos casos de compressão extrínseca, deverão ser libertadas todas as aderências peritoneais anómalas presentes. Na impossibilidade de retirar o obstáculo extrínseco, a derivação duodenal deverá ser construída mais proximalmente, com uma verdadeira derivação “by-pass” ao arco duodenal, por meio de uma gastroenterostomia laterolateral. Como principais complicações da derivação duodenal citam-se a deiscência da anastomose duodenal e a estenose cicatricial.

Seguimento

Pelas razões apresentadas anteriormente, a derivação duodenal implica a instituição de pausa alimentar, aspiração gástrica activa e nutrição parentérica total, durante um período ~ 10-14 dias. Após este período é introduzida a nutrição entérica, cuja progressão em concentração e quantidade, é feita de acordo com a tolerância demonstrada pelo doente.

Prognóstico

O prognóstico das situações de oclusão duodenal é na generalidade excelente na ausência de complicações cirúrgicas.

O prognóstico definitivo depende da eventual associação doutras anomalias, nomeadamente cardíacas.

JEJUNO E ÍLEO

Atrésia e estenose do jejuno e íleo

Classificação e etiopatogénese

Atrésia e estenose jejunoileal são defeitos congénitos em que se verifica, respectivamente, a obliteração completa ou parcial do lume intestinal no segmento respectivo.

A atrésia é responsável por cerca de um terço dos casos de oclusão intestinal no recém-nascido. A distribuição por sexos é similar, oscilando a frequência entre 1/1.300 a 1/5.000 nados-vivos.

A etiopatogénese de tais anomalias relaciona-se provavelmente com perturbações de vascularização e fenómenos isquémicos mesentérico-intestinais dando origem a défice da permeabilidade do intestino primitivo; tais alterações parecem explicar igualmente defeitos mesentéricos associados.

As atrésias jejunoileais são classificadas em quatro tipos:

Tipo 1: obliteração luminal por membrana com continuidade da parede e mesentério normal (cerca de 30%);

Tipo 2: cordão fibroso unindo os topos proximal e distal do intestino, em fundos de saco, sendo que o mesentério é normal (cerca de 25%);

Tipo 3a: semelhante ao tipo 2, sem cordão fibroso e fundos de saco separados; associado a defeito mesentérico em “V” (cerca de 15%);

Tipo 3b: obliteração luminal proximal e defeito mesentérico e vascular do território distal, sendo este vascularizado por um único vaso em circulação retrógada (apple-peel deformity ou atrésia em forma de árvore de Natal) (11%);

Tipo 4: múltiplas atrésias (cerca de 17%).

A atrésia jejunoileal pode estar associada a outras anomalias tais como síndroma de Down, defeitos cardíacos, a associação VACTERL, doença de Hirschsprung, gastrosquise e íleo meconial.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A ecografia pré-natal pode evidenciar sinais de hidrâmnio e de distensão gástrica fetal. Os sinais clássicos no recém-nascido são: vómitos biliosos, ausência de mecónio e distensão abdominal, tanto mais acentuada quanto mais distal o segmento em que se verifica a oclusão.

A radiografia simples do abdómen (realizada idealmente em posição vertical) evidencia sinais de ansas intestinais dilatadas com ou sem níveis hidroaéreos. (Figuras 3 e 4) Quando estes sinais são muito exuberantes, no diagnóstico diferencial haverá que incluir a doença de Hirschprung (Figura 5) e o íleo meconial. Em função do contexto clínico, poderá estar indicado o clister opaco.

FIGURA 1. Dupla bolha: Sinal radiológico de oclusão duodenal (completa). (URN-HDE)

FIGURA 2. Distensão gástrica por atrésia da junção duodenojejunal. Ausência de ar a jusante da zona de atrésia (radiografia tóraco-abdominal). (NIHDE)

FIGURA 3. Imagem de radiografia simples abdominal evidenciando distensão acentuada de ansas do jejuno no contexto de atrésia ileal. (UCIN-HDE)

FIGURA 4. Atrésia jejunoileal; imagem de radiografia simples do abdómen evidenciando distensão “gigante” de ansas do jejuno parecendo distensão cólica. (UCIN-HDE)

FIGURA 5. Oclusão intestinal baixa, evidenciando níveis hidroaéreos.

Tratamento

Uma vez confirmado o diagnóstico, está indicada intervenção cirúrgica cujo objectivo é promover a continuidade do trânsito intestinal, procedendo a anastomose digestiva directa, após remodelar o segmento dilatado. Se houver sinais de necrose intestinal, procede-se a ressecção da ansa afectada. Pressupõe-se a realização dum conjunto de cuidados pré-operatórios que dizem respeito, essencialmente a aspiração nasogástrica, e manutenção do equilíbrio hemodinâmico, hidroelectrolítico e ácido base.

É habitual surgir no período pós-operatório disfunção anastomótica resultante dos diferentes calibres de ansa, do tipo de sutura, da forma da anastomose, e da alteração da motilidade intestinal associada ao segmento pré-atrésia. Por estas razões, os doentes com tal patologia permanecem durante um período variável de tempo dependentes exclusivamente da nutrição parentérica veiculada, de preferência, através de cateter central de longa duração de tipo Hickman-Broviac.

Os aspectos chave do período pós-operatório são a aspiração nasogástrica activa e a nutrição parentérica. As complicações são decorrentes do tipo de atrésia encontrada, da exequibilidade ou não de reconstituição do trânsito intestinal e da técnica cirúrgica em si. Neste tipo de anomalia surge invariavelmente período mais ou menos prolongado de pseudo-obstrução intestinal com resíduo gástrico abundante que pode ser resultante de dismotilidade intestinal, designadamente.

Se se verificar deiscência anastomótica, torna-se obrigatória a reintervenção cirúrgica imediata. A existência de uma obstrução mecânica evidente por estenose cicatricial ou angulação da anastomose obriga também a efectuar uma revisão cirúrgica da situação.

Prognóstico

O prognóstico global destes doentes (cuja sobrevida é > 95%) é ditado pela precocidade do diagnóstico, pela presença de anomalias congénitas associadas, da imaturidade, da eventual necessidade de ventilação assistida prolongada, das complicações associadas ao tipo de atrésia intestinal, e da técnica cirúrgica utilizada.

Todo este quadro é agravado pela presença de atrésias de tipo 3 ou 4, complicadas de encurtamento intestinal, podendo originar síndroma de intestino curto.

Íleo meconial

Definição e etiopatogénese

Define-se íleo (ou ileum) meconial como a situação clínica de oclusão ileal distal por mecónio anormal, espesso e viscoso, devida a mucoviscidose/fibrose quística; em cerca de 10% dos casos é a primeira manifestação desta doença. A oclusão (intraluminal), surgindo em cerca de 10% a 20% dos recém-nascidos com tal doença, verifica-se na região pré-valvular (válvula ileocecal) numa extensão de cerca de 15 a 20 cm; a montante desta zona verifica-se dilatação do íleo.

Com efeito, na fibrose quística todas as glândulas secretoras de muco são anormais, sendo de referir que, para a anormalidade do mecónio, contribuem a insuficiência de enzimas pancreáticas proteolíticas e a secreção de mucoproteínas anormais pelas células caliciformes do intestino delgado; de facto, o mecónio destes doentes contém menor concentração de hidratos de carbono e maior de proteínas; a proteína mais abundante é a albumina, com uma concentração 5 a 10 vezes superior ao normal, o que explica a sua extrema viscosidade.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A apresentação clínica no período neonatal é caracterizada por distensão abdominal, resíduo gástrico, vómito de características biliosas e ausência de emissão de mecónio nas primeiras 48 horas de vida. A palpação abdominal permite delimitar, por vezes, as ansas distendidas, assim como massa depressível correspondendo ao mecónio espesso impactado. O ânus e recto têm calibre reduzido face à condição de microcólon de desuso.

O exame radiográfico abdominal simples permite demonstrar sinais de distensão intestinal do delgado, ausência de níveis hidro-aéreos e presença de imagens de “bolha de sabão” ou “vidro despolido” traduzindo a mistura gasosa e meconial no território ileal distal (quadrante inferior direito do abdómen).

O clister opaco demonstra a existência de microcólon de desuso (calibre muito estreito) devido à obstrução ileal distal, por vezes com presença de pequenas concreções meconiais mais espessas no cólon proximal e íleo distal.

As formas complicadas traduzem-se fundamentalmente por distensão abdominal progressiva, dificuldade respiratória, perfuração e peritonite no período pré-natal; igualmente poderão existir: sinais de compromisso de ansa intestinal como torção mesentérica e compromisso isquémico, volvo e/ou atrésia, efeito de massa sobre as ansas intestinais pela presença de um quisto meconial, e calcificações intra-abdominais secundárias a peritonite meconial pré-natal.

Diagnóstico diferencial

Com raras excepções, a situação compatível com íleo meconial, até prova em contrário, pode considerar-se um epifenómeno da fibrose quística. No entanto, haverá que atender às seguintes situações:

  • A fibrose quística pode manifestar-se no recém-nascido por atraso de eliminação de mecónio ou por eliminação de rolhão meconial espesso com oclusão transitória do cólon distal;
  • A chamada síndroma do rolhão meconial (situações de mecónio espesso de etiopatogénese diversa da associada à fibrose quística e mais frequente em recém-nascidos de baixo peso) poderá originar um quadro clínico semelhante ao íleo meconial propriamente dito (associado à fibrose quística).

Classificação e tratamento

O íleo meconial classifica-se em simples e complicado consoante a seu modo de apresentação e a sua resolução terapêutica (ver atrás).

  • O íleo meconial simples é tratado de forma não cirúrgica, por meio de clister de substâncias que se destinam a dissolver o mecónio impactado, favorecendo a sua expulsão por via rectal (gastrografina e acetilcisteína).
    A gastrografina é uma solução aquosa de diatrizoato de metilglucamina que, por mecanismo osmótico, promove a transferência de água no sentido células intestinais → lume intestinal, diminuindo a viscosidade do mecónio. A acetilcisteína é uma enzima proteolítica que promove a liquefação do mecónio, sendo em geral usada após o clister de gastrografina.
  • Nos casos de íleo meconial complicado (integrando situações atrás descritas, em que não é possível resolução pelo método de tratamento conservador), existe sempre indicação cirúrgica.
    – Nas formas sem compromisso de ansa intestinal, é realizada uma enterotomia para irrigação endoluminal com o objectivo de dissolver localmente o mecónio impactado.
    – Nas formas de apresentação com compromisso de ansa, isto é complicadas de torção de mesentério, volvo, perfuração in utero ou formação de peritonite meconial ou quisto meconial intra-abdominal, é necessário realizar uma ressecção segmentar do segmento afectado e, posteriormente, restabelecer a continuidade intestinal, ou derivar temporariamente o intestino, encerrando a enterostomia em segundo tempo cirúrgico.

A abordagem cirúrgica do íleo meconial obriga também à colocação de um cateter central de longa duração do tipo Hickman-Broviac para permitir a administração de nutrição parentérica.

Complicações pós-operatórias

As complicações pós-operatórias precoces mais frequentes resultam da enterotomia realizada para a irrigação endoluminal e da anatomose pós-ressecção segmentar de ansa que pode ser complicada por deiscência ou por obstrução mecânica.

As complicações tardias são devidas essencialmente a alterações da motilidade do segmento ileal distal obrigando, por vezes, à instituição de fármacos pró-cinéticos.

As complicações a longo prazo resultantes, sobretudo, da ressecção do segmento ileal distal, derivam da alteração do ciclo êntero-hepático e da necessidade de nutrição parentérica de longa duração: litíase biliar e doença hepática colestática.

Por fim, haverá que equacionar outras complicações inerentes à doença de base – a fibrose quística.

Seguimento e prognóstico

O seguimento destes doentes é de extrema importância e deverá ser efectuado em centros especializados dispondo de equipa multidisciplinar.

O prognóstico no primeiro ano de vida é decorrente da forma de apresentação da doença e do sucesso das opções terapêuticas tomadas. A sobrevivência no primeiro ano de vida nos casos não complicados é > 95% e, nos casos complicados, ~90%.

Má-rotação

Definição e etiopatogénese

A má rotação intestinal consiste num defeito de rotação e de fixação (não fixação), na cavidade peritoneal, da ansa primitiva em torno do eixo vascular que origina a artéria mesentérica superior. Esta anomalia integra, pois, também um componente vascular; tal explica a possibilidade de ocorrência concomitante de complicações graves resultantes de isquémia intestinal que podem surgir nos casos de má rotação complicada de volvo do intestino médio.

Trata-se dum problema clínico, com muitas variantes anatómicas, que pode ser assintomático; as formas sintomáticas, manifestando-se na sua maioria até ao 1 ano de idade (em especial no RN) surgem na proporção aproximada de 1/7.000 RN. Outros defeitos congénitos associados a má rotação incluem com maior frequência: atrésia duodenojejunal, onfalocele, gastrosquise e hérnia diafragmática.

Na má rotação completa (não rotação ou verdadeira má rotação) a totalidade do cólon e o íleo terminal localizam-se no lado esquerdo do abdómen, enquanto o duodeno e jejuno se situam no lado direito.

Existe um mesentério comum, não fixado à parede posterior abdominal, sendo que o cego se localiza nos quadrantes superiores ou em posição aproximada do centro do abdómen. Poderá verificar-se a existência de pregas ou fitas de peritoneu (as chamadas bandas ou bridas de Ladd) entre o cego e a parede póstero-lateral do abdómen, cruzando e comprimindo o duodeno, o que causa oclusão; a montante das bridas o duodeno está dilatado e, a jusante, atrófico. O íleo terminal está colado ao jejuno proximal por aderências ou bridas peritoneais anormais; esta anomalia de posição cria um pedículo intestinal estreito, o que predispõe a volvo intestinal (enrolamento ou torção sobre si mesmo ou em roda de ponto fixo – por não fixação do intestino –, com consequente oclusão e perturbação circulatória isquémica).

Outras variantes da chamada má rotação incluem as rotações incompletas e as fixações incompletas.

Manifestações clínicas e diagnóstico

As manifestações clínicas desta entidade podem ser muito variáveis.

A forma de apresentação mais frequente traduz-se por vómitos biliosos intermitentes no período neonatal, sugerindo obstrução duodenal. (Figura 6)*

A forma de apresentação mais grave é o volvo** do intestino médio, por vezes a primeira manifestação da anomalia: agravamento abrupto do estado geral com distensão abdominal, dores abdominais/cólicas no lactente, irritabilidade e, por vezes, eliminação de fezes com sangue, e sinais de choque hipovolémico; este quadro constitui uma emergência.

O exame físico poderá evidenciar ausência de distensão abdominal, ou distensão muito discreta nos casos de localização alta da obstrução.

A ocorrência de vómitos biliosos constitui, em geral, o evento que desencadeia a investigação etiológica. Perante a suspeita clínica de quadro oclusivo intestinal, a radiografia abdominal simples (realizada sempre como primeira prioridade para o diagnóstico) poderá revelar sinais de distensão acentuada de ansas (Figura 7) e, eventualmente, o sinal da “dupla bolha”, patognomónico da oclusão duodenal que, como foi referido, poderá ser um acompanhante da má rotação.

Se a radiografia simples do abdómen evidenciar sinais de duodeno dilatado e de presença de gás nos quadrantes inferiores do abdómen, está indicada a realização de trânsito gastroduodenal contrastado com bário, exame que permite demonstrar a posição do duodeno, a sua forma, e a localização do ângulo de Treitz. Nos casos de má-rotação, o duodeno tem uma forma espiralada, sem se verificar a sua curvatura harmoniosa para a esquerda, e o ângulo de Treitz não está definido no hipocôndrio esquerdo.

O clister opaco pode dar uma imagem indirecta de má-rotação pela posição anómala do cego, que geralmente se encontra em posição elevada nos quadrantes direitos do abdómen ou em posição central.

*Alta da maternidade às 48 horas de vida. Reinternamento aos 4 dias de vida por vómitos biliosos e intolerância alimentar progressiva. A laparotomia comprovou má-rotação de 270º, tendo sido realizada desrotação anti-horária, libertação do ângulo de Treitz, e bipartição do mesentério (operação de Ladd Gross). (caso clínico do Dr. Rui Alves)

**Recorda-se a definição de volvo (ou vólvulo): enrolamento ou torção de um órgão oco sobre si mesmo ou em torno de um ponto fixo, tendo como consequência obstrução e perturbações isquémicas graves por compromisso circulatório local.

A ecografia abdominal na sua variedade de doppler poderá evidenciar dados indirectos quanto à origem e direcção dos vasos mesentéricos, nomeadamente o sinal doppler em turbilhão (Whirlwind sign), típico da má-rotação intestinal.

FIGURA 6. Caso de obstrução intestinal alta. Vómitos alimentares alternando com períodos de boa tolerância alimentar. Imagem radiográfica tóraco-abdominal com contraste introduzido no estômago. (UCIN-HDE)*
A – Aparente posição normal da 1ª e 2ª porção do duodeno com interrupção do contraste a jusante da 2ª porção, sugerindo possível obstrução ao nível do ângulo de Treitz; B – Verificação de passagem livre do contraste cerca de 1 hora após radiografia A.

FIGURA 7. Volvo do intestino médio: sinais de distensão de ansas (radiografia abdominal simples. (UCIN-HDE)**

Tratamento

A chave do sucesso terapêutico é o elevado índice de suspeita diagnóstica para uma decisão rápida quanto à correcção cirúrgica, obrigatória. Com efeito, o atraso na obtenção do diagnóstico e na decisão terapêutica pode acarretar a perda extensa de segmentos intestinais por necrose isquémica; por outro lado, a correcção cirúrgica da situação contribui para a prevenção do volvo do intestino médio.

Como medidas gerais pré-operatórias são referidas a manutenção do equilíbrio hemodinâmico, hidro-electrolítico e ácido base, assim como a aplicação de sonda gástrica para descompressão do estômago e da primeira porção do duodeno dilatada.

A técnica cirúrgica utilizada (operação de Ladd-Gross cuja descrição ultrapassa o âmbito deste livro), essencialmente permite desfazer a rotação intestinal e libertar as “bandas de Ladd” e aderências peritoneais em geral.

Nos casos de volvo do intestino médio em que se pode verificar compromisso isquémico, muitas vezes irreversível, do território irrigado pela artéria mesentérica superior, o procedimento cirúrgico descrito, destina-se também a realizar a desrotação mesentérica e a permitir a perfusão terminal das ansas intestinais.

Prognóstico

O seguimento destes doentes, nos casos não complicados, não implica qualquer cuidado especial, quer sob o ponto de vista nutricional, quer sob o ponto de vista do desenvolvimento, uma vez que a cirurgia se pode considerar, em princípio, curativa. Contudo, em cerca de 10% dos casos, poderá verificar-se manutenção da sintomatologia obstrutiva no período pós-operatório imediato ou mais tardiamente; tal sintomatologia pode explicar-se por recorrência de torção parcial mesentérica, por bridas ou aderências, ou por dismotilidade intestinal.

Em cerca de 15% dos casos poderá surgir perda intestinal extensa por necrose isquémica secundária a volvo do intestino médio, conduzindo ao quadro de síndroma de intestino curto.

Nos casos de perda intestinal por isquémia (mais ou menos extensa), o prognóstico depende igualmente da qualidade funcional dos segmentos intestinais remanescentes e do respectivo capital de regeneração intestinal.

A mortalidade associada a esta anomalia varia entre 3% e 9% estando invariavelmente associada à ocorrência de volvo do intestino médio, à prematuridade e à extensão da necrose intestinal.

Invaginação intestinal

Definição

A invaginação intestinal é uma situação clínica resultante da penetração de um segmento proximal do intestino (intussusceptum) – como um telescópio ou à maneira de um dedo de luva do avesso – noutro segmento do intestino mais distal, que o recebe (intussuscepiens). (Figura 8)

FIGURA 8. Representação esquemática do mecanismo da invaginação intestinal. (consultar texto)

Aspectos epidemiológicos

Este problema clínico surge geralmente entre os 4 e os 10 meses, com um “pico” aos 7 meses, e limites entre os 3 meses e os 3 anos. O sexo masculino é cerca de 3 vezes mais afectado do que o feminino. O primum movens (ou “cabeça de invaginação”) desta mobilidade anómala do intestino poderá ser a hiperplasia linfóide (protusão para o lume do intestino das placas de Peyer, relacionada com infecção vírica), o que é demonstrado em cerca de 50% dos casos nalgumas séries.

Trata-se da causa mais frequente de obstrução intestinal no grupo etário atrás referido; a localização mais frequente é a íleo-ceco-cólica, o que é explicável pela maior riqueza de placas de Peyer nesta região do intestino.

No recém-nascido há que admitir possível duplicação intestinal como factor causal da invaginação (ver adiante). Na criança com mais de 3 anos é muito provável que haja certas lesões que sirvam de “cabeça“ da invaginação, tais como: divertículo de Meckel, apêndice ileocecal, pólipos, tumores carcinóides, lesões hemorrágicas da púrpura de Henoch-Schonlein, linfoma não Hodgkin, corpos estranhos, pâncreas ectópico ou mucosa gástrica ectópica. A incidência de lesões anatómicas que funcionam como “cabeça de invaginação” aumenta com a idade.

Manifestações clínicas

A anamnese, em geral, só por si, permite o diagnóstico. Na sua forma típica, no lactente, em plena saúde verifica-se início de um episódio de cólicas abdominais intensas e mal-estar, (traduzido por episódios de “dobrar” os membros inferiores sobre o abdómen de forma aflitiva), por vezes associado a vómitos, palidez e sudação intensa. O episódio, com a duração de alguns minutos, é intercalado por pausas de acalmia em que o bébé fica apático ou letárgico. Ao cabo de alguns minutos da referida acalmia, a aparência de dor e os restantes sinais voltam de novo e de modo súbito. Por vezes há emissão de fezes normais a que se segue, numa fase mais avançada, a emissão de fezes tingidas de sangue e, mais tarde, já só coágulos mucóides de cor vermelha escura exibindo o típico aspecto de “geleia de framboesa“.

O passo mais importante do exame objectivo é a palpação abdominal durante a qual é possível, na forma mais habitual – a invaginação íleo-cecocólica – encontrar a fossa ilíaca direita “vazia” (pois o cego subiu) e palpar massa em “chouriço” no hipocôndrio direito (correspondente à zona invaginada). Nas formas mais avançadas é possível que o intestino invaginado surja exteriorizado pelo ânus. Procedendo-se ao toque rectal torna-se possível palpar a cabeça da invaginação com o dedo explorador, o qual sairá “sujo” de sangue.

Existe uma forma especial de invaginação (invaginação intestinal pós-operatória, na sua grande maioria íleo-ileal) que pode surgir na sequência de intervenções cirúrgicas abdominais muito invasivas: manifesta-se cerca de 2 semanas depois da intervenção cirúrgica, essencialmente por distensão abdominal, vómitos biliosos e sinais de estase gástrica crescente.

Exames complementares

O exame de eleição para o diagnóstico é a ecografia; em caso de invaginação intestinal, a mesma revela sinais de duplo contorno do intestino invaginado que se traduz na clássica “imagem em alvo” (Figura 2 do Capítulo sobre Imagiologia na Parte II). Nalguns centros é utilizada a ecografia de modo contínuo durante um período de 24 horas.

A radiografia simples do abdómen mostra sinais de oclusão intestinal e o clister opaco permite a localização. Este último (sempre indicado excepto nos casos em que se verifiquem sinais de irritação peritoneal) poderá igualmente ter efeito terapêutico. De facto, se se elevar o frasco de contraste baritado com que se realiza o clister até um máximo de 70 cm acima do plano do doente em decúbito, poderá assistir-se à resolução do problema: desinvaginação causada pela pressão hidrostática da coluna de bário.

Tratamento

Perante uma suspeita de invaginação intestinal, a primeira atitude deve ser a introdução de tubo nasogástrico para aspiração e o estabelecimento de linha endovenosa de fluidoterapia para correcção da eventual desidratação relacionada com perdas por vómitos e para o terceiro espaço.

A ecografia poderá ser realizada antes de corrigido o desequilíbrio hidroelectrolítico.

Como foi antes referido, o clister opaco é, muitas vezes, terapêutico. Este procedimento deverá ser realizado com a presença do cirurgião; a eficácia do mesmo (desinvaginação) pode ser comprovada pela verificação do refluxo do contraste do cego para o íleo terminal, através da válvula ileocecal. Refira-se, no entanto, que este critério não é obrigatório, pois em cerca de 1/3 dos indivíduos a válvula ileocecal é continente.

Uma boa alternativa ao clister opaco convencional será a desinvaginação pneumática (introdução de ar sob pressão controlada com um esfigmomanómetro, em alternativa ao contraste baritado.

A intervenção cirúrgica está indicada quando se verificar:

  • Sintomatologia sugestiva de irritação peritoneal;
  • Obstrução intestinal;
  • Falência do clister opaco ou pneumático;
  • Recorrência de invaginação (a partir da terceira crise após 2 desinvaginações eficazes).

Durante a intervenção cirúrgica procede-se à desinvaginação manual por expressão cautelosa da ansa invaginada (e não por tracção que pode levar à ruptura), à ileocecopexia quando indicada, e à ressecção de segmento intestinal em caso de perfuração.

Quistos enterogénicos (Duplicação intestinal)

Definição e importância do problema

A chamada duplicação intestinal é uma anomalia tumoral quística ou tubular que faz parte, sob o ponto de vista da etiopatogénese, dum defeito mais vasto, com localização variável, desde a boca ao ânus (duplicação do tracto gastrintestinal); o local mais frequente de aparecimento da duplicação é o intestino delgado, principalmente o íleo.

Em exames necrópsicos a frequência apurada é cerca de 1/5.000.

Etiopatogénese

Segundo a teoria mais consensual sobre a etiopatogénese da duplicação intestinal, este defeito forma-se do seguinte modo: até cerca da 7ª semana de gestação o intestino tem forma cilíndrica maciça o que se deve à proliferação epitelial; a partir desta fase, ocorre um processo de vacuolização central (vacúolos interligando-se e comunicando) que leva a que o referido “cilindro maciço” se transforme em “tubo”; quando alguns vacúolos não se fundem, formam-se estruturas quísticas adjacentes ou duplicação “do tubo”, ocorrendo, por vezes, em mais de um segmento.

Reportando-nos à localização intestinal, o referido quisto localiza-se no respectivo bordo paramesentérico, compartilhando a irrigação sanguínea e evidenciando o mesmo epitélio do intestino adjacente. Em cerca de 30% dos casos o epitélio é de tipo gástrico, do que resulta a possibilidade de acumulação de secreção gástrica intraquística por deficiente drenagem, com inflamação, hemorragia e/ou perfuração consequentes.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Na maioria dos casos, as manifestações surgem nos primeiros dois anos de vida, dependendo os sinais e sintomas da localização e das dimensões do defeito estrutural; de salientar que as duplicações de pequenas dimensões poderão ser assintomáticas.

As anomalias mais frequentemente associadas são: vertebrais, má rotação intestinal e nefrourológicas.

A tríade clássica (melena, hemorragia e massa abdominal móvel) surge nalgumas séries com uma frequência ~50%. Nos casos de duplicações jejuno-ileais os quadros inaugurais (de oclusão) poderão ser invaginação intestinal ou volvo.

No âmbito da vigilância pré-natal a ecografia pode identificar a anomalia.

Sempre que se suspeita de duplicação intestinal estão indicados exames imagiológicos. A ecografia constitui o exame de primeira linha; sempre que esta não é esclarecedora, deve proceder-se a tomografia axial computadorizada.

Nos casos de hemorragia digestiva, a cintilografia poderá ter utilidade para pesquisa de mucosa gástrica ectópica.

Cabe referir, a propósito, que na investigação de duplicações com outra localização estão indicados: estudo do trânsito gastrintestinal com contraste; endoscopia digestiva alta (estômago e duodeno); e clister opaco (cólon e recto).

Tratamento

O tratamento das duplicações do tracto gatrintestinal é cirúrgico, procedendo-se a ressecção completa pelo risco de desenvolvimento ulterior de neoplasia.

CÓLON E RECTO

A atrésia do cólon, mais frequente no cólon transverso, é muito rara, correspondendo a cerca de 6% das atrésias intestinais em geral. As atrésias múltiplas no cólon são também extremamente raras.

Doença de Hirschprung (megacólon congénito)

(consultar Parte sobre Gastrenterologia e Hepatologia)

Anomalias ano-rectais

(ver adiante)

Notas importantes:

    1. É impossível distinguir, com base apenas na radiografia abdominal simples, obstrução do intestino delgado ou do cólon.
    2. Nas situações duvidosas está indicado o estudo com contraste hidrossolúvel (por ex. gastrografina e acetilcisteína) para tal distinção.
    3. A visualização do cólon através do contraste evidenciando diminuição do diâmetro/largura (microcólon) sugere desuso do mesmo como resultado de obstrução a montante da válvula ileocecal. (Figura anexa – cortesia dos Drs. Paulo Casella e João Henriques).

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Definição e importância do problema

A estenose hipertrófica do piloro (EHP), como o nome indica, é uma hipertrofia (e não hiperplasia) da camada interna das fibras musculares do piloro, acompanhada de certo grau de espasmo, de causa desconhecida. A mucosa não evidencia qualquer alteração.

Constituindo a causa cirúrgica mais comum de vómitos não biliosos no lactente, tal situação ocorre na proporção aproximada de 1-3/1.000 RN, com predomínio do sexo masculino na relação ~4/1 e, sobretudo, em crianças dos grupos sanguíneos B e 0. Os descendentes de progenitores com antecedentes de estenose hipertrófica do piloro comportam maior probabilidade de doença (~10%-20%).

Etiopatogénese

Embora a causa seja desconhecida, tem-se chamado a atenção para determinadas situações clínicas frequentemente associadas, tais como fístula traqueoesofágica, hipoplasia ou agenésia do freio do lábio inferior, síndroma de Zellweger, síndroma de Apert, trissomia 18, síndroma de Smith-Lemli-Opitz, síndroma de Cornelia de Lange, e administração prévia (cerca de 2 semanas) de eritromicina a RN. Esta última situação aumenta em 10 vezes o risco de surgimento de EHP.

Admite-se o papel de determinados factores como síntese aumentada de factor de crescimento epidérmico, inervação muscular anómala (por ex. falta de células intersticiais de Cajal), níveis séricos elevados de prostaglandinas E2 pós-infusão do fármaco, hipergastrinémia, e níveis reduzidos de NO (por défice de sintetase de NO nas fibras musculares do piloro).

Em estudos recentes foram identificados 2 genes em dois loci, respectivamente nos cromossomas 11q14-q22 e Xq23, com papel no funcionamento de canais iónicos e no controlo da musculatura lisa, conduzindo a hipertrofia.

Noutros estudos comprovou-se prevalência quatro vezes superior de EHP em bebés alimentados com biberão/fórmula relativamente aos alimentados com leite materno, especulando-se sobre o papel dos VIP, em concentração elevada no leite materno, promovendo relaxamento pilórico.

Manifestações clínicas e laboratoriais

Os primeiros sinais da EHP surgem, geralmente entre a 2ª e 6ª semana de vida, numa criança que estava em plena saúde e a evoluir normalmente: vómitos projécteis não biliosos, cujo aparecimento pode ser de modo abrupto com progressão rápida. Em determinados casos, os vómitos poderão surgir de modo insidioso, logo a partir dos primeiros dias de vida.

Os vómitos aparecem 20 a 60 minutos após as refeições, sendo cada vez mais frequentes e volumosos, podendo ser acastanhados ou com sangue “vivo”, por esofagite. Após o vómito a criança fica “esfomeada”, e, por vezes aparenta “vomitar mais do que o que ingeriu antes” aplicando a linguagem expressiva de muitas mães.

Se a situação evoluir sem qualquer intervenção (evolução natural), as fezes tornam-se mais escassas e duras, semelhantes a fezes de ovelha, e a desidratação começa a instalar-se num quadro de alcalose hipoclorémica e hipopotassémica (por perda de suco gástrico, hidrogeniões e potássio).

Consequentemente pode haver diminuição do débito urinário com urina concentrada, estagnação do peso e, depois, desnutrição com perda de peso. Por vezes as ondas peristálticas são visíveis através da parede abdominal no epigastro durante a deglutição de leite.

Em menos de 5% dos casos verifica-se icterícia por hiperbilirrubinémia não conjugada resultante de insuficiente absorção de glucose e de incapacidade de manutenção da actividade da glucuronil transferase.

O diagnóstico pode ser mais difícil nas crianças com antecedentes de prematuridade e/ou baixo peso de nascimento, as quais evidenciam quadro clínico mais insidioso.

Com experiência, pode palpar-se a “oliva pilórica“; para tal pesquisa o observador deverá ficar colocado à esquerda do doente e com a mão esquerda “a rolar” o piloro sobre a coluna. Dados da literatura apontam para uma modificação actual do espectro de manifestações da EHP, com menor percentagem de casos com oliva palpável (~13% versus 50% há cerca de 45 anos), assim como de menor incidência de alterações hidroelectrolíticas e do equilíbrio ácido-base. Tal poderá traduzir menor valorização da semiologia clínica, mais precoce utilização de métodos imagiológicos (ver adiante) e maior suspeição do problema, levando a diagnóstico mais precoce.

Exames complementares

A ecografia (Figura 1) é o exame de eleição, sendo critérios de positividade o alongamento e espessamento do piloro traduzidos quantitativamente pelos seguintes valores (especificidade ~95%):

  • Espessura muscular > 4 mm; ou
  • Comprimento > 14 mm.

Se eventualmente tiver sido realizada radiografia abdominal simples tornam-se notórios: distensão gástrica importante, ultrapassando a linha média, e sinais de escassez de ar na área correspondente ao intestino.

A radiografia do estômago com contraste não tem hoje qualquer indicação sendo de salientar riscos e desvantagens. Deverá ficar reservada para casos duvidosos ou complexos.

Os achados laboratoriais clássicos incluem: pH > 7.45 com bicarbonato > 25 mEq/L e excesso de bases > +3; hipoclorémia (cloreto < 98 mEq/L); hipopotassémia (potássio < 4 mMol/L).

FIGURA 1. Achado ecográfico da região pilórica no contexto de EHP. (UCIN-HDE)

Tratamento

O tratamento é cirúrgico, de urgência, mas não de emergência: piloromiotomia extramucosa (operação de Fredet von Ramstedt). Com efeito, haverá que proceder previamente à correcção do desequilíbrio hidroelectrolítico e metabólico (desidratação e alcalose hipoclorémica e hipopotassémica): bolus inicial de soro fisiológico seguido de soro fisiológico diluído a 1/2 com dextrose a 5% em água, a que se acrescenta potássio uma vez verificada a diurese.

A técnica referida é realizada por via laparoscópica nalguns centros de cirurgia pediátrica. Autores japoneses têm utilizado atropina IV.

A introdução da alimentação oral deve ser precoce e progressiva, a partir das 6 horas do pós-operatório.

Apesar de não ser rara a ocorrência de vómitos nos dias imediatamente a seguir à intervenção cirúrgica, esta situação é passageira.

Prognóstico

O prognóstico é excelente.

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Definição e importância do problema

A designação anomalias ano-rectais (AAR) engloba um conjunto diverso de defeitos congénitos gerados a partir da 5ª a 8ª semanas de gestação, incluindo o ânus imperfurado e suas variantes. O espectro de manifestações clínicas é também muito diverso, desde formas clínicas de gravidade diminuta a formas clínicas extremamente complexas e graves.

As anomalias ano-rectais, fazendo parte das síndromas de defeito de regressão caudal, surgem com uma frequência de cerca de 1/5.000 nascimentos, com predomínio no sexo masculino; as formas menos complexas verificam-se no sexo feminino.

Sistematização anatómica

No sexo masculino as anomalias ano-rectais são sistematizadas, por ordem crescente de complexidade, do seguinte modo:

  • AAR com ânus coberto (cobertura cutânea membranosa simples do orifício anal);
  • AAR com fístula perineal (trajecto fistuloso para a pele perineal ou rafe mediana escrotal);
  • AAR com atrésia rectal (atrésia da continuidade ano-rectal após a linha pectínea, com permanência do segmento cólico distal);
  • AAR com fístula para o aparelho urinário (contacto entre o aparelho digestivo e o aparelho urinário ao nível da uretra bulbar, prostática ou colo da bexiga).

No sexo feminino, as referidas anomalias podem apresentar-se clinicamente, também por ordem crescente de complexidade, do seguinte modo:

  • AAR com ânus coberto (cobertura cutânea simples do orifício anal);
  • AAR com fístula perineal (trajecto fistuloso para a pele perineal);
  • AAR com fístula vestibular (trajecto fistuloso para a forchette vaginal);
  • AAR com fístula vaginal (trajecto fistuloso para a parede posterior da vagina retro-himenal);
  • AAR com formação de cloaca (orifício perineal único, hipoplasia dos genitais externos, ausência de orifício anal, canal comum e sinus urogenital).

Manifestações clínicas e diagnóstico

O dado clínico fundamental desta anomalia é a ausência de orifício anal de forma e localização normal, o que é comprovado no âmbito do primeiro exame clínico sistemático do recém-nascido no pós-parto imediato.

No sexo masculino, pode ser acompanhada de períneo mal desenvolvido com sulco internadegueiro não proeminente, e presença de fístula para o aparelho urinário em cerca de 90% dos casos. No sexo feminino podem ser observados: presença de fístula para a pele perineal ou para a vagina, ou ainda, orifício perineal único, acompanhado de hipoplasia genital marcada.

As anomalias congénitas do aparelho urinário acompanham as anomalias ano-rectais em cerca de 48% dos casos. Outras anomalias frequentemente associadas incluem as cardíacas, digestivas e vertebrais (hemivértebras, disrafismo e agenésia sagrada). Associações possíveis de defeitos acompanhantes incluem as designadas pelas siglas VACTERL (defeitos: vertebral, anal, cardíaco, traqueal, esofágico, renal, membro/limb), e VATERR (defeitos: vertebral, anal, traqueal, esofágico, radial, renal). Como regra geral pode estabelecer-se que as anomalias associadas constituem o factor prognóstico mais importante das anomalias ano-rectais (por ex., boa correlação entre o grau de desenvolvimento do sacro e a futura função: ausência de sacro associa-se a incontinência fecal e urinária).

O diagnóstico de anomalia ano-rectal é fundamentalmente clínico. Os exames perineal e genital fornecem o diagnóstico, permitindo definir, na grande maioria das vezes, o tipo anatómico em causa.

Nos casos de exame clínico detectando “ânus imperfurado”, para avaliação da distância entre a solução de continuidade rectal e a superfície cutânea sem orifício anal, era clássico até há 2 décadas realizar radiografia abdominal simples colocando placa radiopaca de chumbo sobre o períneo (região anal). (Figura 1)

Decorrendo da probabilidade de associação doutras anomalias, como atrás foi referido, estão indicados os seguintes exames complementares:

estudo radiológico sumário da coluna dorso-lombossagrada (em dois planos); estudo ecográfico da coluna lombar para diagnóstico precoce de síndroma de medula ancorada ou de regressão caudal; ecografia do aparelho urinário, extremamente importante para o diagnóstico imediato de qualquer defeito estrutural renal e do aparelho excretor. Para o diagnóstico de defeitos de encerramento do tubo neural e em situações específicas poderá haver necessidade de RM.

Tratamento

As AAR têm sempre indicação operatória. O fundamento da intervenção cirúrgica é a criação de um orifício anal bem posicionado anatomicamente, normofuncionante e completamente separado do aparelho urinário e do aparelho genital.

A decisão terapêutica imediata mais importante prende-se com a eventual necessidade de construção de uma colostomia diversiva, no quadrante inferior esquerdo, utilizando um segmento de junção entre o cólon descendente e o cólon sigmoideu. Esta decisão terapêutica depende da definição anatómica e diagnóstica do tipo de anomalia ano-rectal, e deverá ser tomada após um intervalo de 16 a 24 horas depois do nascimento; com efeito, verificando-se neste período a progressão da massa meconial até zona mais distal do tubo digestivo, e a possibilidade de preenchimento de eventual trajecto fistuloso cutâneo existente, é possível tirar conclusões mais definitivas quanto à modalidade de tratamento.

FIGURA 1. RN com ânus imperfurado (placa de chumbo colocada na região anal para avaliar a distância entre a pele e a zona de interrupção anómala rectal (ausência de imagens gasosas). Actualmente, através da ecografia pode determinar-se o local onde se verifica interrupção do trânsito (Imagem radiográfica com interesse histórico).

Este aspecto é de extrema importância, porque um defeito não complexo, não necessitando de colostomia diversiva, poderá ser corrigido definitivamente no período neonatal. Pelo contrário, as anomalias mais complexas necessitam de colostomia diversiva para evitar a retenção fecal e a dilatação distal da bolsa cólica, com riscos de perfuração, de infecção urinária (que se pode complicar por um quadro de sépsis urinária) e de reabsorção de urina pela mucosa intestinal conducente a acidose metabólica. Estas situações constituem, efectivamente, risco de vida para qualquer recém-nascido afectado por uma forma complexa de anomalia ano-rectal com fístula recto-urinária.

Reportando-nos à sistematização anatómica descrita noutra alínea, referem-se agora as variedades anatómicas necessitando de colostomia.

No sexo masculino:

  • AAR com atrésia rectal;
  • AAR com fístula para o aparelho urinário.

No sexo feminino:

  • AAR com fístula vestibular;
  • AAR com fístula vaginal;
  • AAR com formação de cloaca.

Notas importantes:

    1. A correcção é realizada integralmente por via perineal no plano sagital, sendo denominada ano-rectoplastia sagital posterior mínima ou limitada.
    2. A colostomia diversiva destina-se, no sexo masculino, a evitar a contaminação do aparelho urinário por conteúdo fecal e a absorção de urina pela mucosa cólica devido ao refluxo de urina para o cólon distal; no sexo feminino, a referida técnica destina-se a evitar a contaminação do aparelho genital e a hipertrofia da bolsa rectal distal, por retenção fecal progressiva.
    3. O exame complementar fundamental, após a construção da colostomia e antes de realizar a cirurgia definitiva, é o colostograma. Este exame consiste no preenchimento do segmento distal do cólon, a jusante da colostomia, por contraste hidrossolúvel, permitindo a visualização da porção terminal do cólon esquerdo ou de qualquer trajecto fistuloso presente.
    4. A correcção cirúrgica definitiva é realizada por meio de uma ano-rectoplastia sagital posterior plena. Actualmente, a idade para a realização da cirurgia definitiva está a ser reduzida para as primeiras oito semanas de vida; exceptua-se a correcção cirúrgica da cloaca, em geral realizada entre os seis meses e o ano de idade.
    5. Após a realização da ano-rectoplastia sagital posterior torna-se necessário iniciar um programa de dilatação anal progressiva por meio dos chamados dilatadores de Hegar. Este programa é de extrema importância e o seu cumprimento constitui um pilar fundamental para o sucesso cirúrgico. A colostomia deverá ser encerrada após a conclusão do programa de dilatações anais.

Complicações pós-operatórias

As complicações resultam das múltiplas intervenções cirúrgicas a que os doentes com esta patologia são submetidos. As mais importantes são: deiscências de vários tipos, estenose, prolapso da mucosa cólica, má posição da anoplastia em relação aos limites do complexo muscular perineal e refistulização recto-urinária ou recto-vaginal.

Seguimento

Os doentes portadores de AAR, nomeadamente nas suas formas mais complexas, necessitam de um seguimento multidisciplinar em regime ambulatório, englobando designadamente diversas áreas como: enfermagem, fisioterapia, fisiatria, cirurgia pediátrica, pediatria médica, medicina familiar, nefrologia pediátrica, neurologia pediátrica e ginecologia pediátrica.

As situações clínicas mais problemáticas associadas ao seguimento da AAR são a obstipação pós-operatória, a incontinência fecal e a incontinência urinária. A obstipação pós-operatória é a sequela mais comum dos doentes com AAR. Paradoxalmente, é mais grave nas formas clínicas mais ligeiras. A obstipação deverá ser tratada agressivamente e de modo prolongado para evitar as suas consequências nefastas, como o megarrecto. A incontinência fecal, que pode surgir em cerca de 30% de todos os casos, implica a necessidade de programa de reeducação intestinal adaptado a cada doente. O seu fundamento é a utilização criteriosa e individualizada de laxantes, emolientes e clisteres de limpeza.

Prognóstico

O prognóstico dos doentes com AAR depende, não só do sucesso do acto cirúrgico a que foram submetidos, mas, principalmente, do tipo de AAR e da patologia subjacente e acompanhante da mesma.

Reiterando o que foi descrito anteriormente, os factores prognósticos fundamentais são: a evolução do status nefrológico e a capacidade de continência esfincteriana vesical e anal. Estes dois aspectos são os mais importantes na definição da qualidade de vida futura destes doentes.

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Definição e importância do problema

A hemorragia do tubo digestivo pode ter origem em toda a extensão do mesmo, sendo a identificação do local que sangra um desafio para o clínico em termos de raciocínio diagnóstico.

Quando o sangue tem origem no esófago, estômago, ou duodeno, pode provocar hematemese, termo que significa vómito de sangue, independentemente da sede da hemorragia. O sangue eliminado e exposto às secreções gástricas ou intestinais escurece rapidamente (por digestão-sangue “digerido”) passando a ter cor castanha (tipo borras de café, ou com aspecto de alcatrão); se a hemorragia for maciça, o sangue com grande probabilidade mantém a cor vermelha viva.

Sangue eliminado pelas fezes, independentemente da cor (vermelha ou castanha) define o conceito (lato) de hematoquésia; a mesma pode ser o resultado de hemorragia maciça a montante do íleo distal no contexto de trânsito intestinal acelerado, ou a jusante do íleo distal.

O sangue resultante de hemorragia ligeira a moderada com origem a montante do íleo distal tende a originar fezes de cor castanha muito escura (tipo borras de café ou aspecto de alcatrão): é a melena (conceito restrito). As hemorragias major no duodeno ou a montante do duodeno podem também originar melena.

Rectorragia é a eliminação pelo ânus de sangue vivo proveniente do recto, misturado ou não com fezes (conceito restrito).

Algumas situações clínicas, em função do volume de sangue perdido, obrigam a tratamento de emergência.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

As hemorragias do tubo digestivo têm causas e consequências. No Quadro 1 são resumidos os principais problemas clínicos de base (os quais têm quadro clínico próprio, podendo originar hemorragias do tubo digestivo.

QUADRO 1 – Principais causas de hemorragia do tubo digestivo.

*Afecções mais frequentes no lactente
Sangue deglutido pelo RN*
Varizes esofágicas
Doença péptica
Anomalias vasculares
Refluxo gastresofágico
Gastropatia traumática de prolapso
Úlcera gástrica de estresse*
Úlcera duodenal
Alergia às proteínas do leite de vaca*
Fissura anal*
Polipose intestinal
Duplicação intestinal
Divertículo de Meckel*
Invaginação intestinal*
Volvo
Doença sistémica (leucemia, hiperplasia linfóide)
Iatrogénica (anti-inflamatórios não esteróides)
Gastrenterite bacteriana*
Enterocolite
Colite pseudomembranosa
Doença de Hirschprung
Doença inflamatória intestinal
Síndroma de Mallory-Weiss
Prolapso rectal
Púrpura de Schonlein-Henoch
Coagulopatia*

 

A lesão erosiva da mucosa do tracto gastrintestinal constitui a causa mais frequente de hemorragia. Outras causas importantes são:

  1. A gastropatia traumática de prolapso em que se verificam hemorragias subepiteliais no contexto de prolapso do estômago no esófago durante vómitos com esforço acentuado;
  2. A síndroma de Mallory-Weiss em que há lesões tipo ruptura da mucosa também associadas a vómitos;
  3. Anomalias vasculares;
  4. Varizes esofágicas.

Nos casos de perda crónica (micro-hemorragias que correspondem a “sangue oculto nas fezes” poderá surgir quadro de anemia ferripriva. A hemorragia gastrintestinal pode originar hipotensão e taquicárdia, por vezes na ausência de sintomatologia do foro digestivo; nos casos de surgimento agudo e de forma maciça, poderão surgir vómitos, náuseas e diarreia. A degradação dos componentes do sangue intraluminal poderá levar a hiperbilirrubinémia e a coma hepático em situações de disfunção hepática prévia.

Diagnóstico diferencial e exames complementares

Para o esclarecimento etiológico e avaliação da repercussão do evento sobre o estado geral, torna-se necessário, após anamnese e exame objectivo rigoroso, proceder a um conjunto de exames complementares a seleccionar em função do contexto clínico de cada caso.

No que respeita à anamnese, e perante a comprovação “fezes de cor vermelha” cabe salientar a importância de inquirir sobre a eventualidade de ingestão anterior de rifampicina, gelatina vermelha, ou framboesas.

Nos casos de “fezes de cor semelhante à das borras de café ou do alcatrão”, há que inquirir, designadamente, sobre a eventual ingestão de espinafres, chocos com tinta, salicilato de bismuto, medicamentos à base de ferro, e amoras.

  • Para esclarecimento etiológico e avaliação da repercussão sobre o estado geral, estão indicados os seguintes exames prioritários: hemograma com plaquetas, provas de coagulação (tempo de protrombina tempo de tromboplastina parcial), provas de citólise e de função hepáticas (ALT/ alanina, AST/ aspartato aminotransferase; GGT/ gama-glutamiltransferase, bilirrubinémia total e directa), pesquisa de sangue oculto nas fezes ou vómito, grupo sanguíneo, radiografia simples abdominal.
  • Nos casos de hematemese: endoscopia do tracto digestivo superior (clássica, ou microendoscopia empregando a cápsula endoscópica com câmara, previamente deglutida pelo doente, ou colocada por via endoscópica nas crianças mais pequenas), estudo radiológico do tracto superior com contraste nos casos de endoscopia inconclusiva ou indisponível.
  • Nas situações de rectorragia com fezes bem formadas: toque rectal.
  • Para excluir pólipos ou fissuras: sigmoidocolonoscopia.
  • Para detectar divertículo de Meckel: cintigrafia com tecnécio.
  • Para detecção de anomalia arteriovenosa: arteriografia da mesentérica ou microendoscopia com cápsula.
  • Nos casos de hemorragia com vómitos e sinais de oclusão intestinal: radiografias abdominais simples seriadas, clister opaco (para excluir invaginação intestinal), ecografia abdominal ou estudo com contraste do tracto superior.

Tratamento

A actuação em casos de hemorragia digestiva deverá corresponder ao tratamento da respectiva causa, para cuja identificação concorre a escolha judiciosa de exames a realizar. Nalgumas situações está indicado tratamento prioritário de emergência, procedendo a manobras de reanimação cárdio-circulatória (oxigenoterapia, entubação endotraqueal, estabelecimento de linha endovenosa para combate do choque e/ou terapêutica substitutiva com derivados sanguíneos (plasma fresco, concentrado eritrocitário, etc.).

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Definição e etiopatogénese

Entre a 5ª e a 7ª semana de vida intra-uterina, o canal ônfalo-mesentérico (canal vitelino) regride, à medida que a placenta substitui o saco vitelino como fonte da alimentação do feto. Este canal estabelece a comunicação entre o saco vitelino e o intestino primitivo.

A não regressão ou a regressão insuficiente do canal leva ao aparecimento de várias anomalias, das quais a mais frequente é o divertículo de Meckel. Assim, o divertículo de Meckel é uma estrutura remanescente do canal ônfalo-mesentérico em forma de “dedo de luva” ou em ligação com o lume do íleo distal. (Figura 1)

Salienta-se que o desenvolvimento normal do tubo digestivo depende de interacções entre as camadas endoderme (epitélio tapetando internamente a parede intestinal), mesoderme (formação de músculo liso), e ectoderme (sistema nervoso entérico). Histologicamente o divertículo de Meckel é um verdadeiro divertículo integrando todas as camadas intestinais. A irrigação sanguínea é um vestígio da artéria vitelina primitiva, podendo ter papel proeminente nos casos em que se manifesta hemorragia.

FIGURA 1. Divertículo de Meckel (corte horizontal da parede abdominal em esquema). Ver figura 2 do capítulo sobre gastrosquise.

Trata-se da anomalia congénita gastrintestinal mais frequente, presente em cerca de 2%-3% da população, e predominando no sexo masculino com uma relação de 3-4/1. Pode estar associada a outros defeitos nas seguintes proporções: atrésia do esófago (12%), anomalia ano-rectal (11%), e onfalocele (25%).

O divertículo, de comprimento variável, situa-se no bordo anti-mesentérico do intestino delgado a distância variável da válvula íleo-cecal, embora possa ter localização mais proximal (em regra, a 50-90 cm). Contudo, para excluir a sua presença, a exploração intra-operatória do intestino deve ser levada a cabo até aos 150 cm.

No seu interior pode aparecer mucosa ectópica, geralmente gástrica ou tecido pancreático. O tecido ectópico gástrico no interior do divertículo pode causar ulceração da mucosa no íleo adjacente.

É clássico empregar, como mnemónica e com alguma aproximação (ver atrás), a chamada regra dos 2para caracterizar o defeito: surge em ~2% da população, a menos de 2 pés (cerca de 60 cm) da válvula íleo-cecal, com 2 tipos de mucosa ectópica (gástrica e pancreática), em crianças com mais de 2 anos de idade e anomalia com mais de 2 cm de comprimento.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Na maioria dos casos, o divertículo de Meckel é assintomático.

Na generalidade dos casos sintomáticos, o divertículo está forrado interiormente por mucosa gástrica ectópica com secreção ácida que origina hematoquésia ou enterorragia segundo alguns autores (aparecimento de fezes com sangue “cor de tijolo ou em geleia de groselha”) por ulceração da mucosa ileal normal adjacente. Como resultado poderá surgir anemia.

Menos frequentemente, o divertículo de Meckel está associado a obstrução intestinal parcial ou total (invaginação intestinal, volvo, bridas fibrosas no contexto das estruturas remanescentes), sendo que a idade média dos doentes tendo como forma inicial de apresentação a obstrução, é inferior à dos doentes cuja forma inicial de apresentação é a hemorragia.

O divertículo pode também inflamar-se (diverticulite), com um quadro clínico que pode simular apendicite aguda. A diverticulite pode levar a perfuração e peritonite. Pode ainda ser sede de tumores carcinóides, de acumulação de corpos estranhos ou de parasitas intestinais.

Em caso de hemorragia com suspeita de ser provocada por divertículo de Meckel, está indicada cintigrafia com tecnécio (TC99m) a qual permitirá identificar a anomalia através da visualização de sinais de mucosa gástrica ectópica produzindo secreção ácida. Os sinais podem ser mais notórios (maior captação do isótopo) com administração de cimetidina, glucagom ou gastrina em dias anteriores. Outros métodos de detecção incluem ecografia abdominal e, em situações clínicas específicas, angiografia mesentérica superior, TAC abdominal e, laparoscopia exploradora.

Salienta-se que nos doentes com quadro de obstrução intestinal, ou sugestivo de apendicite aguda, o diagnóstico definitivo em geral é feito após laparotomia.

Tratamento

O tratamento consiste na ressecção do divertículo associada a ressecção segmentar do intestino adjacente (em especial nos casos de obstrução e de hemorragia).

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Aspectos epidemiológicos e importância do problema

A apendicite aguda constitui a causa mais frequente de dor abdominal aguda que conduz a intervenção cirúrgica de emergência na criança e adolescente. A sua maior incidência verifica-se no grupo etário entre 12 e 18 anos, sendo rara antes dos 5 anos (< 5%), e muito rara antes dos 3 anos (< 1%).

O diagnóstico desta situação na criança com < 5 anos é frequentemente difícil e muitas vezes tardio, o que acarreta complicações com risco de vida, tais como perfuração (~20% dos casos), podendo conduzir a peritonite e sépsis. Nos quadros de doença febril há, pois, que admitir o seu diagnóstico, nomeadamente perante doença febril de interpretação duvidosa, mesmo sem sinais abdominais muito exuberantes.

Etiopatogénese

A apendicite aguda é uma doença que poderá envolver múltiplos factores etiológicos, cujo resultado final é a invasão bacteriana da parede apendicular.

Admite-se como factor importante e primum movens da infecção apendicular a obstrução do respectivo lume por matéria fecal (fecalitos, muitas vezes em relação com regime alimentar pobre em fibra), caroços de fruta, parasitas/Ascaris, hiperplasia dos folículos linfóides da submucosa da parede (secundária a infecções víricas, ou outras causas), ou por compressão extraluminal (gânglios linfáticos ou tecido neoplásico). Na fibrose quística, afecção associada a maior viscosidade do muco, existe maior predisposição para a obstrução do lume apendicular.

O resultado final é o aumento da pressão intraluminal e a proliferação bacteriana com invasão da parede do apêndice induzindo processo inflamatório com edema, secreção de muco, distensão com compromisso circulatório (dificuldade de drenagem venosa e linfática numa primeira fase, e isquémia por compressão arterial, mais tardiamente); ulteriormente pode surgir ruptura por necrose, por vezes verificada cerca de 48-72 horas após início das manifestações clínicas.

A infecção entérica pode desempenhar também papel importante, na medida em que muitos casos se associam a ulceração da mucosa e invasão da parede apendicular por microrganismos como Salmonella e Shigella spp., e vírus (adenovírus e coxsackie B).

Poderão formar-se abcessos periapendiculares e peritonite generalizada (esta última facilitada pelo facto de o grande epíploo ser mais curto do que no adulto, dificultando a localização do abcesso inicial).

Manifestações clínicas

O diagnóstico de apendicite aguda é essencialmente clínico. O quadro de apresentação varia com a idade:

  • Recém-nascido
    Os sinais de apresentação são inespecíficos: letargia, irritabilidade, distensão abdominal e vómitos, massa abdominal palpável, eritema da parede abdominal, hipotensão, hipotermia e dificuldade respiratória.
    A apendicite aguda comporta elevada mortalidade neste grupo etário.
  • Lactente
    Até aos 2 anos de idade os sinais e sintomas mais frequentes são a dor, vómito, diarreia e febre. Pode haver irritabilidade, dificuldade respiratória e queixas localizadas na anca direita. É mais frequente a dor abdominal difusa do que a localizada, não sendo de estranhar que o diagnóstico seja geralmente tardio pela dificuldade de comunicação neste grupo etário. Daí a maior gravidade da situação e a maior incidência de peritonite em tal circunstância.
  • Pré-escolar
    Neste grupo etário são habituais dor abdominal, febre, anorexia, náuseas e vómitos; em regra, a dor é localizada na fossa ilíaca direita. O vómito precede a dor, geralmente.
  • Escolar
    A sintomatologia assemelha-se à clássica do adulto: inicialmente dor difusa ou periumbilical e, mais tarde, localizada na fossa ilíaca direita, com sinais de defesa abdominal/contractura da parede abdominal e dor à descompressão. A dor é função da localização anatómica do apêndice. As náuseas e os vómitos surgem por distensão apendicular, após início da dor.
  • Adolescente
    Neste período estão presentes os sinais e sintomas da apendicite do adulto com a sequência clássica: dor periumbilical inicial – náuseas – vómitos – dor localizada na fossa ilíaca direita, agravada pela descompressão rápida após palpação; esta última comprova defesa abdominal/contractura da parede. No sexo feminino impõe-se o diagnóstico diferencial com patologia ginecológica.

Diagnóstico diferencial

Quando o quadro não é evidente, haverá que admitir outras situações, tais como: gastrenterite, linfadenite mesentérica, diverticulite de Meckel, pancreatite, colecistite aguda, torção do epíploo, torção de quisto do ovário, doença inflamatória pélvica, infecção urinária, pneumonia (classicamente na localização lobar direita), etc..

É importante salientar a importância da anamnese e do exame objectivo global e rigoroso, e que os sinais clássicos poderão não estar presentes em caso de apêndice de localização retrocecal ou com localização anómala.

Determinadas situações provocando dor no quadrante inferior direito do abdómen merecem ser destacadas, nomeadamente pela eventual confusão estabelecida pela terminologia clássica da entidade “apendicite aguda”, objecto do presente capítulo:

  1. Apendicite crónica refere-se ao quadro de inflamação crónica do intestino com infiltração de monócitos, o que corresponde a ~1% dos apêndices inflamados;
  2. Apendicite recorrente refere-se à situação resultante de um episódio de inflamação apendicular com regressão espontânea, sem intervenção cirúrgica e consequente fibrose focal apendicular;
  3. Cólica apendicular (termo controverso não reconhecido em geral como entidade clínica específica) originando dor crónica recorrente em geral pela manhã e 5-20 minutos após ingestão de líquidos ou refeição, explicável por diversos factores como fecaloma, fibrose, corpo estranho, parasitose, carcinóide, hiperplasia linfóide, etc.;
  4. Tiflite ou enteropatia neutropénica correspondendo a um processo de inflamação e necrose da parte terminal do íleo, cego, e/ou apêndice, tendo como factores de risco doença neoplásica, infecção por VIH e quimioterapia.

Exames complementares

Reiterando que o diagnóstico provisório de apendicite aguda é essencialmente clínico, na maioria dos centros cirúrgicos, no que respeita a exames complementares para confirmação ou infirmação é hoje consensual que existe prioridade para os exames de imagem “à cabeceira do doente”. A ecografia tem evidenciado sensibilidade de 88% e especificidade de 94% na ausência de obesidade; nos casos duvidosos haverá que recorrer à TAC, com inconvenientes pela radiação, mas mais precisa que a ecografia. A RM, em centros com recursos e ponderando prioridades, poderá ser outra alternativa.

No que respeita a biomarcadores clássicos, salientam-se o hemograma e a proteína C reactiva (PCR). O hemograma proporciona fraco contributo (pode verificar-se neutrofilia), podendo ser útil no diagnóstico diferencial com linfadenite mesentérica (esta última revelando, em geral, linfocitose ou valor de leucócitos < 7.000/mmc). De acordo com estudos epidemiológicos, valor de leucócitos superior a 12.000/ mmc com desvio à esquerda poderá surgir em cerca de 85%-90% dos doentes com apendicite aguda, e em 90%-95% dos mesmos com apendicite perfurada. Valores de PCR > 3 mg/dL, em conjugação com a clínica sugestiva, poderão apontar para o diagnóstico.

Nalguns centros estão a ser utilizados novos biomarcadores, mais específicos e sensíveis que os clássicos, como o factor de crescimento dos granulócitos (G-CSF), uma glicoproteína (LRG ou leucine-rich alpha-2-glycoprotein) e doseamento sérico de citocinas.

A análise de urina pode ser útil para a detecção de infecção urinária. Outros exames e doseamentos a realizar (nas situações de contexto clínico mais complexo e grandes dúvidas) são: amilase, lipase, ALT, AST, GGT, radiografia do tórax, radiografia abdominal simples de pé e em decúbito.

Tratamento

O tratamento é cirúrgico, de emergência. Durante a indução da anestesia deve proceder-se a antibioticoterapia endovenosa de largo espectro de modo a abranger o microbioma intestinal, para diminuir o risco de complicações infecciosas peri- e pós-operatórias.

No que respeita a esquemas de antibioticoterapia (a qual deverá ser dirigida contra as bactérias frequentemente encontradas no apêndice, incluindo anaeróbios e aeróbios gram-negativos) diversos têm sido descritos em estudos epidemiológicos demonstrando idêntica eficácia. Dado que os microrganismos gram-positivos são raros no cólon, é controversa a antibioticoterapia para cobrir enterococos, salvo em contextos clínicos específicos.

Descreve-se a seguir um dos protocolos utilizados:

  • Apendicite simples não perfurada: cefoxitina IV (1 dose pré-operatória e 1 dose 24 horas após intervenção);
  • Apendicite perfurada ou gangrenosa: antibioticoterapia tripla IV (ampicilina + gentamicina + clindamicina ou metronidazol) iniciada na data da operação (no pressuposto de intervenção emergente) e continuada durante 3-5 dias.

No caso de presença de pus na cavidade abdominal é fundamental a lavagem copiosa da mesma com soro fisiológico morno, até se obter líquido límpido, e encerrando a laparotomia sem deixar drenos; em tais circunstâncias torna-se obrigatória a continuação da antibioticoterapia pós-operatória.

Notas importantes:

    • Quando o cirurgião e a equipa têm experiência pode utilizar-se, em casos seleccionados, a cirurgia laparoscópica.
    • Nalguns centros, em casos seleccionados, procede-se a técnicas de drenagem percutânea com o apoio de especialistas em radiologia de intervenção associada a laparoscopia.

Complicações

Peritonite e abcessos intraperitoneais são as complicações mais frequentes da doença. Deiscência da laqueação do coto apendicular e hemorragia são complicações raras, mas podem ocorrer como complicação da intervenção cirúrgica, assim como abcessos da parede abdominal na zona da laparotomia. Com os devidos cuidados todas elas são evitáveis.

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Definição

A enterocolite necrosante (ECN) é uma situação clínica gastrintestinal de repercussão sistémica e gravidade progressiva, afectando sobretudo o recém-nascido pré-termo; é caracterizada fundamentalmente por vários graus de necrose da mucosa ou transmural do intestino, em áreas de extensão variável, no íleo terminal (mais frequentemente), cólon ascendente e porção proximal do cólon transverso.

De etiopatogénese não totalmente esclarecida, admite-se a comparticipação de múltiplos factores culminando num processo agudo de isquémia-reperfusão associado a uma resposta inflamatória amplificada em concomitância com processo infeccioso decorrente da invasão de microrganismos.

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

Esta afecção – que constitui a emergência cirúrgica mais frequente no recém-nascido – atinge com maior frequência os recém-nascidos pré-termo (com menos de 37 semanas completas contadas a partir do 1º dia da última menstruação), principalmente os de muito baixo peso (inferior a 1.500 gramas). A ECN surge em 5 a 15% dos recém-nascidos pré-termo hospitalizados em UCIN; a incidência é máxima entre a primeira e segunda semana. Nos Estados Unidos, a incidência oscila entre 1 a 3 casos por 1000 nados-vivos, com maior número de casos entre a primeira e segunda semana de vida, sem predomínio de sexo; considerando a globalidade dos casos, cerca de 7% corresponde a RN de termo.

Em Portugal, no âmbito da Secção de Neonatologia da SPP foi realizado um estudo multicêntrico pelo Grupo de Registo Nacional dos Recém-Nascidos de Muito Baixo Peso (RNMBP ou de peso < 1.500 g) no quinquénio 1996-2000, englobando unidades neonatais de 35 hospitais nacionais. Estudada a série de 4355 RN com tais características ponderais, o diagnóstico de ECN ocorreu em 437 (~10%). A letalidade nos RN com ECN perfurada foi de 64,3% quando não submetidos a cirurgia, e de 29,5% quando operados.

Na UCIN (médico-cirúrgica) do Hospital de Dona Estefânia (Lisboa) foram assistidos 114 RN com o diagnóstico de ECN no período de 22 anos (1990 a 2011). Globalmente a taxa de mortalidade foi de 27,2%, a que corresponde letalidade de 14,9% e taxa de sequelas (estenose intestinal e síndroma de intestino curto) de 45,3%. De referir que nesta série de RN com ECN, 41% dos doentes tinham peso inferior a 1.000 g.

Etiopatogénese

Apesar de ainda existirem muitos enigmas quanto à patogénese da ECN, admite-se que na generalidade dos casos o factor major envolvido é a prematuridade, dado que a incidência e gravidade desta patologia é inversamente proporcional à idade gestacional.

No RN pré-termo (RNPT), e na base da imaturidade intestinal, estão determinadas características tais como maior permeabilidade da barreira resultante da débil união entre enterócitos, menor secreção de muco e de IgA, motilidade diminuída e maior vulnerabilidade a determinadas agressões. Com efeito, verificou-se que determinadas agressões que alteram o tono do leito microvascular intestinal (hipóxico-isquémicas, infecciosas, relacionadas com a introdução de alimentação entérica, etc.) desencadeiam uma série de reacções inflamatórias em cascata, desproporcionais e excessivas, associadas a invasão da respectiva mucosa por agentes microbianos com consequente proliferação. Este processo, que culmina em necrose de coagulação das áreas afectadas, tipifica a patogénese “clássica” (90% dos casos), afectando essencialmente a ECN nos RN de muito baixo peso (RNMBP).

Por outro lado, determinados estudos sobre microbiota intestinal permitiram identificar, em cerca de 10% dos casos, outro grupo de ECN, afectando RN de termo (RNT) que tipicamente evidenciam quadro clínico iniciado em fase mais precoce e relacionado predominantemente com patologia ao nível do cólon. Os factores de risco associados a este grupo de RNT incluem designadamentre: restrição do crescimento fetal, asfixia perinatal, cardiopatia congénita, policitémia, gastrosquise, exsanguinotransfusão, transfusão de hemoderivados, sépsis, cateterismo umbilical, ruptura prematura de membranas, corioamnionite e diabetes gestacional.

Seguidamente são abordados os principais factores etiopatogénicos, interligados, como que num círculo vicioso. A separação por alíneas foi feita por razões didácticas

Circulação intestinal e isquémia

Admite-se que a hipóxia-isquémia intrauterina promove a redistribuição do débito cardíaco em favor do coração e do sistema nervoso central, privando o intestino imaturo de oxigenação adequada. Efectivamente, pela avaliação do fluxo sanguíneo através do método doppler, demonstrou-se redução do fluxo sanguíneo na artéria mesentérica superior e no tronco celíaco nas situações de restrição de crescimento intrauterino. Esta alteração mantém-se após o nascimento durante a primeira semana de vida, o que sugere, segundo alguns investigadores, que a maior resistência vascular mesentérica já venha programada desde a vida intrauterina. Noutros estudos comprovou-se que a reticulocitose no recém-nascido pré-termo com restrição de crescimento intrauterino constitui um marcador de maior risco para o desenvolvimento de ECN.

Relativamente às características da circulação neonatal cabe referir que existe um equilíbrio muito lábil entre vasodilatação e vasoconstrição, fenómenos mediados respectivamente pelo óxido nítrico (NO) e pela endotelina-1. O estado neonatal basal sob o ponto de vista fisiológico é caracterizado pelo predomínio do NO, gerando-se baixa resistência vascular sistémica. Os estados patológicos causam disfunção endotelial, o que conduz a activação da endotelina-1 e a vasoconstrição, isquémia intestinal e lesão celular. Este mecanismo é compatível com os achados histológicos de necrose de coagulação, típicos da ECN.

Por outro lado, embora o NO desempenhe papel importante na homeostase do tracto gastrintestinal, em situações associadas a inflamação é produzido em elevadas concentrações, o que tem efeito citotóxico directo nos enterócitos.

Substrato

O crescimento e o desenvolvimento do tubo digestivo, assim como a sua capacidade em manter as funções de digestão e absorção, dependem do suprimento adequado em vários nutrientes. A arginina, aminoácido que pode ser sintetizado pelo enterócito, constitui a principal fonte de azoto para a produção local de óxido nítrico. Por sua vez, o óxido nítrico funcionando como mediador-indutor do relaxamento da musculatura lisa vascular, contribui para regular o tono basal arteriolar e, por consequência, o débito sanguíneo ao nível da mucosa intestinal.

A propósito, é importante mencionar estudos experimentais provocando hipóxia-isquémia, ou administrando toxinas ou factor de activação plaquetário; os mesmos demonstraram que a inibição da síntese de óxido nítrico se associou a maior intensidade da lesão tecidual. Por outro lado, comprovou-se que o suprimento exógeno de óxido nítrico contribuiu para atenuar tal efeito. Noutros estudos experimentais demonstrou-se também que a suplementação em arginina (por via oral ou por via endovenosa contínua) atenuava a lesão intestinal na sequência de eventos hipóxico-isquémicos seguidos de reoxigenação.

Por outro lado, há que atender ao facto de a imaturidade intestinal não permitir a absorção e digestão completas dos hidratos de carbono e gorduras do leite. Como consequência, os compostos não digeridos servem como substrato para a proliferação de bactérias entéricas, do que resulta acumulação de hidrogénio, ácidos orgânicos, caseína não digerida e ácidos gordos de cadeia longa no lume intestinal. Admite-se que exposição do epitélio intestinal a estas substâncias origine um processo de inflamação intestinal, conduzindo a lesão.

Imaturidade intestinal e alimentação entérica

Embora se admita classicamente que a colonização do tracto intestinal por germes microbianos constitua um pré-requisito para o desenvolvimento de ECN, a doença pode surgir em crianças sem terem sido alimentadas previamente (cerca de 5-7% dos casos).

O Quadro 1 resume algumas das características que permitem definir a imaturidade gastrintestinal (cuja expressão máxima se verifica no recém-nascido pré-termo) e as consequências que daí resultam.

QUADRO 1 – Imaturidade intestinal e consequências.

Défice de secreção gástrica e hipocloridria
Colonização bacteriana aberrante do tracto gastrintestinal superior; digestão proteica incompleta
Défice de enzimas proteolíticas
Défice de destruição das toxinas bacterianas; digestão proteica incompleta
Motilidade intestinal diminuída
Estase e hipercrescimento bacteriano
Défice de secreção de IgA
Alteração do mecanismo de defesa contra antigénios bacterianos
Redução do número de linfócitos T intestinais
Alteração do mecanismo de preservação da integridade do epitélio intestinal por incapacidade de destruição das células epiteliais infectadas
Hiperpermeabilidade da mucosa intestinal a proteínas, hidratos de carbono e bactérias
Acesso facilitado de bactérias e toxinas aos tecidos intestinais

 

Cabe referir que a alimentação com leite materno fresco constitui uma circunstância susceptível de proteger contra lesões do intestino, tendo em conta a multiplicidade de factores imunoprotectores que o referido leite veicula. De facto, diversos estudos têm demonstrado menor incidência de ECN em crianças alimentadas com leite materno. Estudos em recém-nascidos pré-termo também levaram à conclusão de que a modificação do leite não materno através, designadamente, da acidificação (pH entre 2,5 e 5,5) diminui a taxa de colonização bacteriana gástrica.

Microbiota e toxinas bacterianas

Relativamente a estes factores, importa realçar alguns aspectos:

  1. As bactérias intestinais comensais, de acção benéfica, que integram o microbioma intestinal, (Bifidobacterium, Lactobacillus e Bacteroides) mantêm a homeostase intestinal, a função imune e facilitam a digestão, ao mesmo tempo que protegem o intestino contra a inflamação e diversas agressões, já referidas.
    Nesta perspectiva, importa citar algumas situações que influenciam, atrasam ou comprometem tal colonização benéfica (RN pré-termo, alimentação com fórmula, antibioticoterapia empírica, parto por cesariana, entre outras) e referir que a par da taxa diminuída de colonização dos comensais, surge aumento da prevalência de Clostridium perfringens, Proteobacteria, Firmicutes e Enterobacter. Portanto, situação de disbiose.
    Ora, em diversos estudos, verificou-se que tal alteração no microbioma precede o surgimento da ECN.
    Quanto ao papel das enterobactérias Gram-negativas (E. Coli, Klebsiella, Proteus, etc.) admite-se que actuem:
    • Através de endotoxina com característica de fraca citotoxicidade directa, mas causando lesão tecidual difusa activando a cascata inflamatória; e, indirectamente,
    • Através da disfunção dum receptor para os Gram-negativos; tal receptor, reconhecendo o padrão molecular associado a tais agentes microbianos, como que “barra, faz barragem ou “trava”, como nas “portagens”, a invasão daqueles Gram-negativos. Daí a designação de “Toll-Like Receptor 4” ou TLR-4. Por consequência, a disfunção deste contribui para resposta inflamatória excessiva e lesiva para o intestino.* Pelo contrário, a microbiota comensal (Bifidobacterium, Lactobacillus e Bacteroides) tem efeito contrário, diminuindo a inflamação.

*O Toll-like receptor 4 (Receptor TLR-4) é uma proteína codificada pelo gene TLR4. Reconhecendo determinados compostos como por exemplo o lipopolissacárido (LPS), um componente presente em muitas bactérias Gram-negativas, é responsável pela activação do sistema imune inato.

  1. Os germes bacterianos mais frequentemente implicados como causa específica de ECN são algumas espécies de Clostridia (difficile, perfringens), as quais infectam com especial preferência o tecido isquémico, sendo relevante o papel de toxinas que produzem; de referir, no entanto, que as Clostridia fazem parte da microbiota do cólon do recém-nascido. A este propósito importa salientar que os RN pré-termo evidenciam uma resposta inflamatória excessiva aos micróbios luminais o que contribui para fragilizar a barreira protectora do intestino.
  2. Staphylococcus coagulase negativo e Staphylococcus aureus produzindo toxinas citolíticas (delta toxinas provocando lesão celular intestinal) têm sido considerados nalguns estudos importantes agentes patogénicos.
  3. Os germes microbianos isolados a partir do líquido peritoneal (bactérias e vírus, fungos) dos doentes com ECN são representativos, por um lado, da microbiota do cólon e, por outro, da transferência dos mesmos a partir do intestino lesado.
  4. Relativamente aos agentes víricos, cabe referir Coxsackie B2, Coronavirus e Rotavirus, descritos como desencadeadores de quadro de ECN.

Em suma, não se poderá responsabilizar determinado germe especificamente pelo desenvolvimento de ECN, embora se tenha demonstrado papel importante dalguns deles em circunstâncias de surtos epidémicos.

Mediadores inflamatórios

Uma referência sucinta ao papel dos mediadores inflamatórios locais cuja produção pode ser desencadeada pela colonização aberrante e pela inadequada neutralização de toxinas atrás referidas. Tal atipia do padrão de colonização, associada a imaturidade do epitélio intestinal, origina uma resposta inflamatória bacteriana com produção excessiva de citocinas pró-inflamatórias, sendo que parte desta resposta se relaciona com o sistema imune inato.

A resposta é iniciada com produtos moleculares derivados da parede celular bacteriana actuando sobre receptores presentes no epitélio intestinal iniciando-se a activação da cascata inflamatória na qual tomam parte mediadores inflamatórios como o PAF, TNF-alfa, interleucinas 1, 6, 8, 12, 18, NO, LPS, e radicais livres de oxigénio. Em doentes com ECN os níveis de citocinas estão elevados, correlacionando-se com a gravidade da doença.

O factor de activação das plaquetas (PAF ou platelet-activating factor, regulado pela enzima com efeito de degradação acetil-hidrolase PAF-AH), um fosfolípido, é produzido por células endoteliais, neutrófilos, macrófagos, próprias plaquetas, como resposta a endotoxinas e hipóxia.

O factor de necrose tumoral-alfa (TNF-alfa ou tumor necrosis factor-alpha) é uma citocina libertada por macrófagos sobre os quais actuam endotoxinas.

Ao nível do intestino, a produção de mediadores inflamatórios activando os neutrófilos, originando vasoconstrição, lesão dos vasos capilares intestinais e hipotensão, promove a libertação de radicais livres com consequente lesão intestinal que pode culminar em necrose. De acordo com diversos estudos, o PAF causa lesão intestinal por via dos radicais livres de oxigénio. (ver atrás – o papel dos Toll-like receptors-4: TLR-4)

Outro importante mediador é o chamado lipopolissacárido (LPS), a endotoxina componente das bactérias Gram-negativas, abundantes no tracto gastrintestinal. O mesmo altera a função da barreira gastrintestinal, promovendo a libertação doutros mediadores inflamatórios como NO, interferão – gama e cicloxigenase, com efeitos tóxicos directos sobre os enterócitos.

A fosfatase alcalina intestinal, enzima produzida pelos enterócitos destoxifica o LPS, tendo sido concluído em estudos diversos que a probabilidade de ECN é maior nos doentes em que a fosfatase alcalina (FA) intestinal é deficiente. Daí a especulação quanto ao eventual papel preventivo e terapêutico da mesma.

Lesão por isquémia-reperfusão e acção dos radicais livres de oxigénio

A isquémia seguida de reperfusão do intestino origina aumento da permeabilidade da membrana das células intestinais (atrás referida) e incremento de produção de radicais livres de oxigénio com consequente lesão da referida membrana através de processo de peroxidação lipídica.

Embora o recém-nascido evidencie capacidade limitada para a produção de radicais livres de oxigénio (através da acção das enzimas xantina-oxidase e NADPH-oxidase dos neutrófilos), a capacidade de destoxificação daqueles (através das enzimas catalase, superóxido – dismutase e glutationa – peroxidase) é ainda mais limitada, o que aumenta a probabilidade de lesão do intestino.

A lesão celular, ocorrendo também ao nível do endotélio vascular, pode resultar ainda em perda da integridade deste, agravando os fenómenos de isquémia nos territórios de circulação mesentérica de tipo terminal, como a observada na região ileal distal e da válvula íleo-cecal, a qual é irrigada pela artéria ileocólica, ramo terminal da artéria cólica direita.

Fármacos e substâncias tóxicas

Os fármacos e substâncias tóxicas mais frequentemente associados ao aparecimento de ECN (xantinas e metilxantinas, vitamina E, indometacina, etc.) comportam, de facto, um risco acrescido pela alteração do lábil equilíbrio hemodinâmico e vasomotor em recém-nascidos evidenciando grau importante de imaturidade, o que favorece o desencadeamento de fenómenos vasoclusivos.

Factor de crescimento epidérmico

Demonstrou-se que os factores de crescimento desempenham importante papel, não só no desenvolvimento do tracto gatrintestinal, como na resposta às agressões.

O chamado factor de crescimento epidérmico (FCE) é um péptido que pertence a uma família que inclui outros péptidos, responsável por um conjunto de respostas biológicas no tubo digestivo dizendo respeito, essencialmente, à regulação da replicação celular, e ao movimento e à sobrevivênvia das células.

Esta família de péptidos tem afinidade com receptores específicos (receptores do FCE) distribuídos em vários territórios do organismo e ao longo do tubo digestivo do feto e RN; mais concretamente, tais receptores localizam-se, respectivamente, no compartimento basolateral das células da epiderme e na membrana apical do epitélio viloso intestinal.

Estudos recentes relacionam tal FCE com a ECN verificando, designadamente, excreção urinária de FCE em RN com quadro de ECN, especulando-se que tal resulta de maior absorção de FCE no intestino lesado. Outros estudos, apontando a associação entre níveis baixos de FCE na saliva e no soro, e o aparecimento de ECN, levantam a hipótese de a administração daquele ter importância na prevenção e tratamento.

Como consequência anatomopatológica das diversas noxas descritas, o exame macroscópico das ansas revela que as mesmas estão distendidas e com paredes friáveis; a mucosa evidencia áreas hemorrágicas ulceradas e necrosadas, podendo estar cobertas por exsudado seroso. Faz parte do quadro a verificação de gás intramural (de localização subserosa ou submucosa) denominada pneumatose). A Figura 1 (achado intra-operatório) é elucidativa: imagens esféricas simulando “pequenos balões” ao nível da parede intestinal, os quais têm tradução radiológica. (ver adiante)

Pode verificar-se igualmente líquido peritoneal, claro, turvo ou hemorrágico, aspectos que variam em função do grau de inflamação.

O exame histológico da parede intestinal pode evidenciar aspectos variáveis: edema, áreas hemorrágicas e de necrose de coagulação, úlceras, áreas de trombose, e sinais de reparação tecidual. As áreas lesadas estão cobertas por células inflamatórias, fibrina, e epitélio necrótico que, conglomerados em camada, formam uma pseudomembrana. Nalgumas situações pode verificar-se gás no sistema porta. Como característica relevante, refere-se a concomitância de áreas de inflamação, necrose e reparação teciduais, o que testemunha as características evolutivas desta entidade clínica.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Como factores predisponentes mais típicos nos RN pré-termo são referidos os seguintes: infecção materna, ruptura de membranas > 24 horas antes do parto, ductus arteriosus permeável e sintomático, asfixia perinatal, acidose, choque, alimentação entérica com fórmula, administração de ranitidina, etc..

Nos RN de termo e/ou de peso superior a 2.000 gramas apontam-se os seguintes factores predisponentes: asfixia perinatal, policitémia/ hiperviscosidade, problema respiratório, hipoglicémia, antecedentes de intervenção cirúrgica abdominal para correcção de defeitos da parede abdominal ou de lesões do tubo digestivo, cardiopatia congénita de baixo débito sanguíneo no território intestinal, etc..

O quadro clínico pode variar entre uma forma benigna, subclínica, com recuperação total sem sequelas, até uma forma grave, com sinais de sépsis, choque, peritonite generalizada, coagulopatia e falência multiorgânica.

Os sinais clínicos mais característicos incluem: distensão abdominal, dificuldade respiratória, resíduo gástrico, vómito bilioso, diarreia, rectorragia, dificuldade respiratória, labilidade hemodinâmica e térmica, e alterações inflamatórias da parede abdominal com eritema e rede venosa visível, indicativas de peritonite e de necrose intestinal subjacente.

A palpação abdominal pode evidenciar hiperestesia localizada com empastamento subjacente secundário a sofrimento de ansa abdominal ou massa abdominal, relacionável com aglomerado de ansas imóveis, o qual pode indiciar perfuração coberta ou abcesso intraperitoneal. A distensão extrema e a presença de sinais peritoneais generalizados são compatíveis com necrose transmural e perfuração de ansa, peritonite grave e pneumoperitoneu.

O diagnóstico radiológico de ECN está bem determinado, salientando-se os principais sinais: distensão de ansas; presença de gás intramural (pneumatose intestinal); ascite; pneumoperitoneu; presença de gás na circulação porta; ansa intestinal edematosa e fixa; diminuição de gás intrabdominal com presença de ansas assimétricas e distensão cólica. (Figuras 2 a 4)

Torna-se óbvio concluir que a vigilância imagiológica deve ser seriada para comparação evolutiva dos padrões anómalos identificados.

Como manifestações laboratoriais frequentemente associadas enumeram-se as mais importantes: neutropénia ou neutrofilia com aparecimento de formas imaturas no sangue periférico, trombocitopénia, perfil de coagulação anómalo, hiponatrémia de aparecimento súbito, acidose metabólica, hipoproteinémia, hiperglicémia, etc..

Sob o ponto de vista da evolução clínica e gravidade são descritos diversos estádios definidos por Bell (Critérios evolutivos de Bell) cuja identificação, valorizando de modo cumulativo sinais sistémicos, intestinais e imagiológicos, tem implicações práticas importantes quanto às decisões terapêuticas e ao prognóstico. (Quadro 2)

FIGURA 1. Aspecto macroscópico de pneumatose (gás intramural); distensão bolhosa. (NIHDE)

FIGURA 2. ECN – Imagem radiológica de pneumoperitoneu.

FIGURA 3. ECN – Imagem radiológica abdominal simples evidenciando distensão abdominal, edema e espessamento da parede das ansas e sinais de pneumatose (gás intramural); presença de gás na área hepática.

FUGURA 4. ECN – Imagem de radiografia abdominal simples com sinais de pneumatose e panecrose.

QUADRO 2 – Estádios Evolutivos de Bell na ECN.

I A – Suspeita de ECN
Instabilidade térmica, apneia, bradicardia, letargia
Resíduo gástrico aumentado, distensão abdominal ligeira, sangue oculto (+) nas fezes
Sinais radiológicos: distensão de ansas, íleo ligeiro

I B – Suspeita de ECN
Idem +
Rectorragia

II A – ECN definida (forma ligeira)
Idem +
Auscultação abdominal: ausência de ruídos (“silêncio”)
Hiperestesia abdominal
Sinais radiológicos: dilatação de ansas, íleo, pneumatose intestinal (ar intramural)

II B – ECN definida (forma moderada)
Idem +
Acidose metabólica ligeira, trombocitopénia ligeira
Celulite abdominal ou massa no quadrante inferior direito
Sinais imagiológicos de gás na veia porta (radiografia, ecografia), ascite

III A – ECN avançada (forma grave)
Manifestações clínicas de II B+ hipotensão, bradicardia, apneia grave, acidose mista, neutropénia e CID
Sinais intestinais: de II B + peritonite, distensão e defesa abdominais
Sinais imagiológicos: os de II B + ascite

III B – ECN avançada (forma grave com perfuração intestinal)
Manifestações clínicas de III A
Sinais intestinais de III A
Sinais imagiológicos de III A + pneumoperitoneu

Para avaliação do grau de oxigenação ao nível dos órgãos (designadamente SNC, intestino, e outros), com valor prognóstico, presentemente (2020), alguns centros dispõem de tecnologia aplicando espectroscopia próxima dos infra-vermelhos.

Prevenção

Ao delinear estratégias de prevenção torna-se fundamental entrar em conta com os mecanismos potencialmente envolvidos na etiopatogénese.

Ao longo do tempo têm sido preconizadas diversas estratégias, algumas das quais têm evoluído em função dos resultados da investigação científica, designadamente de meta-análises de uma multiplicidade de estudos.

Seguidamente são descritas diversas medidas, as quais foram estratificadas em função de critérios de segurança e eficácia, com base em estudos da Cochrane Library.

1 – Leite materno

O leite humano contém múltiplos factores tais como imunoglobulinas, interleucina-10, FCE, acetil-hidrolase, entre outros; por outro lado, o factor de activação plaquetária (PAF) que comparticipa a etiopatogénese da ECN evidencia concentrações elevadas em casos de ECN, enquanto os níveis da enzima que promove a sua hidrólise (acetil-hidrolase) estão diminuídos.

Ora, o leite humano contém níveis elevados de FCE e de acetil-hidrolase, factores que são protectores em relação à ECN. Daí a incidência cerca de 6 a 10 vezes menor de ECN em RN pré-termo alimentados com leite materno, em comparação com a verificada nos alimentados com fórmula, o que tem sido provado em estudos de meta-análise.

Trata-se duma medida segura, de eficácia comprovada. Deve ser iniciada nos primeiros 2-5 dias (a pausa alimentar > 5-7 dias, inicialmente recomendada é actualmente desaconselhada), recomendando-se nos primeiros dias alimentação entérica trófica com leite materno, não nutricional, com incrementos diários modestos e prudentes ~15 mL/kg/dia, em função da avaliação clínica caso a caso. (ver Parte sobre Neonatologia)

2 – Corticoterapia pré-natal

Uma vez que o nascimento antes do termo da gravidez constitui o factor de risco mais relevante de ECN, a possibilidade de indução medicamentosa da maturidade intestinal com a utilização de corticosteróide pré-natal tem sido estudada. A este propósito cabe referir que os resultados de estudos aleatórios multicêntricos não têm sido concordantes: nalguns demonstrou-se diminuição de incidência de ECN, enquanto noutros, precisamente o contrário.

Apesar destes achados aparentemente contraditórios, a utilização de corticóides pré-natais (betametasona) está hoje consagrada como uma importante medida para a redução da mortalidade e morbilidade relacionáveis com a imaturidade pulmonar e com a prematuridade em geral.

Esta medida é considerada de eficácia comprovada, embora de segurança questionável.

3 – Encerramento precoce do ductus arteriosus

A presença de canal arterial patente promove um desvio do volume sanguíneo para as artérias pulmonares na fase diastólica, o que tem como consequência a diminuição da perfusão do territórios esplâncnico, aumentando a probabilidade de ECN. Este dado fisiopatológico tem confirmação na prática clínica na sequência de estudos controlados e aleatórios em recém-nascidos pré-termo de peso inferior a 1.000 gramas submetidos a laqueação cirúrgica precoce do canal arterial.

A partir do início dos anos 80, a indometacina (inibidor das prostaglandinas) passou a ser usada profilacticamente, com eficácia demonstrada, para o encerramento do canal arterial e prevenção da hemorragia intracraniana. No entanto, estudos ulteriores identificaram efeitos colaterias, tais como diminuição do fluxo sanguíneo esplâncnico, aumento da incidência de ECN e perfuração intestinal, comprometendo a recomendação universal para o seu uso.

Noutros estudos demonstrou-se diminuição do fluxo sanguíneo esplâncnico menos marcada empregando outro fármaco, também inibidor das prostaglandinas – o ibuprofeno. Recentemente, dados da Cochrane Library provaram que o uso de indometacina não está associado a aumento de risco de ECN.

Esta medida é considerada de eficácia comprovada, embora de segurança questionável.

4 – Antibioticoterapia por via enteral

A análise de estudos da Cochrane Library empregando antibióticos por via enteral (aminoglicosídeos) sugere, de facto, que tal procedimento contribui para reduzir tanto a incidência, como a mortalidade por ECN. No entanto, face ao risco acrescido de selecção de estirpes com tal estratégia, tal procedimento não deve ser posto em prática.

Esta medida é considerada de eficácia comprovada, embora de segurança questionável.

5 – Probióticos

Na sequência do que foi referido no capítulo respeitante a esta área, importa acentuar que, em modelos experimentais e em estudos meta-analíticos na espécie humana, se comprovou a eficácia na prevenção no RN pré-termo, com redução da incidência e da mortalidade, recomendando-se o uso de duas ou mais espécies, incluindo designadamente Lactobacillus acidophilus e Bifidusbacterium spp. Contudo, os investigadores alertaram para o risco de sépsis em RN pré-termo com peso < 750 gramas.

Tendo em consideração que os estudos analisados adoptaram metodologias diversas, considera-se que esta medida é considerada de eficaz, embora de segurança questionável.

6 – Suplemento de arginina

Com base no achado anátomo-patológico de necrose de coagulação, resultante de eventos isquémicos locais ou sistémicos, o papel do óxido nítrico tem adquirido importância especial. Com efeito, o óxido nítrico é produzido durante a conversão enzimática da L-arginina em L-citrulina sob a acção da sintetase de NO. Embora os investigadores considerem o suplemento exógeno de arginina uma arma promissora na prevenção da ECN, esta medida é considerada de eficácia comprovada, embora de segurança questionável.

7 – Novos fármacos (anticitocinas e factores de crescimento)

Com estes fármacos, em fase de investigação, foi demonstrada eficácia em modelos animais, mas não na espécie humana.

8 – Pré-bióticos (derivados do leite humano e de plantas), glutamina, ácidos gordos ómega-3, receptores agonistas funcionando como barreira a compostos microbianos

Com estes compostos, também em fase de investigação, não foi demonstrada eficácia, razão pela qual são desaconselhados.

9 – Imunoglobulinas e bloqueadores H2 por via oral

Sabendo-se que no recém-nascido pré-termo são baixos os níveis séricos de imunoglobulinas, nomeadamente IgA secretória, diversos estudos aleatórios avaliaram o papel da utilização profiláctica de preparados de imunoglobulinas e de bloqueadores H2 por via oral na prevenção da ECN.

Embora alguns autores tivessem comprovado redução significativa da doença nos grupos tratados com os referidos compostos, de acordo com a meta-análise da Cochrane Library concluiu-se que são desaconselhados.

Tratamento

1 – Medidas gerais

Perante a suspeita de ECN há que pôr em execução um conjunto de medidas gerais prioritárias de carácter conservador, no pressuposto de que a avaliação, em centro especializado e em unidade de cuidados intensivos, deverá ser feita por equipa multidisciplinar: interrupção imediata de alimentação por via entérica, descompressão gástrica com introdução de sonda naso ou orogástrica, manutenção, após correcção, dos equilíbrios hidroelectrolítico, ácido-base, hemodinâmico, início de nutrição parentérica, início de antibioticoterapia de largo espectro para cobertura de germes gram-positivos, gram-negativos e anaeróbios (esquema empírico a modificar em função do contexto clínico-microbiológico: ampicilina + aminoglicosídeo ou cefalosporina de terceira geração + clindamicina ou metronidazol). No âmbito da avaliação de parâmetros hematológicos, haverá que manter hematócrito em torno de 40-45% e número de plaquetas acima de 40.000/mmc.

Nos casos com boa resposta às medidas gerais acima discriminadas, isto é, com diminuição da distensão abdominal, desaparecimento das imagens radiológicas de pneumatose, desaparecimento do resíduo gástrico e da perda de sangue nas fezes, mantém-se pausa alimentar total até ao 12º ou 14º dia de evolução, e reintroduzindo-se de modo muito cauteloso e progressivo, por fases, o suprimento entérico utilizando leite materno ou fórmula de aminoácidos hiposmolar.

Estas medidas, dum modo geral, aplicam-se aos estádios, de I A a II B (classificação de estádios evolutivos de Bell atrás descrita).

2 – Medidas específicas

Pelo contrário, nos casos em que se verifica progressão rápida do quadro clínico de ECN e agravamento global (correspondendo, em geral aos estádios III A e III B), para além de medidas gerais (mais agressivas, incluindo a administração de inotrópicos e a assistência ventilatória), devem ser ponderados dois procedimentos invasivos: paracentese abdominal para drenagem peritoneal simples e/ou laparotomia.

De referir que a decisão da necessidade e do momento adequado da laparotomia deve ser individualizada com base na análise evolutiva dos achados clínicos e imagiológicos. Uma vez que os doentes em causa evidenciam, na maior parte das vezes, estado crítico, a decisão deve ser tomada de preferência, por equipa multidisciplinar: cirurgião, anestesista e pediatra-neonatologista.

Reportando-nos aos estádios de Bell, a detecção de sinais de ascite (estádio II A), implicará, em princípio, drenagem peritoneal, enquanto a detecção de sinais de pneumoperitoneu – indicativo de perfuração de ansa – (estádio III B) implicará laparotomia exploradora com eventual ressecção do segmento afectado, seguida de anastomose primária ou enterostomias.

Nalguns centros cirúrgicos é realizada já laparotomia em presença do estádio III A (ascite sem evidência de pneumoperitoneu) sendo que a tendência actual, no estádio III A, segundo dados da literatura, seja reservar a drenagem peritoneal simples para os casos de idades gestacionais muito baixas e menor peso.

Para além do pneumoperitoneu, outros sinais mais frequentemente associados a perfuração, estabelecendo a indicação de laparotomia são: massa abdominal (indicativa de perfuração coberta ou de abcesso intraperitoneal), alterações inflamatórias da parede abdominal (indicativas de peritonite e de necrose intestinal subjacente), ansa intestinal em posição fixa nas radiografias simples seriadas e presença de ar no sistema porta.

As alterações laboratoriais indicativas de processo clínico em progressão que poderão estabelecer indicação de laparotomia são: alterações da coagulação, trombocitopénia, hiponatrémia e acidose metabólica persistente.

Igualmente, a detecção de germes na coloração pelo Gram no material obtido por paracentese abdominal previamente realizada, poderá constituir indicação para laparotomia.

Uma vez concretizada a ressecção intestinal, deve restabelecer-se, logo que possível, o trânsito intestinal, nomeadamente se em presença de estabilidade hemodinâmica, e na ausência de peritonite ou de ressecção jejunal muito proximal. Nalguns casos há que proceder a duas ou mais enterostomias descompressivas, utilizando os segmentos intestinais viáveis e funcionantes para o restabelecimento ulterior do trânsito intestinal.

No período pós-operatório, o doente deve ser submetido a programa de nutrição parentérica total, pelo que se torna necessário colocar uma via central de longa duração (cateter do tipo Hickman-Broviac).

Prognóstico

As complicações letais da ECN prendem-se com a progressão do processo patológico desencadeante, que pode culminar com o desenvolvimento da chamada síndroma de reacção inflamatória sistémica (SRIS) num contexto de sépsis e acidose metabólica irreversível.

Em cerca de 20 a 25% dos casos poderão desenvolver-se quadros de estenose (fibrose estenosante pós-inflamatória), mais frequente no território ileal distal e cólico; em tais circunstâncias há indicação para ressecção.

A síndroma de intestino curto constitui outra complicação não imediata surgindo como consequência de ressecções intestinais muito alargadas por necrose intestinal extensa.

A sépsis de cateter central, nomeadamente a sépsis por fungos, tem sido apontada como uma complicação relevante pela mortalidade significativa que comporta.

Em suma, os progressos da terapia intensiva e das técnicas operatórias permitem actualmente obter nos casos de ECN uma sobrevivência global > 85%.

Agradecimentos

Os autores e editor agradecem aos Drs. Micaela Serelha, Daniel Virella e Sérgio Pinto a cedência de dados estatísticos e imagiológicos referentes à UCIN-HDE.

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SINÉQUIAS DOS PEQUENOS LÁBIOS

Definição e importância do problema

Esta situação consiste na união parcial ou total dos pequenos lábios vulvares, por “ponte” de tecido cutâneo delgado e mole, em geral com origem na respectiva comissura posterior, progredindo em direcção ao clítoris; consequentemente há oclusão parcial ou total da abertura da vagina.

Trata-se dum problema muito comum do ambulatório, de tipo adquirido, ocorrendo sobretudo entre os 3 meses e os 4 anos de idade, com uma frequência que se aproxima de 2% entre crianças do sexo feminino.

Etiopatogénese

Este problema é explicável por baixos níveis de estrogénios que tornam o epitélio labial susceptível à formação de aderências após traumatismo local, infecção, ou irritação por urina amoniacal, nesta última eventualidade em relação com o uso das fraldas. Dado que os níveis de estrogénios são mais elevados no recém-nascido e após os 5 anos de vida, a frequência diminui nestes períodos etários.

Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial

Pela observação dos genitais externos observa-se a referida união dos pequenos lábios, sendo que na maioria das vezes tal anomalia é assintomática. Como resultado de certo grau de retenção da urina (que pode refluir para a vagina), poderão surgir vulvovaginite, disúria, bacteriúria assintomática e infecção urinária. Esta última poderá surgir em cerca de 20%-40% dos casos, o que obrigará a tratamento.

O diagnóstico diferencial poderá fazer-se, de acordo com o grau de aderência, com hímen imperfurado, atrésia vaginal e ambiguidade genital.

Prevenção e tratamento

Para prevenir a sinéquia dos pequenos lábios torna-se importante uma correcta higiene dos genitais externos na criança, mantendo-os limpos e secos e mudando frequentemente a fralda.

A aplicação tópica de creme de estrogénios duas vezes por dia durante período máximo de 1-2 semanas é, em geral, eficaz. Uma vez verificada a eficácia de tal medida, deverá continuar-se o tratamento com a aplicação de vaselina, ou de pasta à base de óxido de zinco, durante 1-2 meses para evitar recidiva.

Em casos especiais que não cedem ao tratamento médico, está indicada a separação activa (cirúrgica) sob anestesia.

VULVOVAGINITE

Definição

A vulvovaginite, o problema ginecológico mais frequente em idade pediátrica, é um processo inflamatório da vulva, vagina ou ambas.

Etiopatogénese e classificação

O factor predisponente mais importante do referido processo inflamatório é o baixo nível sérico de estrogénios na fase pré-pubertária que torna o epitélio vaginal atrófico e mais susceptível à invasão microbiana. Refira-se que na puberdade o nível de estrogénios aumenta, condicionando diminuição do pH/aumento da acidez ao nível da vagina. Recorda-se, a propósito, que os lactobacilos constituem a flora vaginal predominante que converte a glucose em ácido láctico, mantendo o pH entre 3,8 e 4,2.

No conceito lato de vulvovaginite são englobadas essencialmente as seguintes formas clínicas:

  • Vulvovaginite fisiológica/leucorreia fisiológica;
  • Vaginite inespecífica resultante do hipercrescimento da flora vaginal aeróbia habitual em relação com higiene deficiente;
  • Vaginose bacteriana causada por Gardnerella vaginalis associada a anaeróbios locais;
  • Vulvovaginite propriamente dita causada, quer por multiplicidade de agentes microbianos, nemátodos e diversos parasitas, quer por corpos estranhos.

Relativamente à vulvovaginite propriamente dita, quanto a agentes vivos, estão implicados mais frequentemente os seguintes: Candida, Giardia, Shigella, Staphylococcus, Streptococcus, Enterobius vermicularis, poxvírus/molusco contagioso, Sarcoptes scabei/sarna, Phthirus pubis/pediculose púbica, etc..

Manifestações clínicas e diagnóstico

Os sinais clássicos de vulvovaginite são leucorreia, eritema e prurido. Pode surgir disúria.

De acordo com o aspecto macroscópico e o cheiro da leucorreia é, em geral, possível determinar a respectiva etiologia. Assim, o aspecto purulento e cheiro fétido apontam para corpo estranho; a leucorreia sanguinolenta sugere infecção por Shigella ou Streptococcus do grupo A; o “cheiro a queijo” é a favor de infecção por Candida; o aspecto de líquido pouco espesso, acinzentado e com “cheiro a peixe” aponta para provável vaginose.

Outras etiologias prováveis decorrerão do contexto clínico, na medida em que a criança, obviamente, deve ser observada na globalidade após anamnese pormenorizada.

Para o esclarecimento etiológico importa igualmente a realização de exames complementares, tais como exame citoquímico e microbiológico/parasitológico, directo e cultural do líquido vaginal, das fezes e, eventualmente, da urina.

Prevenção e tratamento

O tratamento é etiológico; nele se incluem, claro, medidas de higiene geral (e a remoção de corpo estranho, caso se comprove). São salientadas algumas situações: na vaginite inespecífica impõe-se uma higiene perineal correcta; na vaginose está indicado o metronidazol por via oral; nas vulvovaginites por Candida estão indicados antifúngicos tópicos, por exemplo, fluconazol, nistatina; na pediculose púbica o creme de permetrim a 1%.

Prognóstico

O prognóstico é bom, sendo raras as complicações.

OBSTRUÇÃO VAGINAL BAIXA

Definição

A designação genérica de obstrução vaginal engloba as situações em que se verifica retenção de conteúdo luminal vaginal. A forma mais frequente de obstrução é a chamada obstrução vaginal baixa causada por imperfuração do hímen, defeito relacionável com ausência de regressão himenal embrionária por falência da abertura da vagina para o seio urogenital.

Outras causas de obstrução vaginal baixa incluem defeitos congénitos do desenvolvimento embrionário da vagina (raros):

  • Fusão vertical incompleta da vagina, traduzindo-se por septos vaginais longitudinais e transversos (falência de canalização completa da vagina);
  • Septos vaginais transversos;
  • Alterações da fusão lateral, por vezes associadas a útero didelfos e massa pélvica.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A obstrução vaginal baixa é uma situação clínica que pode ser identificada nos períodos pré-natal, neonatal ou mais tardiamente.

No período neonatal, pode surgir como hidrocolpos (colecção líquida enquistada na vagina), havendo a possibilidade de compressão abdómino-diafragmática pelo efeito de massa observado.

Nos casos de manifestações mais tardias, pode esta situação manifestar-se pela associação de amenorreia, dor abdominal recorrente e massa abdominal nos quadrantes inferiores.

Em relação com obstrução vaginal por alterações da fusão lateral, pode observar-se massa pélvica relacionada com acumulação de fluido menstrual retrógrado por oclusão da hemivagina.

Um exame perineal cuidadoso viabiliza de imediato o diagnóstico.

O estudo ecográfico permite delinear a imagem de distensão uterovaginal, o seu efeito de massa e, também, eventual compressão extrínseca sobre a árvore excretora renal.

Tratamento

A obstrução vaginal baixa tem sempre indicação cirúrgica em qualquer idade. A intervenção consiste em realizar uma incisão no hímen, o que permitirá a drenagem passiva do conteúdo retido.

No período neonatal, este procedimento pode constituir uma urgência pela possibilidade de a distensão uterovaginal, comprimindo o diafragma, originar um quadro de síndroma de dificuldade respiratória.

Seguimento

O seguimento clínico é fulcral para a manutenção da permeabilidade vaginal por meio de dilatações progressivas e periódicas (mas cuidadosas) por especialista com experiência.

Na pré-adolescência torna-se fundamental a realização de exame ginecológico e a verificação de permeabilidade himenal.

Prognóstico

O prognóstico da obstrução vaginal de natureza himenal é muito bom, no caso de não haver associação com outros defeitos génito-urinários.

OBSTRUÇÃO VAGINAL ALTA

Definição

Nesta forma de obstrução vaginal, mais complexa que a anterior, verifica-se a existência de um sinus urogenital (SUG), sinal de alteração do desenvolvimento embrionário. O referido SUG caracteriza-se pela existência dum canal comum que resulta, quer da falência do desenvolvimento distal dos dois canais de Muller, quer da ausência do desenvolvimento da placa ureter-vaginal.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A obstrução vaginal alta manifesta-se classicamente no período neonatal sob a forma de hidrocolpos ou hidromucocolpos (acumulação de muco ou fluido sem sangue na vagina) muito volumoso.

O exame físico dos genitais externos evidencia, ao nível do períneo, um orifício único (SUG), ausência de uretra feminina normal e massa hipogástrica volumosa, relacionável com dilatação vaginal e uterina (hidrocolpos/hidromucocolpos).

Tratamento

A presença de hidrocolpos muito volumoso tem indicação operatória de urgência pela compressão diafragmática com consequente repercussão na função respiratória.

Assim, o tratamento de urgência consiste em drenar o conteúdo vaginal por via suprapúbica; posteriormente, de modo programado, é necessário reconstruir o tracto genital inferior, separando-o por completo do SUG, que será convertido em nova uretra.

Seguimento

Nesta situação clínica, o seguimento rigoroso na primeira infância e a manutenção dum programa de dilatações progressivas são fundamentais para evitar o desenvolvimento de estenose da uretra e do tracto genital inferior reconstruído.

Prognóstico

O prognóstico final desta anomalia depende da existência doutros defeitos génito-urinários associados. A duplicação uterina (utero didelfus) e a septação vaginal estão geralmente associadas a perturbações da fertilidade. A capacidade de continência urinária e a função do colo vesical original podem ser afectadas pela neouretra reconstruída utilizando o SUG.

Quer a duplicação uterina, quer a septação vaginal, poderão necessitar de correcção cirúrgica ulterior; por esta razão, o prognóstico delineado previamente poderá modificar-se.

SÍNDROMA DE MAYER-ROKITANSKY-KUSTER-HAUSER

Definição e etiopatogénese

A chamada síndroma de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser integra um conjunto de anomalias constituídas por: – agenésia vaginal; – útero e trompas rudimentares; – vulva e ovários anatomicamente normais. Trata-se duma situação que surge em RN com a frequência compreendida entre 1/4.000 e 1/5.000, resultante de defeito grave do desenvolvimento bilateral das estruturas müllerianas; a causa é desconhecida.

O Quadro 1 sintetiza os principais problemas clínicos associados a defeitos do desenvolvimento das estruturas müllerianas.

QUADRO 1 – Problemas clínicos relacionados com defeitos do desenvolvimento das estruturas müllerianas.

• Hidrossalpinge (acumulação de fluido seroso nas trompas de Falópio)
• Hidrocolpos (acumulação de muco ou fluido sem sangue na vagina)
• Hematométrio (acumulação de fluido menstrual no útero por atrésia do colo uterino ou aplasia total da vagina)
• Útero unicórneo ou unicorne (defeito estrutural do útero resultante da não descida de um ducto mülleriano)
• Útero bicórneo ou bicorne (defeito estrutural do útero consistindo em 1 cervix e 2 cornos uterinos)
• Útero didelfos (defeito estrutural do útero consistindo respectivamente em 2 cervix e 2 cornos uterinos)

Manifestações clínicas e diagnóstico

A forma de apresentação clássica é ausência de menarca no contexto de fenótipo e cariótipo femininos normais. Tal equivale a dizer que, em geral, o diagnóstico é tardio e ocasional na ausência de exame perineal sistemático na primeira infância: o achado do exame objectivo é ausência de permeabilidade do introito vaginal. O desenvolvimento sexual secundário é normal, uma vez que os ovários são normofuncionantes.

Pode haver anomalias associadas, mais frequentemente do tracto urinário (agenésia renal e ureteral: ~25%) e esqueleto (vértebras: ~10%).

Tratamento

Esta anomalia congénita tem sempre indicação operatória formal devido às implicações fisiológicas e psicológicas associadas ao desenvolvimento sexual da mulher.

Considera-se o período durante a adolescência o recomendado para a reconstrução vaginal.

Nos casos de atrésia vaginal distal, com útero não totalmente rudimentar e com endométrio funcionante, é necessário criar uma vagina permeável para se proceder à drenagem do conteúdo uterino. Nos casos de agenésia total da vagina, e de útero completamente rudimentar e não funcionante, a criação duma vagina destina-se a permitir à doente uma função sexual normal.

A vagina pode ser reconstruída de acordo com várias técnicas: utilizando a pele perineal na forma de retalhos pediculados; ou um molde de pele da face interna da coxa em enxerto livre; ou ainda utilizando um segmento pediculado de cólon sigmóide.

Seguimento

O seguimento clínico da reconstrução vaginal deve ser muito rigoroso para prevenir as complicações mais comuns associadas às diversas técnicas enunciadas: necrose isquémica dos tecidos ou a infecção pós-operatória. Todas as técnicas referidas necessitam de longo período de dilatações vaginais para evitar a estenose cicatricial pós-operatória.

Prognóstico

Na ausência de agenésia renal associada, o prognóstico é bom. Excluindo esta associação, o mesmo é, então, dependente do sucesso da reconstrução vaginal. Nos casos de útero não rudimentar poderá haver complicações associadas a fertilidade. Nos casos de trompas e útero completamente rudimentares e não funcionantes, isto é, sem endométrio sensível ao ciclo hormonal, a infertilidade é a regra.

MASSAS ANEXIAIS QUÍSTICAS NO RN

Importância do problema e definição

Os tumores ginecológicos mais frequentes na criança são de origem ovárica, apresentando-se geralmente como massas abdominais. Os tumores ováricos correspondem a cerca de 1% de todas as neoplasias malignas na idade pediátrica, sendo que cerca de 8% de todos os tumores malignos abdominais são de origem ovárica. Por outro lado, cerca de 10%-30% dos tumores ováricos operados na infância e adolescência são malignos.

Os quistos funcionais do ovário raramente persistem para além do período neonatal.

Os quistos foliculares do ovário podem ser demonstrados desde o nascimento até à puberdade, desaparecendo espontaneamente.

As chamadas massas anexiais quísticas do RN, sintetizadas nesta alínea, são alterações estruturais ováricas quísticas, foliculares ou luteínicas, cujo desenvolvimento se relaciona com estimulação hormonal materna. Actualmente, a sua incidência está a aumentar, o que pode ser explicado pela utilização cada vez maior dos estudos ecográficos realizados no âmbito da vigilância pré-natal; neste contexto, as estatísticas apontam para uma frequência de identificação em cerca de 34% nos RN do sexo feminino.

Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial

Na grande maioria, as massas anexiais quísticas correspondem a um problema clínico assintomático, sendo o respectivo diagnóstico quase sempre ecográfico.

Surgem manifestações nas seguintes circunstâncias:

  1. Torção ovárica (o que acontece em ~25% das massas ováricas benignas);
  2. Fenómenos hemorrágicos intra-quísticos;
  3. Ruptura ou oclusão intestinal por compressão extrínseca do intestino pelos quistos;
  4. Aderência ovárica à parede duma ansa intestinal.

As manifestações originando dor levam a choro e irritabilidade. A palpação abdominal poderá detectar massa, e o perímetro abdominal pode estar aumentado.

Nos casos assintomáticos, a ecografia ocasional evidencia imagens características redondas, de parede fina e bem delimitada, homogéneas e não ecogénicas no interior do ovário. Nos casos de quistos foliculares verificam-se imagens arredondadas, não ecogénicas; o parênquima do ovário está tumefacto, com aumento da espessura da camada folicular do cótex.

Nas formas sintomáticas (a que correspondem os mecanismos atrás descritos de 1 a 4), a ecografia evidencia parede quística espessa e ecogénica, com zona interior não homogénea, septos fibrosos e/ou interface sólido – conteúdo líquido. A ecografia com doppler de cor e a laparoscopia confirmam o diagnóstico.

O diagnóstico diferencial das referidas massas anexiais é feito fundamentalmente com: quistos do úraco; duplicação quística intestinal; hidrocolpos; e linfangioma intra-abdominal.

Tratamento

As massas anexiais têm indicação cirúrgica a qual está dependente da sua dimensão, da presença de manifestações clínicas acompanhantes e do padrão imagiológico ecográfico.

Em quistos de dimensão > 40 mm, em que o risco de torção é mais provável, deverá ser realizada uma punção aspirativa do mesmo, ou ressecção, com conservação do tecido ovárico associado.

Na presença de sintomatologia atribuível directamente a complicações associadas à lesão quística, a indicação operatória é indiscutível.

Não existe, no entanto, consenso sobre a indicação cirúrgica em quistos assintomáticos, cujos sinais ecográficos se tenham modificado, devendo cada caso ser analisado especificamente.

Seguimento

O estudo evolutivo até ao primeiro ano de vida é muito importante, uma vez que está comprovada a elevada taxa de lesões que regridem espontaneamente durante esse período.

A avaliação ecográfica periódica e programada da lesão, assim como a vigilância laboratorial por meio de marcadores bioquímicos tumorais (CA 25, alfa-fetoproteína, gonadotrofina humana coriónica, lactato desidrogenase, estradiol, testosterona, embrioglicano F9, inibina, substância inibidora mülleriana, etc.) permitem distinguir estas lesões, de lesões sólidas que, em geral, não regridem espontaneamente.

Prognóstico

O prognóstico é geralmente bom. As lesões heterogéneas sólidas, constituem uma raridade neste grupo etário, sendo que as lesões puras têm, em geral, regressão espontânea. A ressecção cirúrgica, com conservação do tecido ovárico é, em geral, curativa.

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Neste capítulo são referidas de modo sucinto as idades recomendadas para intervenções cirúrgicas electivas (situações mais frequentes) no pressuposto de que poderá haver variantes de actuação dependendo do contexto clínico de cada caso. 

Parede abdominal/região inguinal

Hérnia inguinal ou inguinoscrotal

Quando diagnosticada (ponderando situações com antecedentes de prematuridade).

Hérnia umbilical

Após os 4 anos, tendo em conta o encerramento espontâneo frequente.

Hérnia da linha branca

Em qualquer idade, não havendo queixas (o estrangulamento é raro).

Órgãos genitais

Fimose  

Após a criança deixar de usar fraldas (em regra após 3-4 anos). Haverá que ponderar caso a caso as situações acompanhadas de infecção urinária.

Parafimose

Intervenção de urgência (em geral não cruenta).

Hidrocele comunicante

Após os 2 anos; se existirem dúvidas quanto ao diagnóstico diferencial com hérnia inguinal, a intervenção deve ser realizada uma vez identificada a situação.

Quisto do cordão

Após os 2 anos.

Criptorquidia

Esta situação, quer seja unilateral, quer bilateral, uma vez identificada pelo médico de família ou pediatra, deverá ser encaminhada ao cirurgião. Sendo bilateral, a intervenção deve ser feita após o diagnóstico; se unilateral, entre 12 e 18 meses.

Hipospadia  

Entre os 6 e 12 meses, conforme dimensões do pénis. Os casos associados a meato punctiforme deverão ser analisados de modo especial, podendo eventualmente estar indicado o início das intervenções quando diagnosticada. De referir a possibilidade de fístulas pós-operatórias, as quais devem ser encerradas 1 ano após intervenção.

Varicocele  

Esta situação deverá ser vigiada até à puberdade, de preferência sob orientação do cirurgião. A intervenção está indicada se existirem sintomas associados.

Torção testicular

Intervenção de emergência.

Hímen imperfurado

Intervenção logo que feito o diagnóstico.

Massas anexiais quísticas

Intervenção dependente da sintomatologia. Ausência de consenso nos casos assintomáticos.

Síndroma de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser

Durante a adolescência.

Cabeça e pescoço

Fenda labial (lábio leporino)

Em geral recomenda-se intervenção após os 2-3 meses, havendo variantes de actuação. Como princípio geral, tal situação deverá ser vigiada em colaboração com a equipa cirúrgica, uma vez feito o diagnóstico.

Fenda velopalatina

Existem variantes de actuação; a atitude clássica considera os 12 meses, havendo necessidade de ponderar caso a caso.

Freio lingual curto (Anquiloglóssia)

Cada caso deve ser ponderado.

Inserção baixa do freio do lábio superior

Se a base de inserção do freio se localizar entre os 2 incisivos superiores médios, mantendo-os afastados, a ressecção está indicada após início da erupção dentária definitiva, caso os referidos dentes definitivos se mantenham afastados.

Hellix valgum (Orelhas “descoladas”, em abano, ou em apagador de velas)

Intervenção a partir dos 4 anos.

Quisto epidermóide do supracílio

Intervenção em qualquer idade.

Oto-hematoma pós-traumatismo da orelha

Intervenção de urgência/ quase emergência.

Torcicolo muscular congénito

No caso de actuação fisiátrica sem sucesso, após 12-18 meses.

Fístulas, quistos e resíduos branquiais

Logo que diagnosticados.

Quisto do canal tiroglosso

Logo que diagnosticado (e preferência antes que surja infecção secundária).

Parede torácica

Pectus excavatum

Aos 10-12 anos, devendo a situação ser encaminhada para o cirurgião logo que diagnosticada para avaliação evolutiva.

Dedos

Polidactilia

A idade de intervenção varia de acordo com o contexto clínico, sendo aconselhável encaminhamento programado para o cirurgião na perspectiva de vigilância colaborativa.

Sindactilia        

Após os 6 meses de idade.

Anomalias ano-rectais

A decisão terapêutica imediata mais importante prende-se com a eventual necessidade de construção duma colostomia diversiva. Esta decisão depende do tipo de anomalia ano-rectal, e deverá ser tomada após um intervalo de 16 a 24 horas depois do nascimento.

Actualmente, a idade para a realização da cirurgia definitiva está a ser reduzida para as primeiras oito semanas de vida; exceptua-se a correcção cirúrgica da cloaca, em geral realizada entre os seis meses e o 1 ano de idade.

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Generalidades

O imperativo da cobertura geral universal da população por cuidados de saúde primários e as necessidades especiais de grupos populacionais vulneráveis, obrigam a conferir alta prioridade aos cuidados de saúde a prestar às mulheres em idade fértil e às crianças.

A este propósito importa reter algumas noções extremamente básicas, mas muito importantes, tais como:

  1. É essencial que todas as grávidas possam ser examinadas durante a gestação; daqui nasce o conceito de vigilância ou assistência pré-natal.
  2. Uma gravidez não vigiada ou deficientemente vigiada leva ao insucesso, constituindo só por si um factor de risco.
  3. A melhoria dos indicadores de saúde perinatal, nomeadamente da mortalidade neonatal, depende fundamentalmente duma vigilância pré-natal correcta, idealmente na sequência duma avaliação pré-concepcional.
    • Nos últimos quarenta anos, sobretudo nos países industrializados (e designadamente em Portugal) tem-se assistido a uma diminuição significativa das taxas da mortalidade materna e neonatal, mercê de programas integrados de vigilância da grávida. Hoje em dia, para além da melhoria dos referidos indicadores, um dos grandes desafios é o combate à prematuridade.
    • Nos referidos países o parto prematuro espontâneo (antes das 37 semanas de gestação) ocorre em 6-11% de todas as gravidezes, e antes das 34 semanas em cerca de 3-5% das mesmas. Neste último período, a prematuridade comparticipa em cerca de ¾ a mortalidade neonatal, contribuindo igualmente para a morbilidade, sobretudo em termos de doenças do neurodesenvolvimento.
    • Os resultados de estudos recentes, incidindo sobre grávidas, demonstraram efeito benéfico e com segurança, da aspirina (ácido acetilsalicílico) em baixas doses, administrada desde fase muito precoce, mesmo antes das 16 semanas: redução muito significativa da taxa de prematuridade (em 8% no caso da aspirina), assim como da incidência de pré-eclâmpsia, restrição do crescimento fetal, insuficiência placentar, prematuridade e da contractilidade uterina. Tais efeitos foram explicados pelos efeitos de inibição da cicloxigenase e da acção antiagregante plaquetário da aspirina em baixas doses. Noutros estudos, utilizando fármacos do grupo dos antiagregantes plaquetários, foram obtidos resultados semelhantes.

Consulta pré-concepcional e pré-natal

I. Idealmente, e numa perspectiva extraordinariamente importante de prevenção, antes da gravidez deverá processar-se a chamada consulta pré-concepcional. Nesta consulta é avaliado o estado geral da “pré-grávida”, ponderando a eventual repercussão de antecedentes pessoais e familiares, quer da própria grávida, quer do parceiro, sobre a gravidez e produto de concepção.

Os aspectos específicos da consulta pré-concepcional podem ser sintetizados do seguinte modo:

  • Ponderar o risco genético susceptível de originar manifestações na futura criança;
  • Avaliar a somatometria (peso, altura, etc.) e os seguintes parâmetros: pressão arterial, Hb, Hct, regime alimentar, estado nutricional, tipo de actividade física habitual, etc.;
  • Propiciar orientações e aconselhamento sobre: vantagens do aleitamento materno, exercício físico, regime alimentar e factores de risco, etc..

II. A consulta pré-natal tem objectivos gerais e específicos:

Objectivos gerais:

  • Avaliar o bem-estar fetal e materno através de parâmetros clínicos e de exames complementares;
  • Detectar factores de risco que possam comprometer a evolução da gravidez e o bem-estar fetal, orientando correctamente cada situação;
  • Promover a educação para a saúde, integrando o aconselhamento sobre a importância do aleitamento materno e o apoio psicossocial ao longo de toda a gravidez.

Não existindo consenso (inclusive a nível internacional) sobre o número ideal de consultas pré-natais, de acordo com a Direcção Geral da Saúde é recomendado seguinte esquema:

  • Consultas mensais até à 32ª semana;
  • Consultas quinzenais entre 33ª e 37ª semanas;
  • Consultas semanais a partir da 38ª semana.

Considera-se esquema reduzido o número de 6 consultas (às 12, 20, 28, 32, 36 e 40 semanas).

Objectivos específicos:

  • Propiciar educação para a saúde e aconselhamento à grávida e sua família;
  • Propiciar um plano de rastreio e vigilância clínica com apoio de exames complementares com os objectivos de:
    • detectar precocemente desvios da normalidade,
    • minorar a sintomatologia associada à gravidez e apoiar a grávida na adaptação às alterações fisiológicas e às complicações que possam decorrer dos factores de risco.

Dos aspectos específicos da consulta pré-natal fazem parte:

  • Anamnese incidindo fundamentalmente sobre a detecção de factores de risco;
  • Exame físico incluindo determinação do peso (actual e incremento desde o início da gravidez), da altura, da pressão arterial, auscultação cardíaca e pulmonar, detecção de eventual mamilo pouco saliente, requerendo procedimento preventivo de repuxamento, edema, varizes, hemorróidas, outra patologia; e exame ginecológico (toque vaginal para apreciação do colo uterino e do estádio de apresentação depois das 34 semanas);
  • Aspectos indirectos relacionados com a semiologia fetal clínica convencional: determinação da altura do fundo uterino (distância entre sínfise púbica e fundo uterino), avaliação dos movimentos fetais, auscultação fetal (sendo que os batimentos cardíacos são audíveis com o estetoscópio de Pinard a partir das 19 semanas e a partir das 10 semanas com aparelhos do tipo Doptone), e avaliação da apresentação fetal no 3º trimestre;
  • Exames laboratoriais (grupo sanguíneo (A B 0) e factor Rh (assim como factor Rh do marido se a grávida tiver grupo Rh negativo), Hb e Hct, VDRL (a repetir obrigatoriamente em cada trimestre), serologia do grupo TORCHS e análise sumária de urina; em casos especiais: uricémia, creatininémia, prova de Coombs indirecta se for Rh- e marido Rh+, glicémia em jejum e pós-prandial, uricémia e urocultura;
  • Avaliação da pressão arterial da grávida;
  • Exames de imagem (ecografia fetal), a partir das 11-12 semanas;
  • Eventuais prescrições e revisão do regime alimentar.

Nota importante: Para o registo sequencial dos aspectos referidos, e de outros importantes, designadamente dos relacionadaos com promoção da saúde e prevenção da doença, foi concebido o pequeno livro chamado “Boletim da Grávida” de que a mesma deve ser portadora aquando das consultas ou episódios de observação por médico ou profissional de enfermagem. Trata-se, pois, dum documento informativo em circulação, de grande utilidade em prol da saúde da díade grávida feto/RN.

Avaliação do risco

Relativamente à avaliação do grau de risco (entendido como probabilidade de doença grave ou morte para a grávida e/ou feto/RN), exemplifica-se com o índice de Goodwinn. (Quadro 1), em que se atribui determinada pontuação [de 0 a 3] a certos parâmetros.

QUADRO 1 – Avaliação do risco pré-natal de Goodwinn, modificado.

I. História reprodutiva
IdadeParidade
≤ 17 e ≥ 40 = 3 
18 – 29 = 01 – 4 = 0  
30 – 39 = 1≥ 5 = 3  
História obstétrica anterior
Aborto habitual (≥ 3 consecutivos)= 1  
Infertilidade= 1  
Hemorragia pós-parto/dequitadura manual= 1  
Pré-eclâmpsia/eclâmpsia= 1  
Cesariana anterior= 2  
Feto morto/morte neonatal= 3  
Trabalho de parto prolongado ou difícil= 1  
Índice …………… ________________ + 
II. Patologia associada
Cirurgia ginecológica anterior= 1  
Doença renal crónica= 2  
Diabetes gestacional= 1  
Diabetes mellitus= 3  
Doença cardíaca= 3  
Outros problemas médicos
(Bronquite crónica, lúpus, etc.) Índice de acordo com a gravidade (1 a 3)
=  
Índice …………… ________________ +
III. Gravidez actual
Hemorragias1º Exame36ª Semana
≤ 20 semanas= 1   
> 20 semanas= 3   
Anemia (Hb ≤ 10 g/dL)= 1   
Gravidez prolongada (≥ 42 semanas)= 1   
Hipertensão= 2   
Rotura prematura das membranas= 2   
Hidrâmnio= 2   
Gravidez múltipla
Apresentação pélvica
Má apresentação
= 3   
Isoimunização Rh= 3   
Índice ……………________________________________
Total …………………………________________________________
BAIXO RISCO = 0-2
MÉDIO RISCO = 3-6
ALTO RISCO = ≥ 7


Em situações de risco médio ou alto (pontuação igual ou superior a 3), a grávida deverá ser encaminhada para centro especializado, sendo que a consulta neste último poderá envolver outros especialistas para além do especialista em medicina materno-fetal; o objectivo é avaliar a história natural da doença, estabelecer no feto o diagnóstico e o prognóstico, explicando aos pais e família aspectos psicossociais, assim como as possibilidades terapêuticas, incluindo, benefícios e riscos (aconselhamento).

A acessibilidade do feto leva ao conceito de diagnóstico pré-natal (DPN) como um conjunto de procedimentos que permitem identificar ou excluir anomalias estruturais ou morfológicas, e funcionais, de um feto em desenvolvimento; ou seja, através do mesmo, é possível objectivar múltiplas situações de patologia fetal (ou excluí-las com elevado grau de especificidade), estabelecer eventual indicação de tratamento in utero, tratamento neonatal precoce, o que poderá contribuir para a melhoria do prognóstico.
Nesta perspectiva, subentende-se que o DPN, abordado adiante, deve ser encarado como uma das valências avançadas da vigilância pré-natal, o que pressupõe o cumprimento de determinadas etapas em centros especializados.

Notas importantes:

    1. Reportando-nos ao capítulo 1 desta obra, recorda-se a definição abrangente de Pediatria como “medicina integral de um grupo etário desde a concepção ao fim da adolescência”, citada por uma figura de referência da pediatria e perinatologia: A. Torrado da Silva. A filosofia desta definição prende-se com a ideia de que o clínico que presta assistência a crianças (pediatra ou médico de família) deve valorizar os antecedentes pré-natais, dizendo respeito a eventos durante a gravidez com eventual impacto no embrião e ou no feto. Aliás, uma noção faz parte da história clínica pediátrica. Esta filosofia consubstancia a necessidade e o benefício em prol da saúde, de cooperação efectiva entre “médico da grávida e do parto” e “médico da criança”: este último, interessando-se pela evolução da gravidez e os primeiros, interessando-se pela evolução do bebé. É esta a base fundamental da perinatologia. Efectivamente, de acordo com a legislação portuguesa, no âmbito dos cuidados primários/centros de saúde, a grávida e a criança são observadas e seguidas por médico de família, os quais poderão referenciar os pacientes para especialistas em função do contexto clínico.
    2. Constituindo rotina a avaliação do risco pré-natal, a verificação de situações de médio ou alto risco implica a referenciação da grávida para centro especializado, local em que poderão ser realizados exames complementares mais sofisticados (abordados adiante), para além dos clássicos laboratoriais e ecografias pré-natais anteriormente citados.
    3. Relevando o papel da vigilância na gravidez, na década de 70 do século XX, em época anterior às novas tecnologias, um especialista sueco de renome – H. Hagberg – chamava a atenção para a enorme importância da utilização de instrumentos simples, perante recursos limitados: balança para avaliação seriada do peso, fita métrica para avaliação seriada da altura do fundo uterino, estetoscópio de Pinard para avaliação dos batimentos cardíacos fetais, esfigmomanómetro para avaliação da pressão arterial da grávida e bloco notas de papel para a mesma registar o número e horário dos movimentos fetais.
    4. Tendo sido sintetizados alguns aspectos das consultas pré-concepcional e pré-natal, salienta-se que, no âmbito da assistência pré-natal, as normas de orientação clínica poderão variar de centro para centro.
    5. Após o parto é distribuído à mãe/família do bebé um pequeno livro, chamado Boletim de Saúde Infantil e Juvenil para utilizar durante a idade pediátrica (contendo informação importante sobre a gestação, o período neonatal, educação para a saúde, recomendações em idades-chave, gráficos de crescimento e folhas para preencher pelo médico ou profissional de saúde no âmbito de actos médicos, vacinações ou episódios de doença. Trata-se, pois, dum importante documento informativo em circulação, que deve acompanhar a criança ou o jovem. Em anexo, contém o chamado Boletim Individual de Saúde (portfólio para registo de vacinas).

Semiologia fetal

Ecografia fetal convencional

A ecografia fetal é um exame imagiológico não invasivo que pode ser realizado por via transvaginal no primeiro trimestre da gestação, ou por via transabdominal em fases ulteriores.

De acordo com a experiência de vários centros considera-se como esquema ideal a realização de quatro ecografias durante a gestação:

  • 1ª entre as 11 e 14 semanas;
  • 2ª entre as 20 e 22 semanas;
  • 3ª entre as 26 e 28 semanas;
  • 4ª entre as 32 e 36 semanas.

As limitações da técnica estão relacionadas essencialmente com a posição do feto e a experiência do ecografista. Em função da experiência do ecografista e do grau de diferenciação do centro e capacidade técnica da aparelhagem onde é realizada a ecografia, são considerados classicamente três níveis:

  • Ecografia básica (nível I) realizada em ambulatório por imagiologistas, técnicos ou obstetras;
  • Ecografia diferenciada (nível II) realizada por obstetras com diferenciação especializada nesta área ou por imagiologistas;
  • Ecografia altamente diferenciada em centros altamente especializados onde se pode proceder igualmente a terapia fetal (nível III), realizada por especialistas em medicina fetal.

A ecografia fetal possui muitas potencialidades; entre outras, são destacadas as seguintes: avaliação da idade gestacional possibilitando melhor vigilância da evolução da gravidez, detecção de gravidez gemelar, detecção de restrição de crescimento fetal, detecção de anomalias congénitas com sensibilidade e especificidade de cerca de 95%, auxiliar para a realização de técnicas invasivas, avaliação do bem-estar fetal e medição da chamada translucência da nuca (TN).

A TN (imagem ecográfica hipoecogénica correspondente a líquido acumulado entre a pele e o tecido celular subcutâneo no triângulo posterior do pescoço do concepto entre as 11 e 13 semanas) constitui um método de rastreio de várias anomalias congénitas, incluindo anomalias cromossómicas e génicas; nalguns estudos sobre detecção pré-natal de trissomias 21, 13 e 18 verificou-se sensibilidade ~ 86% e especificidade ~ 95%.

O valor considerado normal é inferior a 2,5 mm; ou seja, a translucência considera-se aumentada quando evidenciar valor superior ao percentil 95 para a idade de gestação, o que obrigará a orientação da grávida para centro de medicina materno-fetal diferenciado.

Aquando da medição da TN pelas 11-13 semanas, o ecografista avalia em paralelo a anatomia fetal, sendo que o uso de sonda transvaginal aumenta o sucesso do referido estudo, designadamente quanto à visualização da face, rins e bexiga. Tal sucesso depende também da distância craniocaudal, do índice da massa corporal da mãe e do tempo despendido para o exame (idealmente nunca inferior a 25 minutos).

Ecografia tridimensional

Esta nova técnica, que não dispensa a ecografia convencional, permite a visualização do feto em três dimensões.

Como nota adicional, refere-se que o extraordinário desenvolvimento da ecografia destronou uma técnica invasiva envolvendo elevadas taxas de morbilidade e mortalidade que hoje pode ser considerada histórica – embrioscopia (visualização do feto por endoscopia intramniótica).

Ressonância magnética (RM)

A principal indicação deste exame imagiológico (ainda não exequível em todos os centros perinatais) é a detecção de anomalias congénitas do SNC.

Ecocardiografia fetal com ou sem doppler

A ecografia fetal, com ou sem doppler, está indicada em situações de risco gravídico elevado, e perante suspeita de defeito cardíaco. É realizada por cardiologista pediátrico com experiência nesta área, integrado na equipa multidisciplinar perinatal.

No Quadro 2 são resumidas algumas indicações deste exame complementar fetal.

QUADRO 2 – Indicações da ecocardiografia fetal.

Antecedentes familiares de cardiopatia congénita
Antecedentes familiares de morte perinatal de causa não esclarecida

Gravidez actual:

      • Arritmia cardíaca fetal
      • Hydrops fetalis de causa não imune
      • Anomalias fetais identificadas
      • Gemelaridade
      • Restrição do crescimento intra-uterino
      • Infecção do grupo TORCHS (ver adiante)
      • Idade materna > 35 anos
      • Outros factores de risco (diabetes, HTA, alcoolismo, fármacos, exposição a poluentes, etc.)

Amniocentese

A amniocentese (técnica de colheita de líquido amniótico por via abdominal para estudos vários – no âmbito da citogenética, biquímica, infecciologia, doenças metabólicas, etc.) é tradicionalmente realizada sob controlo ecográfico, entre as 16 e 18 semanas; em circunstâncias especiais pode ser realizada entre as 12 e 15 semanas.

Tal técnica, realizada por equipas experientes, propicia resultados conclusivos em cerca de 95% dos casos. As principais indicações deste procedimento constam do Quadro 3, que relaciona o tipo de exame a efectuar com a situação a esclarecer.

QUADRO 3 – Indicações da amniocentese.

Situação a esclarecerTipo de exame no líquido amniótico
Defeito do tubo neuralDoseamento da alfafetoproteína (AFP) acetilcolinesterase e pesquisa de células do sistema nervoso
Fibrose quística Fosfatase alcalina, aminopeptidase, dissacaridase
Maturidade pulmonar Relação lecitina/esfigomielina, fosfatidilglicerol
Infecções fetaisPesquisa de germe microbiano através do método PCR (reacção da polimerase em cadeia)
Doenças genéticasAnálise do ADN
Iso-imunizaçãoBilirrubina por espectrofotometria
Doenças metabólicasDoseamentos enzimáticos, identificação de metabólitos, estudo do fenótipo HLA, estudo molecular
Anomalias do tubo digestivoDoseamento de ácidos biliares, bilirrubina
Anomalias cromossómicasEstudo do cariótipo, sexo fetal, etc.

Cordocentese

A cordocentese é um procedimento em que se obtém amostra de sangue do cordão in útero por via percutânea com apoio imagiológico (ecogáfico), em geral realizado após as 19 semanas.

As principais indicações da cordocentese são:

  • Análise citogenética em caso de suspeita de anomalia congénita, doseamento de factor VIII, determinação da Hb em caso de iso-imunização fetal; e
  • Determinação de imunoglobulina M (IgM), PCR (reacção da polimerase em cadeia) e análise de ADN para identificação microbiana, havendo suspeita de infecção.

Biópsia das vilosidades coriónicas

Trata-se duma técnica em que se procede ao estudo histológico da camada citotrofoblástica das vilosidades da placenta em desenvolvimento, entre as 8 e 11 semanas de gestação contadas a partir do primeiro dia da última menstruação (mais frequentemente entre as 9 e 10 semanas); de acordo com a posição da placenta, utilizam-se as vias vaginal ou transabdominal, sob visualização ecográfica.

A biópsia das vilosidades coriónicas (que proporciona resultados rápidos e em fase precoce da gestação) realiza-se para estudo citogenético ao nível das células em mitose activa; podem também ser tiradas conclusões sobre o material genético do embrião a partir de cultura de células de fragmentos das vilosidades.

O grau de precisão dos resultados é semelhante ao obtido com a amniocentese; os riscos, no entanto, são ligeiramente superiores em comparação com esta última técnica.

Punção-biópsia e análise de células fetais

Em situações seleccionadas e muito específicas é possível, com o auxílio da ecografia, realizar punção ao nível de diversos órgãos (pele, fígado). Por outro lado, no sangue materno é possível detectar células fetais circulantes, pesquisando, designadamente, o respectivo ADN.

Ossos do nariz

Diversos estudos demonstraram, por método imagiológico, a existência de anomalias nos ossos do nariz em fetos com síndroma de Down, detectáveis já no primeiro trimestre (taxa de detecção de 73% para 5% de falsos positivos). A combinação deste parâmetro com o critério atrás descrito (associação de três parâmetros) permite aumentar para 95% o número de casos detectados, com 5% de falsos positivos.

Alterações hemodinâmicas no ductus venosus (DV)

Como se sabe, o ductus venosus é um vaso sanguíneo que, na vida intrauterina funciona como derivação reguladora (shunt) do fluxo venoso entre a circulação umbilical e o coração.

Através de ecografia doppler transvaginal ou transabdominal, estudo das alterações da forma das ondas de fluxo no sistema venoso fetal poderá dar informações importantes sobre a circulação central em fase precoce da gravidez (primeiro trimestre) devido às características do sistema venoso (baixa pressão, baixa velocidade e grande distensibilidade da parede vascular).

Ou seja, tal avaliação permitirá identificar precocemente na gravidez sinais de compromisso miocárdico e alterações do fluxo durante a contracção auricular fetais, as quais constituem o sinal mais precoce de compromisso cardíaco. Assim, é possível identificar fetos em risco de anomalia cromossómica, aneuploidia e/ou de insuficiência cardíaca.

Em estudos efectuados em fetos com aneuploidia verificou-se associação a dados anómalos do fluxo do DV, variável entre 59% a 95% dos casos; comparativamente com fetos evidenciando cariótipo normal foram encontrados sinais de fluxo anómalo em percentagens variando entre 3% e 21%.

Trata-se, no entanto, de um exame difícil, requerendo muita experiência para evitar erros de interpretação. Salienta-se, a propósito, que entre as dez e catorze semanas de gestação o DV tem um calibre de cerca de 2 mm.

Avaliação do bem-estar fetal

Para a avaliação do chamado “bem-estar fetal” ou estado vital do feto podem ser utilizados vários métodos:

Cardiotocografia (CTG)

Trata-se duma técnica sensível, mas pouco específica, para detecção de hipóxia fetal, habitualmente aplicada a partir das 28 semanas de gestação. Com o desenvolvimento da informática, existe hoje aparelhagem sofisticada que permite a interpretação automática dos dados obtidos. De salientar que a sua utilização foi suplantada pela fluxometria/doppler a referir seguidamente.

Fundamentalmente, cabe referir que a CTG integra um conjunto de parâmetros tais como: frequência cardíaca fetal (FCF) basal, a sua variabilidade, a relação entre aceleração da FCF e movimentos fetais, e a relação entre desaceleração ou diminuição da FCF com ausência ou presença de contracções uterinas.

Fluxometria

Trata-se duma técnica utilizada hoje em todos os centros de medicina perinatal, a qual tem como principal indicação a suspeita de restrição do crescimento do feto.

O fundamento da mesma é medir, pelo método doppler, a resistência vascular/onda pulsátil do sangue circulante nas artérias uterinas (compartimento materno), umbilicais (compartimento placentar), ou cerebral média (compartimento fetal), para avaliar o estado circulatório feto-materno.

Admite-se que uma diminuição do débito ou fluxo sanguíneo (por exemplo por disfunção placentar progressiva) traduz aumento da resistência ao mesmo fluxo. Tal aumento da resistência é evidenciado por diminuição do fluxo diastólico, e por eventual ausência ou inversão do fluxo durante a diástole.

Actualmente dá-se importância prognóstica ao padrão de onda pulsátil ao nível do ductus venosus, designadamente nas situações associadas a restrição de crescimento intra-uterino. (ver adiante)

Perfil biofísico

O chamado perfil biofísico integra um conjunto de parâmetros com o objectivo de avaliar o bem-estar fetal e, consequentemente, identificar situações de estresse ou de sofrimento fetal. Como instrumentos de avaliação são utilizados o CTG e a ecografia.

Os parâmetros avaliados são os seguintes: respiração fetal, movimentos fetais, tono muscular, frequência cardíaca fetal (FCF), e volume de líquido amniótico (Quadro 4). À situação de normalidade é dada a pontuação de dois (2); à situação anormal é dada a pontuação de zero (0). Os parâmetros são avaliados em períodos de 30 minutos.

QUADRO 4 – Critérios utilizados na avaliação do perfil biofísico.

(Adaptado de Creasy RK & Resnik R, 1994)

→ CTG

    • Pelo menos 2 episódios de aceleração da FCF de 15 ou mais batimentos/minuto, com duração de, pelo menos, 15 segundos, associados a movimentos fetais, durante período de 30 minutos = (2)
    • Menos de 2 episódios de aceleração da FCF, ou aceleração < 15 batimentos/minuto, durante período de 30 minutos = (0) 

→ Volume do líquido amniótico

    • Pelo menos 1 bolsa de LA com, pelo menos, 2 cm em 2 planos perpendiculares = (2)
    • Ausência de bolsa de LA ou 1 bolsa com < 2 cm = (0)

→ Tono fetal

    • Pelo menos 1 episódio de extensão activa com retorno à posição de flexão do, ou dos membros do feto; abrir e fechar a mão é considerado tono normal = (2)
    • Ou extensão lenta com retorno à flexão parcial, ou movimento do membro em extensão completa, ou ausência de movimento fetal com a mão em deflexão completa ou parcial = (0)

Movimentos de expansão e retracção do tórax (MER)

    • Pelo menos 1 episódio, durando pelo menos 30 segundos, no período de observação de 30 minutos = (2)
    • Ausência de MER ou nenhum episódio, durando pelo menos 30 segundos, no período de observação de 30 minutos = (0)

→ Movimentos fetais (do corpo ou membros)

    • Pelo menos 3 movimentos discretos em 30 minutos (episódios de movimentos contínuos são considerados 1 só movimento) = (2)
    • 2 ou menos episódios em 30 minutos = (0)

Uma pontuação total de 8-10 pode significar com elevado grau de confiança “bem-estar fetal”; pontuação de 6 é duvidosa, o que obrigará a repetição dentro de 12-24 horas; pontuação de 4 ou menos corresponde a alto risco e obrigará a reavaliação imediata e, provavelmente, a desencadear o parto.

Parâmetros laboratoriais no soro materno

É consensual que deverá ser disponibilizado a todas as grávidas um programa de rastreio de anomalias fetais e de patologia associada à gravidez a todas as grávidas, o qual pode ser sintetizado do seguinte modo:

Rastreio bioquímico de cromossomopatias

Entre as 11 e 13 semanas de gestação pode proceder-se ao doseamento da PAPP-A (sigla de pregnancy-associated plasma protein A – proteína A do plasma associada à gravidez) e da alfa-fetoproteína no soro da grávida.

  • O valor da PAPP-A aumenta em condições de normalidade com a idade de gestação. Na trissomia 21 os níveis são mais baixos, sendo que, de acordo com dados da literatura, a percentagem de casos falsos positivos é cerca de 5%. Tal determinação poderá detectar ~ 40% dos casos de trissomia.
  • O valor da alfa-fetoproteína está elevado em situações de gemelaridade e de defeitos do tubo neural (em ~ 100% dos casos de anencefalia, e em ~ 70% dos casos de spina bífida ou de defeitos de encerramento da parede abdominal). Nas trissomias e nas aneuploidias, o valor está reduzido.
Rastreio bioquímico de cromossomopatias e defeitos do tubo neural

Entre as 15 e 18 semanas pode proceder-se ao doseamento da alfa-fetoproteína e da gonadotrofina coriónica (b-hCG ou b-human chorionic gonadotropin) livre.

  • No soro materno o valor da b-gonadotrofina coriónica humana livre, diminui em condições de normalidade a partir das 10 semanas. Na trissomia 21 os respectivos valores estão aumentados. Isoladamente utilizada, a b-hCG livre poderá detectar cerca de 35% dos casos de trissomia 21, com 5% de casos falsos positivos. Associando a b-hCG livre à idade materna, é possível a detecção de cerca de 45% de trissomias. De referir que, no 1º trimestre, o doseamento da b-hCG total é menos discriminatório do que a b-hCG livre.*

*De salientar que a sub-unidade beta da gonadotrofina coriónica constitui um marcador biológico para diagnóstico da gravidez; em situação de normalidade, valor < 10 mUI/mL exclui estado de gravidez. Por ex., valores de referência entre 1.500 e 23.000 mUI/mL correspondem a gravidez de 4-5 semanas, sendo que os valores variam em função do número de semanas decorridas.

Neste tipo de rastreio aplica-se o que foi referido antes relativamente à alfa-fetoproteína.

Diagnóstico pré-natal no primeiro trimestre

Os avanços tecnológicos relacionados com o diagnóstico de patologia diversa e aplicáveis à díade materno-fetal, têm contribuído para o rápido progresso do chamado DPN. Estes avanços, cada vez mais seguros e sensíveis, e aplicados a populações de baixo risco, tiveram como resultado a sua expansão.

Assim, exames já antes referidos, como a ecografia de alta definição, técnicas de análise citogenética e molecular e respectiva divulgação pelos meios de comunicação social, têm permitido que os procedimentos que integram o DPN sejam bem aceites, não só pela população em geral, mas também pelos profissionais de saúde.

A este respeito, importa escolher um modelo de rastreio sistemático e universal, adequado para determinada população, com boa relação custo/benefício.

A realização do DPN no primeiro trimestre tem vantagens relacionadas, designadamente, com: 1- possibilidade de conhecer o resultado mais cedo, o que corresponde a um período menor de incerteza; 2- a gestação não é ainda conhecida pelo agregado familiar, o que torna mais simples decidir em função de um resultado desfavorável.

Nesta perspectiva, para que determinados procedimentos invasivos de DPN possam ser aplicados, deverão, à partida, estar satisfeitos os critérios de exequibilidade técnica, confiabilidade e utilidade (tratamento ou interrupção), necessidade, segurança (benefício superior ao risco) e consentimento informado e esclarecido.

De acordo com dados da literatura, o modelo de DPN no primeiro trimestre, aparentemente mais adequado e com melhor relação custo-benefício, integra o rastreio conjugado de dois parâmetros bioquímicos (doseamento de PAPP-A + b-hCG livre) e de um parâmetro imagiológico (medição da translucência da nuca), a realizar pelas doze semanas de gestação.

Segundo a Fetal Medicine Foundation, combinando num modelo matemático a idade materna, TN, b-hCG livre e PAPP-A, marcadores independentes entre si, é possível identificar anomalias em 87% dos casos rastreados, com 5% de falsos positivos.

A propósito de diagnóstico e tratamento pré-natal precoces, importa referir os avanços alcançados com a utilização de novas tecnologias para identificação e tratamento de diversas patologias fetais através da administração de células precursoras pluripotenciais/estaminais/stem cells.

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A importância de novos paradigmas

Na sequência do que foi afirmado no capítulo anterior, pode inferir-se que o feto e o recém-nascido são um continuum de uma mesma entidade cuja abordagem é levada a cabo (e cuja prestação de cuidados é feita) em tempos diferentes por especialidades diferentes, com o objectivo de se assegurar um ser humano saudável.

O especialista em diagnóstico pré-natal, na posse do seu treino imagiológico e de técnicas de intervenção, tem uma acção muito dirigida ao feto; o obstetra procura que a mãe tenha as condições ideais para que o embrião e, depois, o feto, se desenvolvam harmoniosamente; e, finalmente, o pediatra vigia e cuida do recém-nascido desde o momento do nascimento.

De facto, a vigilância da mulher grávida em moldes clássicos, dando continuidade a práticas de há muito, valoriza essencialmente certos algoritmos de procedimentos e determinados exames complementares, subalternizando, não só certas características específicas e a individualidade da mulher, mas também a relevância do ambiente em que o feto se desenvolve.

Consequentemente, tendo em consideração a realidade descrita e os resultados da investigação, quer sobre a díade mãe-feto, quer sobre a importância do ambiente em que o feto se desenvolve (microambiente), e quer ainda sobre a do ambiente em que a grávida vive (macroambiente), os investigadores passaram a chamar a atenção para a necessidade de criar novos modelos de acompanhamento da gravidez.

O objectivo deste capítulo é descrever sucintamente, segundo a experiência e a investigação da autora, alguns dos pilares essenciais duma proposta de vigilância integrada da gravidez. (ver adiante)

Cuidados pré-concepcionais

Relativamente aos cuidados pré-concepcionais, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) divulgou diversas publicações, quer na sua plataforma (www.dgs.pt), quer na sua rede de intranet sobre Saúde Reprodutiva.

O impacte do trabalho profissional da grávida e da jovem mãe

As questões laborais no nosso País continuam a ter um impacte com repercussões negativas na grávida, apesar da legislação que apoia a gravidez e da existência de entidades que centralizam informação ou sinalização de casos (por ex. CITE – Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, acessível em www.cite.gov.pt). Qualquer grupo de trabalho nesta área terá uma capacidade de acção limitada, pois a prática clínica diária revela que a raiz do problema está na mentalidade estrutural da população.

Com efeito, as entidades patronais nem sempre “facilitam a vida” a trabalhadoras que tenham de seguir as orientações do médico. Eis alguns exemplos: ter de faltar para ir a consultas ou realizar exames, mudança de tarefas de uma funcionária, sua colocação num local compatível com esforço físico menos exigente, garantia de refeições a horas certas, ou ter de “picar o dedo” para colheita de sangue quatro vezes por dia para avaliar a glicémia.

Se o tempo de gravidez pode constituir, por si só, um risco de despedimento ou atitudes de má vontade da parte patronal, para a mãe, os primeiros tempos de vida do filho também poderão constituir uma preocupação baseada na realidade. E utilizando a licença de parto para que a mãe possa acompanhar em casa o filho, a mesma poderá não ser viável no contexto das profissões liberais. Por sua vez, na hipótese de os progenitores terem idêntica profissão, a licença de paternidade poderá ser inviabilizada.

Outras questões se levantam ainda, relacionadas designadamente com a circunstância de o bebé poder adoecer, implicando faltar ao trabalho por impossibilidade ou ausência do apoio por parte dos avós ou outros familiares.

Poderá surgir aqui um dilema: tendo em consideração que a população feminina jovem, valorizando muito uma carreira profissional com sucesso, por outro lado é confrontada com a imposição de condições estruturais adversas por parte da sociedade civil, o que poderá determinar situação de estresse com as implicações deletérias de impacte a longo prazo e transgeracional. (ver capítulo sobre “Doenças do feto com repercussão no adulto” – volume I).

Na verdade, na nossa prática clínica e na nossa vida diária, damo-nos conta de que existem situações laborais de pressão excessiva, de perseguição, ou mesmo de assédio por parte de certas entidades patronais no contexto de “colaboradora que está grávida ou tem um filho bebé”. Poderá tratar-se, pois, de situações que consubstanciam quadros bullying e harassment laboral com certa impossibilidade de mitigação face a uma legislação de protecção legal, que existe, mas é algo limitada.

A este propósito, importa salientar que, embora os actuais benefícios monetários disponibilizados às famílias possam constituir incentivo para certos grupos populacionais, tal critério não é aplicável à totalidade.

Enfim, para obviar alguns dos inconvenientes apontados, assim como alguns dos factores considerados adversos, especialmente no contexto da gravidez e dos primeiros meses de vida, torna-se lógico admitir que a flexibilização de horários, aplicada quer à grávida e jovem mãe que trabalha, quer ao pai, contribuiriam decisivamente para a redução do estresse a que nos referimos anteriormente.   

Actuação prática

A figura 1 esquematiza uma proposta de acompanhamento da grávida em que os diversos aspectos a ter em conta, desde o início, são planeados de forma integrada.

Figura 1. Proposta de acompanhamento planificado da gravidez por objectivos e com cuidados integrados. (TMV)

Na pré-concepção ou na primeira consulta da gravidez, propõe-se uma avaliação e uma caracterização multidisciplinar, devendo estabelecer-se um plano contemplando as seguintes vertentes:

  • cuidados nutricionais (indicados por nutricionista);
  • actividade física;
  • cuidados de âmbito emocional (com base no perfil psicológico detectado); – cuidados obstétricos (organização de acompanhamento periódico, exclusivamente por médico, ou partilhado por enfermeira especialista);
  • acompanhamento dirigido às especificidades laborais, contendo designadamente recomendações relativamente a tarefas profissionais compatíveis com a situação, ou a outras consideradas como contra-indicação;
  • eventuais reajustamentos ao longo da gravidez em função do contexto clínico, o que pressupõe seguimento, caso a caso, com definição de datas em períodos considerados mais vulneráveis.

No plano de gravidez inicial, deveriam ainda ser incluídos:

  • os tempos e os exames propostos para a realização de ecografias ou de diagnóstico pré-natal;
  • preparação para o aleitamento materno;
  • o programa de preparação para o parto com especificação de datas;
  • marcação da consulta de avaliação pediátrica pré-natal para o início do terceiro trimestre; e
  • programa de apoio social e domiciliário com especificação de datas, sempre que se considere conveniente.

Como importante nota complementar, este plano de gravidez deveria contemplar ainda:

  • todo o período da gravidez, parto, e primeiros dois meses pós-parto, até à revisão da puérpera, dado que todo este tempo é essencial para a saúde da mulher e do filho;
  • os cuidados pediátricos com especificação de datas ajustadas às directivas actuais e já praticadas, quer no âmbito dos cuidados primários de saúde, quer no de outros locais mais diferenciados.

O plano de acompanhamento psicológico deveria prolongar-se caso fossem identificadas situações de casos vulneráveis relacionados, por exemplo, com violência doméstica em associação a graves situações de medo e de ansiedade. Nesta perspectiva, seria ainda pertinente introduzir a figura da gestora da grávida, certamente desempenhada por uma enfermeira cuidadora e organizada, a qual deveria integrar todos os aspectos de acompanhamento e servir de ponte facilitadora entre as diversas áreas do plano individual de cuidados.

Conclusão

  1. Tendo como fundamentação o texto que integra este capítulo, é legítimo afirmar que a estratégia definida para o seguimento da gravidez é exigente sob o ponto de vista do envolvimento dos cuidados de saúde, uma vez que requer técnicos de várias áreas a trabalharem de uma forma multidisciplinar integrada, quer numa fase inicial, quer depois, de forma transdisciplinar e a longo prazo.
  2. No que respeita aos cuidados de saúde materna (quer primários, quer hospitalares), os mesmos deveriam ser reestruturados, tendo como base novas linhas de orientação mais atentas e abrangentes, pois o investimento feito nos primeiros mil dias da vida, ou seja, desde a concepção até se completarem dois anos de vida pós-natal, são fulcrais para toda a vida do indivíduo, com benefícios indiscutíveis para toda a sociedade.

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Objectivos da Neonatologia

O termo Neonatologia abrange o conjunto de conhecimentos necessários para a prestação de cuidados ao RN saudável ou doente. O desenvolvimento deste ramo da Pediatria implica cooperação íntima com a Medicina Materno-Fetal; com efeito, estas duas áreas da Medicina são devotadas ao mesmo produto de concepção em fases diferentes do desenvolvimento (intra-uterina/feto – extra-uterina-RN) com o papel activo de pediatras – neonatologistas, obstetras, especialistas em medicina materno-fetal, pediatras gerais, médicos de família, profissionais de enfermagem e outros profissionais e técnicos de saúde.

De facto, o clínico responsável pelos cuidados a prestar ao RN pode deparar com um largo espectro de situações clínicas no pós-parto imediato (muitas delas previstas no pressuposto de se ter verificado vigilância pré-natal): desde o RN saudável sem factores de risco, junto da mãe que amamenta, em enfermaria de puérperas e com alta precoce para o domicílio (cerca de 90%), ao RN exigindo cuidados especiais, ou em situação crítica exigindo terapia intensiva médico-cirúrgica e a colaboração de equipas multiprofissionais altamente especializadas (cerca de 7-10%).

Cabe referir que, em qualquer dos cenários, os cuidados a prestar ao RN deverão ser globais, incorporando as vertentes biológica e psicossocial, em obediência aos princípios do reconhecimento da criança recém-nascida como pessoa, e do papel fundamental da Família no chamado acto médico. Hoje em dia nenhum serviço poderá merecer a qualificação de excelente se desconhecer o RN como pessoa.

Nasce, assim, o conceito de Neonatologia centrada na Família como um processo de facilitar o encontro pais-filho RN, incluindo a convivência da Família nos serviços assistenciais; tal equivale a dizer que a mesma também faz parte da equipa, englobando neste conceito os cuidados domiciliários com o apoio indispensável de equipas assistenciais ligadas à instituição de saúde onde a criança nasceu ou foi assistida no pós-parto.

Em suma, podem ser delineados dois grandes objectivos da Neonatologia na perspectiva de respeito pelos direitos e superiores interesses da criança, com o fim último de melhor qualidade de vida:

  1. Prestação de cuidados aos RN saudáveis e doentes, englobando a detecção precoce de anomalias congénitas;
  2. Redução da mortalidade e da morbilidade no grupo dos chamados RN de alto risco (englobando, designadamente, sequelas ligadas à patologia do feto e RN).

Definições

Para que as estatísticas de mortalidade e morbilidade possam ser comparadas, quer na mesma instituição, quer noutras instituições nacionais ou internacionais, torna-se necessário uniformizar a terminologia a utilizar. Efectivamente, só deste modo se poderá planear e avaliar com rigor a política de saúde perinatal. Dito doutro modo, pode afirmar-se que a utilização de terminologia não uniformizada limita seriamente a interpretação exacta dos estudos epidemiológicos, especialmente quando se trata de comparar amostras ou populações de crianças nascidas prematuramente ou concebidas segundo tecnologia de reprodução assistida.

Seguidamente são revistas e comentadas algumas definições correntes em Neonatologia.

Idade gestacional

É o tempo decorrido entre o primeiro dia da última menstruação e o dia do parto. O primeiro dia do último período menstrual ocorre aproximadamente duas semanas antes da ovulação e três semanas antes da implantação do blastocisto. Uma vez que a maioria das mulheres sabe quando teve início o último período, mas não quando ocorreu a ovulação, este critério relativamente fidedigno tem sido utilizado para fazer uma estimativa sobre a data prevista do parto. Poderão verificar-se imprecisões irrelevantes (variações de 4-6 dias) quanto à data do parto, relacionadas, sobretudo, com variabilidade quanto à fertilização do ovo e à implantação do blastocisto. Imprecisões mais relevantes (variações da ordem de semanas) poderão ocorrer nos casos de mulheres com menstruações com frequência e duração muito irregulares, ou nos casos de hemorragias surgindo em dias próximos à concepção.

Notas importantes:

    1. A idade gestacional pode ser expressa em semanas ou dias completos; contudo, cabe referir exemplos para garantir o rigor do registo: por exemplo, um feto com 25 semanas + 5 dias, ou com 25 semanas + 3 dias, é considerado um feto de 25 semanas; ou seja, de acordo com as normas vigentes, não é correcto proceder ao arredondamento para 26 semanas. Contudo, é correcto (tomando como exemplo o caso de feto com 25 semanas) acrescentar o número de dias da semana não completada, ainda a decorrer, em superscript, precedido do sinal +: 25 semanas+5 ou 25 semanas+3;
    2. O primeiro dia do último período menstrual é o dia zero (0) e não o dia um (1);
    3. A 40ª semana da gravidez actual, a decorrer (ou período entre o 280º dia e o 286º dia) significa semana 39ª completa.

Idade cronológica (ou idade pós-natal)

É o tempo decorrido após o nascimento, o qual pode ser expresso em dias, semanas, meses e/ou anos.

Idade pós-menstrual

Este termo, expresso em semanas, compreende o somatório dos dois termos anteriores: idade gestacional + idade cronológica.

Idade corrigida (ou idade ajustada)

Este termo, expresso em semanas ou meses, corresponde à idade cronológica subtraída do número de semanas que antecederam o nascimento antes das 40 semanas. Este termo deverá ser usado apenas em crianças até aos 3 anos de idade, com antecedentes de prematuridade.

Nota: Deve dar-se preferência ao termo idade pós-menstrual nos casos referentes ao período entre as 28 semanas de gestação e o 7º dia de vida pós-natal (168 horas); e ao termo idade corrigida nos casos avaliados após o 7º dia de vida pós-natal.

Período perinatal

Período que se inicia a partir de 22 semanas completas de gestação (154 dias) – data a que corresponde habitualmente peso fetal ~ 500 gramas – e termina uma vez completados 7 dias após o nascimento.

Período neonatal

Período que se inicia na data de nascimento e termina após 28 dias completos de idade pós-natal. É subdividido em: precoce (primeiros sete dias completos ou 168 horas completas) e tardio (após sétimo dia ou 168 horas completas, até 28 dias completos ou 672 horas).

Nascimento vivo

É a expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um produto de concepção (nado-vivo) que, depois da separação (independentemente de o cordão ter sido ou não laqueado e a placenta ter sido ou não retirada), respire ou evidencie qualquer outro dos sinais de vida, tais como batimentos cardíacos, pulsação do cordão umbilical, e movimentos efectivos dos músculos de contracção voluntária.

Peso de nascimento

Constitui a primeira medida de peso a efectuar no produto de concepção após o nascimento (quer se trate de nado-vivo, quer de nado-morto).

Este parâmetro deve ser determinado durante a primeira hora de vida e antes de se iniciar a perda de peso fisiológica pós-natal.

Recém-nascido de baixo peso (RNBP) ou microssomático

RN com peso de nascimento < 2.500 gramas (até 2.499 gramas inclusive).

Recém-nascido de muito baixo peso (RNMBP)

RN com peso de nascimento < 1.500 gramas (até 1.499 gramas inclusive).

Recém-nascido de muito baixo peso extremo (RNMBPE)

RN com peso de nascimento < 1.000 gramas (até 999 gramas inclusive).

Recém-nascido normossomático

RN com peso de nascimento compreendido entre 2.500 e 4.000 gramas.

Recém-nascido macrossomático

RN com peso de nascimento > 4.000 gramas

RN pré-termo

Recém-nascido cuja idade gestacional é inferior a 37 semanas completas (< 259 dias).

Actualmente, segundo a OMS e peritos internacionais, são considerados os seguintes subgrupos de idade gestacional em RN pré-termo, em semanas:

  • 22-27 → pré-termo extremo;
  • 28-31 → muito pré-termo;
  • 32-36 → pré-termo moderado;
  • 34-36 → pré-termo tardio.

A OMS recomenda que se incluam apenas os nados-vivos.

Contudo, de acordo com os peritos, a inclusão dos nados-mortos somente contribuirá para modificação significativa dos números nos países em desenvolvimento.

RN de termo

Recém-nascido com idade gestacional compreendida entre 37 semanas e 41 semanas e 6 dias (259-293 dias).

Neste grupo de idade gestacional é considerado um subgrupo: 37-38 semanas (RN de termo precoce).

RN pós-termo

Recém-nascido com idade gestacional de 42 semanas completas ou mais (294 dias ou mais).

Antropometria e valores de referência

  1. De acordo com a OMS (1995), os valores da antropometria podem ser expressos em curvas de percentis ou, quando as medidas têm uma distribuição normal, em médias e desvios-padrão (DP). Em qualquer circunstância, são estabelecidos limiares de diagnóstico ou valores de corte (cut off) que reflectem melhor o equilíbrio possível entre a sensibilidade e a especificidade, de modo a identificar o que “não é normal”. A mediana corresponde ao percentil 50 e, por aproximação, -1DP ao percentil 5, +1DP ao 95, -2DP ao 3 e +2DP ao 97.
  2. Os valores de referência da antropometria ao nascer reflectem o crescimento intra-uterino e não devem ser confundidos com as curvas de crescimento intra-uterino construídas a partir das medições ecográficas fetais seriadas. Recentemente foram publicados valores de referência de crescimento intra-uterino a partir do registo da antropometria ao nascer com base numa amostra multirracial de 257.855 RN de gravidez única, nos EUA. Abrangendo o período das 22 às 42 semanas de gestação, são específicos para o género e incluem curvas de percentis (3 a 97), assim como médias e desvios-padrão para o peso, o comprimento e o perímetro cefálico. São as chamadas curvas de Olsen, que deverão substituir as clássicas, mas obsoletas, curvas de Lubchenco.

Os valores do peso, em função da idade de gestação, permitem classificar os RN em:

  • Leves para a idade de gestação (< percentil 3);
  • Adequados para a idade de gestação (percentil 3 a 97); e
  • Grandes para a idade de gestação (> percentil 97). (Figura 1)

O índice ponderal calcula-se pelo quociente: (peso em gramas X 100)/ (comprimento em cm elevado ao cubo).

Relativamente à avaliação antropométrica no lactente e criança em três situações diversas:

  1. Nas primeiras semanas pós-parto (avaliação do crescimento durante a hospitalização);
  2. A curto prazo (semanas após a alta hospitalar);
  3. E a longo prazo (meses/anos), sugere-se ao leitor a consulta das seguintes referências bibliográficas:
    • Ehrenkranz RA, et al ” Pediatrics 1999; 104: 280-289;
    • Fenton TR ” BMC Pediatr 2003; 3:13;
    • Guo SS, et al ” Arch Pediatr Adolesc Med 1966;
    • Guo SS, et al ” Early Hum Dev 1997.
Nota importante: De acordo com a literatura recente, não existe consenso relativamente aos valores de referência para avaliação do crescimento de crianças nascidas pré-termo.

Morte fetal

É o óbito de um produto de concepção (feto-morto) antes da expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez. Um vez separado do corpo da mãe, o produto de concepção não evidencia movimentos respiratórios nem outros sinais de vida como batimentos cardíacos, pulsação do cordão umbilical ou movimentos efectivos dos músculos de contracção voluntária (nado-morto).

Morte neonatal

É o óbito ocorrido no período neonatal; considerando as subdivisões do período neonatal (precoce e tardio), as mortes neonatais podem ser subdivididas, respectivamente, em precoces e tardias.

Nota: A data de morte ocorrida durante o primeiro dia de vida (dia zero) deve ser registada em minutos completos ou horas completas de vida. A partir do segundo dia de vida, e até 28 dias completos de vida, a idade de morte deve ser registada em dias.

Índice Ponderal= Peso em gramas x 100
(comprimento em cm)3

Adaptado de Olsen, 2010, com permissão)

FIGURA 1. Curvas de crescimento intra-uterino de Olsen para ambos os sexos: A+B <> sexo feminino; C+D <> sexo masculino. (consultar o texto)

Gravidez e recém-nascido de alto risco

Sucintamente, alto risco na gravidez, ou no recém-nascido significa possibilidade de doença ou de morte em relação com a presença de determinados factores, respectivamente para a díade grávida-feto, e recém-nascido.

Factores de risco na gravidez

Um dos objectivos dos exames de saúde/consultas pré-natais é, precisamente, detectar precocemente factores de risco na perspectiva de tomada de medidas atempadamente (por exemplo, encaminhamento da grávida para centro especializado, tratamento farmacológico, repouso, hospitalização, etc.) com a finalidade de reduzir ao mínimo, compensar ou anular situações adversas, quer na grávida, quer no feto. De referir que cerca de 2/3 dos factores de risco na gravidez podem ser identificados nos primeiros meses, e os restantes no final ou durante o parto.

A decisão de considerar a gravidez de alto risco cabe ao médico. Tal não impede, no entanto, a colaboração da equipa de enfermagem no que respeita à colheita de dados, e ao apoio do clínico no respeitante à tomada de decisão.

Seguidamente são mencionadas listas de factores de risco na gravidez (por vezes associados) que servem de orientação para se proceder à anamnese nas consultas pré-concepcional e pré-natal.

Factores sócio-económicos
  • Casal com graves dificuldades financeiras;
  • Habitação precária;
  • Problemas sociais do casal (pai ausente, conflitos conjugais, etc.);
  • Mãe solteira, em especial se adolescente;
  • Nutrição deficiente da futura mãe, antes ou durante a gravidez;
  • Idade da mãe < 16 anos ou > 35 anos;
  • Estatura da mãe inferior a 152 cm;
  • Mãe fumadora (sobretudo se fumar > 10 cigarros por dia);
  • Antecedentes familiares de doenças hereditárias;
  • Antecedentes obstétricos de: ausência de vigilância pré-natal anterior, infertilidade, abortos repetidos, gravidezes seguidas- intervalo inferior a 2 anos-, multiparidade, RN pré-termo anterior, parto prolongado, RN de baixo peso, RN macrossomáticos, nado-mortos ou mortes neonatais anteriores, filhos anteriores com doença motora cerebral ou doença neurológica, filho anterior com defeitos congénitos, mola hidatiforme, coriocarcinoma, síndroma antifosfolípida, etc..
Doenças maternas
  • Incompetência cervical;
  • Nefropatia gravídica;
  • Doença renal crónica, infecções urinárias repetidas, albuminúria persistente;
  • Diabetes mellitus e pré-diabetes;
  • Tromboflebite, embolia;
  • Doença cardíaca;
  • Doenças endócrinas (suprarrenal, tiroideia, hipófise, etc.);
  • Doença pulmonar grave incluindo tuberculose;
  • Doença sexualmente transmissível ou outras doenças infecciosas;
  • Anemia crónica (ferripriva, megaloblástica, hemoglobinopatias, etc.);
  • Subnutrição;
  • Obesidade;
  • Doença neoplásica;
  • Intervenção cirúrgica durante a gravidez;
  • Anomalias congénitas importantes do aparelho locomotor;
  • Epilepsia, atraso mental, etc.;
  • Alcoolismo crónico ou dependência de drogas.
Factores materno-fetais
  • Incompatibilidade sanguínea (Rh, ABO, Kell, outros);
  • Administração de fármacos durante o período da organogénese;
  • Infecções do grupo TORCHS;
  • Irradiação;
  • Alteração do crescimento fetal (restrição ou macrossomia).
Factores placentares e amnióticos
  • Hemorragia vaginal;
  • Hemorragia retroplacentar;
  • Disfunção placentar primária;
  • Placenta prévia ou abruptio placenta, outras alterações, etc.;
  • Ruptura prematura das membranas ovulares;
  • Poli-hidrâmnio ou oligo-âmnio.
Nota: Para quantificar de modo objectivo o risco pré-natal estão descritas na literatura médica diversas escalas estruturadas atribuindo pontuação parcelar a cada parâmetro considerado, o que permite uma pontuação final e, por exemplo, decisão de transferir, ou não, a grávida para centro especializado.

Factores de risco no RN (RN de alto risco)

A lista seguinte integra um conjunto de situações, por vezes associadas, que comportam risco de grau variável no RN.

Factores perinatais
  • Início prematuro de contracções uterinas;
  • Parto pós-termo;
  • Duração do parto
    • na primigesta: > 24 horas
    • na multigesta: > 12 horas
    • segundo período: > 2 horas;
  • Ruptura prolongada de membranas: > 24 horas;
  • Apresentação anormal;
  • Desproporção céfalo-pélvica;
  • Prolapso do cordão umbilical;
  • Parto com fórceps alto;
  • Cesariana;
  • Parto pélvico.
Factores neonatais
  • Peso de nascimento < 2.500 gramas ou > 4.000 gramas;
  • Parto múltiplo (gemelaridade);
  • Líquido amniótico meconial;
  • Índice de Apgar < 5 ao 1º minuto;
  • Resultados anómalos de exames para determinação do “bem-estar” fetal;
  • Sofrimento fetal agudo, subagudo ou crónico;
  • Manobras de reanimação;
  • Dificuldade respiratória;
  • Depressão do SNC por medicamentos administrados à mãe;
  • Sinais de lesão traumática relacionada com o nascimento;
  • Anomalias congénitas.

 Critérios de gravidade

Está hoje demonstrado que o prognóstico da doença neonatal não depende apenas das condições inerentes ao próprio organismo susceptíveis de criarem maior vulnerabilidade (tais como grau de imaturidade), mas igualmente da gravidade do processo mórbido. Ou seja, quando se trata de comparar estudos epidemiológicos sobre morbilidade e mortalidade neonatais no âmbito das mais diversas instituições, os bons ou maus resultados obtidos não podem ser relacionados apenas com o peso e/ou idade gestacional, (exemplificando tão somente com parâmetros de avaliação muito frequentemente considerados), mas igualmente com a gravidade da doença ou doenças de base.

Daí a necessidade de entrar em conta com critérios representativos da gravidade da doença, questão que, ao longo da evolução da Neonatologia moderna tem levado grupos de investigadores a testarem vários parâmetros combinados de modo estruturado e quantificado (escalas de avaliação de gravidade), procedendo à sua ulterior validação.

O objectivo fundamental de tais escalas é tentar aperfeiçoar os indicadores de desempenho das unidades de tal forma que seja possível realizar comparações mais rigorosas entre unidades, regiões e, principalmente, nas próprias em diferentes períodos, tendo em vista a melhoria gradual dos cuidados a prestar aos RN. É o conceito de auditoria.

Há que reconhecer as limitações do método, o qual deverá ser entendido como instrumento de orientação complementar para a equipa médica que, recebendo informação através da escala, presta cuidado a um doente específico; à referida equipa são, pois, exigidos bom senso clínico e ponderação no que respeita a decisões de vária ordem.

Existem diversos modelos de escalas de gravidade baseados em medidas fisiológicas, terapêuticas, diagnósticas, factores de risco, etc., sendo que a cada parâmetro é atribuída determinada pontuação, obtendo-se uma pontuação final ou “índice”.

Seguidamente são apresentados alguns dos critérios mais frequentemente utilizados em unidades neonatais, os quais são designados habitualmente pelas respectivas abreviaturas do título em língua inglesa.

CRIB (Clinical Risk Index for Babies)

O método CRIB (Quadro 1), a utilizar nas primeiras 12 horas de vida, é simples e pode ser aplicado a RN com peso de nascimento < 1.500 gramas e/ou idade gestacional < 31 semanas. Como limitação refere-se a dificuldade de aplicação a RN transferidos doutra unidade neonatal.

De acordo com estudos disponíveis, este critério não é preditivo da morbilidade nos sobreviventes.

Poderá obter-se um valor ou índice final entre 0 e 23, directamente proporcional à gravidade.

QUADRO 1 – Parâmetros do índice de gravidade CRIB.

* Para manter PaO2 de 50-80 mmHg e saturação de O2-Hb de 88-95%
ParâmetroPontuação
Peso de nascimento (gramas)
> 1350
851-1350
701-850
≤ 700

0
1
4
7
Idade gestacional (semanas)
> 24
≤ 24

0
1
Anomalias congénitas
Ausentes
Sem risco de vida
Com risco de vida

0
1
3
Défice de base máximo (mmol/L) – 1as 12 horas
< 7,0
7,0 a 9,9
10,0 a 14,9
≥ 15,0

0
1
2
3
FiO2 mínima adequada* nas 1as 12 horas
≤ 0,40 0
0,41 – 0,60
0,61 – 0,90
0,91- 1,00

0
2
3
4
FiO2 máxima adequada* nas 1as 12 horas
≤ 0,40
0,41- 0,80
0,81 – 0,90
0,91 – 1,00

0
1
3
5

SNAP (Score for Neonatal Acute Physiology) e SNAP-PE (Perinatal Extension)

Este método, na modalidade inicial (SNAP) integrando 34 parâmetros relacionados com sinais vitais e resultados de exames complementares (pontuação atribuída respectivamente a cada parâmetro: 1, 3, 5), pode ser utilizado em RN com qualquer peso de nascimento; com esta escala pretende-se quantificar o grau de instabilidade fisiológica. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Parâmetros do índice SNAP.

ParâmetroPontuação
135
Pressão arterial média, mmHg
Alta
Baixa
66-80
30-35
81-100
20-29
>100
<20
Frequência cardíaca
Alta
Baixa
180-200
80-90
201-250
40-79
>250
<40
Frequência respiratória60-100>100
Temperatura ºC35-35,533,3-34,9<33,3
PO2 mmHg50-6530-50<30
Relação PO2/FIO22,5-3,50,3-2,49<0,3
PCO2 mmHg50-6566-90>90
 Índice de oxigenação0,07-0,200,21-0,40>0,40
Hematócrito %
Alto
Baixo
66-70
30-35
>70
20-29

<20
Contagem de leucócitos (x 1.000)/ mmc2-5>2
Relação imaturos/totais>0,20
Número absoluto de neutrófilos totais/mmc500-999<500
Número de plaquetas (x 1.000)/mmc30-1000-29
Ureia, mg/dL40-80>80
Creatinina, mg/dL1,2-2,42,5-4>4
Débito urinário, mL/kg/hora0,5-0,90,1-0,49<0,1
Bilirrubina indirecta (por peso de nascimento)
> 2 kg: mg/dL
≤ 2 kg: mg/dL
15-20
5-10
>20
>10

Bilirrubina directa, mg/dL≥2,0
Sódio, mEq/L
Alto
Baixo
150-160
120-130
161-180
<120
>180
Potássio, mEq/L
Alto
Baixo
6,6-7,5
2,0-2,9
7,6-9
< 2,0
>9
Cálcio ionizado, mg/dL
Alto
Baixo
≥1,4
0,8-1

<0,8

Cálcio total, mg/dL
Alto
Baixo
≥12
5,0-6,9

<5,0

Glicémia, mg/dL
Alta
Baixa
150-250
30-40
>250
<30

Bicarbonato sérico, mEq/L
Alto
Baixo
≥33
11-15

≤10

PH sérico7,20-7,37,10-7,19<7,10
ConvulsãoÚnicaMúltipla
ApneiaResposta à estimulaçãoNão resposta à estimulaçãoCompleta
Sangue oculto nas fezesPositivo


Posteriormente esta escala foi de modo progressivo simplificada para SNAP-II, e SNAP-PE-II, sugerindo-se a consulta da bibliografia.

Notas importantes:

    1. A utilização dos referidos índices para decisões de carácter ético não é recomendada.
    2. Doentes com quadros clínicos semelhantes poderão evidenciar diversidade quanto à evolução.
    3. A informação fornecida pelos índices de gravidade deverá ser considerada um complemento da avaliação global pelo clínico responsável por determinado doente.

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Definição e importância do problema

O conceito de adaptação fetal à vida extrauterina engloba o conjunto de modificações de ordem anatomofisiológica (metabólicas/bioquímicas, imunológicas, hormonais, etc.) na transição da vida fetal (que decorre em meio líquido/líquido amniótico), para a vida extrauterina, (em meio envolvente aéreo), de cuja perturbação poderão resultar determinados problemas clínicos no RN com possível repercussão futura.

O processo de tal adaptação, sobretudo intraparto (estresse do nascimento) é comparticipado de modo muito importante pelos sistemas simpático-suprarrenal (tendo papel importante a adrenalina e a noradrenalina, quimiorreceptores, barorreceptores), e parassimpático, o que é testemunhado pelos níveis elevados de catecolaminas, angiotensina e vasopressina no pós-parto. No entanto, no conceito de adaptação estão também englobados certos eventos fisiológicos – não imediatos – que se processam nas semanas e meses seguintes, não sendo possível determinar, com precisão, quando termina tal adaptação.

Durante o período médio de duração da gravidez de termo (40 semanas), a placenta tem como funções primordiais as da respiração, da termorregulação, da nutrição, da excreção de catabólitos, endócrinas, etc.. No embrião, primeiramente, (4ª-12ª semanas – precedidas pela fase pré-embrionária no período compreendido entre a 1ª e 3ª semanas), e no feto, depois (13ª-40ª semanas), ocorrem processos complexos de crescimento e de maturação até ser viável a autonomia do produto de concepção após o nascimento.

Na realidade, o processo de mudança mais espectacular e relativamente mais rápido na transição da “vida aquática” para a “vida gasosa” é o que diz respeito ao aparecimento da respiração e ao concomitante incremento da perfusão pulmonar (adaptação respiratória e cardiocirculatória envolvendo processos interligados); de uma PaO2 fetal ~ 25 mmHg passa-se, em situação de normalidade, para uma PaO2 neonatal ~ 60 mmHg ao cabo de 30 minutos de vida com movimentos respiratórios, inspirando ar cuja FiO2 é ~ 21%.

Ora, o RN (ex-feto) para sobreviver em ambiente rico em oxigénio necessita que os sistemas de defesa antioxidante – defesa contra radicais livres de oxigénio (intracelulares: dismutases do superóxido, peroxidase da glutationa, catalase; extracelulares: ascorbato, etc.) – estejam desenvolvidos ao nascer. Acontece que tal desenvolvimento se completa somente no termo da gestação, (sobretudo os sistemas de defesa intracelular), o que equivale a dizer que a probabilidade de lesão oxidante de órgãos por radicais livres é maior nos RN pré-termo. Curiosamente, o desenvolvimento de tais sistemas de defesa processa-se paralelamente à maturação do sistema enzimático responsável pelo desenvolvimento do surfactante pulmonar.

Adaptação respiratória

Líquido pulmonar fetal (LPF)

Durante o período fetal as trocas gasosas são asseguradas através da “membrana” placentar. Desde a concepção, o sistema respiratório evolui em 5 períodos – cuja nomenclatura não coincide precisamente com os períodos atrás considerados – e chamados:

  • Embrionário → com vias aéreas proximais (0-7 semanas);
  • Pseudoglandular → com vias condutoras (8-16 semanas);
  • Canalicular → com formação dos ácinos (17-27 semanas);
  • Sacular → com áreas para trocas gasosas (28-35 semanas);
  • Alveolar → com expansão da área para as trocas gasosas (das 36 semanas ao termo da gravidez).

Concomitantemente desenvolvem-se as estruturas da microcirculação; e, a partir da 26ª-28ª semana, existe superfície de troca suficiente para assegurar as trocas gasosas após o nascimento.

Durante a vida fetal os pulmões estão preenchidos pelo chamado líquido pulmonar fetal (LPF, de características diferentes do líquido amniótico com o qual contacta ao nível da hipofaringe) segregado pelo epitélio respiratório (pneumatócitos do tipo I); o referido PPF aumenta progressivamente, sobretudo após a 18ª semana, ao ritmo de 2-4 mL/kg/hora, atingindo o volume de cerca de 20 mL/kg pelas 36 semanas, semelhante ao valor da capacidade residual funcional (CRF); isto é, o pulmão durante a vida intra-uterina é maciço.

A secreção de tal LPF para o interior das vias aéreas (exercendo pressão de distensão contínua e garantindo como “molde” o crescimento/ expansão do pulmão, e o desenvolvimento epitelial da via respiratória) – predomina sobre a absorção, dependendo de um gradiente osmótico entre a circulação e o espaço aéreo virtual; neste fluxo circulação → alvéolo, entram em acção um sistema de bomba sódio-potássio/ATP-ase localizado no pólo basal do pneumatócito I junto ao capilar.

O LPF contém quantidade significativa de cloro (> 150 mEq/L) e baixa de bicarbonato (~ 2,8 mEq/L), e de proteínas (< 0,3 mg/mL) sendo o pH ~ 6,27. A pressão do LPF, superior à do líquido amniótico (em cerca de 2 mmHg), permite que circule segundo trajecto vias distais → traqueia: a maioria é deglutida pelo feto e uma pequena porção é eliminada para a cavidade amniótica.

Tal movimento é igualmente facilitado pelas forças de elastância do pulmão (ou de tendência para a retracção).

A partir da 11ª semana surgem, com carácter intermitente, movimentos de expansão e retracção do tórax (movimentos pseudo “respiratórios”) irregulares, baixa amplitude e ao ritmo de 60-90/minuto, cuja regulação poderá estar relacionada com o estímulo de receptores periféricos. Associados ao sono REM, a frequência de aparecimento, a frequência por minuto e a amplitude são influenciados por estímulos como acidose e hipercárbia (aumento), ou hipóxia, hipoglicémia, sedativos, etc. (diminuição).

Durante os períodos de movimentos de expansão-retracção fica facilitado o movimento do LPF no sentido vias distais → traqueia atrás referido. Concomitantemente com os períodos de movimentos torácicos verifica-se dilatação da glote; pelo contrário, nos períodos sem movimentos/”apneia” verifica-se constrição da glote com aumento da resistência à saída do LPF.

É importante acentuar que a diminuição do ritmo e frequência dos movimentos de expansão/retracção do tórax fetal compromete o crescimento do pulmão.

Na parte final da gravidez, cerca de dois dias antes do início do trabalho de parto espontâneo, começa a verificar-se: diminuição da secreção do LPF; fluxo deste no sentido alvéolo → capilar → microcirculação → linfáticos; e a aumentar a absorção ou fluxo no sentido inverso, preparando o pulmão para receber ar no pós-parto. Ou seja, a partir desta data e no período pós-natal passa a predominar a absorção sobre a secreção: a adrenalina e noradrenalina libertadas pelo sistema simpático-suprarrenal, assim como a vasopressina, actuando sobre receptores no pólo basal do pneumatócito I, vão estimular o AMP-cíclico e promover a abertura de canais de sódio no pólo apical do mesmo pneumatócito, facilitando tal fluxo e progressivo esvaziamento do alvéolo em LPF.

Calcula-se que durante o trabalho de parto e durante as primeiras horas de vida seja absorvido, cerca de 90% do LPF. Durante a passagem do feto pelo tracto genital inferior a compressão do tórax também contribui para a expulsão do LPF pela boca e nariz, sendo que este mecanismo apenas contribui para a expulsão de cerca de 10% do total de LPF. Este fenómeno fica comprometido se se verificar extracção do feto por cesariana electiva (antes do início do trabalho de parto), determinando que o volume do LPF no ser extrauterino (RN) seja, em tais circunstâncias, praticamente igual ao que existe na vida fetal, o que poderá dificultar a entrada de ar na via respiratória.

Os primeiros movimentos respiratórios

A primeira inspiração sobrevém aproximadamente dentro dos primeiros 15 segundos de vida extrauterina; é desencadeada pelo frio, estímulos nociceptivos e variações das PA (alveolares) de O2 e de CO2 secundárias à laqueação do cordão umbilical.

Entre o feto e o RN existe diferença significativa quanto à sensibilidade dos quimiorreceptores. A resposta do RN de termo ao CO2 é semelhante à do adulto; no RN pré-termo tal resposta é mais fraca, aumenta com a idade gestacional, podendo ficar comprometida se existir hipóxia associada.

A primeira inspiração é caracterizada pela abertura da glote e aumento do tono da musculatura respiratória; durante cerca de 0,5 a 1 segundo exerce-se uma pressão negativa de abertura atingindo (– 40) a (– 80) cm H2O, que permite opor-se à resistência viscosa do LPF existente na via respiratória e às forças de tensão superficial e resistências teciduais, e facilitar a entrada de 50-60 mL de ar na via aérea. De salientar que a abertura alveolar pulmonar não é uniforme dada a raridade dos poros de Kohn no RN, o que constitui um factor predisponente de pneumotórax.

A primeira expiração efectua-se com a glote semi-encerrada: corresponde ao primeiro choro. A pressão pleural mantém-se positiva (~ 20-30 cm H2O); por outro lado, nem todo o ar inspirado é expirado, sendo de referir que cerca de 20-30 mL (ar residual) fica localizado nos alvéolos que mantêm distensão residual estável desde que exista surfactante funcionante.

O estabelecimento de movimentos respiratórios rítmicos está essencialmente na dependência de quimiorreceptores carotídeos. Durante os primeiros dias que se seguem ao nascimento, dois reflexos com ponto de partida pulmonar desempenham igualmente papel importante:

  • O reflexo de Hering-Breuer, não existindo no adulto, mas sim no RN de termo e pré-termo: a insuflação pulmonar determina cessação do esforço respiratório;
  • O reflexo paradoxal de Head: inspiração activa como resposta a insuflação pulmonar.

O reflexo de Head, muito mais importante no RN do que em qualquer outra fase da vida, é responsável por frequentes “suspiros” observados no período neonatal, com utilidade no sentido de manter arejamento pleno dos pulmões.

Os primeiros movimentos respiratórios, irregulares e bastante amplos, são entrecortados por esforços expiratórios. À medida que se verifica a manutenção dos movimentos respiratórios, sucessivamente mais alvéolos vão sendo “recrutados” ou preenchidos, com aumento progressivo da capacidade residual funcional (CRF), a qual atinge o valor ~ 30 mL/kg ao 30º minuto de vida extrauterina.

Em sucessivas inspirações cada vez menos ar é mobilizado, sendo que o volume corrente diminui e estabiliza no valor ~ 6 mL/kg.

Quanto à distensibilidade (compliance) pulmonar, dependente da secreção de surfactante pulmonar a partir da 20ª semana de gestação pelos pneumatócitos do tipo II, os valores são, progressivamente: 2 mL/cmH2O aos 3 minutos, e 5 mL/cm H2O aos 7 dias de vida (no adulto: ~ 170 mL/cm H2O).

O défice de surfactante, levando ao colapso alveolar, compromete a manutenção do ar residual e, por isso, a adaptação respiratória.

Relação entre ventilação e perfusão

A distensão alveolar acompanha-se de abertura do leito vascular pulmonar; a superfície alveolocapilar torna-se, assim, a zona de trocas gasosas, sendo que a relação ventilação/perfusão não é considerada óptima no RN. A abertura alveolar não é homogénea, havendo certas zonas perfundidas não ventiladas criando-se um curto-circuito direito-esquerdo intrapulmonar (15-30% no RN contra 5% no adulto).

Hemoglobina F e hemoglobina A

Muito progressivamente, no decurso do 3º trimestre da vida extrauterina a Hb F (fetal) dá lugar à Hb A (do tipo adulto), tendo esta última menor afinidade para o oxigénio.

Condições básicas para a adaptação respiratória

Após descrição sucinta dos passos mais importantes da adaptação respiratória (indissociável da adaptação cardiocirculatória) será mais fácil deduzir as condições básicas para a manutenção do automatismo e função respiratórios, assim como os problemas clínicos – abordados noutros capítulos – que decorrem de perturbações das referidas condições. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Função respiratória – Condições básicas.

    • Centros respiratórios activos e receptivos
    • Vias de condução nervosa intactas
    • Suprimento adequado de O2
    • Músculos respiratórios eficientes
    • Vias aéreas livres
    • Alvéolos estáveis [pneumatócitos tipo II (surfactante)]
    • Rede arterial pulmonar com muscularização adequada
    • Difusão alveolocapilar adequada (pneumatócitos tipo I)

Adaptação cardiocirculatória

In utero, a circulação fetal é fundamentalmente caracterizada pela importância do débito placentar e pelo escasso débito pulmonar (inferior a 10% do débito ventricular).

Com o nascimento verificam-se transformações radicais: supressão da circulação placentar com a laqueação do cordão, e aumento maciço da perfusão pulmonar coincidindo com o arejamento das vias respiratórias.

A adaptação cardiocirculatória corresponde, afinal, ao somatório de modificações anatómicas e fisiológicas sob a dependência de factores mecânicos e bioquímicos.

Circulação fetoplacentar

O esboço embrionário do coração funciona como “bomba” efectiva pela 8ª semana de gestação, sendo que a estrutura do coração está completamente formada cerca da 10ª semana.

A circulação fetoplacentar relativamente à verificada após o nascimento difere fundamentalmente:

  1. Pela existência da placenta como órgão interposto entre o feto e a grávida (hemodinamicamente é uma região de baixa resistência);
  2. Pela existência do foramen ovale (ou buraco de Botal) que permite a passagem de sangue da aurícula direita para a aurícula esquerda;
  3. Pela existência do ductus arteriosus ou canal arterial que também determina um curto circuito direito-esquerdo pela comunicação que estabelece entre a artéria pulmonar e aorta.

O sangue que circula no feto é bombeado pela circulação fetal através das duas artérias umbilicais em direcção à placenta. Na placenta fazem-se as trocas gasosas (transferência de CO2 para a circulação materna e aquisição de O2 e nutrientes para a circulação fetal). O sangue oxigenado volta ao feto através da veia umbilical que dá origem a dois importantes ramos antes de alcançar o fígado: um ramo para o lobo esquerdo do fígado; e outro ramo (ductus venosus) que se liga à veia cava inferior, o que determina mistura de sangue mais oxigenado (proveniente da placenta) com sangue não oxigenado (proveniente dos membros inferiores e órgãos infradiafragmáticos).

Determinadas particularidades anatómicas no local em que a veia cava inferior se liga à aurícula direita fazem com que:

  1. O sangue não oxigenado proveniente dos membros inferiores e órgãos infradiafragmáticos se dirija para o ventrículo direito através da válvula tricúspide; este sangue mistura-se, por sua vez, com o sangue, também não oxigenado, que provém da cabeça e membros superiores. A grande parcela do débito do ventrículo direito dirige-se para a circulação sistémica através do curto circuito – ductus arteriosus – ligando a artéria pulmonar à aorta descendente;
  2. O sangue mais oxigenado atingindo a aurícula direita (parcela superior à do sangue não oxigenado) dirige-se preferencialmente da aurícula direita para a aurícula esquerda através do foramen ovale e, a seguir, para o ventrículo esquerdo.

Consequentemente, no feto, considerando o volume de sangue que atinge a aurícula direita, somente cerca de 10% do mesmo irriga o território pulmonar, sendo o restante “desviado” para a circulação sistémica por meio do foramen ovale e ductos arteriosus.

O facto de o ductus arteriosus (conduzindo sangue menos oxigenado) desembocar na aorta a jusante da emergência das artérias que contribuem para a irrigação do miocárdio e encéfalo (recebendo sangue mais oxigenado através do circuito foramen ovaleaurícula esquerdaventrículo esquerdo), faz com que estes territórios (encéfalo e miocárdio) recebam sangue mais oxigenado.

Os dois ventrículos trabalham “em paralelo”, sendo a frequência cardíaca elevada (130-150/minuto) e o débito importante: entre a 10ª e 30ª semanas o somatório dos débitos direito e esquerdo totaliza cerca de 200 mL/kg/minuto.

A circulação pulmonar é caracterizada por resistência vascular elevada (cerca de cinco vezes superior à resistência sistémica. As arteríolas são submetidas, sobretudo a partir da 28ª semana de gestação, a uma modificação anatómica e estrutural: aumento global do peso do pulmão (cerca de 4 vezes), aumento progressivo da espessura da musculatura da média em relação à espessura da íntima, aumento do número de pequenos vasos (cerca de 40 vezes), aumento do número de vasos por unidade de volume da ordem de 10 vezes até ao termo da gestação; tais alterações podem ser interpretadas como preparação do pulmão para receber na vida extrauterina um volume de sangue 10 vezes superior ao que se verifica in utero.

O tono vascular pulmonar é sensível a mediadores endoteliais vasoactivos (vasodilatadores ou vasoconstritores), por ex. pH, PO2, PCO2, NO, endotelina, etc.; in utero predomina a acção de factores que promovem vasoconstrição.

Caberá referir, a propósito, que no feto, tal como a resistência vascular placentar, a resistência vascular periférica e a pressão arterial sistémica têm valores baixos.

Circulação neonatal de transição

A supressão brusca da circulação placentar coincide com o início da ventilação pulmonar que conduz a:

  • Elevação do nível de oxigenação alveolar e arterial;
  • Dilatação rápida dos vasos pulmonares que promovem incremento do débito sanguíneo pulmonar na ordem de 10 vezes (em cerca de 24 horas).

O aumento significativo do débito sanguíneo pulmonar conduz a maior volume sanguíneo de retorno à aurícula esquerda aumentando a respectiva pressão e determinando o encerramento funcional do foramen ovale, o que contribui para diminuir o curto-circuito direito-esquerdo a este nível. O aumento do débito sanguíneo pulmonar coincide com diminuição da pressão na artéria pulmonar e no ventrículo direito.

Por sua vez, a redução do gradiente de pressão entre artéria pulmonar e aorta, associada à constrição progressiva (primeiramente funcional, e depois anatómica) do ductus arteriosus (DA) determinada pela elevação do nível de oxigenação tecidual, leva à diminuição e eliminação progressiva do curto circuito direito-esquerdo, através daquele (DA).

A laqueação do cordão umbilical, eliminando a circulação placentar – região de baixa resistência – vai contribuir para elevar a pressão arterial sistémica, sendo que a pressão aórtica se torna superior à pressão na artéria pulmonar.

A Figura 1 representa de modo esquemático a circulação fetal e neonatal.

FIGURA 1. Representação esquemática dos circuitos da circulação fetal e neonatal (consultar texto). Vasos de cor branca <> sangue oxigenado; vasos de cor preta <> sangue não oxigenado; vasos com ponteado em diversas tonalidades <> sangue de mistura (mais oxigenado com menos oxigenado, em graus variáveis).

Fases de diminuição da resistência vascular pulmonar ex-útero

A diminuição da pressão na artéria pulmonar processa-se em três fases:

Primeira fase (0-1 minuto)

Logo após os primeiros movimentos respiratórios, com a substituição do LPF por ar e a formação de interface líquido/ar ao nível da superfície alveolar, são criadas imediatamente forças de tensão superficial que, diminuindo a pressão no interstício do parênquima pulmonar, permite dilatação dos vasos e aumento do débito pulmonar.

Segunda fase (até 12-24 horas)

Nesta fase, ao longo de 12 a 24 horas a RVP diminui por acção de mediadores com acção vasoactiva produzidos no endotélio (exemplificam-se como mais importantes o NO e a prostaciclina).

Terceira fase (entre as 12-24 horas e cerca de 10 dias)

Nesta fase continua, de modo mais lento, a diminuição da RVP, sobretudo à custa da diminuição da espessura da camada muscular e achatamento das respectivas células endoteliais, o que contribui para aumentar, mais ainda, o calibre das artérias pulmonares de menor calibre.

FIGURA 2. Adaptação cardiocirculatória à vida extrauterina.

Encerramento do foramen ovale

O encerramento do foramen ovale inicia-se ao cabo de algumas horas. Nos primeiros dias poderá ocorrer curto circuito bidireccional por hiperpressão ocasional na aurícula direita (por ex. com choro), originando cianose transitória. O encerramento torna-se mais efectivo ao cabo de 8-10 dias, sendo que o encerramento anatómico é mais tardio.

Encerramento do ductus arteriosus

O canal arterial é uma estrutura muito particular: camada muscular lisa interposta entre duas camadas elásticas, com orientação longitudinal e circular das respectivas fibras.

Como estímulos que podem gerar constrição citam-se designadamente o incremento da PaO2 e de prostaglandinas no sangue circulante do canal, e da respectiva artéria nutritiva (ramo da aorta descendente ou duma coronária). Situações como SDR/hipóxia e prematuridade poderão levar a atraso de encerramento.

O encerramento funcional verifica-se em 80%-90% dos casos entre as 10 e 18 horas de vida; e o encerramento anatómico, na maioria dos casos, cerca das 8 semanas; por conseguinte, neste período poderá haver curto-circuito bidireccional e hipóxia transitórios. A permeabilidade permanente é estimada em cerca de 0,04% dos RN de termo, e em 20%-40% de RN pré-termo com peso de nascimento < 1.000 gramas.

A Figura 2 sintetiza os principais fenómenos da adaptação cardiocirculatória à vida extrauterina.

Circulação de tipo adulto

A circulação neonatal definitiva é caracterizada pelo funcionamento “em série” dos dois ventrículos. O ventrículo esquerdo torna-se progressivamente preponderante e as pressões sistémicas aumentam também progressivamente.

Condições básicas para a adaptação cardiocirculatória

Após descrição sucinta dos passos mais importantes da adaptação cardiocirculatória (indissociável da adaptação respiratória) será mais fácil deduzir as condições básicas para a manutenção da função cardiocirculatória, assim como os problemas clínicos – abordados noutros capítulos – que decorrem de anomalias das referidas condições. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Função cardiocirculatória – Condições básicas.

    • Funcionamento da circulação neonatal definitiva de tipo adulto
    • Sistema cardiovascular sem anomalias morfológicas
    • Rede capilar suficientemente desenvolvida

Adaptação térmica

Termorregulação durante a vida fetal

Os mecanismos fundamentais de produção e de perda de calor (regulação térmica) são regulados pelo centro termorregulador, no hipotálamo. O referido centro recebe informações de receptores térmicos, quer superficiais (pele), quer profundos (músculos esqueléticos, abdómen, espinhal medula, mucosa respiratória, etc.).

In utero, o metabolismo fetal determina uma temperatura fetal que é superior, em cerca de 0,5ºC, à temperatura da mãe, criando-se um gradiente que permite perda de calor no sentido feto → mãe, sobretudo através da circulação umbilical e placenta; isto é, na ausência de placenta, a temperatura fetal elevar-se-ia na ordem de 3ºC por hora.

Termorregulação após o nascimento

No momento do nascimento a temperatura rectal do RN é cerca de 37,6ºC-37,8ºC, e a do ambiente do bloco de partos, em geral, 23ºC. Após o nascimento, a situação inverte-se completamente, pois o RN é confrontado numa luta contra o frio, estabelecendo-se um importante gradiente térmico.

Por um lado, a pele do RN está molhada com resto do líquido amniótico; por outro, o mesmo RN tem panículo adiposo escasso e pele não queratinizada (características mais acentuadas no RN pré-termo), e a relação superfície corporal/volume corporal é muito superior à do adulto (sobretudo nos RN pré-termo de peso < 1.500 gramas).

Criam-se, assim, condições para uma perda térmica importante no sentido interior corporal → superfície corporal → ar ambiente, de quatro modos:

Evaporação

(RN molhado – líquido amniótico aderente à pele ou água do banho à superfície da pele);

Condução

(perda de calor por “contacto directo” com uma superfície de temperatura inferior à da pele, por ex. colchão frio, prato da balança frio, etc.);

Radiação

(perda de calor “à distância” para superfícies não em contacto com a pele – por ex. parede da sala ou da incubadora);

Convecção

(perda de calor tendo como “veículo” ar em movimento/corrente de ar).

Na ausência de cuidados, no RN deixado à temperatura ambiente, molhado, não vestido, não colocado sob fonte de calor, a temperatura cutânea pode baixar rapidamente (0,3ºC/minuto), assim como a temperatura rectal, de modo mais lento.

As possibilidades de adaptação ou de resposta do RN ao ambiente exterior frio são de dois tipos:

Diminuição da perda de calor

O RN submetido ao frio responde com vasoconstrição periférica por libertação de adrenalina e noradrenalina, levando a: 1) vasoconstrição pulmonar; 2) aumento do débito cardíaco; 3) incremento do metabolismo anaeróbio (elevação do glucagon, diminuição de insulina; glicogenólise e elevação da glicémia numa primeira fase, seguidas de esgotamento das reservas de glicogénio e hipoglicémia ulterior); e 4) acidose metabólica.

Produção de calor (termogénese)

A termogénese no RN é limitada e, por isso, diferente da do adulto: 1) o fenómeno de calafrio (contracção muscular) praticamente não existe, embora o choro e a agitação contribuam para aumentar a actividade muscular; 2) a maior fonte de produção de calor no RN é constituída pela chamada gordura castanha, mais abundante no RN do que no adulto, mas insuficiente nos primeiros dias de vida, sobretudo nos RN pré-termo ou de baixo peso, o que constitui uma limitação.

Os depósitos de gordura castanha, muito vascularizados e com inervação simpática, localizam-se na região subescapular, trajecto dos grandes vasos, goteiras paravertebrais, mediastino, e regiões perirrenais e perissuprarrenais.

Como resultado da exposição ao frio, a libertação de adrenalina e noradrenalina desencadeia lipólise ao nível da gordura castanha: hidrólise de triglicéridos com libertação de glicerol e ácidos gordos livres, e consequente produção de energia sob a forma de calor que, por condução, se vai transmitir aos vasos e sangue circulante nos tecidos contíguos.

Relativamente às possibilidades de resposta do RN ao ambiente exterior quente (situações relacionadas, por ex. com falta de precaução: tempo quente e excesso de roupa, hiperaquecimento inadvertido, etc.), há que salientar que existem limitações no que respeita ao mecanismo de compensação de perda de calor – normalmente funcionante em crianças de mais idade e adultos – através da sudorese. Com efeito, face à imaturidade do RN e lactente, as glândulas sudoríparas têm capacidade limitada de secreção, o que aumenta a probabilidade de hipertermia face a temperatura exterior elevada.

Em suma, os mecanismos de termorregulação nos RN têm limitações, havendo maior risco comparativamente a crianças de maior idade, quer de elevação anormal da temperatura se colocados em ambiente quente, quer de diminuição anormal da temperatura se colocados em ambiente frio.

Adaptação digestiva

Nutrição e crescimento fetais

Durante a vida fetal a nutrição é de tipo hematogénico, assegurada pela via transplacentar. De salientar que o crescimento pré-natal está dependente sobretudo de factores de crescimento maternos e placentares (e fetais em menor escala) tais como insulina e factores de crescimento semelhantes a insulina (IGF 1 e 2), leptina, etc., enquanto o crescimento pós-natal depende fundamentalmente de hormonas hipofisárias e doutras.

No 1º trimestre verifica-se aumento do número de células; no 2º trimestre verifica-se, quer aumento do número, quer do volume das mesmas células, sendo o incremento de gordura cerca de 50 gramas e o peso atingido do feto cerca de 1/3 do peso de nascimento.

No 3º trimestre – o período de verdadeira preparação para a vida extrauterina – continua o aumento do volume das células já formadas, o que se traduz num incremento de 500 gramas de gordura branca e castanha (10 vezes mais do que nos trimestres anteriores), e da maior parte das reservas

de minerais, glicogénio e oligoelementos; neste trimestre verifica-se incremento de peso correspondente a 2/3 do peso de nascimento.

As principais fontes energéticas para o feto são os hidratos de carbono representados pela glucose: por difusão, verifica-se um suprimento do referido nutriente no sentido mãe → feto, da ordem de 4-6 mg/kg/minuto durante o 2º trimestre da gravidez, período em que já é possível a glucogénese. A neoglucogénese processa-se no terceiro trimestre. (ver adiante)

O suprimento em azoto para a síntese proteica é levado a cabo através da transferência directa activa de aminoácidos mãe → feto, sendo que também se verifica síntese dos mesmos no citosol da placenta.

No que respeita aos lípidos, cabe referir que a lipogénese se processa no feto a partir das 12 semanas, sendo estimulada pela insulina e inibida pelo glucagon e AMPc. As fontes de lípidos para o feto são constituídas por: ácidos gordos livres provenientes da mãe e da síntese na placenta; ou da lipólise de triglicéridos, lipoproteínas ou fosfolípidos, quer da mãe, quer do próprio feto (salientando-se o papel da lipoproteína-lipase do endotélio capilar na hidrólise dos triglicéridos).

Tubo digestivo fetal

Todas as estruturas do tubo digestivo estão individualizadas desde a 12ª semana de gestação, sendo que a maturação anatómica e funcional se efectua progressivamente das regiões proximais para as regiões distais.

Como particularidades essenciais da fisiologia do tubo digestivo fetal cabe referir:

  • O feto tem capacidade para a sucção e deglutição; no termo da gestação tem possibilidade de deglutir até 10 mL/hora de líquido amniótico;
  • O processo de absorção intestinal activa da glucose existe desde a 12ª semana, aumentando significativamente até à 16ª semana; de referir que os elementos contidos no líquido amniótico são em grande parte absorvidos;
  • À medida que se vai constituindo o mecónio, este vai-se acumulando no tubo digestivo; somente em caso de sofrimento fetal se verifica emissão do mesmo para o espaço amniótico.

Nutrição e alimentação neonatais

Com a laqueação do cordão umbilical, a nutrição hematogénica transplacentar é bruscamente interrompida. Estando o tubo digestivo desenvolvido no termo da gestação, a via natural para o suprimento alimentar é a via digestiva; no caso de imaturidade, compreende-se que esta via (natural, extrauterina) comporta algumas limitações. Como particularidades essenciais da fisiologia do tubo digestivo do recém-nascido cabe referir:

  • A sucção e a deglutição, já presentes no feto, estão bem coordenadas no recém-nascido de termo a partir das 12 horas de vida; no RN pré-termo, e tanto mais quanto menor a idade gestacional, existe incoordenação da sucção-deglutição;
  • Atraso do esvaziamento gástrico nas primeiras 12 horas de vida pós-natal, melhorando gradualmente nos primeiros 4 dias;
  • O trânsito intestinal estabelece-se, na ausência de anomalias morfológicas e funcionais desde o nascimento. O ar penetra no tubo digestivo atingindo o intestino delgado entre as 2 e 12 horas de vida, e a porção mais distal do cólon entre as 18 e 24 horas;
  • O refluxo gastresofágico de grau variável por relaxamento do esfíncter esofágico inferior é habitual, sobretudo nos primeiros três dias;
  • A actividade proteolítica (pancreática e da pepsina) é baixa até cerca de 1 ano, desenvolvendo-se até aos 3 anos;
  • A lipase pancreática, com actividade fraca, é compensada pala lipase salivar;
  • As amilases salivar e pancreática também evidenciam actividade deficitária nos primeiros meses de vida;
  • As dissacaridases (sacarase, lactase, maltase) atingem a actividade máxima no termo da gravidez após incremento progressivo durante a gestação; a actividade da lactase diminui progressivamente com a idade e, designadamente após o período de alimentação láctea exclusiva;
  • A primeira refeição estimula a libertação duma variedade de hormonas entéricas incluindo insulina, hormona de crescimento, gastrina, enteroglucagon e motilina;
  • A primeira emissão de mecónio – que pode ser desencadeada pela primeira refeição de leite que estimula a motilidade através de hormonas intestinais – sobrevém nas primeiras 24 horas; situações em que tal não se verifique até às 48 horas implicam vigilância; de salientar que, nos casos de eliminação de mecónio in utero, se comprovou elevação dos níveis de motilina no sangue do cordão;
  • O atraso da eliminação de mecónio com sinais de obstrução intestinal pode observar-se em diversas situações como “síndroma de rolhão de mecónio” e síndroma de microcólon esquerdo; uma vez que cerca de 50% dos casos de atraso de eliminação de mecónio surgem em RN de mãe diabética, admite-se que a elevação do glucagon (secundária à hipoglicémia) pode diminuir a motilidade do cólon; a diminuição de tal motilidade por défice de libertação de acetilcolina secundária a hipermagnesémia neonatal pode também verificar-se nos casos de tratamento de eclâmpsia materna com magnésio.

Adaptação metabólica

A composição do meio interno do feto depende da concentração dos diversos elementos do sangue circulante materno, dos mecanismos de troca verificados ao nível da placenta e, em menor grau, da aquisição progressiva de funções de regulação (maturação) do próprio feto.

A laqueação do cordão umbilical interrompendo de modo abrupto, quer o suprimento de nutrientes e doutros compostos provenientes do organismo materno, quer o processo de depuração de catabólitos anteriormente a cargo da placenta, cria no RN uma situação de instabilidade metabólica ou de perturbação da homeostasia de grau e duração variáveis em função da idade gestacional do mesmo.

Dois tipos principais de situações podem ser considerados representativos de tal perturbação da homeostasia no período neonatal:

  • Carência em reservas energéticas para satisfazer as necessidades nutricionais, com maior acuidade nos RN com antecedentes de gravidez encurtada (pré-termo), de insuficiência placentar e/ou com restrição de crescimento intra-uterino;
  • Doenças hereditárias do metabolismo cujos efeitos in utero são compensados pelos mecanismos homeostáticos do organismo materno: sendo muitas das situações referidas assintomáticas ou acompanhando-se de período assintomático, o clínico deverá proceder ao respectivo rastreio na base da anamnese perinatal, do exame objectivo e de eventuais exames complementares.

Nesta alínea é dada ênfase a aspectos da adaptação do metabolismo do cálcio e dos hidratos de carbono.

Metabolismo do cálcio

In utero, o cálcio é transportado pela placenta de modo activo para o feto de modo que, no termo da gestação, os níveis séricos de cálcio sérico fetal sejam superiores aos níveis de cálcio materno.

No feto os níveis séricos de PTH (hormona paratiroideia) e de 1,25 (OH)2 – vitamina D são baixos, mas os níveis de calcitonina e de 24, 25 (OH)2 – vitamina D são elevados, o que favorece a deposição de cálcio no tecido ósseo.

Após o nascimento, a interrupção brusca de suprimento de cálcio transplacentar determina que no RN se verifique, não só diminuição da taxa de deposição de cálcio no osso, mas ainda remoção do mesmo para o sangue como “garantia” da manutenção da homeostase do cálcio extracelular até à data em que se inicia a ingestão de leite (que corresponde ao suprimento de cálcio e outros minerais).

Nas primeiras 24 horas verifica-se diminuição progressiva dos níveis de cálcio sérico que estimula a libertação de PTH que, por sua vez, estimula a síntese de 1,25 (OH)2 – vitamina D. Consequentemente verifica-se elevação do cálcio sérico explicada pelos seguintes mecanismos: 1) reabsorção/ remoção de cálcio ósseo por acção de PTH e 1,25 (OH)2 – vitamina D; 2) absorção de cálcio intestinal por efeito de 1,25 (OH)2 – vitamina D; 3) redução da eliminação renal de cálcio por acção de PTH e 1,25 (OH)2 – vitamina D; 4) redução gradual do fósforo sérico por excreção renal aumentada, como efeito da PTH.

Em condições de normalidade, o cálcio sérico estabiliza com valor > 8 mg/dL cerca de 48 horas após o nascimento, aumentando depois durante a primeira semana.

Metabolismo dos hidratos de carbono

O feto está dependente do suprimento materno de glucose, sendo que a glicémia fetal corresponde a cerca de 60%-70% da glicémia materna. Após a laqueação do cordão umbilical verifica-se descida abrupta da glicémia no RN, sendo atingido o nadir entre 1 e 2 horas de vida pós-natal, aumentando subsequentemente.

Os níveis de glucose no sangue são inicialmente mantidos através da mobilização e eventual depleção das reservas de glicogénio hepático, o que é facilitado pela elevação das catecolaminas e glucagon, e diminuição da insulina pós-natal.

Tendo em conta que o suprimento de hidratos de carbono através da alimentação nos primeiros dias de vida é escasso, e que somente cerca de 20%-50% da glucose para as necessidades provém do leite, o RN fica dependente da neoglucogénese a partir de aminoácidos, glicerol e lactato.

Alterações metabólicas diversas, maternas (diabetes, excessivo suprimento de glucose por via parentérica intra-parto, tocolíticos beta-simpaticomiméticos, etc.) ou neonatais (asfixia perinatal, hipotermia, restrição de crescimento intra-uterino, hiperinsulinémia, excesso de peso para a idade gestacional, etc.) poderão resultar em perturbação do metabolismo da glucose no RN conduzindo a hipoglicémia.

No RN de termo saudável alimentado nas primeiras 4 horas de vida verifica-se em geral glicémia superior a 40 mg/dL.

A hiperglicémia é rara no RN de termo.

Adaptação renal

Funções do rim

O rim tem numerosas funções: regula o volume e a composição do líquido extracelular, participa na manutenção do equilíbrio ácido-base, elimina os catabólitos azotados, activa a vitamina D, segrega a eritropoietina e sintetiza localmente prostaglandinas, endotelina, bradiquinina, NO e dopamina; é igualmente o alvo de numerosas hormonas extra-renais: vasopressina, hormona paratiroideia, aldosterona, catecolaminas, corticóides, etc.. Por intermédio do balanço do sódio e do sistema renina-angiotensina-aldosterona contribui para a regulação da pressão arterial. Sob o ponto de vista farmacológico, o rim constitui a via de eliminação de numerosos compostos activos ou dos seus catabólitos.

Rim fetal

No decurso da vida intra-uterina o feto não necessita dos seus rins, pois todas as funções homeostáticas são asseguradas pela placenta, a qual constitui um verdadeiro “rim artificial”.

A formação dos nefrónios processa-se numa sequência centrífuga e completa-se pela 35ª semana de gestação. O desenvolvimento da filtração glomerular e da perfusão renal têm uma evolução característica ao longo do último trimestre da gravidez. A maturação funcional é muito mais rápida do que o crescimento morfológico até à 35ª semana de gestação; a partir desta data verifica-se menor ritmo de incremento da filtração glomerular que passa a desenvolver-se paralelamente à massa renal.

A formação de urina pelo rim fetal começa entre a 9ª e 12ª semana de gestação.

A diurese, estimada por técnica ecográfica, é cerca de 10 mL/hora pela 32ª semana, atingindo cerca de 28 mL/hora no termo da gestação; a urina é hipotónica, com uma osmolalidade de cerca de 200 mOsm/kg H2O. No decurso do 2º trimestre verifica-se já um processo de reabsorção activa de glucose, cloro e sódio.

Nas situações de obstáculo da uretra o débito urinário pode ser < 2 mL/hora, verificando-se concomitantemente elevação da concentração urinária de sódio (> 100 mmol/L) e de cloro (> 90 mmol/L), assim como elevação da osmolalidade urinária (> 200 mOsm/kg/ H2O).

A indometacina (inibidor da síntese das prostaglandinas), que é utilizada na grávida como tocolítico, atravessa a placenta podendo diminuir a diurese fetal e originar oligoâmnio. Os inibidores da enzima de conversão da angiotensina utilizados como agentes anti-hipertensão podem igualmente originar oligo-anúria fetal e oligoâmnio.

Maturação renal pós-natal

Filtração glomerular e perfusão renal

Após o nascimento, o rim encarrega-se das funções homeostáticas até então desempenhadas pela placenta; em situações de normalidade a primeira micção do RN de termo verifica-se em cerca de 97% dos casos até às 24 horas de vida e em 100% até às 48 horas. A inexistência de diurese até às 24 horas no RN de termo levanta a suspeita clínica de patologia subjacente que importa investigar (por ex. hipóxia – isquémia, anomalias congénitas, fármacos administrados à mãe, etc.).

A filtração glomerular e a perfusão renal aceleram o ritmo desde as primeiras horas de vida extrauterina. A filtração glomerular, cerca de 20 mL/min x 1,73 m2 no RN de termo, duplica nas primeiras duas semanas (num adulto cuja superfície corporal média é cerca de 1,73 m2, a filtração glomerular atinge 100-120 mL/min). O desenvolvimento do débito plasmático renal segue uma evolução paralela, sendo que no período neonatal a maturação funcional é mais rápida que o crescimento morfológico.

No RN pré-termo, a filtração glomerular, partindo dum nível mais baixo, desenvolve-se de modo rápido. Esta maturação depende de modificações anatómicas e hemodinâmicas:

  • Crescimento glomerular;
  • Elevação da pressão arterial;
  • Diminuição da resistência vascular renal; e
  • Aumento da superfície de filtração e da permeabilidade capilar.

Está igualmente associada a importantes alterações da concentração de hormonas vasoactivas:

  • Diminuição da angiotensina II, das prostaglandinas, do péptido natriurético auricular (PNA ou ANP produzido nos miócitos da aurícula como resposta a hipoxémia ou a distensão da cavidade auricular); e da
  • Endotelina.

A maturação da filtração glomerular traduz-se clinicamente por modificações da creatininémia. No pós-parto, o RN apresenta valores elevados da creatininémia que reflectem a concentração materna desta substância. A creatinina plasmática do RN de termo diminui rapidamente e estabiliza por volta do 5º dia de vida num valor de cerca de 35 μmol/L. No RN pré-termo de muito baixo peso com cerca de 28 semanas de gestação e taxa de filtração glomerular muito mais baixa (cerca de 10 mL/min x 1,73 m2), o tempo necessário para excretar a creatinina materna é muito mais longo, podendo atingir 1 mês.

Regulação homeostática

A capacidade de diluição do RN de termo ou pré-termo é eficaz: a osmolalidade pode atingir valores até cerca de 40 mOsm/kg H2O. A capacidade de concentração no RN pré-termo é, pelo contrário, limitada em comparação com o adulto: osmolalidade urinária máxima de cerca de 680

mOsm/kg/H2O contra cerca de 1400 mOsm/kg/H2O no adulto; no RN pré-termo tal valor é < 680 mOsm/kg/H2O.

Tendo em conta a fraca capacidade de concentração, o RN de termo e, ainda mais, o RN pré-termo, necessitam de um volume mais importante de água para a excreção da carga osmótica diária.

Balanço do sódio

O rim desempenha papel primordial na regulação do balanço de sódio e, por conseguinte, na manutenção da osmolalidade e volume do líquido extracelular.

Como particularidades do mecanismo do balanço do sódio cabe referir:

  • Existe equilíbrio, quer no RN, quer no adulto, entre a filtração e reabsorção de sódio;
  • A fracção excretada de sódio (FeNa ou percentagem de sódio filtrado não reabsorvido e excretado) na data de nascimento está inversamente correlacionada o com a idade gestacional; e, mais tarde, com a idade pós-natal. Este facto dificulta a interpretação dos valores de FeNa no RN pré-termo com suspeita de insuficiência renal aguda;
  • Os RN pré-termo (e em menor grau os RN de termo) evidenciam incapacidade para excretar excesso de sódio resultante de suprimento excessivo do mesmo (por menor filtração glomerular, actividade aumentada do sistema renina-angiotensina-aldosterona, perfusão preferencial dos glomérulos juxtaglomerulares em detrimento dos corticais, etc.); tal conduz a balanço positivo em sódio;
  • Os RN pré-termo evidenciam incapacidade para reter sódio em situações de carência do mesmo (por resistência parcial do túbulo renal distal à aldosterona, entre outros factores);
  • As perdas de água transepiderme, muito elevadas no RNMBP, poderão originar hipernatrémia mesmo que o suprimento em sódio não seja excessivo;
  • No RN pré-termo de muito baixo peso é relevante considerar o período inicial em que ocorre, paralelamente à perda de peso, contracção do espaço extracelular que contém sódio; uma vez que a referida contracção corresponde a passagem de sódio do espaço extravascular para o vascular, haverá que adoptar prudência na prescrição de sódio em tal período de adaptação.
Equilíbrio ácido-base

A regulação do equilíbrio ácido-base é relativamente eficaz no RN. Este excreta, desde os primeiros dias, os ácidos produzidos pela oxidação dos substratos metabólicos e reabsorve os bicarbonatos filtrados.

Existe igualmente capacidade para diminuir o pH urinário em situação de acidose metabólica (valores mais baixos no RN de termo); os valores mais baixos são atingidos proporcionalmente a partir da 2ª semana de vida.

Tendo em conta o baixo limiar de excreção urinária, é importante referir as diferenças de comportamento no RN de termo e no pré-termo; no primeiro caso a concentração de bicarbonato plasmático é cerca de 20-22 mmol/L e, no segundo caso, 18-20 mmol/L.

Actividade da renina plasmática (ARP)

Na data do nascimento a concentração da RP no RN de termo é cerca de 10-12 ng/mL/hora; tal concentração vai diminuindo até cerca de 1 ng/mL/hora pelos seis anos de idade, valor que se mantém até à idade adulta.

Os principais estímulos para a libertação de renina são mediados pela PG-E2 e PG-I1. Ora, a excreção urinária destas prostaglandinas é relativamente maior nos RN pré-termo, variando de modo inversamente proporcional à idade de gestação.

Carga de soluto renal

A quantidade de água necessária para a formação da urina depende, não só da função renal, mas também da chamada carga de soluto renal. Esta última deriva, quer de produtos do catabolismo tecidual quando o suprimento energético e proteico é insuficiente, quer do suprimento exógeno de proteínas e electrólitos. Por sua vez, para o rim excretar a carga de soluto renal através da urina, necessita de água cujo volume deve oscilar entre 40 mL/kg/dia inicialmente, e 60-80 mL/kg dia nas semanas subsequentes.

Adaptação hematológica

Tendo em consideração que determinados tópicos relacionados com esta alínea foram analisados noutros capítulos, é dada ênfase à transfusão placentar e à dinâmica dos neutrófilos.

Transfusão placentar

A prática corrente tem sido proceder à laqueação entre os 30 e 60 segundos de vida extrauterina, considerando que o RN e placenta são colocados no mesmo plano da vulva (salientando-se que as normas actuais recomendam tempo não inferior a 1 minuto).

Estudos muito recentes (Junho de 2021) advogam diferir a laqueação do cordão até cerca de 3 minutos em RN de termo, com vantagens no neurodesenvolvimento.

Recordando que o volume total de sangue (da placenta + do RN de termo) varia entre 115-120 mL/kg, e que o valor da volémia do RN em idênticas circunstâncias varia entre 70-100 mL/kg, compreende-se que a placenta constitui um reservatório importante de sangue, podendo influenciar a volémia do RN.

A posição da placenta cerca de 50 cm acima do plano do RN favorece a transfusão placenta-feto, enquanto a posição inversa favorece a transfusão feto-placenta.

Se a laqueação for precoce (< 30 segundos) com RN-placenta-vulva no mesmo plano, obtém-se, na ausência de anomalias hematológicas prévias ou de patologia associada, hematócrito ~ 48-50%; se a laqueação tiver lugar aos 30 segundos, obtém-se incremento do valor de Hb em + 2g/dL; se ao cabo de 3 minutos, o valor da transfusão placento-fetal é cerca de 25-50 mL/kg (o que conduz a incremento da volémia de ~ +50%).

Dinâmica dos neutrófilos

Entre as 12 e 24 horas após o nascimento verifica-se elevação do número de neutrófilos, diminuindo depois até às 72 horas, mantendo-se com número relativamente estável a partir desta data; a relação entre número absoluto de neutrófilos imaturos e o número absoluto de neutrófilos totais é < 0,2. Nas situações de estresse perinatal tais, como infecção perinatal, asfixia, eclâmpsia, etc., aumenta a proporção de neutrófilos imaturos.

Adaptação neurológica e comportamental do RN

No que respeita aos ritmos circadianos, os chamados ritmos diurnos encontram-se no feto desde as 20 semanas, possivelmente relacionados com os ritmos de melatonina materna.

O comportamento do RN no pós-parto, designadamente no que respeita à actividade motora e alternância de sono-vigília, pode ser influenciado por factores diversos tais como analgesia materna, anestesia intraparto, toxicodependência materna, etc..

Nos primeiros 120 minutos pós-parto o RN está alerta, executa movimentos de rotação da cabeça, de flexão e extensão dos membros, movimentos de sucção e simile mastigação, evidenciando mímica semelhante a “caretas”, e movimentos mioclónicos dos globos oculares.

Após os primeiros 120 minutos começa a verificar-se alternância de períodos de actividade com períodos de sono; o sono activo pode oscilar em períodos de minutos a cerca de 4 horas; no entanto, este processo de ritmo circadiano pós-natal (alternância sono-vigília em relação com os níveis de cortisol e melatonina) poderá levar entre 8 e 12 semanas e estabilizar.

De salientar que tais fases evolutivas podem sofrer alteração como resultado de determinadas situações como toxicodependência, diabetes materna, e restrição do crescimento intra-uterino.

A hemorragia intracraniana secundária a traumatismo do nascimento pode ser considerada uma anomalia da adaptação fetal à vida extrauterina; tal como a asfixia, poderá traduzir-se por apneia ou convulsões nas 48 horas a seguir ao parto. Apneia e convulsões poderão também ocorrer secundariamente a hipoglicémia, hipocalcémia, abstinência de drogas ou policitémia.

Outras formas de adaptação

Resistência do cérebro à hipóxia perinatal

Durante a vida intra-uterina as necessidades do encéfalo em energia e em oxigénio são mais baixas em relação ao RN, à criança maior e ao adulto (menor idade <> neurónios mais pequenos, menos ramificados e com menor número de sinapses); contudo, tais necessidades aumentam com a idade gestacional. De salientar que o encéfalo imaturo, com capacidade glicolítica anaeróbia, utiliza como alternativa, entre outras fontes energéticas, os corpos cetónicos.

O período de transição feto-RN é também acompanhado de alterações neuroquímicas importantes. A concentração de aminoácidos excitatórios, tais como o glutamato atingindo a concentração máxima no termo da gestação, poderá contribuir para maior sensibilidade à hipóxia no RN de termo em comparação com o pré-termo.

Activação de genes

O trabalho de parto interfere no mRNA no que respeita à codificação dum certo número de enzimas (tais como hidroxilase da tirosina e a betahidroxilase da dopamina), e de compostos (como a chamada substância P). Esta última, produzida no tractus solitarius, evidencia uma concentração que aumenta significativamente nos primeiros dias de vida; admite-se que possa ter papel de regulação no automatismo respiratório como mediador na estimulação de quimiorreceptores em situações de hipóxia.

Índice de Apgar

O chamado índice de Apgar, criado em 1953 nos EUA por Virgínia Apgar, é um método de avaliação vital do RN, traduzindo a adaptação imediata do feto à vida extrauterina (ao 1 minuto e 5 minutos; e, eventualmente, também aos 10 minutos e 15 minutos). De modo estruturado, são avaliados 5 parâmetros, a cada um dos quais é atribuída respectivamente a pontuação de 0 ou 1 ou 2. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Índice de APGAR.

 012
Frequência cardíacaausência de batimentos< 100/min> 100/min
Respiraçãoapneiairregularchoro forte
Irritabilidade reflexaausentefracaboa
Cor da pelepalidezcianoserosada
Tono muscularhipotonia marcadaflexão ligeira das extremidadesflexão franca das extremidades
actividade motora

 

De acordo com a pontuação verificada, é possível dividir as situações encontradas em 4 grupos:

  • 0 <> feto morto;
  • 1-3 <> depressão grave;
  • 4-6 <> depressão ligeira a moderada;
  • 7-10 <> boa vitalidade ou boa adaptação à vida extrauterina.

Sugere-se a consulta do Capítulo sobre Reanimação Neonatal.

Como notas importantes relativamente a este critério de avaliação, cabe acentuar:

  1. Trata-se dum instrumento que orienta quem assiste ao parto sobre a eventual necessidade de executar manobras de reanimação (o principal interesse deste critério);
  2. Índice de Apgar baixo (depressão ou adaptação difícil) não traduz necessariamente situação de asfixia perinatal, nem de probabilidade de sequelas futuras;
  3. Em situações específicas acompanhadas de valor baixo persistente (< 3) até aos 15 minutos existe, de facto, probabilidade de sequelas neurológicas.

Nota – Sobre as limitações do índice da Apgar, designadamente em situações de prematuridade, e quanto ao significado do parâmetro “cor da pele”, consultar o Capítulo sobre Reanimação Neonatal.

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Objectivos do primeiro exame clínico do RN

O primeiro exame clínico do RN, com especificidades relativamente ao exame clínico do lactente e criança em geral, tem como objectivos fundamentais:

  1. Avaliar a adaptação fetal à vida extra-uterina;
  2. Detectar anomalias congénitas (muitas vezes identificadas ou suspeitadas por exame imagiológico pré-natal);
  3. Avaliar a maturidade física e neurológica.

Tal exame implica a realização de anamnese perinatal (que, na perspectiva de antecipação de cuidados, deverá ser feita idealmente na fase pré-natal ou no pré-parto, à mãe grávida), entrando em conta com os dados obtidos a partir do Boletim da Grávida; este incluirá registos importantes relativos aos exames clínicos no âmbito da vigilância pré-natal (designadamente evolução da altura uterina, dados ecográficos, etc.) e a eventuais procedimentos englobados no conceito de diagnóstico pré-natal.

Anamnese

Os dados da anamnese a registar no processo clínico são sistematizados do seguinte modo:

  • Filiação, idades materna e paterna, morada, dia e hora de nascimento, nº do processo clínico;
  • Antecedentes familiares
    Doenças genéticas, anomalias congénitas, doenças endócrinas, doenças metabólicas, sífilis, tuberculose, infecção por VIH, SIDA, etc.;
  • Antecedentes maternos
    Idade, profissão, situação económico-social (índice de Graffar), consanguinidade, grupos sanguíneos (AB0 e Rh), doenças endócrino-metabólicas (diabetes, hipo ou hipertiroidismo, outras), hábitos de tabaco ou álcool, doenças hematológicas (anemia, púrpura, outras), hipertensão, epilepsia, infecções do grupo TORCHS), etc.;
  • Antecedentes paternos
    Idade, profissão, situação económico-social, estado de saúde, grupos sanguíneos (designadamente se mãe do grupo 0 ou Rh negativo).

Nota importante: a componente social/ambiental dos progenitores ou tutores pode ser avaliada através da chamada escala de Graffar (Consultar Anexos /vol. 3).

 

  • Antecedentes obstétricos
    Gravidezes anteriores (por ex. prematuridade, disfunção placentar, gemelaridade, iso-imunização, morte fetal, tipos de parto, aborto, etc.), drogas administradas durante a gravidez e parto, data do 1º dia da última menstruação, patologia da gravidez (eclâmpsia, síndroma antifosfolípida, hipertensão, lúpus eritematoso sistémico, doença renal crónica, hemorragia do terceiro trimestre, placenta prévia, ameaça de aborto, hospitalizações, etc.), características do parto (duração do trabalho de parto, febre intra-parto, via baixa, fórceps, cesariana, manobras de versão, tempo de ruptura da bolsa de águas, líquido amniótico (límpido, tinto de mecónio, fétido, quantidade- oligo ou polihidrâmnio, etc.), apresentação do RN, peso e aspecto da placenta (em condições de normalidade, cerca de 1/5 a 1/6 do peso do RN, eventuais zonas de enfarte, etc.), anestesia, analgesia, etc.;
  • Interpretação dos dados colhidos
    Determinados dados colhidos através da anamnese poderão ser de grande utilidade no que respeita à detecção antecipada de possíveis problemas:
    • Contacto da grávida com determinadas infecções → possível infecção no RN,
    • Hábitos de fumo com tabaco → baixo peso de nascimento,
    • Abuso de álcool → síndroma alcoólica fetal,
    • Gravidez em adolescente → baixo peso de nascimento e/ou prematuridade,
    • Febre materna ou febre intra-parto → possível infecção no RN,
    • Progressão ponderal na gravidez: deficiente → baixo peso de nascimento; excessivo → diabetes materna, macrossomia fetal,
    • Hipertensão arterial na gravidez → restrição do crescimento intra-uterino,
    • Oligo-âmnio → possível anomalia nefrourológica,
    • Poli-hidrâmnio → possível anomalia do SNC ou do tubo digestivo.

Exame objectivo

Sendo fundamental recordar a importância da prevenção das infecções, cabe chamar a atenção para a obrigatoriedade da lavagem das mãos e antebraços do observador antes da realização do exame objectivo (como os cirurgiões antes da operação); em situações especiais poderá estar indicada a realização do mesmo com luvas esterilizadas (e, eventualmente, de barrete, máscara e óculos de protecção).

No bloco de partos, após o nascimento, conhecendo o índice de Apgar, é realizado um primeiro exame objectivo sumário para avaliação do peso, comprimento, perímetro cefálico, comportamento e vitalidade (choro vigoroso, gemido, etc.), cor da pele (por ex. rosada, pálida, cianótica), actividade motora e postura dos membros (simetria ou assimetria, sendo que toda e qualquer assimetria de postura é anómala), frequência cardíaca/FC (normal:100-160 batimentos/minuto), frequência respiratória/FR (normal: 40-50 ciclos/minuto, índice de Silverman, pressão arterial/PA (em casos especiais), tempo de recoloração capilar da pele detectado por compressão digital na face anterior do tórax (normal até 3 segundos), detecção de anomalias congénitas (por ex. imperfuração anal), verificação dos vasos umbilicais (1 veia e 2 artérias), etc..

O exame objectivo mais pormenorizado e estruturado em alíneas que a seguir se discriminam (exame físico geral e exame físico por regiões), poderá ser realizado nas 2 a 4 horas a seguir ao parto, idealmente na presença dos pais; deverá aproveitar-se este acto médico para explicar os procedimentos realizados e esclarecer eventuais dúvidas surgidas.

A propósito da descrição dos aspectos semiológicos é abordada, nalgumas situações, a respectiva interpretação etiopatogénica.

Inspecção geral

Deve ser realizada antes de se proceder ao exame objectivo sistematizado por regiões. O RN deve estar sem roupa, numa marquesa própria, sob fonte de calor.

*Postura

No RN de termo verifica-se: cabeça em rotação lateral ou na linha média (região occipital assente no plano do berço); flexão simétrica dos segmentos dos membros superiores (antebraço sobre o braço e braço sobre o tronco) e semiflexão, também simétrica dos segmentos dos membros inferiores; dedos flectidos sobre as mãos; durante o choro executa movimentos dos quatro membros e da região cérvico-cefálica. (Figura 1)

FIGURA 1. Postura de RN de termo. (URN-HDE)

No RN pré-termo, os membros superiores e inferiores assumem posição em extensão pela hipotonia compatível com a imaturidade (Figura 2); à medida que avança a maturidade, a tendência para a flexão dos membros verifica-se no sentido membros inferiores (os primeiros a ficarem flectidos) → membros superiores (flexão em idade gestacional mais avançada).

Nos casos de fractura de clavícula ou de lesão óssea por sífilis congénita pode haver hipomobilidade do membro do lado afectado (superior na primeira hipótese, superior ou inferior na segunda hipótese).

Na apresentação de nádegas, os membros inferiores podem evidenciar uma postura assimétrica (Figura 3); nas apresentações de face, hiperextensão da cabeça; na paralisia do plexo braquial, extensão, pronação e rotação interna dum membro superior unilateralmente ou mão pendente unilateral (exemplos de assimetrias). Ou seja, e reiterando, toda e qualquer assimetria – estática ou de movimento – é considerada anómala.

*Fácies

Deve verificar-se a simetria da face (assimetria do sulco nasogeniano menos marcado, comissura labial mais aproximada da linha média e pálpebra superior do mesmo lado menos encerrada, sugestivos de paralisia facial periférica), fácies sui generis como na síndroma de Down, na síndroma de Edwards, fácies pletórica de “lua cheia” como nos RN de mãe diabética, fácies com retrognatismo, como na síndroma de Pierre Robin, fácies de bebé colódio, etc.. (Figura 4)

Um aspecto designado habitualmente por máscara equimótica (cor azulada da fronte e face como resultado da confluência de petéquias e pequenas sufusões) resulta de hipertensão no território da veia cava superior, em geral relacionável com circular do cordão apertada; poderá também ocorrer no contexto de parto precipitado, com período expulsivo rápido com consequente compressão e descompressão torácica bruscas, originando hipertensão no território da veia cava superior. (ver capítulo sobre lesões traumáticas)

*Choro

No RN de termo saudável, o choro é vigoroso, de tonalidade variável; a verificação de choro fraco, acompanhado ou entrecortado de gemido e/ou de dificuldade respiratória, agudo e monótono (o chamado “grito cerebral”) traduz situação anómala de etiopatogénese diversa. O chamado “choro miado” ou símile miar do gato é típico da “síndroma do miar do gato” ou cri du chat.

*Pele

No que respeita à textura, ela é muito variável (desde brilhante, lisa, gelatinosa no RN pré-termo a áspera, descamativa no RN pós-termo ou com antecedentes de disfunção placentar). Quanto à cor, pode evidenciar palidez (por anemia), cor vermelha viva ou aspecto pletórico, típica das situações de policitémia/ hiperviscosidade, ou icterícia (seguramente patológica se evidenciada precocemente -1as 24 horas de vida).

A cianose das extremidades (acrocianose ou periférica), traduzindo instabilidade vasomotora ou menor velocidade circulatória nas mãos e pés, provocada pelo frio, é muito frequente (sobretudo nos membros inferiores); regride geralmente com o aquecimento. A cianose dita central é notória ao nível da língua, leitos ungueais e lobos da orelha. O aspecto de pele marmoreada pode traduzir hipovolémia ou acção do frio.

As equimoses de etiopatogénese diversa, poderão traduzir fragilidade capilar, mais frequente no RN pré-termo; a localização depende da apresentação fetal.

A vernix caseosa é tanto mais abundante quanto menor a idade gestacional; nos RN de termo é observada sobretudo nas pregas de flexão.

Trata-se de matéria gorda de consistência saponácea que cobre parcialmente a pele do feto e RN; formada por sebo e células epiteliais descamadas e por pelos da penugem, tem como funções fundamentais a protecção da pele e o isolamento térmico.

FIGURA 2. Postura de RN pré-termo. (URN-HDE)

FIGURA 3. Postura assimétrica dos membros inferiores em RN com apresentação de nádegas/parto pélvico. (URN-HDE)

FIGURA 4. Fácies de ictiose (bebé colódio). (URN-HDE)

A pele (assim como faneras e cordão umbilical) poderão estar cobertos por mecónio eliminado por surtos durante a gestação como resultado de episódios de hipóxia.

Outros achados detectáveis à simples inspecção:

  • Hemangioma capilar, angioma plano ou nevus telangiectásico
    Este achado, que regride em geral durante o primeiro ano de vida, observa-se mais frequentemente na fronte, pálpebras superiores e nuca;
    A verificação de angioma extenso e verrucoso em segmento cefálico, no território do trigémio (hemifronte/face) pode fazer parte da síndroma de Sturge-Weber; pode verificar-se associação a angioma das leptomeninges;
  • Hemangioma cavernoso
    Nesta situação o aspecto do angioma é uma massa arredondada, firme, com cor de vinho ou arroxeada-avermelhada, simile framboesa, de localização diversa; em geral regride até aos 2-3 anos no sentido centrífugo.
    Na síndroma de Kasabach-Merritt existe associação de grande hemangioma a trombocitopenia;
  • Eritema tóxico ou tóxico-alérgico
    Consiste em lesões eritematopapulosas com centro mais claro ou amarelo, predominando no tronco. Detectadas no 2º-3º dias de vida, verifica-se regressão espontânea até aos 7-10 dias;
  • Milium sebáceo
    Por acção dos estrogénios maternos poderão surgir pequenas granulações com o tamanho de cabeça de alfinete, esbranquiçadas, formadas por pequenos quistos intra-epidérmicos localizados predominantemente no nariz e mento. Trata-se duma situação transitória (semanas) e sem significado patológico, resultante da dilatação dos canais sudoríparos ou dos folículos pilosos;
  • Mancha mongólica
    É uma mácula de cor azul-esverdeada, mais frequente e de maior dimensão na raça preta, desaparecendo até cerca dos 3-5 anos. Localiza-se mais tipicamente nas regiões lombossagrada, glútea, podendo, nalguns casos, atingir a região dorsal. A etiopatogénese relaciona-se com imaturidade da pele, da migração dos melanócitos e com factores raciais; (Figura 5)
  • Lanugo
    O lanugo é uma “penugem” ou conjunto de pelos finos que recobrem o corpo, mais frequentemente e com maior extensão nos RN pré-termo;
  • Fenómeno “arlequim”
    Trata-se duma alteração vasomotora transitória (minutos) e curiosa: hemicorpo rosado e hemicorpo pálido, sendo que existe uma linha recta de separação notória a meio do tronco, como que traçada a régua;

FIGURA 5. Mancha mongólica de grandes dimensões: nádegas e região dorsolombar. (URN-HDE)

  • Pênfigo palmo-plantar
    Corresponde a lesões bolhosas cutâneas contendo líquido seroso relacionáveis com sífilis congénita (um dos tipos de lesão cutâneo-mucosa de etiologia sifilítica, ou sifílide);
  • Pústulas com rubor circundante (foliculite), frequentemente de etiologia estafilocócica.

Parâmetros vitais e somatometria

Já nos referimos aos parâmetros vitais ao abordar o exame imediato do RN no bloco de partos.

No que respeita à somatometria (parâmetros peso, comprimento e perímetro cefálico), cabe referir:

  1. Noções práticas, salientando as seguintes correspondências: a cabeça+tronco correspondem a 2/3 do comprimento do RN, enquanto os membros inferiores, a 1/3 do mesmo comprimento; por sua vez, o perímetro cefálico corresponde ao comprimento “sentado”, ou seja, ao segmento superior;
  2. O peso, comprimento e perímetro cefálico devem ser relacionados com a idade gestacional através da consulta das chamadas curvas de crescimento intra-uterino, precisamente para detectar eventuais desvios do crescimento fetal, o que tem implicações na avaliação do risco do RN. (Figura 6)

FIGURA 6. RN com macrocefalia por hidrocefalia; perímetro cefálico > percentil 90. (URN-HDE)

Cabeça

*Crânio

De acordo com a semiologia clínica clássica, deverá proceder-se à inspecção, palpação e percussão do crânio (e eventualmente auscultação dependendo do contexto clínico).

Em função do modo de apresentação fetal poderá detectar-se assimetrias transitórias através da simples inspecção, assim como sinais de lesões traumáticas.

Através da palpação identifica-se:

  • Fontanela anterior (em losango, com diagonais ~ 2,5 x 2 cm) e a fontanela posterior (com < 0,5 cm em condições de normalidade); fontanela procidente e hipertensa sugere hipertensão intracraniana; fontanela deprimida é detectada em caso de desidratação; fontanela posterior de dimensões > 0,5 cm implica investigar possível hipotiroidismo. De salientar que o exame das fontanelas deverá ser sempre enquadrado na dinâmica do crescimento em geral, e sempre conjugado com o perímetro cefálico, sendo que dimensões muito reduzidas da fontanela anterior poderão sugerir encerramento precoce das suturas;
  • Suturas
    Investiga-se, quer cavalgamento, quer diástase ou afastamento, que constituem sinais anómalos.
  • Tumefacções
    As tumefacções podem ser englobadas em dois tipos:
    • Da linha média (devendo ser consideradas até prova em contrário como anomalias congénitas por defeito de encerramento do tubo neural (por ex. encefalocele, por vezes de pequenas dimensões),
    • Não obedecendo a noção de simetria (bossa serossanguínea e céfalo-hematoma).

A chamada bossa serossanguínea é uma tumefacção mole que ultrapassa o limite das suturas, notória no pós-parto imediato como resultado do edema de compressão do couro cabeludo (zona de apresentação) regredindo nos dias seguintes.

O chamado céfalo-hematoma é uma tumefacção ovóide, não necessariamente detectável no pós-parto imediato, aumentando de dimensões (ao contrário da bossa serossanguínea) e limitada às suturas (também ao contrário do que acontece com a bossa serossanguínea); trata-se duma colecção hemática subperióstica de consistência firme com sensação de flutuação; respeita as suturas, porque o periósteo é “independente” de osso para osso. Sendo colecção hemática subperióstica, se a mesma surgir atipicamente no pós-parto imediato, ela poderá constituir um epifenómeno de fractura óssea no contexto de parto laborioso e traumático. Existe tendência para calcificação/endurecimento da tumefacção, que se torna imperceptível nos meses ou anos seguintes à medida que o crânio cresce. (Figura 7)

A auscultação do crânio poderá detectar sopro, situação compatível com fístula arteriovenosa intracraniana.

*Face

Ao nível da face, a pesquisa de sinais incide sobre os olhos, nariz, orelhas, boca e região mandibular.

FIGURA 7. Tumefacção da cabeça: A – Bossa serossanguínea; B – Céfalo-hematoma. (URN-HDE)

Olhos
Pálpebras

As pálpebras permanecem na maior parte do tempo encerradas. Na inspecção das pálpebras deve analisar-se a inclinação das respectivas fendas (eixo simile-horizontal, mongolóide ou em V, e antimongolóide ou em “A”) assim como os respectivos movimentos; ptose (em relação com paralisia do 3º par craniano ou doença miopática; não encerramento (em relação com paralisia do 7º par), etc.; edema (em relação com a apresentação no parto).

Pupilas

Em situação de normalidade são de dimensões iguais reagindo à luz.

A presença de pupila “branca”, mais notória quando a pupila está mais dilatada, com a designação de leucocória, significa que existe processo patológico posterior à pupila, eventualmente grave, localizado no cristalino, vítreo ou retina. Pode tratar-se, com maior frequência, de catarata, retinoblastoma, ou retinopatia da prematuridade.

Conjuntivas

As hemorragias subconjuntivais, transitórias e raras, resultam de hipertensão no território da veia cava superior durante o parto.

Córnea

A verificação de córnea aumentada e opaca impedindo a visualização da íris é compatível com situação de glaucoma congénito.

Cristalino

A verificação de opacidade do cristalino (catarata) comprova-se incidindo foco luminoso perpendicularmente à íris, através da pupila (utilizando oftalmoscópio para melhor avaliação): em vez da visualização do fundo “avermelhado normal” [na gíria, o chamado REFLEXO VERMELHO NORMAL], obtém-se um fundo “branco” devido ao obstáculo da opacidade do cristalino interposto entre o cristalino e o fundo ocular. (De salientar que a noção semiológica de pupila de “cor branca” ou leucocória pode traduzir igualmente patologia do segmento posterior do olho, nomeadamente retina, exemplificando-se com o retinoblastoma).

Nota importante: alteração do Reflexo Vermelho com ou sem estrabismo, e ou leucocória, e ou antecedentes familiares de retinoblastoma implicam observação urgente por oftalmologista.
Esclerótica

De cor branca no RN de termo, a cor é azul no RN pré-termo e no RN com osteogénese imperfeita.

Nariz

Ao nível do nariz deve pesquisar-se essencialmente a forma (as anomalias de forma podem relacionar-se com defeitos intrínsecos do desenvolvimento, ou com deformações por pressão extrínseca relacionada com a posição in utero ou o próprio parto) e a permeabilidade das fossas nasais e dos coanos.

A obstrução nasal acompanhada de exsudado mucopurulento ou mucopiossanguinolento unilateral ou bilateral pode constituir sinal de sífilis congénita precoce.

A atrésia uni ou bilateral dos coanos pode suspeitar-se em caso de cianose que diminui com o choro; em tal circunstância deve introduzir-se uma sonda de polietileno para confirmação ou exclusão.

Orelhas

Os aspectos essenciais a pesquisar dizem respeito à forma, dimensões, implantação, obstrução do meato externo, presença de fístulas retroauriculares e apêndices pré-auriculares.

Considera-se implantação baixa se a hélice* se localizar abaixo duma linha imaginária horizontal que une as duas comissuras palpebrais externas. (Figura 8)

FIGURA 8. Implantação das orelhas. Tracejado: implantação normal; a cheio: implantação baixa. (consultar texto)

*Hélice da orelha (em inglês ou francês: helix) – prega saliente, em semicírculo, que rodeia o pavilhão da orelha, desde a concha à parte superior do lóbulo.

 

As alterações de forma e posição estão frequentemente associadas a anomalias renais, do primeiro arco branquial e a cromossomopatias.

Boca e região mandibular

No exame objectivo da boca deve averiguar-se sobre os seguintes aspectos: lábios (fenda labial ou lábio leporino? – Capítulo sobre anomalias cromossómicas – Figura 4 -, assimetria da comissura labial? por vezes só notória quando o RN chora, e relacionável com paralisia do facial), filtro (longo, na fetopatia alcoólica, curto na síndroma de Di George), retrognatismo por hipoplasia do maxilar inferior (um componente da síndroma de Pierre Robin, por ex.), orofaringe, palato duro e mole (fenda palatina?, úvula bífida? desvio da úvula?), tumefacções da mucosa e gengivas (quistos de retenção gengival? dente congénito? – por vezes associado a síndroma de Ellis van Creveld, implicando extracção pelo risco de aspiração para a via aérea), língua (macroglóssia sugerindo hipotiroidismo, síndroma de Beckwith-Wiedemann, síndroma de Down, glicogenose do tipo II (doença de Pompe, etc.).

A presença de secreções arejadas/saliva abundantes reaparecendo após aspiração pode levantar a suspeita de atrésia do esófago, designadamente havendo antecedentes de poli-hidrâmnio e sinais ecográficos pré-natais sugerindo obstrução do tubo digestivo superior.

A presença de exsudado branco semelhante a “leite coagulado” sobre as gengivas, face interna da região geniana e língua sugere infecção por Candida (monilíase oral ou “sapinhos”); trata-se de situação evidenciada ao cabo de alguns dias após o nascimento.

As chamadas pérolas de Epstein (alterações benignas e irrelevantes) são pequenas tumefacções do tamanho de cabeça de alfinete (correspondendo a quistos de inclusão, com acumulação de células epiteliais), por vezes agrupadas em número de 2-3, na linha média, tipicamente na transição do palato duro com o palato mole; regridem em semanas. (Figura 9)

As chamadas aftas de Bednar (evidenciadas após a primeira semana de vida) são úlceras localizadas bilateralmente ao nível do palato mole e da procidência das apófises pterigoideias; trata-se de lesões traumáticas raras relacionadas possivelmente com o fenómeno de sucção.

A rânula é uma tumefacção quística sublingual secundária a obstrução do canal excretor da glândula salivar sublingual.

FIGURA 9. Pérolas de Epstein. (URN-HDE)

Pescoço

Como característica fisiológica do RN, o pescoço é curto, sendo que, em situações anómalas como a síndroma de Klippel-Feilé excessivamente curto, o que se explica pela fusão de vértebras cervicais.

Através da inspecção pode observa-se o chamado pterygium colli ou prega bilateral do pescoço, simétrica, muito saliente, fazendo “ponte” entre a apófise mastoideia e os ombros.

Ao longo do bordo anterior do esternocleidomastoideu há que pesquisar tumefacções quísticas e fístulas branquiais. Por vezes detecta-se (somente após a 2ª-3ª semana) uma tumefacção esferóide dura, com cerca de 1 a 3 cm de diâmetro, ao longo de um dos feixes do referido músculo a qual corresponde a hematoma (surgido no contexto de traumatismo de nascimento); a retracção e encurtamento consequentes do músculo poderão originar torcicolo (torção do pescoço com inclinação da cabeça).

Na linha média deve igualmente pesquisar-se a presença de quisto ou fístula do canal tiroglosso, assim como de tiroideia aumentada de volume (bócio congénito).

Deve proceder-se igualmente à auscultação da base do pescoço.

Tórax

Podem ser pesquisados os seguintes aspectos: forma cilíndrica, variações morfológicas (em funil, em quilha, com o apêndice xifoideu saliente), tumores (Figura 10), glândulas mamárias tumefactas – não ocorrendo em todos os RN, em geral a partir do final da 1ª semana com regressão ulterior); deve igualmente verificar-se a distância intermamilar: mamilos muito lateralizados poderão enquadrar-se em síndromas malformativas.

FIGURA 10. Linfangioma quístico da parede do tórax e membro superior esquerdo. (URN-HDE; cortesia do Dr. J. Azevedo Coutinho)

O tipo de respiração é abdominal ou tóraco-abdominal, sendo frequentes variações da frequência e do ritmo respiratórios (e pausas no RN pré-termo).

Deve proceder-se à palpação das clavículas, sendo que qualquer tumefacção e/ou crepitação constitui sinal de fractura; nos casos em que estes sinais não são detectados, poderá ser a própria mãe, após a alta da maternidade, a detectar pequena tumefacção ovóide clavicular traduzindo calo de fractura anterior.

O exame do aparelho respiratório compreende essencialmente a auscultação: murmúrio vesicular audível simétrica ou assimetricamente, ruídos adventícios, etc..

O exame do aparelho cardiovascular compreende os seguintes passos:

  • Palpação do choque da ponta (no RN de termo, no 5º EIE e linha médio-clavicular; desvios traduzem situações anómalas (por ex. dextrocárdia, hérnia diafragmática esquerda, etc.); precórdio hiperdinâmico (procidência intermitente da região precordial coincidindo com a sístole/diástole do miocárdio) ou choque da ponta muito notório, podem constituir sinais de ductus arteriosus permeável;
  • Auscultação dos focos cardíacos convencionais, base do pescoço e dorso; sopro auscultado no dorso deve ser considerado anómalo; sopro mais audível na base do pescoço é compatível com ductos arteriosus permeável; em RN de termo, sopro auscultado no 3º ou 4º EIE ao longo do bordo esternal poderá ser considerado fisiológico, se isolado; a ausência de sopros não exclui cardiopatia;
  • Palpação de pulsos periféricos em regiões extratorácicas (femoral, umeral, radial, pedioso): trata-se dum procedimento fundamental que faz parte do exame cardiovascular; pulsos amplos em RN pré-termo sugerem ductus arteriosus permeável; pulsos femorais palpáveis pouco amplos ou ausentes, ou diferença, quanto à amplitude, dos pulsos nos membros superiores e inferiores sugerem coarctação da aorta; a diminuição generalizada da amplitude dos pulsos sugere hipotensão arterial ou hipovolémia;
  • Determinação da pressão arterial pelo método de doppler: valores médios no RN de termo: sistólica → 80 ± 15 mmHg; diastólica → 46 ± 15 mmHg; a ausência ou diminuição da amplitude dos pulsos femorais implica a necessidade de determinação da pressão arterial, não só nos membros superiores, mas também nos inferiores; hipertensão arterial (definida como valor de pressão arterial igual ou superior ao do percentil 95 para a idade) poderá relacionar-se com doença nefro-urológica.

Considera-se HTA no RN de termo a verificação de pressão sistólica > 100 mmHg (0-7 dias) e > 104 mmHg (8-28 dias).

Abdómen

Através da inspecção pode comprovar-se que o abdómen é globoso expandindo-se em coincidência com a inspiração de modo síncrono (situação normal) ou assíncrono (situação anormal relacionada com dificuldade respiratória); é menos globoso nos casos de restrição de crescimento intra-uterino.

A distensão abdominal importante sugere processos obstrutivos do tubo digestivo, massas abdominais, infecção sistémica, hipomagnesémia, etc.. Abdómen escavado ou menos globoso pode sugerir hérnia diafragmática de Bochdalek.

Outros aspectos que são evidentes à inspecção da parede abdominal incluem: onfalocele (exteriorização das vísceras cobertas por saco peritoneal), gastrosquise (exteriorização das vísceras não cobertas por saco peritoneal) e o coto umbilical; relativamente a este último, constitui procedimento sistemático a contagem dos vasos: duas artérias e uma veia, sendo que a verificação de artéria umbilical única poderá estar associada a anomalias cardiovasculares e/ou nefro-urológicas (associação pouco sensível e pouco específica). (Figura 11)

FIGURA 11. Coto umbilical evidenciando anomalia: artéria única (vaso de menor calibre). (URN-HDE)

Na observação do RN no decurso da primeira semana ou mais tarde, há que inspeccionar a base do cordão (ou a região umbilical após o cordão se ter destacado) para detecção de edema e outros sinais inflamatórios como exsudado eventualmente purulento (sinais de onfalite); por vezes, após se ter destacado, detecta-se ao nível da cicatriz umbilical uma pequena massa esferóide, do tamanho de grão de arroz ou de pequena ervilha, de cor vermelha brilhante constituída por tecido granulomatoso (granuloma).

No que respeita à palpação, salienta-se que o fígado é uma estrutura normalmente palpável (cerca de 2 cm abaixo do rebordo costal direito); em condições de normalidade o baço raramente é palpável; nos RN pré-termo os rins também podem ser palpáveis.

Salienta-se que mais de metade das massas abdominais anómalas no RN tem origem no rim.

Pela inspecção e palpação do hipogastro: a verificação de procidência ou distensão localizada na linha média, de superfície lisa e sob tensão relaciona-se, em geral, com distensão da bexiga (o chamado “globo vesical”); no sexo feminino a distensão pode relacionar-se com hidrometrocolpos.

Região anorrectal

Através da inspecção da região anal deve verificar-se a posição do ânus (desvios da linha média ou para diante em relação com possíveis lesões tumorais vizinhas), o pregueamento radiário normal (pregas da mucosa) testemunhando, em princípio, esfíncter anal funcionante; em situações de defeitos do tubo neural (spina bifida) pode não existir tal pregueamento, o que poderá traduzir esfíncter incontinente.

A eliminação de mecónio por via rectal traduz, em princípio, permeabilidade anorrectal; se tal não for comprovado, deverá introduzir-se sonda rectal para pesquisa da respectiva permeabilidade (progressão da sonda sem dificuldade, saindo, em geral, com restos de mecónio aderente).

Há que pesquisar igualmente fístulas, através das quais poderá ser eliminado mecónio (rectovaginal, recto-uretral, rectovestibular, perineal, etc.).

Região inguinal e órgãos genitais externos

Na região inguinoscrotal há que pesquisar:

  • Hérnia inguinal: saliência que aumenta de volume durante o choro, tosse e esforço, reduzindo-se quando se exerce sobre ela pressão (tumefacção redutível); é mais comum no sexo masculino e no RN pré-termo; quando se estrangula, perde estas características: torna-se imóvel, irredutível, dolorosa acompanhando-se de vómitos.
    Havendo informação por parte da mãe sobre este sinal anómalo não observado pelo examinador (pressupondo o exame realizado, não no pós-parto, mas no período neonatal tardio ou no lactente), torna-se necessário examinar o canal inguinal: com o dedo mínimo invagina-se a pele do escroto e procura-se atingir o anel inguinal interno; se o RN chorar, sente-se o impulso do saco herniário na ponta do dedo. Pode estar associada a hidrocele;
  • Hidrocele (acumulação de líquido seroso na túnica vaginal dos testículos ou no tecido que envolve o cordão espermático): manifesta-se no sexo masculino por bolsa escrotal aumentada de volume e tumefacção no canal inguinal, redonda ou levemente alongada, dura, irredutível e imóvel, que se deixa transiluminar (translúcida à transiluminação); a irredutibilidade e indiferença ao choro e esforço distinguem-na da hérnia inguinal; a ausência de dor e vómitos distinguem-na da hérnia inguinal estrangulada. (No sexo feminino tal anomalia corresponde à hidrocele do canal de Nuck);
  • Testículos: no RN de termo os testículos localizam-se nas bolsas escrotais, sendo que no RN pré-termo é frequente a situação designada por “escroto vazio” (a migração dos testículos no sentido abdómen → “fundo” do escroto” completa-se, em geral, nas 8 semanas que precedem o termo da gravidez);
  • Ovário encarcerado em saco herniário: no sexo feminino pode verificar-se tumefacção inguinal de cerca de 1 cm de diâmetro, que se move livremente, sem aderir à pele nem aos tecidos profundos.

No que respeita aos órgãos genitais externos do sexo masculino há que pesquisar:

  • Pénis: forma e dimensão; no chamado micropénis – em geral associado a outras anomalias – o comprimento é < 2 cm. A fimose (estreitamento do orifício do prepúcio) é fisiológica;
  • Posição do orifício externo da uretra (meato urinário) que, em situação de normalidade, está situado a meio da glande, no alinhamento do eixo do pénis; se o meato se localizar na face inferior do pénis, a anomalia designa-se hipospádia; se na face superior, epispádia (por vezes associada a extrofia da bexiga);
  • Jacto urinário: a emissão de urina em situações de normalidade verifica-se em “jacto forte”; a situação de gotejo ou de jacto fraco está invariavelmente associada a obstrução da uretra (nesta idade relacionável com anomalia congénita que implica resolução urgente – válvulas da uretra posterior).

Quanto aos órgãos genitais externos no sexo feminino, há que pesquisar:

  • Grandes e pequenos lábios: no RN de termo, os grandes lábios recobrem perfeitamente os pequenos lábios; no pré-termo, em grau variável em função da idade gestacional, os pequenos lábios ficam “a descoberto”;
  • Clítoris: verificação de possível hipertrofia sugestiva de síndroma adrenogenital;
  • Hímen: verificação de possível imperfuração que poderá originar acumulação de secreções a montante – na vagina (hidrocolpos), ou no útero (hidrometrocolpos);
  • Secreção mucóide ou fluxo hemorrágico (relacionável com influência dos estrogénios maternos).

Nota: por vezes há coexistência de caracteres de ambos os sexos (ambiguidade sexual), implicando a realização de exames complementares.

Coluna vertebral

Com o RN em decúbito ventral deve examinar-se o dorso e o trajecto da coluna em toda a sua extensão, pesquisando tumores ou depressões. Estes achados estão relacionados com neoplasias ou com defeitos de encerramento do tubo neural (fenda ou orifício originando bifidez da “espinha dorsal” ou spina bifida).

Muitos defeitos de encerramento do canal medular não são acompanhados de hérnia das meninges através dos mesmos: esta situação é designada por spina bifida oculta (coberta por pele e tecidos subjacentes e, por isso, não detectada à inspecção); pode ser suspeitada se existir depressão da pele a esse nível.

Sendo a região sacrococcígea a mais frequentemente afectada, cabe então referir os aspectos a pesquisar:

  • Depressão infundibuliforme – fosseta sacrococcígea – que pode terminar em fundo de saco ou estender-se, através de comunicação estreita ou seio pilonidal, até ao canal raquidiano;
  • Tumefacções ou massas ovóides, ulceradas ou não, (da linha média) relacionáveis com meningocele (hérnia das meninges através de fenda na coluna vertebral), ou mielomeningocele (hérnia das meninges e medula-espinhal com nervos e vasos).
    Ao nível do dorso e região sacrococcígea poderão ser também detectados tumores:
  • Teratoma sacrococcígeo: massa quística mais ou menos volumosa que pode chegar a exceder as dimensões da cabeça e ultrapassar a região sacrococcígea; a respectiva palpação evidencia zonas de consistência diversa (dura, mole, pétrea/ calcificada, etc.);
  • Outros tumores (hamartoma, ependimoma, neurofibroma, ganglioneuroma,

Membros

Os membros do RN são relativamente curtos em comparação com outras idades, sobretudo os inferiores; este aspecto é mais marcado no RN pré-termo. (ver atrás – Inspecção geral)

São dados característicos: mãos curtas e largas, curvatura tibial fisiológica, e hiperflexão plantar dos pés (pé talus calcaneus).

Os aspectos a pesquisar são:

  • Posição simétrica ou assimétrica;
  • Motilidade espontânea e passiva;
  • Defeitos congénitos (por ex. sindactilia (fusão de dedos), polidactilia (dedos supranumerários), ectromelia (paragem de desenvolvimento de membro, etc.); (Figura 12)
  • Nos membros inferiores, deformações em geral ligeiras, redutíveis ou não permanentes, e relacionáveis com má posição intra-uterina: metatarsos varus ou antepé varo (desvio do primeiro metatársico, em adução, relativamente ao eixo do pé – apoio no bordo externo), pé talus (apoio no calcanhar) e pé valgus (apoio no bordo interno);
  • O chamado pé boto equinovarus (equino ou com apoio na ponta do pé + varus ou com apoio no bordo externo), não redutível, é uma situação de potencial gravidade implicando intervenção cruenta. (A designação “boto” significa disforme, deformado);
  • Nos membros superiores podem ser observadas outras anomalias, tais como mão bota com encurtamento do membro por agenésia ou hipoplasia do rádio e desvio axial da mão e antebraço;
  • Pesquisa dos movimentos articulares dos membros: limitada na artrogripose congénita;
  • Detecção obrigatória de displasia da anca através da manobra de Ortolani descrita na Parte sobre Ortopedia.

FIGURA 12. Síndroma de bridas amnióticas. Amputação intrauterina do pé direito e constrição no 1/3 inferior da coxa direita. (URN-HDE)

Sistema nervoso

O comportamento do RN é fundamentalmente condicionado pela imaturidade do sistema nervoso (mielinização incompleta das fibras medulares, sobretudo do feixe piramidal, e incompleta diferenciação do córtex cerebral). Não existindo motilidade voluntária, mas sim actividade reflexa como manifestação de automatismo medular, o RN comporta-se, pois, como ser mesencefálico.

O exame neurológico sumário do RN, idealmente, deverá ser realizado cerca de 1-2 horas após a refeição (tentando evitar o choro excessivo ou a sonolência pós-prandial imediata, ruído ambiental excessivo, luz muito intensa, manipulação excessiva, etc.) e após as 12 a 24 horas de vida (tendo em conta a possível interferência de factores relacionados com o trauma do nascimento).

O mesmo integra a avaliação dos seguintes parâmetros: – atitude; – comportamento e actividade motora espontânea; – tono e força musculares; – reflexos; – pares cranianos.

Importa, por fim, detectar um conjunto de sinais que apontam para patologia do sistema nervoso obrigando a vigilância e eventual intervenção.

Atitude

No respeitante à atitude no RN de termo, verifica-se que: a cabeça está apoiada sobre a região occipital, mais ou menos rodada; membros superiores e inferiores com os respectivos segmentos flectidos simetricamente (antebraços sobre os braços, e braços sobre o tronco; pernas sobre as coxas, e coxas sobre o abdómen).

Em decúbito ventral mantém-se idêntica postura dos membros em relação ao tronco.

Actividade motora espontânea e comportamento

No RN de termo verifica-se: movimentos de rotação da cabeça; em decúbito dorsal, movimentos de flexão e extensão dos membros superiores e inferiores; em decúbito ventral, movimentos atrás descritos mais frequentes nos membros inferiores; em ambos os decúbitos, actividade do tronco nula.

O comportamento é classicamente avaliado em função dos estádios alternantes de vigília e sono, integrando essencialmente os seguintes parâmetros: o choro, os movimentos respiratórios e a posição das pálpebras:

  1. Respiração regular, pálpebras encerradas, ausência de movimentos espontâneos;
  2. Respiração irregular, pálpebras encerradas, movimentos espontâneos escassos;
  3. Pálpebras abertas, ausência de movimentos espontâneos;
  4. Pálpebras abertas, movimentos espontâneos frequentes, choro ausente;
  5. Pálpebras abertas ou fechadas, movimentos espontâneos muito frequentes, choro.

De referir que a não alternância de estádios ao longo do dia ou persistência de determinado estádio pode constituir sinal anómalo.

Tono e força musculares

Estes parâmetros avaliam-se das seguintes manobras:

  • O tono passivo, responsável pela postura, pode avaliar-se pela resistência aos movimentos passivos e pelo grau de alongamento muscular máximo.
    a) Resistência aos movimentos passivos
    Obtém-se informação “sacundindo” – com a precaução indispensável – uma extremidade; isto é, provocando movimentos oscilatórios de “vaivém” segurando na extremidade distal do membro superior (antebraço) ou inferior (perna) e verificando concomitantemente a amplitude de oscilação (balanceio) da mão ou do pé (maior amplitude → menor tono).
    Outro modo de pesquisar a passividade, com o RN em decúbito dorsal, é, ao nível do membro superior, levantar o membro superior e observar a velocidade da queda (maior velocidade → menor tono).
    b) Alongamento muscular máximo
    Trata-se de avaliar o grau de alongamento máximo que o músculo pode sofrer quando se afastam os seus pontos de inserção. É imprimido lentamente movimento passivo tentando a extensão dos segmentos dum membro em flexão até se verificar resistência (por exemplo extensão do joelho, determinando o ângulo popliteu com transferidor; ou extensão do cotovelo, determinado o ângulo antebraço – braço ao nível do sangradoiro (menor ângulo → maior tono).
  • O tono activo pode avaliar-se através de duas manobras:
    a) Manobra de puxar o tronco para diante e para trás
    Estando o RN em posição de decúbito dorsal, o mesmo é pegado pelo observador segurando-lhe os punhos, e puxado para passar da posição supina à posição de sentado.
    No RN de termo em situação de normalidade do tono verifica-se, uma vez obtida a posição vertical do tronco: alinhamento da cabeça com o tronco (os músculos flexores do pescoço “seguram” com relativa instabilidade a cabeça na posição vertical) e flexão dos joelhos e dos cotovelos.
    Considerando, na região cervicocefálica, os músculos flexores e extensores, se o tronco for reclinado demasiadamente para a frente, a cabeça por acção da gravidade acabará por acompanhar o tronco (mais rapidamente se existir hipotonia); reclinando depois o tronco para trás (manobra inversa) até ± 45º em relação ao plano horizontal, a cabeça “cairá para trás” por acção da gravidade (mais rapidamente se existir hipotonia).
    b) Manobra de suspensão ventral
    O RN é suspenso em decúbito ventral com a mão do observador abarcando o tronco; o objectivo é avaliar o tono do pescoço, tronco e extremidades. No RN de termo sem anomalia do tono verifica-se: a cabeça mantém-se no plano horizontal do tronco “contra a gravidade” com flexão dos membros superiores e inferiores.
Reflexos

Os reflexos primitivos ou arcaicos podem ser obtidos a partir das 28-30 semanas, sendo que a sua expressão depende do tono activo. Os mais frequentemente pesquisados são:

a) Reflexo de Moro (ou do abraço)
Pode ser obtido com diversos estímulos. Por exemplo, estando o RN em posição supina e segurado com a mão e antebraço do examinador, e sendo a cabeça suportada pela mão do lado oposto, largando esta mão – o que origina “queda” ou movimento da cabeça para trás e estimulação do labirinto – verifica-se num primeiro tempo extensão do tronco, extensão dos dedos das mãos, extensão e abdução dos membros superiores, seguidas, num segundo tempo, de flexão do tronco, flexão e adução dos membros superiores e flexão dos dedos das mãos, como que em acto de “abraçar”. (Figura 13)
Igualmente, estando o RN em decúbito supino, mas sobre um plano horizontal, um estímulo sonoro forte (bater com as mãos) ou luminoso intenso, origina idêntica resposta.
Este reflexo pode manter-se até cerca dos 4 meses.
Por vezes, a resposta não é completa nem exuberante, o que pode estar em relação com prematuridade ou o estádio de sono-vigília. A assimetria de resposta aponta para lesão do plexo braquial ou para fractura da clavícula.

FIGURA 13. Reflexo de Moro. (URN-HDE)

b) Reflexo tónico do pescoço
Obtém-se rodando a cabeça; a resposta a este estímulo origina extensão dos membros do lado para onde se roda a cabeça e flexão dos do lado oposto, como que em posição de “esgrimista”. Este reflexo pode manter-se até cerca dos 4 meses.

c) Reflexo de preensão
Obtém-se tocando com o dedo do observador (ou caneta, ou similar) na palma da mão: verifica-se flexão dos dedos prendendo o dedo/objecto que lhe toca. Ao nível do pé, a estimulação táctil do sulco metacarpofalângico origina flexão dos dedos respectivos. Este reflexo pode manter-se até cerca dos 2 meses. (Figura 14)

d) Reflexo dos pontos cardinais
A estimulação mecânica das comissuras e da parte média dos lábios superior e inferior (simile “norte-sul-leste-oeste”) com o dedo do observador, origina desvio da língua e cabeça para o lado estimulado.

FIGURA 14. Reflexo da preensão palmar.

e) Reflexo do encurvamento (ou arqueação) do tronco
A estimulação repetida da pele do dorso entre a 12ª costela e a crista ilíaca origina encurvamento do tronco do lado estimulado. Este reflexo, tal como o reflexo de Moro, é dos mais constantes no RN de termo saudável.

f) Reflexo da marcha automática
Com o RN em posição vertical seguro pelas axilas e com os pés apoiados em superfície lisa, promovendo ligeiro impulso para diante, verifica-se a execução de passos. Este reflexo desaparece até às 4 semanas de vida. (Figura 15)

Pares cranianos

Classicamente, no RN, o exame dos pares é estruturado de modo diferente relativamente a outras idades, sendo que muitos sinais referidos a propósito do comportamento, reflexos, mímica facial, sucção – deglutição, posição e mobilidade da língua, etc., se relacionam, de facto, com funções ou disfunções na dependência dos pares cranianos.

Em síntese, eis alguns exemplos:

  • A partir das 30 semanas o RN identifica o odor da mãe (Iº par- olfactivo);
  • O RN de termo fixa um objecto a cerca de 30 cm e reage também à luz com pestanejo. O reflexo fotomotor (contracção da pupila como reacção à luz) verifica-se já no RN pré-termo a partir das 29 semanas (IIº par- óptico);
  • A motilidade ocular e fixação dum objecto depende dos nervos oculomotores (IIIº par- motor ocular comum, IVº par- patético, e VIº par- motor ocular externo);
  • A verificação de assimetria da mímica facial, com apagamento do sulco nasogeniano do lado afectado e aproximação da comissura labial do lado afectado para o lado são, traduz paralisia periférica do VIIº par- facial que, por inervar o orbicular da pálpebra, origina, também, não encerramento da pálpebra do lado afectado;

FIGURA 15. Reflexo da marcha automática. (URN-HDE)

  • A resposta ao ruído através do VIIIº par (auditivo), por ex. para obter resposta reflexa de Moro, entre outras respostas, é possível a partir da 28ª semana de gestação;
  • A sucção e deglutição (só completamente desenvolvidas a partir do termo da gravidez) dependem respectivamente dos Vº (trigémio motor), VIIº, XIIº (grande hipoglosso) pares, e dos IXº (glossofaríngeo) e Xº (pneumogástrico) pares;
  • A mobilidade da língua depende do XIIº par;
  • Alteração do XIº par (espinhal) inervando o esternocleidomastoideu, pode explicar alteração dos movimentos de rotação da cabeça;
  • A sensação gustativa (dependendo dos VIIº e IXº pares) é difícil de avaliar, sobretudo no RN pré-termo.
  • Sinais anómalos

Realizado o exame neurológico do RN, cabe referir alguns sinais anómalos:

  • Letargia, correspondendo a persistência do estádio 1 de vigília- sono;
  • Coma, correspondendo a persistência do estádio 2;
  • Hiperexcitabilidade ou movimentos anómalos/ convulsões;
  • Choro persistente e de tonalidade aguda;
  • Hipertonia global;
  • Hipotonia global;
  • Opistótono;
  • Assimetria permanente da postura;
  • Desvio permanente da cabeça e olhos;
  • Dificuldade alimentar (sucção, deglutição, etc.).

Avaliação da idade gestacional

Um dos objectivos do primeiro exame clínico do RN é determinar a maturidade deste em função de determinados achados semiológicos, confrontando-os com a data do 1º dia da última menstruação, a partir da qual se inicia a contagem do tempo. Tal avaliação clínica, mesmo para clínicos experientes habituados a cálculo rápido após observação global, tem utilidade se houver antecedentes maternos de menstruações irregulares dificultando a contagem do tempo, e/ou em situações-limite de RN de baixo peso ou muito baixo peso em que não estão disponíveis outros dados, tais como resultados de exames ecográficos pré-natais. De facto, o rigor a imprimir a tal avaliação tem implicações clínicas práticas quanto à previsão de problemas e ao prognóstico.

Os métodos clínicos mais frequentemente utilizados (por ex., os de Dubowitz, Amiel-Tison, Ballard, etc.) integram de modo estruturado critérios somáticos e neurológicos validados estatisticamente, atribuindo a cada um deles determinada pontuação que, uma vez somada, conduz a uma pontuação final ou índice, a que corresponde determinada idade gestacional.

No Quadro 1 são discriminados os aspectos a considerar para cada critério do método de Ballard. A escala de Ballard modificada permite estimar a idade gestacional (IG) sempre que se realize nas primeiras 12 horas de vida.

Fórmula do cálculo: IG= [(2xpontuação)+120]/5.

QUADRO 1 – Avaliação da idade gestacional do recém-nascido (Método de Ballard).

QUADRO 1 – Avaliação da idade gestacional do recém-nascido (Método de Ballard) (cont.).

Critérios de maturidade física
-1 0 1 2 3 4 5
Pele Friável, transparente, húmida Gelatinosa, vermelha, translúcida Lisa, rosada veias visíveis Descamação superficial e/ou exantema, poucas veias Com sulcos, áreas pálidas, raras veias Apergaminhada: sulcos profundos, sem vasos Grossa, estalada com sulcos, enrugada
Lanugo Ausente Escasso Abundante Fino Áreas sem lanugo Maior parte sem lanugo (*)
(•) Somatório da pontuação dos critérios físicos e neuromusculares
-10 20
-5 22
0 24
5 26
10 28
15 30
20 32
25 34
30 36
35 38
40 40
45 42
50 44
Pontuação Semanas
Superfície plantar e sulcos Dedo-calcanhar 40-50 mm = -1 < 40 mm = -2 Dedo-calcanhar 50 mm, sem marcas Ligeiras marcas vermelhas Pregas transversais apenas na porção anterior Pregas nos 2/3 anteriores Pregas em toda planta
Região mamária Imperceptível Pouco visível Aréola plana, glândula não palpável Aréola proeminente, glândula de 1 a 2 mm Aréola elevada, glândula de 3 a 4 mm Aréola cheia, glândula de 5 a 10 mm
Olhos/orelha Pálpebras fundidas Francamente = -1 Fortemente = -2 Fenda palpebral aberta, pavilhão achatado Pavilhão parcialmente encurvado, reposição lenta à posição inicial Pavilhão bem encurvado, mole; reposição pronta Pavilhão formado e firme; regressão instantânea Cartilagem nos bordos, pavilhão firme
Genitais masculinos Bolsa escrotal lisa não enrugada Bolsa escrotal vazia, pouco enrugada Testículo no canal inguinal, bolsa escrotal com raras rugas Testículos no canal inguinal, poucas rugas Testículos na bolsa escrotal enrugada Testículos na bolsa em pêndulo, pregas profundas
Genitais femininos Clítoris proeminente, lábios rasos Clítoris proeminente, pequenos lábios pouco proeminentes Clítoris proeminente, pequenos lábios mais proeminentes Pequenos e grandes lábios igualmente proeminentes Grandes lábios maiores, pequenos lábios menores Grandes lábios recobrem o clítoris e os pequenos lábios

Súmula

Uma vez realizada a observação do RN, importa sintetizar metodicamente o resultado do exame clínico global, tentando classificação do caso em função de cinco diagnósticos clínicos iniciais a estabelecer:

  • De vitalidade ou de adaptação
    Índice de Apgar entre 7-10 corresponde, em princípio, a boa adaptação fetal à vida extra-uterina;
  • Somático
    Este diagnóstico baseia-se no peso independentemente da idade gestacional; na ausência de factores de risco ou de sinais anómalos associados, peso entre 2.500 e 4.000 gramas (normossomático) comporta bom prognóstico;
  • Cronológico e de maturidade
    Este diagnóstico baseia-se na idade gestacional de acordo com dados da anamnese perinatal, ecográficos pré-natais e resultado da avaliação clínica; o RN de termo (entre 37 e 41 semanas e 6 dias, isto é, entre 259 e 293 dias), na ausência de factores de risco ou de sinais anómalos, comporta melhor prognóstico relativamente a RN pré-termo ou pós-termo;
  • De crescimento intra-uterino
    Este diagnóstico, que traduz a dinâmica do crescimento fetal (restrito, adequado ou excessivo), baseia-se na relação entre peso e idade gestacional, e é estabelecido utilizando as chamadas curvas de crescimento intra-uterino.
    Os RN de termo, correspondendo a percentil entre 3 e 97, sem factores de risco nem sinais anómalos associados comportam melhor prognóstico relativamente àqueles de percentil > 97 ou < 3;
  • Sindrómico
    O diagnóstico sindrómico baseia-se na verificação de patologia evidente, por ex., dificuldade respiratória, icterícia, anemia, policitémia, etc..

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Importância do problema

Este capítulo descreve os cuidados a propiciar ao RN aparentemente saudável durante o internamento no hospital-maternidade, o que pressupõe permanência do mesmo junto da mãe desde o nascimento até à alta para o domicílio promovendo o vínculo mãe-filho.

Nesta fase é de primordial importância que a equipa prestadora de cuidados (médico – pediatra/neonatologista, enfermeira e outros profissionais de saúde) exerça o seu papel de educação para a saúde junto dos pais, que se estabeleça contacto com o médico-assistente futuro (médico de família ou pediatra) e com o centro de saúde a que a família está ligada. É também desejável que, antes da alta, a mãe colabore nos cuidados ao filho acabado de nascer, o que constitui oportunidade ímpar de aprendizagem; de realçar o papel imprescindível dos profissionais de saúde no que respeita ao esclarecimento de dúvidas surgidas realçando a importância dos Boletins da Grávida e de Saúde Infantil e Juvenil.

Cuidados na sala de partos

Os cuidados a assegurar no pós-parto imediato são os seguintes:

  • Admitindo boa adaptação à vida extra-uterina e ausência de necessidade de reanimação, a laqueação do cordão deverá ser diferida até, pelo menos, 1 minuto;*
  • O RN deve ser imediatamente colocado sob uma fonte de calor e limpo com cuidado com um pano estéril, seco e aquecido. A substância gordurosa que o cobre (vernix caseosa) tem um efeito protector da pele, pelo que o banho na sala de partos apenas deve ser dado se houver sinais de amnionite ou a mãe for seropositiva para VIH ou portadora de hepatite B ou C. Embora este capítulo diga respeito ao RN aparentemente saudável, em geral, de termo, cabe salientar, a propósito dos cuidados gerais iniciais, segundo as novas normas de actuação, de consenso internacional, sob os auspícios do ILCOR 2010, nos RN de idade gestacional < 28 semanas, mantendo-se o tipo de cuidados referidos, não se deve proceder à secagem da pele;*
  • Avaliação sistemática do índice de Apgar ao 1º e 5º minutos de vida;
  • Realização de exame objectivo sumário com o objectivo de rastrear anomalias e avaliar o estado geral e a adaptação fetal à vida extrauterina. O peso de nascimento deve ser registado, assim como todos os dados referentes aos antecedentes pré-concepcionais e da gestação;
  • Profilaxia da doença hemorrágica com dose única de 1 mg de vitamina K1 por via intramuscular;
  • Profilaxia da conjuntivite neonatal por Neisseria gonorrhoeae com nitrato de prata;
  • Colocação de pulseira de identificação, a qual somente deverá ser retirada pelos pais quando o recém-nascido estiver em casa;
  • O RN vestido deve ser colocado num berço, sob uma fonte de calor, em decúbito dorsal junto à mãe na enfermaria desta (ou noutra enfermaria temporariamente se o estado clínico da mãe não o permitir) e “posto ao peito” nas primeiras duas horas de vida.

* ILCOR, sigla de International Liaison Committee on Resuscitation guidelines.
Trata-se das novas normas adoptadas internacionalmente, e elaboradas por oito grupos de trabalho de diversas sociedades internacionais, tais como a American Heart Association e Resuscitation Council (http://www. ilcor.org/en/consensus-2020/worksheets-2020)

Cuidados na enfermaria junto da mãe

  • Nesta área deverá ser confirmada a prestação dos cuidados adequados na sala de partos, nomeadamente: identificação, administração de vitamina K1 e profilaxia da conjuntivite;
  • Deve realizar-se um exame objectivo minucioso, não esquecendo o registo dos parâmetros somatométricos;
  • O Boletim de Saúde Infantil e Juvenil deve ser devidamente preenchido;
  • Devem ser administradas as primeiras vacinas: 1ª dose da vacina anti-hepatite B, e BCG (excepto se a mãe for VIH+, e tiver tuberculose pulmonar activa);
  • Independentemente do tipo de parto, o recém-nascido não deve ter alta antes das 36 horas de vida e nunca antes de ter havido comprovação de micções e de, pelo menos, uma dejecção.

Alimentação

Reiterando a “mensagem” que foi transmitida anteriormente sobre “alimentação com leite materno” – o melhor alimento para o recém-nascido é o leite da própria mãe –, sugere-se ao leitor a consulta da Parte sobre Nutrição-volume I. (Figura 1)

FIGURA 1. RN alimentado “ao peito”.

Higiene do coto umbilical

A desinfecção do coto umbilical faz-se diariamente com compressa embebida em álcool a 70º (não devendo ter aditivos), não esquecendo a zona junto à pele. O coto deve colocar-se fora da fralda, evitando-se que se molhe com urina. Deve ser observado diariamente, tentando detectar, nomeadamente, se apresenta mau cheiro, secreção ou hemorragia. Estando seco, o coto do cordão destacar-se-á mais precocemente: tal deverá ser explicado à mãe. Segundo a experiência de alguns autores, não haverá vantagem no emprego tópico de álcool a 70º ou de antissépticos em geral. 

Higiene corporal

  • O banho poderá ser propiciado durante a curta estadia na maternidade, mesmo antes de o cordão se destacar, desde que haja condições logísticas (incluindo profissionais de saúde suficientes facilitando o ensino à mãe) e de higiene básica na unidade neonatal. Quer em casa, quer na unidade neonatal, o mesmo (diariamente ou em dias alternados, atendendo sempre a situações especiais) deverá processar-se a temperatura ambiental adequada (em geral ~ 24-27ºC), com água a 35-36ºC para manter a temperatura rectal ~ 37ºC.
  • Em alternativa ao banho, pode lavar-se a criança parcelarmente por zonas, primeiro a cabeça, depois o corpo e, por fim, os membros de modo a evitar que se molhe o umbigo, e o arrefecimento.
  • Não devem ser usados produtos perfumados na limpeza da pele. O sabonete de glicerina é uma boa opção. A face deve ser lavada apenas com água.
  • O RN deve secar-se com uma toalha turca sem esfregar, incluindo as orelhas e as pregas, sem introduzir cotonetes no canal auditivo. As narinas também devem ser limpas suavemente para a remoção de secreções.
  • Depois do banho, a criança deve ser vestida: primeiro a camisa, e depois, a fralda.

Alguns problemas comuns

  • As fezes do lactente alimentado ao peito são ácidas e a pele em volta do ânus e órgãos genitais pode ficar vermelha, tipo “assado”. Quando se procede à mudança da fralda, após a higiene necessária, pode ser aplicado um creme protector.
  • Nos primeiros dias a urina pode deixar na fralda uma mancha residual cor de tijolo: tal se explica pela excreção de uratos. Este evento é considerado normal, regredindo espontaneamente.
  • No final da primeira semana de vida, pode surgir aumento do volume das glândulas mamárias (Figura 2) e, nos do sexo feminino, uma pequena hemorragia vaginal. Trata-se de manifestações clínicas consideradas normais, explicáveis pela transferência de hormonas da mãe para o recém-nascido, e regredindo espontaneamente, pelo que não está indicado qualquer procedimento.
  • O chamado eritema tóxico (máculas dispersas vermelhas, com um centro mais claro), constitui uma reacção habitual, não necessitando de cuidados especiais.

FIGURA 2. Tumefacção mamária em recém-nascido.

Cuidados no domicílio

  • Em casa, a criança deve ser recebida num ambiente calmo.
  • Todas as pessoas que manuseiam a criança devem praticar de modo sistemático hábitos fundamentais de higiene, designadamente, lavagem frequente das mãos antes e depois do manuseamento da mesma.
  • No local onde estiver o RN (evitando-se aglomerados numerosos), as pessoas não devem obviamente fumar; apesar de o contexto actual ser diverso daquele vivido há anos atrás, a insistência terá cunho pedagógico.
  • Nas saídas de casa a criança não deverá permanecer em locais com grande concentração de pessoas, tais como supermercados ou centros comerciais.
  • É aconselhável a posição de dormir em decúbito dorsal, explicando-se à mãe-família a razão de tal procedimento. Durante o dia, e sob vigilância rigorosa, quando o bebé está vígil, poderá ser colocado por períodos em decúbito ventral a fim de minorar a possibilidade de deformação craniana (plagiocefalia posicional). É o chamado “tummy time” ou período fraccionado permitido de posição em decúbito ventral.
  • O colchão deve ser plano e duro, de modo a não provocar covas, e ajustado aos bordos do berço. Não devem ser utilizados edredão nem almofada, assim como cordões ou fralda para segurar a chupeta.
  • Os irmãos e todas as pessoas que manuseiam a criança (nunca é exagero repetir) devem lavar cuidadosamente as mãos; deverá ser igualmente providenciada a lavagem da face dos irmãos que frequentam a escola ou infantário.
  • As pessoas com doença respiratória devem usar máscara que cubra a boca e o nariz, sempre que contactem com o lactente. As mãos devem ser lavadas antes e depois de colocar a máscara e, sempre, após o assoar.
  • Idem para o caso da mãe a amamentar, a qual pode continuar a amamentação.
  • Entre o 4º e o 6º dia de vida, o RN deve ser transportado ao Centro de Saúde da área de residência para se proceder à colheita de sangue para diagnóstico precoce (teste do pezinho) devendo marcar-se consulta médica entre a 1º e a 2ª semana de vida.
  • O Boletim de Saúde Infantil e Juvenil e o Boletim Individual de Saúde (de Vacinas) devem sempre acompanhar a criança no âmbito de todo e qualquer acto médico e/ou de enfermagem. Deve verificar-se se foi realizado e registado o resultado do rastreio auditivo.

Sinais de perigo

Como complemento do que foi descrito, estando ou não o RN já em casa, salienta-se que os pais devem ser esclarecidos quanto aos sinais considerados de perigo (aspecto geral de “não estar bem” podendo indiciar doença grave) os quais implicam observação por médico. São dados os exemplos mais significantes:

  • Recusa alimentar;
  • Secreções oro-nasais contendo abundantes bolhas de ar;
  • Dificuldade respiratória;
  • Vómitos biliares repetidos;
  • Palidez acentuada;
  • Cianose;
  • Petéquias;
  • Choro intenso;
  • Icterícia surgida nas primeiras 24 horas de vida ou, prolongada, para além de 2 semanas, com especial significado se o lactente não estiver a ser alimentado ao peito;
  • Gemido;
  • Irritabilidade, agitação, tremores espontâneos, convulsões;
  • Hiporreactividade, hipotonia;
  • Hipersudorese quando está a mamar ou a tomar biberão;
  • Perda de peso superior a 10% do peso de nascimento;
  • Febre ou hipotermia;
  • Alterações macroscópicas da urina ou fezes;
  • Distensão abdominal com vómitos e obstipação, etc..

Nota: a ausência ou atraso de eliminação de urina e/ou de mecónio nas primeiras 48 horas constitui sinal anómalo habitualmente detectado pelo médico ou enfermeiro, quando o RN ainda está internado após o parto.

BIBLIOGRAFIA

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Importância do problema

Na maioria dos casos, o feto/recém – nascido (RN) tem uma boa adaptação à vida extra-uterina, sem necessidade de qualquer intervenção; no entanto, circunstâncias especiais (tais como gravidez ou partos de risco, designadamente em relação com prematuridade, patologia perinatal diversa, ausência ou deficiência de vigilância pré-natal e perinatal) estão associadas a adaptação difícil implicando a necessidade urgente ou emergente de medidas terapêuticas intraparto ou pós-parto imediato por equipa treinada.

O objectivo de tais medidas é o restabelecimento das funções vitais, ou reanimação; tais medidas, não sendo efectivadas, ou sendo mal conduzidas, poderão conduzir a morte ou sequelas, designadamente do SNC –anomalias adquiridas do neurodesenvolvimento e do comportamento.

De acordo com dados da OMS, cerca de 6-10% dos RN necessitam de manobras de reanimação de grau variável no pós-parto imediato (em geral assistência ventilatória ligeira), sendo que em menos de 1% há necessidade de manobras consideradas avançadas. Por outro lado, sabendo-se que ocorrem em todo o mundo cerca de cinco milhões de mortes neonatais por ano, cabe salientar que cerca de 1/5 das mesmas é explicado por adaptação complicada à vida extrauterina.

Daqui se infere que a reanimação no bloco de partos (reanimação habitualmente designada por primária) pode e deve ser prevista e preparada. Trata-se duma estratégia de antecipação que faz parte dos cuidados perinatais. Tal implica um esquema organizativo, a existência de equipa treinada e de condições técnicas logísticas (espaço físico e equipamento adequado).

  • Cerca de 5-10% dos RN requerem estimulação simples no pós-parto imediato como “ajuda” para a respiração: secagem e massagem suave nas plantas dos pés.
  • Cerca de 3-6% dos RN necessitam de reanimação básica com balão tipo Ambou e máscara.
  • Menos de 1% dos RN necessitam de reanimação avançada obrigando e entubação traqueal para ventilação, massagem cardíaca e aplicação de fármacos.
  • Mundialmente, cerca de 1 milhão de RN morre de asfixia perinatal.
  • Daqui se infere que o desenvolvimento da competência em reanimação neonatal tem enorme impacte na saúde infantil.

História natural da asfixia

Durante o trabalho de parto ocorre episódio de hipoxémia transitória/fisiológica provocada pela contracção uterina, a qual é bem tolerada pelo feto dito saudável; salienta-se, contudo, que episódios repetidos de hipoxémia poderão produzir efeito cumulativo semelhante ao da hipoxémia progressiva.

Se se tratar de hipoxémia transitória/fisiológica, após a paragem inicial da respiração (apneia primária) verifica-se o início de um período de movimentos respiratórios lentos de amplitude variável mas pouco eficazes (gasping), após o qual surgirá um período de apneia secundária.

No período de apneia primária poderá haver retorno à respiração espontânea normal após estímulos tácteis mínimos (por ex. estimulação/massagem suave das plantas dos pés).

Pelo contrário, em situações de hipoxémia e hipercápnia acentuadas (asfixia), com consequente acidose respiratória, atingindo-se a fase de apneia secundária, verifica-se:

  1. depressão do centro respiratório;
  2. vasoconstrição periférica e diminuição da oxigenação tecidual periférica como mecanismo de compensação para garantir oxigenação de territórios “mais nobres” – SNC e miocárdio (é o chamado diving reflex ou reflexo do mergulhador).

Se este mecanismo de compensação claudicar, entra em acção a glicólise anaeróbia à custa das reservas de glicogénio (com risco de esgotamento), o que conduz a:

  1. agravamento da oxigenação tecidual com consequente diminuição da pressão parcial de O2 (pO2) e acidose;
  2. diminuição da contractilidade miocárdica e contribuindo para agravamento da diminuição do fluxo sanguíneo para o próprio miocárdio, SNC e outros órgãos. Estabelece-se, pois, um círculo vicioso que poderá conduzir à morte.

Como se pode calcular, para além da estimulação táctil anteriormente referida (eficaz na fase de apneia primária), haverá seguramente necessidade doutras medidas na fase de apneia secundária para reversão do estado de asfixia.

Nesta perspectiva, a reversão pronta da asfixia (focada essencialmente numa ventilação artificial efectiva) poderá prevenir ou minorar situações de falência multiorgânica, a morte ou a incapacidade permanente.

Equipa perinatal   

Idealmente, o parto deverá ocorrer numa maternidade acoplada (colada) a hospital geral ou a hospital pediátrico; tratando-se deste último, importa que, por sua vez, esteja acoplado a hospital geral. Independentemente da instituição em causa e do modelo assistencial, é fundamental que a equipa assistindo à grávida e ao recém-nascido, integrando uma diversidade de profissionais de saúde (obstetras, pediatras, médicos doutras especialidades, enfermeiros, técnicos, auxiliares, etc.), seja competente e esteja treinada. e possa contar com.

No âmbito do funcionamento da mesma, importa realçar os seguintes pontos:

  1. Existência de condições logísticas e técnicas em função do nível de cuidados a prestar pela instituição onde se realiza o parto.
  2. Presença dum responsável (chefe de equipa).
  3. Previsão da reanimação, conhecendo os factores de risco e evitando gestos precipitados e perdas de tempo.
  4. Cooperação interprofissional, com especial destaque para a ligação: especialistas de medicina materno – fetal/obstetrícia/pediatria neonatal/enfermagem, equipa de transporte da grávida e ou RN; ou seja, a equipa deverá funcionar como uma “orquestra afinada”.

Da equipa perinatal, no mínimo, deve fazer parte, em permanência, um profissional que domine os aspectos básicos da reanimação neonatal: um enfermeiro treinado poderá desempenhar papel crucial.

Igualmente (e porque cada minuto conta), deverá haver a possibilidade de recurso rápido e eficaz a, pelo menos, um segundo elemento, (idealmente neonatologista, ou pediatra com experiência em neonatologia, ou anestesista- reanimador) com competência em reanimação neonatal. Efectivamente, poderá tratar-se de situações complicadas e ou de partos gemelares, com necessidade de procedimentos em simultâneo.

Notas importantes:

    • A eficácia da execução das manobras de reanimação deverá ser assegurada regularmente através da realização de um programa de formação teórico-prática.
    • A boa comunicação entre os profissionais da equipa de urgência garante os cuidados de antecipação assim como a eficácia, eficiência e efectividade das manobras de reanimação.
    • Realça-se igualmente a importância do vínculo a estabelecer com os progenitores do RN e família esclarecendo-os, de forma humanizada, sobre o quadro clínico e procedimentos a realizar ou realizados.

Condições técnicas

O Quadro 1 mostra o material indispensável (colocado em local de fácil acesso e com conhecimento de todos os elementos da equipa) para se proceder a manobras de reanimação no RN. Tal material deverá ser verificado e experimentado pelo reanimador antes de actuar; e, diariamente, e após cada utilização, por responsável designado pelo chefe da equipa ou director do serviço. Do material deve fazer igualmente parte um conjunto de pequena cirurgia embalado em condições de assépsia, incluindo campos esterilizados, luvas esterilizadas, pinças, lancetas, agulhas/material de sutura, etc..

Importa prever a necessidade da existência de certos instrumentos em duplicado (ou mesmo, em triplicado) admitindo a hipótese de partos gemelares.

QUADRO 1 – Material indispensável para reanimação do RN no bloco de partos.

Material
    • Mesa de reanimação com sistema de aquecimento e iluminação
    • Relógio
    • Estetoscópio pediátrico ou neonatal
    • Fonte de oxigénio
    • Aspirador de pressão negativa regulável
    • Sondas de aspiração de calibres: 6; 8; 10
    • Bolsa ou balão (tipo Ambou) de 500 ou 750 ml, auto-insuflável tipo Ambu, ou bolsa tipo “anestésica” com válvula de pressão, ou ressuscitador com limite de pressão e peça em T, regulador de FiO2/ dispositivo para mistura de ar/O2 regulável, e monitor de pressão; se possível, capnógrafo
    • Tubos de Mayo (vários tamanhos)
    • Laringoscópio
    • Lâminas rectas de laringoscópio de tamanhos: 00; 0; 1
    • Tubo endotraqueal (TET) de calibres: 2.5; 3; 3.5; 4 (Quadro 3)
    • Fio condutor para tubo endotraqueal (TET)
    • Cateteres umbilicais
    • Fio de nastro esterilizado
    • Luvas esterilizadas
    • Adesivo/ tintura de benjoim
    • Tesoura
    • Seringas (de 1;3;5;10; 20 ml)
    • Torneira de 3 vias
    • Oxímetro de pulso e monitor electrónico para FC/ECG/3 eléctrodos
    • Peças de adaptação do TET para administração de surfactante
    • Peças de adaptação do TET para ligação ao dispositivo de pressão controlada e ao aspirador
    • Fármacos (Quadro 2)


No QUADRO 2 são discriminados os fármacos que podem ser utilizados em contextos diversos a descrever adiante; no mesmo quadro são incluídas as doses respectivas a utilizar.

QUADRO 2 – Fármacos e doses a utilizar em reanimação do RN.

Naloxona

    • 0,1 mg/Kg
    • Qualquer via (endotraqueal, endovenosa ou intramuscular), bólus
    • Contra-indicação: mãe toxicodependente

Adrenalina

    • 0,01-0,03 mg/Kg/dose
    • Diluir 1 ml de adrenalina em 9 ml de soro fisiológico: 0,1-0,3 ml/kg/dose
    • Via endotraqueal ou endovenosa, bólus
    • Repetir até máx. de 2 ml/kg

Bicarbonato de sódio

    • Diluir 10 ml de NaHCO3 a 8,4% em 10 ml de água destilada
    • 1-2 mEq/Kg/dose
    • Via endovenosa em 2 a 5 minutos

Expansores de volume

    • Soro fisiológico
    • Lactato de Ringer
    • Sangue ORh(-)
    • 10 ml/Kg IV

Glicose a 10%

    • 2 ml/Kg – em 1 minuto IV; depois glucose a 5% em perfusão lenta

Actuação prática

A reanimação do RN deverá ser encarada numa perspectiva de prevenção de lesões evitáveis do sistema nervoso central. Os objectivos gerais são: evitar a hipoxia, evitar a infecção, evitar a hipotermia e combater a acidose.

Relativamente à prevenção da infecção, importa salientar que, sendo  as manobras de reanimação realizadas em bloco de partos, portanto, em ambiente de bloco operatório, tal implica que todos os procedimentos devem ser levados a cabo em ambiente de assepsia cujas regras, não sendo aqui explicitadas, deverão estar sempre na mente de quem tem acesso a tal ambiente e reanima. Como na transição para a vida extrauterina o tempo conta muito, o tempo em  segundos conta, é importante que no bloco de partos exista , mais do que um relógio bem visível, um conta-segundos. De facto, há situações “exigindo” procedimentos a realizar nos primeiros 60 (sessenta) segundos que devem ser executados.

Sistematização geral  (Figura 1)

No pós-parto imediato (primeiros segundos), a primeira etapa consiste em verificar se estão presentes as seguintes condições (avaliação básica do risco): – RN de termo? – Choro imediato e respiração normal? – Bom tono muscular?

Se a resposta a todas estas questões for positiva, o RN deve ser “entregue” à mãe, colocado “pele com pele”, promovendo estimulação suave tipo “massagem” nas plantas dos pés. A temperatura corporal da mãe aquece o bebé, evitando a hipotermia.

Se a resposta a qualquer das questões for “não”, o RN deve ser colocado sob calor radiante no berço, ou na incubadora, garantindo temperatura cutânea entre 36,5 e 37,5ºC, secado e promovendo estimulação cutânea ligeira. Sobre certas particularidades nos casos de RN pré-termo e em situação de asfixia perinatal grave, ver adiante a alínea Ambiente térmico. Deve proceder-se à aplicação de oxímetro de pulso para monitorização contínua da SpO2.

FIGURA 1. Fluxograma de actuação na reanimação do recém-nascido (segundo AHA, 2020).

Ao mesmo tempo verificar a presença de eventuais secreções ou saliva na boca, as quais devem ser removidas suavemente e não aspiradas de rotina (pelo risco de bradicardia), desde que não existam sinais de mecónio ou de obstrução da via respiratória. (Figura 2)

Se, após 30 (trinta) segundos, se verificar apneia, gasping ou frequência cardíaca (FC) < 100 bpm, deverá iniciar-se ventilação com pressão positiva intermitente (IPPV – iniciando-se com pico de 20 cm H2O), FR (frequência respiratória – 40-60/ minuto), usando balão Ambou e máscara, e FiO2 a 21% (ar) se RN com 35 semanas ou >, e 21-30% se RN com < 35 semanas. (Figura 3)

Decorridos os 30 segundos iniciais, mantendo a aplicação do oxímetro, deve proceder-se à aplicação de 3 eléctrodos cutâneos no tórax para monitorização contínua com ECG + FC e FR (frequência respiratória), não devendo ultrapassar 1 minuto (30 segundos iniciais + 30 segundos com este último procedimento).

Se, após o referido 1 minuto (correspondendo ao tempo consumido com as manobras anteriores), e apesar da garantia da permeabilidade da via respiratória e da ventilação iniciada com balão Ambou e máscara, se verificar FC < 60 bpm, deve proceder-se a entubação traqueal, após o que se deve de imediato iniciar massagem cardíaca/ compressão cardíaca em sincronismo com a ventilação (ratio 3:1 ou seja, 90 compressões/ 30 insuflações com dedos no terço inferior do esterno durante 45-60 segundos pelo menos), avaliando entretanto a resposta da FC. Concomitantemente deve elevar-se a FiO2 para 100%. (Figuras 4 e 5)

Salienta-se que:

    • O indicador mais sensível e rigoroso do sucesso da actuação geral descrita é o aumento da FC;
    • A entubação traqueal deve sempre preceder o início da massagem cardíaca).

 

Se, com as manobras descritas, a FC não responder ao cabo de 60 segundos de ventilação + massagem cardíaca, continuando este procedimento, está indicado o início da fase seguinte (letra C de ABC) relacionada com a reanimação circulatória: utilização de fármacos: adrenalina e expansores da volémia (situação rara).

Adrenalina: está indicada, como foi referido, nos casos de FC<60 bpm para além de 60 segundos de massagem cardíaca e ventilação.

É recomendada a via IV (eventualmente, a veia umbilical após cateterismo), pelo seu efeito mais rápido, na dose de 10 – 30 mcg/kg (doses mais elevadas não são recomendadas). Utilizando, em situações extremas, a via traqueal, menos eficaz, torna-se necessário usar doses superiores para obter o mesmo efeito (pelo menos, 50 – 100 mcg/ kg). A concentração da adrenalina para qualquer das vias deverá ser 1: 10.000 (0,1 mg/mL). Obtido um efeito de vasoconstrição periférica por estimulação dos receptores alfa-adrenérgicos, verifica-se melhoria do suprimento de oxigénio ao SNC e miocárdio.

Expansores da volémia: estão indicados nas seguintes situações: – ausência de resposta às medidas anteriormente descritas; – choque hipovolémico traduzido por palidez, má perfusão periférica/pele marmoreada, hipotensão arterial, pulsos débeis (situação eventualmente relacionada com perda de sangue);

Como expansores, utilizam-se soluções cristalóides isotónicas: soro fisiológico (NaCl a 0,9%) ou lactato de Ringer. A dose inicial é 10 mL/kg por via IV periférica ou umbilical em 5 a 10 minutos, podendo repetir-se a administração. Em situações de hemorragia importante pode ser utilizado sangue 0 Rh (-). (Figura 1)

Resumindo:

As manobras de reanimação devem ser sequenciais, em etapas, sem hesitações nem perdas de tempo, como é sugerido no algoritmo da Figura 1 aplicando a regra do ABC:

A- airways <> permeabilização da via aérea com cabeça/ pescoço em posição neutra ou em extensão muito ligeira, e remoção/ limpeza das secreções na boca, e não obrigatoriamente aspiração das mesmas.

B- breathing <> início da respiração/ ventilação utilizando estímulo táctil suave (por ex. nas plantas dos pés), seguindo-se ventilação artificial.

C- circulation <> garantir a circulação através da aplicação de compressão torácica/ massagem cardíaca sincronizada com a ventilação artificial, eventualmente em associação à administração de fármacos como a adrenalina ou a perfusão endovenosa para expansão da volémia.

FIGURA 2. Remoção suave das secreções somente da boca se originarem obstrução (RN em decúbito dorsal, estando já laqueado o cordão umbilical).

FIGURA 3. Ventilação com balão Ambu no lactente: A – Cabeça em extensão. Aplicar bem a máscara à face (sobre a boca e nariz) de modo a não permitir “fugas”. Evitar traumatizar os globos oculares. Comprimir o balão entre os dedos. “Aliviar” a máscara da face imediata e momentaneamente após a insuflação; B – A pressão de ventilação pode ser regulada como se demonstra na figura, apertando o balão com um ou mais dedos (o ideal será, no entanto, verificar a pressão com dispositivo conectado ao sistema – manómetro)

FIGURA 4. Manobras sequenciais de entubação orotraqueal: A – A lâmina do laringoscópio aborda o lado direito da boca; B – Avançando para a linha média referencia-se a úvula; C – Pressão sobre a língua ao mesmo tempo que a extremidade da lâmina deve progredir em direcção à epiglote; D – Referência da epiglote; E – Os três tempos permitindo ultrapassar a epiglote; F – Epiglote ultrapassada (verifica-se facilmente que o esófago está por baixo da laringe; RN em decúbito dorsal).

FIGURA 5 – Massagem cardíaca externa/ compressão torácica e ventilação com máscara. NB: idealmente a ventilação deve ser com TET. Neste caso utilizou-se a técnica com os dois polegares do reanimador.

Particularidades

Laqueação do cordão umbilical

Actualmente aconselha-se a sua realização para além de 30 segundos. De acordo com a ACOG, nos casos de normal adaptação à vida extrauterina, recomenda-se 30-60 segundos, quer em RN de termo, quer pré-termo. Determinados centros aconselham, mesmo, diferir até 3 minutos. Tais atitudes fundamentam-se em certas evidências: teores mais elevados de Hb e de reservas de ferro pelos 3-6 meses de idade, menor necessidade de transfusões futuras, designadamente nos pré-termo, e menor incidência de enterocolite necrosante e de hemorragia intraperiventricular. Recorde-se que no RN de termo a volémia na placenta corresponde a cerca de 35 mL/kg de peso.

Temperatura corporal e ambiente 

O ambiente térmico e a termorregulação constituem elementos-chave na reanimação do RN. Múltiplos estudos demonstraram que a hipotermia se associa a taxa de mortalidade mais elevada, assim como a alto risco de problemas respiratórios, hipoglicémia e sépsis tardia.

Assim, a todos os RN, como regra geral, deve ser garantida manutenção da temperatura cutânea entre 36,5-37,5ºC e da temperatura ambiente entre 23 e 25ºC (ou superior, nos RN pré-termo). Independentemente de tal garantia poder ser concretizada na maior parte dos RN de termo com boa adaptação à vida extrauterina com o calor/ temperatura da pele da mãe (“pele com pele”), importa antecipar a possível necessidade de utilizar em determinadas condições: incubadora aquecida, mesmo em RN vestidos, sistema de aquecimento radiante superior, eventualmente com temperatura servorregulada, campos de pano estéreis aquecidos, concentradores de calor de perspex (túneis), folhas, sacos de estanho ou de plástico, ou ainda, colchões exotérmicos apropriados.

A secagem da pele não deverá ser realizada em RN pré-termo com < 28 semanas, pois com tal procedimento verifica-se maior perda de calor por evaporação e convecção.

Reiterando: nos RN de termo com boa adaptação à vida extrauterina, a fonte de calor imediata a utilizar no pós-parto imediato poderá ser o calor corporal do tórax/ abdómen da mãe (“pele com pele”).

Líquido amniótico com mecónio

À luz dos conhecimentos actuais, quer nos RN com boa vitalidade, quer nos deprimidos, não vigorosos, não está indicada a entubação traqueal para aspiração do líquido meconial. Ou seja, os cuidados iniciais são idênticos aos aplicados em circunstâncias ditas normais (aquecimento, estimulação táctil suave, etc.). Os critérios para entubação traqueal são os mesmos que existem quando não se verifica a situação de líquido amniótico com mecónio.

Encefalopatia neonatal

Sendo esta situação clínica abordada adiante em capítulo especial, cabe sintetizar aqui algumas particularidades relacionadas com a actuação no pós-parto imediato por asfixia perinatal grave, obrigando a manobras de reanimação laboriosas. Em tal contexto, havendo antecedentes perinatais tais como por ex. prolapso do cordão, descolamento da placenta, sofrimento fetal, etc., as manifestações clínicas no RN, traduzindo disfunção neurológica (designadamente alterações do tono muscular, dos reflexos e do estado de consciência) são o resultado de lesão cerebral hipóxico-isquémica.

Em tal situação, para além da actuação imediata, já descrita, e dado que a hipotermia tem efeito neuroprotector, em vez de se promover o aquecimento do RN, até observação por neurologista /intensivista, está indicado o não aquecimento até decisão final, a curto prazo, de se avançar para o protocolo específico.

Depressão neonatal versus asfixia

Importa referir que vários problemas perinatais podem interferir no processo de adaptação do feto à vida extrauterina conduzindo eventualmente a um processo de depressão neonatal, e não de asfixia, no sentido correcto do termo: asfixia = hipóxia + hipercápnia + acidose). Eis alguns exemplos:

  • Prematuridade (esta condição determina que o RN seja hipotónico e hiporreactivo, tenha imaturidade do centro respiratório dificultando o automatismo respiratório, entre outras particularidades);
  • Fármacos administrados à mãe e anomalias congénitas várias do RN (condições que dificultam o início de ventilação espontânea).

Contudo, torna-se evidente que em tais circunstâncias, se não forem postas em prática determinadas manobras descritas, poderá instalar-se quadro de verdadeira asfixia na sequência da depressão inicial.

Evolução de conceitos

Ao longo das últimas décadas, com a evolução da ciência baseada nos resultados da investigação, têm sido divulgadas normas sobre Reanimação do Recém-Nascido, evidenciando mudanças de atitudes e procedimentos. Da edição anterior desta obra, transcrevemos: “…o ILCOR (International Liaison Committee on Resuscitation) em 2010, e diversos organismos internacionais a nível mundial, destacando a American Heart Association, o European Resuscitation Council, e a American Academy of Pediatrics, publicaram novas recomendações ou normas de orientação/ guidelines, divergindo significativamente nalguns pontos-chave relativamente às de 2005, descritas na 1ª edição desta obra.”

Na presente edição, adaptámos as normas (NRP-Neonatal Resuscitation Program) divulgadas em 2015 no âmbito da American Heart Association, e American Academy of Pediatrics citando Wyckoff MH, et al. Estas foram revisitadas por Hainstock LM, et al em 2020 (consultar bibliografia).

Tendo em conta os objectivos deste tratado elementar, devotado essencialmente a estudantes e a clínicos gerais ou pediatras gerais, são relevados alguns tópicos que tipificam as modificações a que aludimos.

    • Vários estudos nos últimos anos têm questionado a necessidade de emprego sistemático de oxigénio (e, designadamente em concentrações elevadas, como FiO2 de 100%) para reanimar RN no pós-parto imediato. Com efeito, verificou-se que, após períodos prolongados de hiperóxia, as hipoxantinas se acumulam nos tecidos combinando-se com oxigénio na presença de xantinoxidase, libertando radicais livres que podem provocar lesão tecidual significativa; tal lesão tecidual que corresponde a processo inflamatório (peroxidação lipídica, essencialmente) resulta da inibição da síntese proteica e de ADN. De facto, os radicais livres de oxigénio (superóxido, peróxido de hidrogénio e radicais peróxido) têm sido implicados na patogénese de uma série de quadros clínicos neonatais (sobretudo pulmonares e neurológicos), particularmente nos RN pré-termo, os quais evidenciam limitações na capacidade antioxidante (défice de enzimas antioxidantes: catalase, superóxido-dismutase, glutationa-redutase, etc.). É, pois, possível utilizar ar ambiente e evitar FiO2 elevadas o que contribuirá para a redução do teor de radicais livres produzido e de lesões teciduais após reperfusão.
    • Relativamente ao índice de Apgar (que tem sido questionado por não permitir prever o desfecho clínico a prazo, mas tão somente a avaliação da resposta à reanimação), foi proposta a sua modificação: considerando como mais importante a frequência cardíaca (FC), tem sido sugerido não valorizar o parâmetro “cor da pele”.
    • Ainda, sobre o índice de Apgar, quanto ao parâmetro “irritabilidade reflexa” avaliada ao “aspirar as fossas nasais”: considerando que esta manobra actualmente não deve constituir rotina, por desnecessária e pelo efeito potencialmente nefasto, inclusivamente em RN deprimidos, a sua inclusão é controversa.
    • Nos casos de eliminação de líquido amniótico com mecónio (LAM), os cuidados iniciais são idênticos àqueles prestados nas circunstâncias em que o LA é límpido; de facto, não está actualmente indicada a entubação traqueal para aspiração daquele, independentemente de existir ou não depressão/ deficiente vitalidade. Somente existe uma excepção: nos casos de obstrução comprovada da via respiratória.
    • Chamada da atenção actual para a importância das manobras a realizar no Minuto 1 de vida (Minuto de Ouro) incluindo a necessidade de utilização, a par do oxímetro de pulso, da monitorização electrocardiográfica com três eléctrodos.
    • Chamada de atenção para a vantagem de diferir no tempo a laqueação do cordão umbilical (> 30-60 segundos, podendo em situações especiais atingir 3 minutos). (consultar texto e bibliografia)

Técnicas

O equipamento básico para a reanimação primária do RN no bloco de partos é descrito no Quadro 1. Essencialmente: fonte de oxigénio e de ar com misturador, aquecimento e humidificação, balão tipo Ambou para insuflação manual intermitente (para pressão positiva intermitente/ IPPV), máscara para aplicação boca/ narinas ligado ao balão, e tubos endotraqueais (TET). Eventualmente, tubo em T para aplicação de sistema de pressão positiva contínua, adiante delineado.

Sobre aspectos básicos da fisiologia da respiração neonatal e sobre pressão positiva contínua ou de distensão contínua no fim da expiração/ CPAP/ PEEP, aconselha-se, adiante, a consulta do capítulo sobre problemas respiratórios. Salienta-se que existe equipamento automático para gerar, quer IPPV, quer CPAP/ PEEP, para conectar a máscara ou TET.

Ventilação artificial*

Salientando que a cor da pele constitui um fraco indicador da SpO2 durante o período neonatal imediato, e que a ausência de cianose constitui um fraco indicador de oxigenação tecidual, daí o interesse e a grande utilidade da oximetria por via transcutânea (com o vulgarmente chamado oxímetro de pulso) para monitorização do estado de oxigenação, avaliando a necessidade de administrar, ou não, oxigénio suplementar em % regulável com o dispositivo/ misturador O2/ar. De acordo com o algoritmo da Figura 1, há que evitar, quer a hipóxia, quer a hiperóxia.

* Ao abordar o fenómeno da ventilação artificial importa uma referência muito básica a certas noções da fisiologia respiratória para melhor compreensão do funcionamento dos dispositivos de ventilação (quer básicos, quer sofisticados).

    • a frequência respiratória (FR) corresponde ao número de ciclos respiratórios por minuto;
    • numa inspiração controlada ou assistida por dispositivo de ventilação (sendo o balão tipo Ambou o mais básico) gera-se uma pressão positiva inspiratória na via aérea designada ventilação com pressão inspiratória positiva intermitente (PIP ou IPPV) ou pressão de “pico”; o ar introduzido nos pulmões é mantido na via aérea durante uma pausa, para que haja tempo para as trocas gasosas/difusão a nível alveolar; a pressão da via aérea durante esta pausa denomina-se pressão de plateau/planalto;
    • durante a expiração, o pulmão é esvaziado de forma passiva em função da retracção elástica pulmonar;
    • no final da expiração normal persiste no pulmão certo volume de ar (designado capacidade residual funcional);
    • após expiração forçada resta ainda certo volume de ar (designado volume residual); o volume residual, impedindo o colapso do alvéolo, gera certa pressão de distensão alveolar contínua fisiológica que garante as trocas gasosas – a chamada pressão positiva fisiológica no fim da expiração.  

Ora, para certas situações de dificuldade respiratória em que o paciente tem respiração espontânea (isto é, não está em apneia), no sentido de incrementar artificialmente a chamada pressão positiva fisiológica no fim da expiração, (tentando melhorar ou maximizar as trocas gasosas), é possível intercalar no circuito do fluxo gasoso, um dispositivo que aumente a referida pressão de distensão contínua, pressão medida em cm de H2O.

A este conceito de pressão positiva artificial no fim da expiração em paciente com respiração espontânea é dado o nome de ou CPAP –continuous positive airways pressure), equivalente ao de (PEEP ou positive end expiratory pressure) se ao paciente estiver a ser aplicada simultaneamente IPPV (ver adiante).           

Dispositivos para ventilação

A ventilação efectiva pode ser conseguida empregando dois dispositivos (ressuscitadores) como:

  • o vulgar balão (com capacidade máxima de 750 mL) do tipo Ambu, ligado a fonte ventilatória (em geral com débito de 5 L/min) permitindo variar a concentração de oxigénio através de misturador ar/O2;
  • o balão de tipo anestésico com a chamada peça em T, permitindo variar a pressão inspiratória.  

Empregando máscara bucofacial, esta deve ser de tamanho e material adequados (transparente, almofadada, cobrindo apenas nariz, boca e região mentoniana, e aplanada para reduzir o espaço morto) sendo que o formato anatómico de base triangular ajusta-se melhor ao RN de termo, e o formato arredondado ao RN pré-termo.

O sistema deve possuir um mecanismo de segurança (manómetro ou válvula) de modo a evitar pressão inspiratória excessiva) superior a 40 cm H2O (ver atrás).

Torna-se fundamental que o reanimador (isto é, a equipa) tenha prática e experiência, verificando designadamente, se a máscara está bem ajustada à face, garantindo que a boca fica ligeiramente aberta e tendo em atenção a eventualidade de secreções susceptíveis de originar obstrução.  

Constitui boa norma aplicar sonda nasogástrica ao proceder a ventilação com máscara para evitar ou diminuir a distensão gástrica.

As máscaras laríngeas (dispositivos que se adaptam à entrada da laringe e poderão ser manipulados por quem não tem experiência em entubação traqueal e destinados às situações de abordagem difícil das vias aéreas), constituem uma alternativa transitória até se conseguir uma solução mais estável para manter a permeabilidade da via aérea.

O ressuscitador manual neo-puff é um dispositivo incluindo debitómetro, ciclado manualmente, e permitindo gerar pressão inspiratória regulável e pressão de distensão contínua (PEEP). O mesmo tem aplicação prática quando se torna necessário o transporte de RN pré-termo sem disponibilidade de ventilador convencional.

Pressão positiva intermitente (PPI ou PIP)

Se se verificar apneia, gasping, ou FC < 100 /min após realização dos passos anteriormente descritos, deve ser iniciada ventilação com PPI. Na prática deve providenciar-se uma frequência de ventilação / insuflação de 40 a 60/min, monitorizando a FC, sendo objectivo que atinja, com a ventilação, > 100/min. A pressão de insuflação / pressão inspiratória deve ser monitorizada; uma pressão de 20 cm H2O poderá ser efectiva, mas nalguns casos são necessários picos de pressão mais elevados (~ 30-40 cm H2O), designadamente em RN de termo sem respiração espontânea.

Nalguns centros que possuem capnógrafo (dispositivo detector de CO2 por método colorimétrico para detectar obstrução da via aérea ou, no caso de entubação traqueal – ver adiante – para comprovar a correcta colocação do TET na via respiratória). Utilizando máscara, parece não haver utilidade do capnógrafo.

Pressão positiva contínua

A pressão positiva contínua (CPAP) poderá ser usada em RN pré-termo que respiram espontaneamente, mas manifestando dificuldade e esforço. Tal atitude poderá reduzir a necessidade de entubação traqueal e de ulterior doença pulmonar crónica; ter em atenção a maior a probabilidade de pneumotórax. (ver adiante INSURE).

Sobre o equipamento utilizado para CPAP e seu funcionamento, procede-se a uma abordagem sucinta adiante, no capítulo sobre Problemas respiratórios.

Pode utilizar-se a associação de PPI com pressão positiva no fim da expiração / pressão de distensão contínua (PEEP) pós-parto imediato, ainda no bloco de partos.

Entubação traqueal

As principais indicações da entubação traqueal são:

  • Apneia
  • Ventilação com máscara e balão Ambou ineficaz e prolongada. Aplicando em sincronismo ventilação + massagem cardíaca, esta última deverá ser iniciada após a entubação traqueal (nunca a preceder). (ver atrás)
  • Circunstâncias especiais, designadamente as descritas na alínea seguinte.

Após entubação endotraqueal e administração de PPI/IPPV o melhor indicador de que o tubo se encontra em posição correcta (no interior da via laringotraqueal), providenciando ventilação efectiva, é o rápido incremento da FC. Outros indicadores de correcta posição do TET são a auscultação de murmúrio vesicular bilateralmente e a expansão torácica simétrica em sincronismo com as insuflações.  

A  comprovação objectiva de correcta posição do TET também pode ser  realizada através da  detecção (positiva) de CO2 exalado através do capnógrafo. Caso tal não aconteça (detecção negativa), deduz- se que o tubo foi introduzido no esófago; a mesma conclusão se poderá tirar se a auscultação ao nível do epigastro  identificar ruído aéreo.

O Quadro 3 mostra, de modo aproximado, o diâmetro aconselhado do TET em função do peso do RN / idade gestacional, sendo prudente que o reanimador escolha como reserva um TET de diâmetro superior e outro de diâmetro inferior ao escolhido.  No mesmo é referido o comprimento a inserir desde o lábio superior (entubação orotraqueal).

Uma regra matemática permite calcular, também, o comprimento do TET a inserir: distância em cm = peso em kg + 6. Em alternativa, a distância tragus-nasal pode ser usada para avaliar a distância entre a extremidade do TET e o lábio.

QUADRO 3 – Calibre do TET.

TUBO ENDOTRAQUEAL (TET)
Peso (g)Idade gestacional (semanas)Diâmetro do tubo (mm)Comprimento a inserir desde o lábio superior (cm)

<1000
1000-1999
2000-2999
≥3000

<28
28-34
34-38
>38

2.5
3.0
3.5
3.5-4.0

6.5-7
7-8
8-9
>9

Notas importantes:
– Actuação:

1º – ventilação, idealmente com TET;
2º –  a massagem cardíaca que, portanto, só deve ser iniciada após a ventilação (e mantendo esta, idealmente via TET).

Como variante e pormenores desta técnica, referem-se:

    • Compressão feita com o indicador e o médio, “evitando o apêndice xifoideu”;
    • Grau de compressão correspondendo a cerca de 1/3 do diâmetro ântero-posterior do tórax;
    • Não deslocação dos dedos da sua posição inicial de contacto com a pele do RN para prevenir o traumatismo de órgãos vizinhos e a ineficácia da manobra.
    • O modo correcto das compressões e insuflações assim como a não interrupção do procedimento são mais importantes do que providenciar o número exacto de manobras por minuto. (Figura 5)

Actuação prática em casos especiais

Hérnia diafragmática congénita (HDC)

O diagnóstico de HDC, idealmente, deverá ser realizado antes do nascimento.

No RN com diagnóstico pré-natal de HDC, a equipa de reanimação, informada do diagnóstico, deverá electiva e imediatamente após o nascimeno proceder a; 1) entubação traqueal; 2) ventilação com pressão positiva; 3) colocação de sonda nasogástrica para evitar hiperdistensão gástrica; 4) restante suporte vital que a situação imponha.

Notas importantes:

    • Nos RN com síndroma de dificuldade respiratória no pós-parto imediato, abdómen escafóide, ventilação assimétrica, e desvio dos sons cardíacos é essencial ponderar este diagnóstico e proceder em conformidade.
    • Nos casos de HDC, o risco de pneumotórax durante a reanimação é considerável; caso se verifique, deverá ser feita a descompressão imediata através de punção pleural com agulha tipo butterfly no 4º espaço intercostal esquerdo (EIE) na linha axilar anterior, conectada a seringa ou a sistema de drenagem subaquática.

Gastrosquise

A gastrosquise pode ser diagnosticada no âmbito da vigilância pré-natal pela observação ecográfica de vísceras em localização extraparede abdominal, sem saco de revestimento.

Para além das manobras atrás descritas de reanimação caardiorrespiratória, salientam-se as particularidades da chamada fase de reanimação circulatória: reposição de líquidos (as perdas são essencialmente de plasma e fluidos intersticiais), com necessidade de volumes muito superiores aos habituais: 150-300 mL/kg/dia, isótonicos, colóides, soro fisiológico ou lactato de Ringer.

Obstrução da via respiratória superior

A obstrução da via respiratória superior, seja intrínseca ou extrínseca, pode determinar adaptação difícil à vida extrauterina (traduzida fundamentalmente por esforço respiratório precoce) susceptível de tornar a reanimação mais laboriosa.

  • No RN com macroglossia ou glossoptose, o decúbito lateral ou ventral pode ajudar a aliviar os sintomas; se tal não se verificar, com o apoio de anestesista e endoscopista, pode tentar-se a colocação de tubo nasofaríngeo sob controlo fibroendoscópico;  
  • No RN com anomalia congénita do maciço facial pode ser difícil a realização de entubação traqueal; se, após aplicação do laringoscópio a visualização das cordas vocais for difícil ou impossível, poderá tentar-se sem laringoscópio, usando o método táctil:
    1. RN em decúbito dorsal com plantas dos pés frente ao reanimador;
    2. Segura-se o TET com a mão direita e, com o 4º dedo da mão esquerda introduzido na boca do RN avança-se até tocar na ponta da epiglote que se tenta levantar enquanto se introduz o TET;

A entubação traqueal guiada por fibroendoscopia constitui uma alternativa a utilizar nos casos de obstrução da via respiratória superior.

Surfactante no bloco de partos

Essencialmente, existem duas estratégias no que respeita à administração de surfactante: a profiláctica e a de recurso (ou resgate).

Na estratégia profiláctica, o surfactante é administrado nos primeiros minutos de vida a RN com maior probabilidade de desenvolvimento do problema respiratório típico da prematuridade por défice de surfactante (doença da membrana hialina), designadamente, em situações associadas a idade gestacional < 28 semanas, e a não administração de corticoides à grávida.  

Na estratégia de recurso, a administração de surfactante é protelada até verificação dos primeiros sinais de dificuldade respiratória relacionável com a referida doença.

Muitos estudos publicados têm demonstrado que ambas as estratégias são seguras e eficazes, continuando, contudo, a existir controvérsia quanto à selecção de pacientes para tratamento profiláctico, e ao intervalo de tempo máximo recomendado para a administração de primeira dose. Salienta-se, contudo, que em regra é recomendada a administração profiláctica aos 10 minutos de vida após período de ventilação com pressão positiva iniciada no pós-parto imediato.

Tem sido observado um crescente interesse no uso precoce do método de pressão positiva contínua por via nasal (CPAP nasal – nasal continuous positive airway pressure) já a partir do bloco de partos, em RN com idades gestacionais mais baixas.

Alguns estudos têm sugerido que esta estratégia poderá diminuir a necessidade de ventilação invasiva, a utilização de surfactante e a incidência de doença pulmonar crónica.

Também, a estratégia designada de “INSURE” (ou intubation – surfactant – extubation) significando “entubação electiva para administração de surfactante seguida de extubação” e aplicação de CPAP nasal pode contribuir para reduzir a necessidade de ventilação mecânica e suas complicações. De facto, a pressão positiva contínua/CPAP, mantendo os alvéolos distendidos, reduz a probabilidade de lesão do surfactante e, por outro lado, estimula a sua produção.

Para melhor compreensão das estratégias de assistência respiratória no pós-parto imediato em RN pré-termo, e especialmente em situações de prematuridade  (< 28 semanas e < 1.000 gramas) tendo em vista a prevenção de lesão alveolar pulmonar e suas sequelas, será útil a consulta do capítulo sobre problemas respiratórios.

Cuidados pós-reanimação

Na fase imediata à reanimação (na Hora de Ouro), seguindo-se à recuperação dos sinais vitais (estabilização), existe risco de deterioração, o que implica preparação da equipa para eventual intervenção nas horas subsequentes. Mesmo que o RN submetido a reanimação não seja transferido para UCIN, deverá ficar sob vigilância nas horas subsequentes em unidade de internamento: – prevenindo a hipotermia, a hipoglicémia e a infecção; e – possibilitando a monitorização biofísica (frequência cardíaca, respiratória, pressão arterial, SpO2, etc.) e bioquímica.

Importa salientar que o aleitamento deve ser fomentado e iniciado o mais precocemente possível, exceptuando no contexto de eventual contraindicação relacionado com o estado clínico da mãe ou bebé.

A administração de naloxona não é recomendada como fazendo parte das medidas iniciais no bloco de partos para combater a depressão respiratória. Aliás, é importante referir que nunca deve ser utilizada em RN de mães com antecedentes de toxicodependência de opióides pelo risco de síndroma de abstinência neonatal caracterizada por hiperexcitabilidade e convulsões.

Outros fármacos tais como bicarbonato ou vasopressores (por ex epinefrina ou dopamina) raramente estão indicados na fase de estabilização, excepto perante acidose metabólica e ou necessidade de expansão da volémia.  

Tendo em consideração o efeito lesivo da hipoglicémia, a determinação da glucose no sangue deve ser realizada, sendo de considerar no pós parto imediato, em função do contexto clínico de cada caso, a perfusão de glucose IV para prevenir aquela situação.  

Nos casos de RN de termo ou quase de termo (com 36 semanas ou mais) com encefalopatia hipóxico-isquémica moderada a grave (ver capítulo sobre encefalopatia neonatal) os mesmos devem  beneficiar de hipotermia terapêutica devidamente controlada (33,5ºC a 34,5ºC), sendo tal procedimento  iniciado dentro das primeiras 6 horas após o parto, continuando durante 72 horas, com ulterior reaquecimento.

Dilemas éticos

No bloco de partos a equipa de pediatria-neonatologia é muitas vezes confrontada com situações que comportam decisão difícil, designadamente no que se refere à abstenção de reanimação ou à sua interrupção.

Cabe referir, a propósito, que se torna impossível estabelecer consenso absoluto no que respeita ao tópico “reanimação”, uma vez que a adopção de toda e qualquer medida é susceptível de abranger, não só aspectos éticos, mas também científicos, legais, culturais, religiosos, entre outros; por conseguinte, as normas estabelecidas poderão variar entre grupos sociais ou culturais. De qualquer modo, é geralmente admitido que o bloco de partos não constitui o local mais próprio para decidir sobre a vida ou a morte.

Tendo em conta tais condicionalismos, no âmbito de cada país e cada instituição é importante elaborar normas de actuação que poderão ser revistas regularmente, e modificadas se necessário. Por outro lado, as decisões deverão basear-se no maior número de elementos clínicos antenatais, sempre que possível, confirmados no período pós-natal.

As situações que na maior parte dos casos podem suscitar dúvidas e dilemas dizem respeito fundamentalmente aos RN com sinais de imaturidade extrema (RN inviáveis?), àqueles que evidenciam anomalias congénitas (incompatíveis com a vida?), e aos casos em que o tempo de reanimação se prolonga.

Na fase actual dos conhecimentos, no âmbito da maioria dos centros e sociedades científicas perinatais dos países industrializados foram, entretanto, obtidos determinados consensos em situações de parto pré-termo:

  • a idade gestacional é considerada melhor “marcador” de viabilidade do que o peso de nascimento;
  • inviabilidade definida quando a idade gestacional é inferior a 23 semanas;
  • a reanimação deve ser instituída se o diagnóstico de maturidade (idade gestacional precisa) não tiver sido previamente estabelecido;
  • a reanimação não deve ser instituída se a idade gestacional confirmada for inferior a 23 semanas, ou o peso de nascimento inferior a 400 gramas;
  • o sinal clínico “fusão palpebral” habitualmente conotado com imaturidade inviável pode surgir em cerca de 20% dos RN com idades gestacionais compreendidas entre 24 e 27 semanas; todos os esforços devem ser feitos na assistência ao parto e na reanimação de RN com idade gestacional > 27 semanas;
  • nos RN com idade gestacional compreendida entre 25 e 27 semanas haverá que ponderar determinados factores tais como, por ex. a medicação na grávida com corticóides, parto em centro diferenciado com UCIN pressupondo transporte in utero prévio, problemas associados imediatamente detectados no pós-parto, etc..

A este propósito cabe referir que, de acordo com resultados dos estudos da Rede Neonatal Vermont Oxford, a maioria dos RN com peso de nascimento <1.000 gramas submetida a massagem cardíaca e ou tratamento com adrenalina sobrevive (50 % sem HIPV).

Quanto aos RN portadores de anomalias congénitas evidentes, designadamente nos casos de diagnóstico confirmado de trissomia 13 ou trissomia 18, considera-se em geral que se deverá tomar a decisão de iniciar a reanimação. Dada a posssibilidade actual de diagnóstico pré-natal das situações atrás referidas, considera-se que a decisão deva ser discutida com os pais sob os pontos de vista cultural, legal, religioso, etc..

Nas situações de reanimação prolongada, e após 15 minutos de ausência de batimentos cardíacos, apesar da realização de todos os procedimentos de modo adequado, aquela deverá ser interrompida.

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Introdução

O crescimento fetal pode estar desviado, por excesso ou por defeito (restrição). Em qualquer das circunstâncias tal situação pode constituir um epifenómeno de patologia de etiopatogénese diversa com implicações diagnósticas e terapêuticas específicas, ou apenas representar uma variante da normalidade.

1. RESTRIÇÃO DO CRESCIMENTO INTRAUTERINO (RCIU)

Definição

A restrição do crescimento intrauterino (RCIU) – termo considerado actualmente mais adequado por muitos autores do que o anterior, de “atraso de crescimento intrauterino” – é definida no sentido lato como a perda de oportunidade de o feto atingir o respectivo potencial de crescimento. No sentido estrito, o critério de definição mais utilizado baseia-se exclusivamente no peso ao nascer: recém-nascido (RN) com peso inferior ao que corresponde ao percentil 10 para a respectiva idade de gestação e género, isto é, leve para a idade de gestação (LIG) em valores representativos da população.

Outros autores preferem utilizar como valores de corte, o percentil 5, o percentil 3, ou dois desvios-padrão abaixo da média.

Embora a condição LIG possa constituir um razoável indicador de RCIU, em rigor, os conceitos de LIG e RCIU, não são sinónimos, dado que cada situação poderá ocorrer na ausência de outra. Há recém-nascidos (RN) LIG constitucionalmente pequenos, considerados saudáveis, assim como casos de desnutrição intrauterina com inflexão da trajectória do crescimento fetal em que o peso no momento do nascimento se situa entre os percentis 3 e 97 (RN adequados para a idade de gestação, designados pela abreviatura AIG).

Nesta última circunstância, é essencial recorrer a outros indicadores de desnutrição fetal, referidos mais adiante.

Aspectos epidemiológicos e diagnóstico pré-natal

A incidência de RCIU varia, de acordo com diversos estudos epidemiológicos, entre 3% e 7% dos RN; trata-se dum problema ao qual se associa risco significativo de mortalidade e morbilidade perinatais, especialmente na ausência de diagnóstico pré-natal. O método mais fidedigno para o diagnóstico de RCIU assenta na avaliação de, pelo menos, duas avaliações da biometria fetal por ultrassonografia, sendo o perímetro abdominal o parâmetro mais sensível. A hemodinâmica avaliada por ecografia-Doppler, designadamente através de medições do fluxo nas artérias umbilical, cerebral média e uterina, reveste-se de grande utilidade no diagnóstico de insuficiência útero-placentar, o principal factor etiológico de RCIU.

Etiopatogénese e classificação

Para compreender as diferentes classificações de RCIU, é importante recordar as três fases de crescimento fetal. Na primeira, predomina a hiperplasia celular, caracterizada por rápido aumento do número de células até às 16 semanas de vida intrauterina.

Na segunda, entre as 16 e as 32 semanas de gestação, há um abrandamento da hiperplasia e um progressivo aumento to tamanho das células (hipertrofia).

Na terceira, após as 32 semanas, predomina a hipertrofia, com rápido aumento da dimensão celular.

Os dois tipos mais usados de classificação de RCIU são o etiológico e o clínico.

Pela classificação etiológica, a RCIU pode ser de origem fetal (explicável por patologia intrínseca do feto, útero-placentar), ou materna (explicável por factores extrínsecos).

A classificação clínica assenta na proporcionalidade corporal. Ou seja, a RCIU é classificada em função da “simetria” ou “assimetria” dos parâmetros do numerador e denominador de fracção em que o peso ocupa o numerador e o comprimento o denominador, por exemplo: índice peso-comprimento, índice de massa corporal e índice ponderal.

O índice ponderal de Rohrer tem sido o indicador antropométrico mais utilizado para avaliar a proporcionalidade ao nascer: [Peso (em g)/ Comprimento3 (em cm)]x100]. Este índice tem vindo a cair em desuso, porventura por incluir o comprimento elevado ao cubo; ao ser uma medição difícil de se obter com rigor, qualquer erro se amplia pelo facto de o valor estar elevado à potência.

Na RCIU simétrica, harmoniosa, ou proporcionada, tanto o peso como o comprimento estão diminuídos. Quando o peso é predominantemente afectado, a RCIU é designada assimétrica, desarmoniosa ou desproporcionada.

Esta terminologia, muito utilizada, poderá originar erroneamente a ideia de que a RCIU simétrica, harmoniosa ou proporcionada representará um processo mais “benigno”. De facto, assim não é.

Tipicamente, a RCIU simétrica está associada a patologia intrínseca do feto, como infecções intrauterinas (rubéola, citomegalovírus, toxoplasmose, sífilis, paludismo, etc.), anomalias cromossómicas, síndromas dismórficas e noxas maternas actuando no feto – tabaco, álcool, cocaína, heroína e certos fármacos como o propranolol e os corticosteróides. Neste tipo de RCIU, a alteração do crescimento manifesta-se precocemente na gravidez, podendo atingir a fase de hiperplasia celular e organogénese e levar a uma redução do número total de células.

A RCIU assimétrica, mais frequente, inicia-se tardiamente na gravidez e está associada a causas maternas e útero-placentares, pré-eclâmpsia, hipertensão crónica e anomalias uterinas. Nestas circunstâncias, é frequente encontrar enfartes ou alterações microvasculares da placenta.

A desnutrição fetal aguda ocorrendo no último trimestre, em geral apenas atinge a fase de hipertrofia celular e associa-se à redução das reservas adiposa e de glicogénio, com consequente diminuição dos tecidos subcutâneo, muscular e hepático (redução do perímetro abdominal). Além do défice de suprimento de nutrientes, na insuficiência útero-placentar frequentemente coexiste menor fornecimento de oxigénio e consequente hipoxia pré- e perinatal. (Quadro 1)

Há autores, porém, que questionam a relação entre a conformação somática do RN e os factores etiopatogénicos referidos.

No Quadro 2, complemento do Quadro 1, são discriminados os factores que mais frequentemente estão associados a RCIU.

Demonstrou-se que a angiogénese, processo fundamental para o crescimento e desenvolvimento, designadamente da placenta, está alterada em múltiplas situações acompanhadas de RCIU.

Diversos estudos chamaram a atenção para o papel do factor de crescimento endotelial vascular (VEGF ou vascular endothelial growth factor) como mediador da angiogénese, o qual exerce o seu efeito através da cooperação de 2 receptores aos quais se liga: VEGFR-1 e VEGFR-2, sendo que o VEGFR-1 constitui um potente inibidor de VEGF e dum factor de crescimento placentar.

Outros estudos concluíram que a concentração sérica de VEGFR-1 solúvel está muito elevada nos RN com RCIU no 1º dia de vida, o que pode reflectir hipóxia intrauterina e disfunção placentar, traduzindo provavelmente papel importante como factor de risco de RCIU.

Recentemente tem-se demonstrado a acção deletéria de poluentes a que a grávida está exposta, tais como monóxido de carbono e certos compostos hidrocarbonados aromáticos policíclicos; os efeitos são diversos: défice de oxigenação fetal a par de estresse oxidativo, lesão do ADN, etc..

Manifestações clínicas, complicações e avaliação

À RCIU associa-se maior risco de mortalidade e morbilidade neonatais, designadamente na de tipo simétrico.

Apesar de os RN com RCIU terem maior capacidade termogénica, estão mais propensos à hipotermia pela menor espessura da gordura subcutânea.

Relativamente à conformação corporal, a RCIU de tipo assimétrico associa-se a maior risco de hipoglicémia e asfixia, enquanto a de tipo simétrico, a maior taxa de prematuridade e complicações perinatais.

A hipoglicémia constitui a principal complicação metabólica do RN com RCIU, por diminuição das reservas fetais de glicogénio e compromisso da neoglicogénese e da glicogenólise hepáticas. A hipocalcémia ocorre essencialmente em RN com RCIU e sinais de hipotrofia e/ou que sofreram asfixia perinatal.

A asfixia perinatal está intimamente relacionada com a hipoxia crónica por insuficiência útero-placentar a qual, por sua vez, pode associar-se a síndroma de aspiração de mecónio, hipertensão pulmonar e policitémia por estimulação da eritropoietina fetal.

QUADRO 1 – Tipos de restrição do crescimento intrauterino (RCIU).

 AssimétricaSimétrica
Biometria – Parâmetro afetadoPesoPeso, comprimento e perímetro cefálico
CausaExtrínsecaIntrínseca ou extrínseca
Incidência80%20%
Início na gravidezTardioPrecoce
Fase da gravidezHipertrofia celularHiperplasia celular
PatogéneseInsuficiência útero-placentar: défice de suprimento de nutrientesDiminuição do número de células
Tecidos e órgãosDiminuição do tecido adiposo, muscular e hepáticoDiminuição do encéfalo
PlacentaAlterações histológicasHistologia normal (exceto na embriopatia infeciosa)

QUADRO 2 – Factores frequentemente associados a RCIU.

Fetais
Anomalias cromossómicas, fetopatias infeciosas, síndromas malformativas, irradiação, gestação múltipla, hipoplasia pancreática, deficiência de insulina, mecanismos anti-angiogénicos, deficiência de ILGF do tipo II, VEGFR-1

Placentares
Peso e/ou celularidade deficientes, área deficiente, placentite vilosa (bacteriana, vírica, parasitária), enfartes, tumores (mola hidatiforme, corioangioma), separação placentar, síndroma de transfusão intergemelar

Maternos
Toxémia e/ou hipertensão arterial, hipoxémia (doença pulmonar, cardiopatia cianótica, altitude elevada), subnutrição (carência em macro e micronutrientes), doença crónica, drepanocitose, drogas (narcóticos, álcool, tabaquismo, cocaína, antimetabólitos).

Nos RN com RCIU pode verificar-se diminuição da absorção entérica de macromoléculas, nomeadamente de lípidos e de proteínas.

Determinados sinais clínicos indicam hipoxia pré-natal. A presença de líquido amniótico tinto de mecónio é um sinal de sofrimento fetal agudo, enquanto o líquido com aspecto de “puré de ervilha” sugere um processo mais prolongado de hipoxia intrauterina. Neste caso, é habitual o RN evidenciar sinais de dismaturidade, apresentando um aspecto “envelhecido”, pele enrugada e descamativa e olhar alerta, não condizente com o peso deficitário e o aspecto emagrecido. Tratando-se de um RN com RCIU, de termo, o mesmo evidenciará a postura típica com membros superiores e inferiores em flexão, semelhante à postura do RN de termo sem RCIU, e diversa da do RN pré-termo cujos segmentos dos membros estão em extensão. (Figuras 1 e 2)

Na RCIU simétrica devem ser procurados sinais de dismorfia:

  • Ou enquadrados em síndromas polimalformativas;
  • Ou que sugiram infecção intrauterina do grupo TORCHS. Neste caso é necessário pesquisar microcefalia, hepatosplenomegália, exantema e outros sinais biológicos.

Alguns parâmetros somatométricos podem auxiliar no diagnóstico de desnutrição fetal e prever o risco metabólico precoce. O mais fácil de avaliar é o peso, mas como foi referido, muitos RN LIG não têm patologia, enquanto outros têm peso adequado à idade de gestação e sofreram desnutrição intrauterina. Uma desproporcionalidade corporal em que o peso é afectado, mas não o comprimento, pode ser um bom indicador desta condição; a pouca espessura das pregas cutâneas e outros índices poderão ser tão bons ou melhores indicadores. Entre estes, incluem-se os valores baixos da razão perímetro braquial/perímetro cefálico, da razão peso/comprimento, e valores baixos das áreas da secção transversal do braço (áreas adiposa e braquial) calculadas a partir da prega cutânea tricipital e do perímetro braquial.

No entanto, vários autores questionam a confiabilidade da medição das pregas cutâneas no RN, a validade das áreas da secção transversal do braço e o valor da conformação corporal na previsão do risco metabólico precoce. (Figura 1)

Em comparação com os RN de equivalente idade de gestação e peso adequado, os pré-termo com RCIU têm maior risco de complicações inerentes à prematuridade. (Figura 2)

Embora haja a ideia de que o estresse a que é submetido o RN com RCIU induz a maturidade pulmonar, foi demonstrado que o RN pré-termo com esta condição tem maior probabilidade de ter doença da membrana hialina.

A maior prevalência de asfixia perinatal e consequente redistribuição do fluxo sanguíneo, hiperviscosidade por policitémia e a própria prematuridade, predispõem à enterocolite necrosante.

Outras complicações da RCIU relacionadas com a prematuridade são a sépsis, a hemorragia intraperiventricular e as sequelas neurológicas.

FIGURA 1. RN de termo com RCIU. Aspecto geral desnutrido; postura em flexão dos membros superiores e inferiores compatível com a idade gestacional. (URN-HDE)

FIGURA 2. RN pré-termo com peso de nascimento semelhante ao da Figura 1: postura dos membros inferiores em extensão, e hipotonia marcada, compatíveis com a idade gestacional. (URN-HDE)

Importância do problema e implicações futuras

Barker, especulando sobre os mecanismos que determinam a repercussão a longo prazo da desnutrição fetal, deu origem a uma teoria conhecida por “hipótese de Barker” ou “hipótese da poupança” (thrifty hypothesis). Segundo esta teoria, o feto responde à desnutrição com uma série de mecanismos de adaptação, que incluem o armazenamento de gordura, redução do metabolismo não essencial, restrição do crescimento e redistribuição do fluxo sanguíneo e nutrientes para órgãos nobres (designadamente, cérebro, coração e suprarrenais) em detrimento doutros nos quais se verificam alterações de que resultam lesões permanentes. A privação nutricional pode influenciar de modo programado o feto (ou originar, assim, uma “programação” ou “marca” no mesmo, levando mais tarde a lesões estruturais e metabólicas permanentes). Estas alterações não se tornam tão evidentes se o indivíduo, após o nascimento, continuar a crescer em ambiente nutricionalmente deficitário, representando tal ambiente a continuidade de condições que já se verificavam antes (in utero) e uma “vantagem” em termos metabólicos”, facilitando os mecanismos de adaptação do feto à vida extrauterina.

No entanto, ao ser exposto a meio nutricionalmente rico, a “programação” pré-natal torna-se inadequada e no indivíduo em causa poderá desenvolver-se tardiamente a chamada síndroma metabólica, dominada por alterações da homeostasia da glicose-insulina. Nesta síndroma, incluem-se a diabetes de tipo 2 (DT2), a doença coronária, a hipertensão arterial, o perfil lipídico aterogénico e a obesidade de predomínio troncular.

Estudos em modelos animais permitem explicar alguns mecanismos patogénicos desta síndroma. A exposição a um regime nutricional intrauterino pobre em proteína, origina no pâncreas fetal uma diminuição da proliferação das células-β dos ilhéus pancreáticos e redução da dimensão dos mesmos por défice de vascularização. A redistribuição de nutrientes também pode levar à redução permanente dos transportadores de glicose no músculo, iniciando o círculo vicioso: hiperglicémia, aumento do estímulo para produção da insulina e exaustão e apoptose das células-β pancreáticas e diminuição da expressão da insulin-like growth factor II.

Relativamente à hipertensão e doença cardiovascular, foram observadas: alterações da angiogénese; exposição do feto a níveis elevados de glucocorticóides, aumento da expressão do respectivo receptor, e estímulo para a activação do sistema renina-angiotensina; mecanismos epigenéticos, envolvendo a metilação do ADN; e doença renal por redução fetal do número de nefrónios.

Entre os mecanismos favorecendo a futura obesidade, foram descritas no feto: selecção de clones celulares associados à produção endógena de lípidos; supressão da lipólise induzida pela insulina em adipócitos malnutridos.

Na espécie humana, foi descrita alteração congénita do padrão do apetite e saciedade resultante das adaptações metabólicas referidas. Um dos factores que participam nesta programação pode relacionar-se com a grelina, péptido orexigénico cujos níveis estão aumentados em indivíduos nascidos LIG.

Existem outros efeitos não relacionados com a futura síndroma metabólica, mas também resultantes da redistribuição do fluxo sanguíneo e de nutrientes, justificando a hipocelularidade e hipoplasia de outros órgãos e tecidos, como: eventual redução da massa muscular (sarcopénia) e osteopénia; diminuição do desenvolvimento e função do timo e tecido linfóide; e maior susceptibilidade a infecções respiratórias e diarreias durante a infância, por afecção de componentes do sistema imunitário, particularmente sensíveis a défice nutricional precoce.

Nos primeiros anos de vida, é notório o hipocrescimento estaturo-ponderal na RCIU de tipo simétrico. Contudo, a médio e longo prazo, o prognóstico parece melhor. No entanto, cerca de 10% a 15% de indivíduos nascidos com RCIU não recuperam o crescimento aos 2 anos de idade, estão em maior risco de terem baixa estatura na idade adulta e poderão beneficiar de tratamento com hormona de crescimento.

Curiosamente, mulheres que nasceram com RCIU podem ter maior predisposição para gerar filhos com a mesma condição, estabelecendo-se assim um efeito transgeracional. Isto verificou-se não só em mães que sofreram desnutrição aguda, da coorte de Holandeses sujeitos a fome extrema durante a segunda guerra mundial (Dutch Famine Cohort), mas também em mães suecas de meio favorecido. Em parte, o efeito transgeracional pode dever-se às pequenas dimensões do útero e ovários, observado em adolescentes que sofreram RCIU.

2. HIPERCRESCIMENTO INTRAUTERINO

Definição

Considera-se que um RN teve um crescimento intrauterino excessivo (ou hipercrescimento) quando o peso de nascimento é superior ao percentil 97 ou dois desvios padrão acima da média para a idade de gestação e género numa curva representativa da população; tal RN é designado grande (ou pesado) para a idade de gestação (GIG).

Os RN GIG de termo são geralmente macrossómicos (ou macrossomáticos), termos que significam peso de nascimento superior a 4.000 gramas.

Aspectos epidemiológicos e diagnóstico pré-natal

Estima-se que 9% a 13% dos RN sejam GIG, condição associada a certo número de complicações no período perinatal.

Frequentemente, a condição de feto macrossómico (macrossomia) não é detectada durante a gravidez e o trabalho de parto, pelo facto de a sensibilidade e especificidade das estimativas ultrassonográficas ficarem aquém do desejado. Um dos parâmetros com maior sensibilidade diagnóstica é o perímetro abdominal.

Existem classificações, como as de White e de Pedersen, com valor prognóstico para o feto de mãe diabética.

A macrossomia é típica do RNMD, entidade clínica descrita noutro capítulo.

Etiopatogénese

Um RN GIG pode constituir manifestação de determinada patologia (como RN de mãe diabética – RNMD) e determinadas síndromas, enquadrar-se no contexto de gigantismo de início pré-natal, ou corresponder apenas uma situação de RN constitucionalmente grande/pesado, sem patologia subjacente.

Mais raramente, a condição de GIG pode associar-se à eritroblastose fetal grave, hidropisia fetal e transposição das grandes artérias.

A classificação do RN GIG, baseada no índice ponderal individualizado, veio mudar a perspectiva etiopatogénica: não se consegue determinar a causa da macrossomia em cerca de 1/3 dos RN GIG, sendo que os RNMD não representam mais do que 10% daqueles, ao contrário do que se julgava.

Manifestações clínicas e complicações

Pelas dimensões do feto, o parto por via vaginal comporta maior risco de distócia de ombros, de fractura da clavícula e dos membros, e de asfixia perinatal.

Ao RNMD associam-se intolerância alimentar, hipoglicémia, hipocalcémia, policitémia, hiperbilirrubinémia não conjugada e atraso na produção de surfactante com consequente quadro de SDR (doença da membrana hialina). Uma vez que a incidência de anomalias congénitas é significativamente superior nos RNMD, torna-se necessário proceder ao respectivo rastreio em tal circunstância (cita-se como exemplo a cardiomiopatia hipertrófica. (Figura 3)

O exame objectivo de um RN macrossómico obriga à detecção de determinadas lesões traumáticas tais como fractura da clavícula e dos membros, traumatismo das partes moles, lesão do plexo braquial e céfalo-hematoma, designadamente se o parto se tiver realizado por via vaginal.

FIGURA 3. RN macrossomático (RNMD) com insuficiência respiratória submetido a terapia em UCIN. (URN-HDE)

No RN GIG e/ou macrossómico devem ser pesquisados determinados sinais classicamente associados à entidade “RNMD”, se houver antecedentes maternos sugestivos.

O RNMD tem um fenótipo característico, com acumulação de gordura na face e tronco. Pode ter aspecto pletórico, tremor, taquipneia e icterícia. A antropometria poderá ajudar a definir melhor o referido fenótipo. Há autores sugerindo que a acumulação da gordura troncular pode ser mais bem avaliada pelo índice de gordura centrípeta (ainda não validado), baseada na medida das pregas cutâneas subescapular (PSE), suprailíaca (PSI), tricipital (PT) e bicipital (PB): (PSE + PSI)/(PT + PB + PSE + PSI).

Outros, sugerem medidas antropomórficas que poderão sugerir se a distocia de ombros no RNMD foi ou não motivada por ombros e perímetros dos membros desproporcionadamente grandes.

Retomando a noção de proporcionalidade corporal atrás explicitada, na prática este critério permitirá a destrinça entre GIG e verdadeiro macrossómico.

A macrossomia pode também enquadrar-se num gigantismo de início pré-natal, com aumento excessivo do comprimento ao nascer e outras características sindromáticas evidentes desde o período neonatal: a síndroma de Sotos, associando dificuldades em se alimentar, hipotonia, macrocefalia com dolicocefalia e abaulamento do frontal, palato ogival, extremidades acromegalóides e idade óssea avançada; a síndroma de Beckwith-Wiedemann, associando hipoglicémia, letargia, macroglossia, hiperplasia de órgãos internos, pregas típicas nos pavilhões auriculares, onfalocele e outros defeitos da parede abdominal, e criptorquidia; a síndroma de Weaver, associando anomalias craniofaciais típicas, choro rouco e agudo, hipertonia e camptodactilia; a síndroma de Marshall, associando anteversão das narinas, achatamento da base do nariz, espaçamento dos olhos aparentando macroftalmia, espessamento da parte superior da calote craniana, calcificações intracranianas, catarata e anomalias do palato; e a síndroma de Perlman, associando displasia renal, tumor de Wilms, hiperplasia do pâncreas endócrino e outras anomalias congénitas.

Noções práticas sobre a avaliação do estado de nutrição em crianças nascidas pré-termo

A avaliação do estado de nutrição em crianças nascidas pré-termo baseia-se fundamentalmente na antropometria e na medição de marcadores bioquímicos usados frequentemente na clínica. Em determinados centros de investigação, e segundo a experiência do autor (LPS) podem ser utilizados métodos biofísicos, mais sofisticados, para caracterização da composição corporal e requerendo ainda validação, tais como os baseados na impedância bioeléctrica (BIO), na densitometria (DXA), ultrassonografia (US) e ressonância magnética (RM) (ver adiante).

Antropometria

As medidas antropométricas clássicas [utilizando instrumentos rudimentares como fita métrica, craveira e balança, e devendo ser interpretadas utilizando curvas e valores de referência adequados], têm especial utilidade com três objectivos essenciais:  diagnóstico de desnutrição fetal ao nascer, vigilância do crescimento e do estado de nutrição após nascimento e identificação precoce de desnutrição ou de sobrenutrição.

  • Peso, embora seja o parâmetro mais frequentemente utilizado, não fornece informação sobre os compartimentos corporais.
  • Comprimento, reflectindo o crescimento esquelético, é um indicador da massa magra; o rigor na sua medição (ver adiante) é essencial.
  • Perímetro cefálico (PC) indica o crescimento do cérebro; há que atender à possibilidade de ser afectado por factores relacionados com a morbilidade associada à  prematuridade, e não com a nutrição.
  • Perímetro braquial (PB) é fácil de medir; a sua avaliação longitudinal indica razoavelmente as variações da adiposidade corporal.
  • Pregas cutâneas estimando satisfatoriamente a gordura somática, não são, no entanto, representativas da gordura intrabdominal.
  • Ratio peso/comprimento [quer utilizando o índice de massa corporal, quer o índice ponderal] tem sido usada para avaliar a proporcionalidade corporal ao nascer. Estes e outros índices antropométricos, como a ratio perímetro braquial/perímetro cefálico (PB/PC) e as áreas da secção transversal do braço (por ultrassonografia ou por ressonância magnética), podem fornecer boa estimativa da composição corporal, embora necessitem de ser validados. (Consultar www.growthcalculator.org)

Marcadores bioquímicos

Os marcadores bioquímicos, devendo ser utilizados como complemento da antropometria, permitem avaliar o status sérico ou sanguíneo electrolítico e metabólico (essencialmente cloro, sódio potássio e glucose) assim como a nutrição em ferro, proteica (azoto ureico, pré-albumina sérica, proteína ligada ao retinol e transferrrina sérica) e óssea (calcémia, fosforémia, combinação fosfato sérico e fosfatase alcalina, fosfatase alcalina, assim como certos marcadores urinários).

Um valor baixo de azoto ureico pode indicar suprimento insuficiente de proteínas. Pela semivida curta, a pré-albumina e a proteína de ligação ao retinol são bons marcadores da nutrição proteica atual, mas podem ser afetados por fatores não nutricionais. A combinação da hipofosforémia com o nível sérico elevado de fosfatase alcalina é o melhor indicador bioquímico precoce de doença óssea metabólica.

Eis alguns dos resultados mais representativos:

  • Azoto ureico com valor baixo sugere suprimento proteico insuficiente. De salientar que valores moderadamente elevados são difíceis de interpretar, podendo indicar suprimento adequado de aminoácidos, baixo suprimento energético em relação ao proteico, ou intolerância aos aminoácidos.
  • Pré-albumina e proteína de ligação ao retinol, pela semivida curta, constituem bons marcadores de nutrição proteica actual: valores baixos <> suprimento proteico insuficiente. De salientar, contudo, que os valores poderão ser afectados, quer no contexto de inflamação/infecção, quer no contexto de carência em ferro, zinco ou vitamina A.
  • Transferrina sérica: tal como foi referido no âmbito do capítulo sobre anemia ferropénica, valor elevado <> carência em ferro, independentemente do estado de nutrição.
  • Cálcio, fósforo e fosfatase alcalina: os respectivos valores séricos são em geral utilizados para avaliação da mineralização óssea. Salienta-se que o valor baixo da fosforemia corresponde a elevada especificidade para o diagnóstico de doença metabólica óssea (DMO). Quanto à fosfatase alcalina, níveis > 900 U/L associam-se a especificidade de 71% e a sensibilidade de 88% para DMO, o que é considerado limitação para o referido diagnóstico; no entanto, valores de fosforémia  < 5,6 mg/dL (< 1,8 mmol/L) associados a fosfatase alcalina > 900 U/L, evidenciam sensibilidade de 100% e especificidade de 70%, o que confere a tal associação a característica de melhor marcador bioquímico precoce de DMO.
  • Marcadores urinários de cálcio e fósforo: classicamente, poderão ser utilizados os parâmetros ratio cálcio/creatinina, fosfatúria e reabsorção tubular de fosfato; na prática, importa salientar que os referidos valores são influenciados pelo tipo de alimentação, quer da mãe, quer do filho.

Medições e técnicas

  • Perímetro cefálico – Utilização de fita métrica inextensível de largura < 1 cm, bem aplicada em torno da cabeça, num plano – fronte, por cima das arcadas orbitárias – proeminência occipital – em posição que permita a leitura do valor máximo em três tentativas. Consultar curvas de crescimento.
  • Perímetro braquial (lado esquerdo) – Utilização de fita métrica inextensível de largura < 1 cm, a meia distância entre o acrómio e o olecrânio; o membro superior deve ficar pendente com flexão do antebraço sobre o braço garantindo ângulo de 90°. (Consultar tabelas de Frisancho e bibliografia).
  • Prega tricipital – Utilização de calibrador de espessura (por ex. calibrador de Harpenden) pregueando ou “pinçando” a pele previamente com os dedos, na região tricipital, a meia distância entre o acrómio e o olecrânio; a pressão exercida pelas pinças do calibrador deve ser constante.
  • Peso – Pressupõe-se que a balança deve estar correctamente calibrada.
  • Comprimento/estatura – Quer utilizando craveiras para bebés, quer estadiómetros para crianças maiores em quem se consiga a posição bípede estável, haverá necessidade de o observador ser ajudado por outra pessoa para evitar oscilação da bacia, garantindo membros inferiores em extensão completa, pés formando ângulo de 90° com as pernas sem arquear o dorso, cabeça no plano do tronco, e bordo inferior das órbitas no mesmo plano dos meatos auditivos.

Prognóstico e implicações futuras

Às condições GIG e macrossomia natal, independentemente de resultarem de diabetes materna, associam-se futuro risco de obesidade, de doença metabólica e de doença cardiovascular.

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Definições

É definido recém-nascido pré-termo todo aquele cujo parto se verifica antes das 37 semanas de gestação completas (menos de 259 dias) contadas a partir do 1º dia da última menstruação. A idade de gestação pode calcular-se de diversos modos, entre eles: contando o tempo a partir da data do primeiro dia da última menstruação (método que comporta probabilidade de erro ~ 1 a 2 semanas); por ecografia fetal (método que comporta probabilidade de erro ~ 3 a 6 dias); e por métodos clínicos estruturados do exame físico do próprio RN, os quais integram um conjunto de parâmetros morfológicos e neurológicos (por ex. método de Ballard, abordado anteriormente).

A noção de RN pré-termo engloba um grupo muito heterogéneo, quer no que respeita à grande variabilidade: a) do peso (< 1.000 g ou baixo peso extremo, < 1.500 g ou muito baixo peso, < 2.500 g ou baixo peso); b) da idade gestacional (entre 22 a 36 semanas); c) da relação peso/idade gestacional, traduzindo o comportamento do crescimento fetal, a qual pode ser adequada, deficiente ou restrita, e excessiva.

Actualmente, segundo a OMS e peritos internacionais, são considerados os seguintes subgrupos de idade gestacional em RN pré-termo, em semanas: 22-27 à pré-termo extremo; 28-31 à muito pré-termo; 32-36 à pré-termo moderado; 34-36 à pré-termo tardio.

A OMS recomenda que se incluam apenas os nados-vivos. Contudo, de acordo com os peritos, a inclusão dos nados-mortos somente contribuirá para modificação significativa dos números nos países em desenvolvimento.

Estes conceitos implicam a utilização de tabelas e curvas de crescimento utilizadas na prática clínica corrente, às quais se fez referência no capítulo sobre Introdução à Neonatologia.

Muitas vezes utiliza-se o termo de prematuro como sinónimo de pré-termo. De facto, sob o ponto de vista da linguística os termos são sinónimos; no entanto, hoje em dia, e por razões históricas, há a tendência para considerar a designação de pré-termo como mais correcta uma vez que, segundo a “designação mais antiga, “prematuro” era todo e qualquer RN com peso de nascimento < 2.500 gramas. No entanto, considera-se correcto utilizar o adjectivo derivado de prematuro para a designada situação clínica inerente: prematuridade.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com dados do INE e do Registo de RN de Muito Baixo Peso da Secção de Neonatologia da SPP, a incidência actual de prematuridade é cerca de 8,2% (dados de 2018). Dum modo geral, a referida incidência por país é tanto maior quanto menor o desenvolvimento socioeconómico; ou seja, países como a Índia e Brasil têm incidências ~ 20%. Nos EUA, país com largas assimetrias sociais, ronda o valor de 12%.

A estratificação dos RN pré-termo em subgrupos de idade gestacional e/ou de peso conduz necessariamente à noção de limite de viabilidade (definido como a idade gestacional a partir da qual a criança se poderá adaptar à vida extrauterina independentemente da idade de sobrevivência e do prognóstico a médio e longo prazo). O limite de viabilidade é abordado doutro modo por alguns neonatologistas e pediatras do desenvolvimento, os quais consideram tal conceito ligado à possibilidade de crescimento e desenvolvimento normais. Ou seja, trata-se de questão polémica, com implicações éticas.

Efectivamente, com o desenvolvimento da investigação em diversas áreas (farmacologia pré e pós-natal, bioquímica, biofísica, electrónica, etc.) tem sido possível, ao longo dos anos, um conhecimento cada vez mais profundo da fisiopatologia da prematuridade, o que tem permitido taxas de sobrevivência cada vez maiores; isto é, sobrevivem cada vez mais crianças com peso e idade gestacional cada vez mais baixos (nalguns centros com pesos de nascimento ~ 380 gramas e idades gestacionais ~ 21/22 semanas), o que poderá ter repercussões pejorativas sobre o desenvolvimento e qualidade de vida.

Nas últimas três décadas a taxa de sobrevivência de RN pré-termo de muito baixo peso aumentou muito nos países industrializados, designadamente nos Estados Unidos, Canadá, Japão e países do Norte da Europa; com efeito, nalguns destes países têm sido relatadas taxas de sobrevivência de 68% em RN com 23 e 24 semanas gestacionais, de 80% com 25 semanas, e de 91% com 28 semanas.

Em Portugal, onde se registaram progressos assinaláveis na assistência perinatal sobretudo nos últimos vinte anos – a que foi feita referência no Capítulo 1 – registaram-se, no ano de 2000, taxas de sobrevivência de ~ 25% em RN de 24 semanas, de ~ 80% em RN de 28 semanas, e de ~ 90% em RN de 32 semanas. Considerando o parâmetro peso, no mesmo ano, a taxa de sobrevivência em RN com peso de nascimento < 1.000 gramas foi ~ 60%.

Prognóstico

Estudos epidemiológicos internacionais relatam, como sequelas de prematuridade, prevalência de paralisia cerebral oscilando entre 10% e 15%, dificuldade escolar em cerca de 30% a 50% dos casos, perturbações associadas a défice de atenção e hiperactividade em cerca de 25%-30%, e perturbações psiquiátricas em cerca de 20% a 30%.

No nosso País, de acordo com os resultados do Grupo de Estudo do Recém-Nascido de Muito Baixo Peso da SNN/SPP, em 3099 sobreviventes ex-pré-termo aos 4 meses de idade foram apuradas sequelas de grau variável em 20% dos casos; os tipos de sequelas mais frequentemente identificadas foram as neurológicas (~ 57%), oftalmológicas (~ 31%), respiratórias (~ 28%) e digestivas (~ 8%).

Em síntese, os RN pré-termo evidenciam uma diversidade de problemas clínicos que exigem diagnóstico atempado e assistência em unidades de cuidados especiais ou intensivos, integradas em centros hospitalares com recursos humanos e técnicos (Hospitais de Apoio Perinatal Diferenciado/ HAPD) fazendo parte duma rede de cuidados regionalizados, englobando os cuidados primários/unidades de saúde familiar/centros de saúde, e os Hospitais de Apoio Perinatal (HAP).

Prevenção

Cabe aos cuidados primários uma acção imprescindível no campo da prevenção da prematuridade: educação para a saúde, programação da gravidez, apoio a grupos sociais de risco em que as necessidades de saúde não estão satisfeitas, identificação precoce de factores de risco (de parto prematuro, designadamente) e transferência atempada da grávida em tais condições para os centros com mais recursos, viabilizando o parto com maior segurança.

Apesar do desenvolvimento do sistema de transporte do RN em ambulâncias com equipa médica e de enfermagem – uma realidade em Portugal – propiciando terapia intensiva “em movimento”, os estudos epidemiológicos têm demonstrado que a morbilidade e mortalidade dos RN em risco (neste caso dos RN pré-termo) é muito menor quando o parto ocorre em hospital com unidade de cuidados intensivos médico-cirúrgicos, em comparação com situações que obrigam a transporte do RN para instituição com nível de cuidados mais diferenciado.

Salienta-se, em suma, que os cuidados a propiciar por uma equipa multidisciplinar ao “produto da concepção” devem ter início antes do nascimento e continuar na fase peri-parto e pós-parto. Idealmente, os médicos que irão prestar cuidados na fase pós-parto (clínicos gerais/médicos de família, pediatras – neonatologistas) assessorados por outros profissionais, devem participar na avaliação pré-natal, assim como os obstetras e especialistas em medicina materno-fetal devem ser informados sobre a evolução pós-natal. É este o “espírito da Perinatologia”.

De referir o papel dos pais na prestação de cuidados, ainda durante a hospitalização em obediência à filosofia da humanização e da prestação de cuidados centrados na família.

Factores etiológicos e exames preditivos de prematuridade

Apesar dos progressos realizados em investigação no âmbito da medicina materno-fetal, ainda há muitas incógnitas quanto aos factores etiológicos de prematuridade, sendo que o nascimento de um RN com peso deficitário, quer por encurtamento da gravidez, quer por restrição do crescimento fetal, traduz, de facto, certo grau de incapacidade no que respeita à previsão e prevenção de tais situações.

O Quadro 1 resume os principais factores associados a parto pré-termo de acordo com os resultados de estudos acumulados ao longo de décadas. De facto, numa perspectiva de promoção da saúde, de prevenção e de estratégias de intervenção, torna-se fundamental o seu conhecimento, salientando-se que os mesmos factores podem ser relacionados: com a situação de mãe/grávida com repercussões no feto; com o sistema de saúde (acessibilidade e cuidados prestados, ou não prestados, com implicações na detecção, ou não, de factores de risco; e com o nível do sistema socioeconómico em que os cidadãos estão integrados).

QUADRO 1 – Factores etiológicos de parto pré-termo.

Factores maternos
    • Infecção (infecção por Streptococcus do grupo B, Mycoplasma, Herpes simplex, sífilis, vaginose bacteriana, VIH, corioamnionite, etc.)
    • Pré-eclâmpsia
    • Doença crónica (drepanocitose, hipertensão arterial, cardiopatia cianótica ou outra)
    • Toxicodependência
    • Idade materna (< 16 ou > 35 anos)
    • Peso e estatura deficientes
    • Deficiente progressão de peso durante a gravidez
    • Esforço/trabalho excessivo
    • Hábitos de tabaco e álcool
    • Comportamento de risco
Factores uterinos
    • Anomalias uterinas (por ex. útero bicórnio)
    • Incompetência cervical
    • Anomalias do colo uterino
Placenta
    • Placenta prévia
    • Abruptio placentae
Factores fetais
    • Doença hemolítica
    • Gravidez múltipla
    • Anomalias congénitas
    • Hidropsia não imune
    • Infecção associada ou não a corioamnionite
Miscelânea
    • Traumatismo
    • Intervenção cirúrgica
    • Ruptura prematura de membranas
    • Poli-hidrâmnio
    • Cesariana

As situações de amnionite implicam admitir, até prova em contrário, infecção fetal; por sua vez, os estudos demonstraram que a verificação de corioamnionite está associada a risco aumentado de sépsis neonatal, problemas respiratórios (por pneumonia, por défice ou destruição de surfactante, por doença pulmonar crónica, etc.) hemorragia intraperiventricular (HIPV), leucomalácia periventricular (LPV), paralisia cerebral, etc..

Como instrumento prático de detecção de factores de risco (designadamente de prematuridade) refere-se o critério de avaliação de risco pré-natal de Goodwinn modificado, aplicável no âmbito dos cuidados de saúde primários. Assim, o apuramento de pontuação ≥ 3 implicará o encaminhamento da grávida para centro com recursos mais diferenciados (HAP ou HAPD).

Em 2020, os especialistas de medicina materno-fetal e perinatologistas dispõem dum conjunto de exames complementares sofisticados que, acrescentando valor ao grau de previsão de parto pré-termo, mesmo nos casos de gravidez assintomática e gemelar, permitem, por outro lado, programar e executar certas intervenções que podem minorar o risco. Trata-se de exames preditivos.

Citam-se sucintamente os seguintes:

  • Ecografia transvaginal para medição do comprimento cervical (o comprimento cervical encurta com a idade gestacional);
  • Biomarcadores: fibronectina fetal (fFN), marcadores inflamatórios/citocinas, como a IL-6 e IL1B;
  • Estudo do microbioma vaginal;
  • Estudo da alfa-macroglobulina placentar (PAMG-1);
  • Estudo do PIGFBP-1 (phosphorylated insulin-like growth factor binding protein 1), etc..

A combinação dos resultados dos biomarcadores com o valor do comprimento do pescoço contribuir para o incremento da eficácia preditiva.

Particularidades da fisiologia do RN pré-termo e implicações clínicas

O RN pré-termo constitui um exemplo paradigmático de RN de risco dependente, sobretudo, da imaturidade dos órgãos e das baixas reservas energéticas.

Como particularidades fisiológicas do RN pré-termo que estão na base, afinal, dos problemas clínicos clássicos e das possíveis sequelas, citam-se as principais:

  • Pulmão imaturo com défice da cartilagem dos pequenos brônquios e imaturidade dos sistemas produtores de surfactante pulmonar condicionando diminuição da capacidade residual funcional;
  • Hipodesenvolvimento muscular com hipotonia;
  • Caixa torácica de consistência diminuída por incompleta ossificação das costelas;
  • Maior resistência da via aérea ao fluxo aéreo (por menor calibre da via aérea);
  • Risco aumentado de infecção grave pela imaturidade do sistema imunológico em diversas vertentes;
  • Imaturidade dos mecanismos homeostáticos levando a vulnerabilidade no equilíbrio hidroelectrolítico e na termorregulação;
  • Diminuição da actividade reflexa e da coordenação motora (sucção-deglutição) dificultando a alimentação;
  • Imaturidade de diversos sistemas enzimáticos (por ex. antioxidantes, da glicogenólise, da gluconeogénese, etc.) com risco elevado, nomeadamente de lesões teciduais oxidantes e alterações metabólicas;
  • Imaturidade do sistema nervoso central (SNC);
  • Imaturidade da autorregulação do fluxo sanguíneo cerebral.

Tendo sido abordado anteriormente o conceito de viabilidade, caberá referir, a propósito de desenvolvimento do SNC, que após a 24ª semana verifica-se um incremento do processo de organização estrutural traduzido pelo desenvolvimento das sinapses, diferenciação de dendritos e axónios, e apoptose (morte celular programada). O “pico” de desenvolvimento coincide com período crítico ou de maior vulnerabilidade às noxas ou factores potencialmente “agressivos”.

Como exemplo de possíveis noxas é fundamental citar o papel potencialmente lesivo do ambiente das unidades de cuidados intensivos, tipificado, por exemplo pelas técnicas invasivas que originam dor.

Com efeito, está demonstrado que experiências repetidas de dor originam diversos tipos de respostas fisiológicas em vários órgãos; ao nível do SNC, um dos efeitos é a libertação de neurotransmissores excitatórios com efeito neurotóxico actuando nas células, alterando a sua estrutura, isto é, lesando-as.

As áreas mais vulneráveis do encéfalo são o cerebelo e o lobo frontal (com períodos críticos cerca da 31-32 semanas), a estrutura designada por placa subcortical (com período crítico entre as 22 e 36 semanas), os gânglios da base, e o hipocampo. Como consequências futuras poderão surgir alterações motoras, problemas cognitivos, de comportamento e de atenção.

A imaturidade do SNC do RN pré-termo determina uma diminuição das capacidades autonómicas e de autorregulação, traduzida por maior dificuldade de resposta a situações de estresse e a estímulos adversos do meio ambiente com repercussões na homeostase e, por sua vez, no próprio desenvolvimento do SNC.

No que respeita à imaturidade e desenvolvimento sensoriais, cabe referir algumas especificidades que implicam determinadas intervenções nas unidades onde os RN pré-termo estão hospitalizados, a que adiante se fará referência:

  • O feto crescendo em ambiente intrauterino não está exposto à luz, sendo que a maturação do sistema visual se processa numa fase tardia da gestação; o feto-pré-termo, assumindo a vida extrauterina por gravidez encurtada é, pois, exposto à luz em condições/período etário de desenvolvimento de maior vulnerabilidade;
  • O feto, relativamente protegido do ruído externo, escuta predominantemente a voz e os batimentos cardíacos maternos; tem capacidade para responder activamente aos sons a partir da 25ª semana e, a partir da 32ª semana tem capacidade de resposta de “atenção “ ou de “alerta”; o feto assumindo a vida extrauterina após gravidez encurtada, é confrontado de modo abrupto nas unidades onde é hospitalizado com ruído de elevada intensidade.

Principais problemas clínicos no RN pré-termo

Os principais problemas clínicos surgidos no RN pré-termo podem ser divididos pela sua génese em função de órgãos e sistemas. Procede-se a uma enumeração sucinta dos mesmos, tendo em conta que a abordagem mais aprofundada de alguns deles é feita noutros capítulos.

Respiratórios

Os problemas respiratórios mais típicos da prematuridade são:

  1. Depressão perinatal no pós-parto por deficiente adaptação extrauterina;
  2. DMH por imaturidade pulmonar;
  3. DBP;
  4. Imaturidade dos mecanismos de automatismo respiratório, particularmente para a apneia decorrente de processo inflamatório/infeccioso do corpo carotídeo com consequente alteração da sensibilidade do mesmo aos estímulos a que está sujeito.

Seguidamente é dada ênfase à apneia.

Apneia

A chamada apneia do RN pré-termo é uma situação clínica surgindo em episódios de frequência variável, caracterizada por pausas dos movimentos respiratórios durante mais de 20 segundos, acompanhadas de alterações fisiológicas como cianose e bradicárdia (ou durante menos de 20 segundos associadas às referidas alterações).

De acordo com a verificação, ou não, de fluxo de ar nas vias respiratórias, a apneia do pré-termo classifica-se em 3 tipos:

1) apneia central, em que se verifica simultaneamente interrupção dos movimentos respiratórios e do fluxo de ar; pode surgir, por ex., por imaturidade do centro respiratório ou por lesão do SNC;

2) apneia obstrutiva, resultante de obstrução das vias respiratórias (por ex. por colapso das vias respiratórias face à fraqueza muscular das mesmas, por secreções, etc.), o que origina interrupção do fluxo de ar, continuando a verificar-se movimentos de expansão e retracção torácicos;

3) apneia mista, mais frequente, e surgindo em cerca de 50%-70% dos casos em que, para além dos anteriormente citados dois mecanismos [1) e 2)], outros factores etiológicos poderão estar presentes: anemia, alterações metabólicas, infecção, etc..

No âmbito do diagnóstico diferencial, para além da observação clínica cuidadosa e análise dos factores possivelmente implicados, torna-se fundamental observar (idealmente em simultâneo, mas nem sempre possível, o traçado cardiorrespirográfico (monitorização da frequência cardíaca e respiratória concomitantemente com a oximetria de pulso – SpO2) e determinação do CO2 exalado através do capnógrafo. A monitorização respiratória pode fazer-se com o clássico monitor de movimentos respiratórios, vulgo “colchão de apneia”.

O tratamento da apneia inclui, para além do tratamento da causa, o suporte ventilatório e o uso de xantinas. As mais utilizadas são a aminofilina e a cafeína.

  1.  Aminofilina: a dose de impregnação é 5-6 mg/kg IV ou PO; a administração IV faz-se com auxílio de bomba de perfusão em tempo > 20 minutos; a dose de manutenção é 2 mg/kg/dose (3-4 doses diárias) IV ou PO; a administração IV deve ser efectivada através de bomba em tempo > 5 minutos. Deve vigiar-se a FC, interrompendo-se o fármaco se FC > 180/min. Deve proceder-se a doseamento sérico mantendo níveis ~ 7-10 mcg/mL. Se o nível for baixo, deve administrar-se +1 mL/kg para obter incremento de +2 mcg/mL. Manifestações de toxicidade, para além da taquicárdia, incluem arritmia, convulsões e hemorragias intestinais;
  2. Citrato de cafeína: a dose de impregnação é 20 mg/kg IV ou PO; a dose de manutenção, a iniciar 24 horas após a dose de impregnação, é 5-12 mg/kg IV ou PO, sendo que se deve proceder a minibolus inicial em > 10 minutos, de 5 mg/kg/dose, aumentando-se de 72 em 72 horas, +1 mg/kg/dia até se atingir máximo de 12 mg/kg/dia.

Dadas as repercussões da hipoxémia e hipercápnia resultantes dos episódios de apneia, entre outras, existe risco de lesão do SNC em função da duração e frequência dos mesmos.

Uma nota sobre os resultados de estudos demonstrando o papel benéfico da música nos padrões de sono, na tolerância alimentar e nos sinais vitais.

Intestinais e nutricionais

O problema principal é a enterocolite necrosante (ECN), tópico abordado anteriormente, em capítulo próprio. Por outro lado, as especificidades maturativas do sistema digestivo comportam maior risco de problemas nutricionais.

Renais

O problema principal diz respeito à lesão renal aguda (LRA), descrita anteriormente na Parte XIX, sobre Nefro-Urologia.

Cardiovasculares

Os problemas principais podem ser sistematizados do seguinte modo:

Persistência do canal arterial (PCA) ou persistência do ductus arteriosus (PDA)

No RN pré-termo principalmente no RNMBP existe risco elevado de PCA sendo que vários estudos indicam taxas superiores a 50% em RN com peso de nascimento inferior a 800 g. A gravidez encurtada e a síndroma de dificuldade respiratória constituem os dois factores etiológicos mais importantes: nestas situações, existe resistência vascular pulmonar aumentada, respectivamente por hiperplasia da musculatura arterial pulmonar e por PaO2 reduzida, do que resulta o não encerramento, estabelecendo-se um shunt esquerda (E) → direita (D). O volume de ejecção do ventrículo esquerdo aumenta proporcionalmente ao grau do shunt E → D pelo canal arterial, com consequente dilatação e aumento da pressão da aurícula e ventrículo esquerdos e, secundariamente, descompensação cardíaca e edema pulmonar (ver capítulo próprio na Parte XXII sobre Cardiologia). Salienta-se a este propósito que:

  • o tono intrínseco do ductus no pré-termo em relação ao RN de termo evidencia débil capacidade contráctil devido à imaturidade das isoformas da miosina do músculo liso;
  • no processo de maturação do ductus verifica-se a influência de determinados genes;
  • no RN pré-termo as concentrações séricas de prostaglandinas E2 são mais elevadas do que no RN de termo, contribuindo para manter a permeabilidade do ductus naquele após o nascimento.

As manifestações clínicas que levantam a suspeita de PCA no RN pré-termo são, a partir do 4º-5º dia de vida: pulsos femorais amplos, precórdio hiperactivo, sopro sistólico ou contínuo (subclavicular esquerdo, por vezes com irradiação para o dorso), bradicárdia, crises de apneia e aumento das necessidades ventilatórias.

O diagnóstico deve ser confirmado por ecografia cardíaca com doppler. O tratamento consiste na restrição hídrica (suprimento hídrico não superior a 120 ml/kg/dia) e, caso não haja contra-indicação, ibuprofeno (dose inicial de 10 mg/kg IV, seguindo-se 5 mg/kg IV 24 e 48 horas após a dose inicial).

O ibuprofeno, evidenciando menor probabilidade de disfunção renal, menor repercussão sobre o débito sanguíneo na mesentérica, maior eficácia na autorregulação do débito sanguíneo cerebral e permitindo o encerramento em > 80% dos casos de ductus patente no RNMBP, oferece, pois, vantagens relativamente à indometacina, pelo perfil farmacológico mais seguro.

 Pode-se, contudo, em alternativa continuar a utilizar esta última com a seguinte posologia: 0,2 mg/kg/dose de 12-12h no total de 3 doses; e 0,1 mg/kg/dose de 24-24h no total de 6 doses no RN com < 1.000 g). O seu emprego implica precaução e vigilância clínica e laboratorial, pela possibilidade de disfunção hepática e renal, assim como de hemorragia digestiva.

Nos casos de PCA hemodinamicamente significativa sem resposta às medidas anteriores, há indicação para o encerramento cirúrgico-laqueação.

A questão do tratamento cirúrgico (laqueação) versus tratamento conservador é hoje matéria de debate entre os especialistas, dado que em determinados estudos se demosnstrou a associação de laqueação do ductus a maior risco de doença pulmonar crónica, de retinopatia e de alterações neurossensoriais.

Nos primeiros 5 dias de vida em RN pré-termo, a determinação sérica seriada do BNP (péptido natriurético do tipo B) constitui um biomarcador útil para definir a estratégia terapêutica nas situações de ductus arteriosus hemodinamicamente significativo. Determinados centros utilizam os seguintes critérios- “picos” pelas 24-48 horas de vida: se ~ 250 pg/mL à indicação de tratamento médico; se ~ 2.000 pg/mL à indicada laqueação cirúrgica.

Hipertensão arterial

Para fins práticos considera-se hipertensão (sistólica/diastólica), respectivamente: > 100/70 mmHg no RN de termo; e > 90/60 mmHg no RN pré-termo (0-7 dias). Tal situação pode constituir complicação do emprego de certos fármacos, de cateterismo umbilical ou de displasia broncopulmonar (DBP).

Hipotensão arterial

Mais frequente do que a hipertensão arterial, pode ser secundária a hipovolémia, disfunção cardíaca (por vezes associada a PDA), hipoxémia ou infecção sistémica, levando a vasodilatação. Em geral, considera-se como limite inferior de normalidade da pressão média durante o 1º dia pós-natal, o valor igual à idade gestacional em semanas. Como regra, pelo 3º dia, > 90% dos RN pré-termo com idade gestacional < 26 semanas têm uma pressão média > 30 mmHg.

Neurológicos

Os problemas neurológicos hemorragia intraperiventricular/HIPV e leucomalácia periventricular/LPV) são abordados adiante, em capítulos próprios.

Hematológicos

Os principais problemas hematológicos incluem a anemia e a hiperbilirrubinémia. (ver adiante)

Oftalmológicos

O principal problema oftalmológico associado à prematuridade – retinopatia – designadamente a RN com < 1.500 gramas e < 32 semanas, foi abordado na Parte XXVI, em capítulo próprio, “Doenças da retina”.  

Regulação térmica

Os RN pré-termo são especialmente susceptíveis à hipotermia e hipertermia. Este tópico foi analisado anteriormente, nesta Parte XXXI, no âmbito do capítulo sobre “Adaptação fetal à vida extrauterina”.

A propósito da regulação térmica, é importante definir o conceito de ambiente térmico neutro (ou de termoneutralidade): o ambiente com variação de temperatura tal que a temperatura corporal central/interior é mantida dentro da normalidade, com uma taxa metabólica mínima (medida pelo consumo de oxigénio). Esta zona de termoneutralidade pode variar com a idade gestacional, a idade pós-natal, o tamanho corporal e com a circunstância de o RN estar ou não vestido.

Cuidados ao RN pré-termo (RNPT) de muito baixo peso (MBP)

Bloco de partos

Na sequência do que foi descrito a propósito dos cuidados gerais a prestar ao RN, nesta alínea são focados aspectos particulares da assistência ao RN PT de MBP.

No pressuposto da vigilância pré-natal desejável, identificando risco de parto pré-termo, idealmente a mesma deverá realizar-se num hospital de apoio perinatal diferenciado (HAPD), local onde existem condições logísticas, técnicas e humanas (equipa multidisciplinar especializada e unidades de cuidados intensivos, quer neonatais, quer para a puérpera). Tal pressupõe transferência da grávida (reitera-se esta estratégia de grande importância) em tempo oportuno para a referida instituição (transporte in utero). Continua actual uma frase muito expressiva que traduz esta filosofia: “A melhor incubadora de transporte é o útero materno”.

Os progenitores deverão ser informados sobre a situação clínica materno-fetal e, também em condições ideais desejáveis, deverá ser-lhes propiciada uma visita prévia ao referido hospital de acolhimento.

Considerando a elevada probabilidade de mais difícil adaptação à vida extrauterina e risco elevado de asfixia, o parto implica a assistência por equipa de neonatologistas treinados em intensivismo, obedecendo ao lema da “execução de manobras cuidadosas e não traumatizantes em ambiente de termoneutralidade”.

De acordo com estudos recentes, no pré-termo com < 28 semanas, estando indicados todos os procedimentos no pós-parto imediato já descritos anteriormente com a finalidade de evitar as perdas térmicas, os peritos recomendam que em tal circunstância não se proceda à secagem da pele.

No que respeita à laqueação do cordão umbilical, prevendo a eventualidade de ulterior cateterismo de vasos, deverá providenciar-se um coto mais comprido do que o habitual.

De acordo com o capítulo atrás referido sobre reanimação na sala de partos, dado que na maioria das vezes os RN pré-termo no pós-parto imediato não necessitam de reanimação, mas de estabilização, os peritos recomendam que seja aplicada a norma quanto ao tempo de laqueação: não inferior à idade de 1 minuto; com efeito, diferindo o tempo da laqueação tem também outras vantagens como: garantir maiores reservas de ferro, pressão arterial mais estável, diminuição da necessidade de utilização de inotrópicos, assim como de transfusões de sangue. Chama-se, entretanto, a atenção para o facto de a clampagem do cordão umbilical, antes do primeiro movimento respiratório, poder originar bradicárdia e diminuição do débito cardíaco.

Estando a equipa da UCIN previamente avisada, o transporte do RN para a mesma, após estabilização clínica, deverá ser feito em incubadora de transporte adequada depois de o mesmo ser mostrado aos progenitores, devidamente informados sobre a situação.

Admissão na UCIN

Após admissão na UCIN procede-se, sob fonte de calor, à aplicação de eléctrodos para monitorização cardiorrespiratória e de temperatura cutânea, braçadeira de esfigmomanómetro electrónico para determinação não invasiva de pressão arterial, de terminais “em pinça” de oxímetro de pulso para avaliação não invasiva da oxigenação (saturação da Hb em O2/SpO2) e à instalação de acesso venoso periférico em diversas modalidades (cãnula, cateter percutâneo, etc.), quer para fluidoterapia, quer para colheita de sangue para análises em geral.

De referir, no entanto, que a tendência actual, com o apoio das novas tecnologias, é utilizar tanto quanto possível, métodos não invasivos. Para a avaliação da gasometria por método não invasivo pode utilizar-se o monitor por método transcutâneo através de eléctrodos sobre a pele para determinação da pressão transcutânea de O2 e CO2. Com o desenvolvimento do oxímetro de pulso, o método transcutâneo para PO2 e PCO2 tem sido progressivamente menos usado.

Em circunstâncias especiais está indicado o cateterismo dos vasos umbilicais: da veia, para fluidoterapia ou colheita de sangue para análises em geral, e/ou de uma das artérias para colheita de sangue e gasometria e/ou determinação contínua da pressão arterial por método invasivo. O cateterismo arterial umbilical não é considerado procedimento urgente mas, quando incicado, é aconselhável nas primeiras horas de vida).

Dos procedimentos iniciais faz ainda parte a colocação de saco colector de urina para cálculo da diurese (ou como alternativa – fralda cujo peso se conhece – que é periodicamente pesada para dedução do débito urinário).

Os RN com bom estado geral, sem dificuldade respiratória e com peso de nascimento > 2.000 gramas, poderão eventualmente ser mantidos em berço aquecido durante 6-8 horas com monitorização da frequência respiratória, cardíaca e oximetria de pulso (evitando SpO2 < 90%).

Nos casos de RN com peso de nascimento < 2.000 gramas, com sinais evidentes de doença (mau estado geral, choque, dificuldade respiratória, etc..) deverão ser colocados em incubadora com temperatura ambiente adaptada ao peso, servocontrolada ou não, ou em berços sofisticados de cuidados intensivos sob fonte de calor servocontrolada. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Temperatura recomendável do micro-ambiente da incubadora.

Peso (gramas)Temperatura
< 100035-36 ºC
1000-149934-35 ºC
1500-249933-34 ºC
2500-349932-33 ºC
≥ 350031-32 ºC


Para monitorização da temperatura cutânea do RN, deve ser aplicado sensor sobre a pele do RN. Dependendo do estado clínico (por ex. em situações de choque), poderá estar indicada a aplicação de dois eléctrodos para avaliação da temperatura diferencial: um, ao nível do hipocôndrio direito/área hepática, representativo da temperatura central; e outro, na planta do pé, afastado do primeiro, representativo da temperatura periférica.

Nota sobre temperatura cutânea servocontrolada: através de um equipamento sofisticado de software implicando conexão entre fonte de calor e sensor aplicado sobre a pele, a fonte de calor poderá variar automaticamente a intensidade da energia para garantir a temperatura cutânea desejada.

Nos berços sofisticados com sistema de aquecimento radiante superior (com a designação corrente de incubadoras “abertas”) ou nas incubadoras “convencionais”, possuindo sistema de temperatura servocontrolada: em função da temperatura que se deseja para a pele do RN (com sensor aplicado), e programada previamente, é gerada automaticamente a temperatura do microambiente que está indicada.

Estadia na UCIN

O processo clínico de todo e qualquer RN saudável (acompanhando a mãe ou não, pré-termo ou não), admitido em qualquer unidade neonatal, engloba sempre as folhas de registo da história clínica (anamnese, exame objectivo e diário clínico), folha de registo de ocorrências da equipa de enfermagem e o Boletim de Saúde Infantil que acompanhará a criança após a alta.

No caso do RN pré-termo admitido em UCIN, para além dos registos mencionados, existem outros mais específicos, destacando-se os seguintes: – Folha de registo de parâmetros de cuidados intensivos pela equipa de enfermagem;

  • Folha de prescrição médica;
  • Gráfico de curvas de crescimento intrauterino;
  • Gráfico de curvas de percentis para vigilância a longo prazo, com utilidade em RN com peso de nascimento < 1.000 gramas, para avaliação do peso, comprimento e perímetro cefálico, em função da idade pós-concepcional segundo Fenton (Figura 1);
  • Gráfico de evolução ponderal para RNMBP, AIG e LIG, segundo Ehrenkranz (Figura 2);
  • Folha de assistência ventilatória;
  • Folha de avaliação da idade gestacional (método de Ballard).

Particularidades na assistência ao ex-RN pré-termo na UCIN

De facto, apesar dos progressos quanto a diminuição relativa de sequelas motoras em crianças ex-RN pré-termo submetidos a terapia intensiva, regista-se uma elevada incidência doutro tipo de sequelas, nomeadamente de problemas de escolaridade, comportamentais e de atenção, relacionáveis com noxas ambientais durante o período neonatal.

Considerando determinados aspectos da fisiologia do RN pré-termo atrás mencionados, é importante reforçar a importância da modificação de certas rotinas, tentando que certos procedimentos e atitudes sejam minimamente invasivos; o objectivo último é promover um neurodesenvolvimento global harmónico. Eis alguns exemplos práticos:

  • A UCIN clássica é um ambiente muito iluminado, agradável como ambiente de trabalho para os profissionais, mas potencialmente lesivo para o desenvolvimento adequado do RN pré-termo. Por isso, é recomendável utilizar uma cobertura de pano sobre a incubadora para reduzir a intensidade luminosa e reduzir a intensidade da luz de toda a unidade no sentido de tentar criar a alternância do ciclo dia-noite a que o RN se irá habituando, susceptível de, por exemplo, aumentar o período de sono nocturno e, consequentemente, proporcionar ganho ponderal mais favorável;
  • A UCIN clássica é também um ambiente com níveis de ruído muito elevados: para além do ruído de fundo, há que ter em conta períodos em que o mesmo aumenta – visitas médicas, admissão de doentes, passagem de turno da equipa de enfermagem, etc.. Assim, há que reduzir o ruído que cada componente da equipa “produz” involuntariamente. Tal implica, contudo: esforço de colaboração por toda a equipa, necessidade de formação, sensibilização para o problema e condições logísticas especiais (designadamente amplo espaço das unidades, construídas com material que absorva o ruído).

A atitude sistemática de poupar o RN (e especialmente o RN pré-termo) a estímulos desnecessários e a estresse poderá contribuir para um neurodesenvolvimento mais harmónico (continua actual o aforismo “primum non nocere”). Tal atitude pode ser tipificada no programa integrado conhecido pela sigla NIDCAP (Newborn Individualized Developmental Care Assessment Program) desenvolvido por Als em 1984. Trata-se de medidas simples de cuidados individualizados com o objectivo essencial de reduzir o manuseamento intempestivo e estimular a participação dos pais nos cuidados.

FIGURA 1. Valores de referência quanto a evolução ponderal para as primeiras semanas pós-natais. (Segundo Ehrenkranz RA, 1999)

FIGURA 2. Valores de referência para curto prazo, após alta hospitalar. (Segundo Fenton TR, 2003)

São descritos (e alguns, reiterados) a seguir, de forma necessariamente resumida, alguns dos aspectos genéricos deste programa:

  • Colaboração dos pais nos cuidados personalizados (nomedamente de higiene e alimentação) em sintonia com as equipas médica e de enfermagem, as quais se deverão manter estáveis para garantia de melhor relacionamento;
  • Meio ambiente calmo e tranquilo (já referido atrás);
  • Contacto pele com pele- mãe/filho precoce e prolongado sempre que as circunstâncias o permitam, no hospital e após a alta, com aleitamento materno exclusivo (procedimento que faz parte do Método Canguru);
  • Posição adequada do RN durante o sono, alimentação, banho e procedimentos tendo em vista rendibilizar as respectivas competências;
  • Necessidade de providenciar determinados apoios em certas circunstâncias tais como mudança de posição, tentativa de despertar ou tentar adormecer, início ou fim de cuidados ou procedimentos (por ex. providenciar aumento da FiO2, contenção, sucção não nutricional, etc.);
  • Organização de procedimentos ao longo das 24 horas, tentando preservar os períodos de sono, evitando multiplicação de procedimentos invasivos (por ex. reduzir, gerir, racionalizar, sempre que possível, o número de colheitas de sangue ao longo do dia);
  • Proceder a intervenções mais invasivas com o apoio de duas pessoas.

Em suma, os estudos até hoje divulgados sobre o NIDCAP aplicados ao RNMBP apontam para resultados positivos no que respeita, nomeadamente, a menor duração da oxigenoterapia, menor incidência de doença pulmonar crónica, redução da estadia hospitalar, e melhores índices de neurodesenvolvimento.

  • Antes da alta, deve proceder-se aos rastreios da audição e da anemia da prematuridade, neste último caso, com a determinação da hemoglobina e hematócrito;
  • Imediatamente antes da alta, em crianças elegíveis e durante a estação da infecção por vírus sincicial respiratório/VSR, deve proceder-se à administração de anticorpo monoclonal (palivizumab) como medida profiláctica, continuando ulteriormente o esquema de administração em regime ambulatório;
  • Dum modo geral, considera-se que a criança poderá ter alta após resolução dos problemas clínicos, com peso ~ 1.800-2.000 gramas, com incrementos estáveis de peso de cerca de 30 gramas/dia;
  • Nas crianças com peso de nascimento < 1.500 gramas ou idade gestacional < 30 semanas deve proceder-se ao exame oftalmológico para rastreio da retinopatia da prematuridade.

Notas importantes sobre o ex-RN pré-termo após a alta hospitalar  

  • Deve seguir-se o calendário vacinal aplicado a crianças nascidas de termo, pressupondo estabilidade clínica. Na prática, aos 2 meses de idade cronológica (pós-natal), independentemente do peso de nascimento ou idade gestacional. A propósito, aconselha-se a consulta do capítulo sobre Imunização – Princípios básicos, na Parte XXIX.
  • Tendo em conta que existe risco elevado de síndroma de morte súbita do lactente (SMSL) nas crianças com antecedentes de prematuridade, importa que a equipa assistencial/médico assistente esclareçam, sem alarme, mas com realismo, os pais e família, chamando a atenção, designadamente para os seguintes aspectos simples da maior relevância numa perspectiva preventiva: promover o aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses, evitar a posição prona durante o sono e evitar o tabagismo.
  • Apesar de os pais da criança serem portadores de um relatório clínico sobre o período de internamento, e sendo a referida criança seguida no âmbito dos cuidados primários (por pediatra e/ou médico de família), afigura-se de grande utilidade a troca de ideias, directa e personalizada, entre o pediatra neonatologista hospitalar e o futuro médico assistente.

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Aspectos epidemiológicos e importância do problema

Durante milénios, a gestação múltipla foi quase sinónimo de bigemelaridade (encarada como uma excepção frequente) e apenas ocasionalmente como trigemelaridade (uma raridade). Em contextos de elevadas taxas de fecundidade, natalidade e mortalidade infantil (particularmente neonatal), a gestação múltipla era essencialmente um problema obstétrico, devido sobretudo à muito frequente apresentação não cefálica de um ou dois dos fetos, condicionante de maior morbilidade e/ou mortalidade perinatal e puerperal.

A redução da fecundidade e da natalidade na segunda metade do século XX acompanhou-se de maternidades mais tardias e do desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida. A disseminação destas técnicas provocou no final do século XX uma verdadeira “epidemia de multigemelaridade”, assistindo-se inclusivamente a gestações múltiplas de alto grau (quádruplas, quíntuplas, mesmo até séptuplas), de morbilidade desconhecida até então.

Em Portugal, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), desde meados da década de 1980, tem-se assistido ao aumento da frequência da gestação múltipla, não apenas em número absoluto, mas sobretudo em número relativo. O peso das gestações trigemelares, em particular, aumentou significativamente (em número absoluto de 8 em 1987, para 41 em 2001 versus respectivamente no que respeita a gestações duplas: 952 para 1277) em concomitância com o decréscimo da natalidade.

Do mesmo INE, relativamente ao período entre 2001 (correspondendo a 112.774 nados-vivos) e 2014 (ano em que foram registados 82.367 nados-vivos), através da publicação Estatísticas Demográficas, extraímos os seguintes achados: “- o número de nados-vivos resultante de partos gemelares aumentou de 2,4% para 2,7% do total de nados-vivos, entre 2001 e 2006; – a proporção de nados-vivos gemelares foi mais evidente nas mães com idades mais elevadas; – a proporção de nados-vivos gemelares de mães com menos de 30 anos de idade, face ao total de nados-vivos de mães no mesmo grupo etário, rondou os 2% no período 2001-2006 (2,1% em 2006), enquanto a mesma relação nas mães com idades iguais ou superiores a 30 anos oscilou entre os 2,8% (em 2001) e os 3,4% (em 2004), situando-se nos 3,2% em 2006; – entre 2009 e 2014, a proporção de nados-vivos resultantes de partos gemelares aumentou de 3,0% para 3,2% do total de nados-vivos, assumindo em 2014 valores superiores nas idades acima dos 30 anos.”

Enfim, na viragem para o século XXI, tem havido uma grande reflexão sobre o problema das gestações múltiplas de alto grau e a sua prevenção, no sentido de evitar a morbilidade e mortalidade inerentes, e elaborar novos protocolos. Este propósito tem suscitado questões éticas, ainda longe de estar superadas. Actualmente, parece que este ciclo “epidémico” está a chegar ao fim, tendo a Medicina Reprodutiva tirado ilações com base nos resultados de estudos epidemiológicos e em certas restrições impostas pela legislação, designadamente quanto ao número de embriões implantados.

Fisiopatologia e risco fetal na gestação múltipla

A gestação múltipla espontânea (não devida a aplicação de técnicas de concepção assistida) deve-se a um de dois mecanismos:

  • A fertilização e implantação de mais do que um óvulo libertado no mesmo ciclo ovulatório; ou
  • A duplicação do embrião resultante da fertilização de um único óvulo, ocorrida nos estádios precoces do seu desenvolvimento (pré ou pós-implantação).

Do primeiro processo, resultam gémeos dizigóticos (ou polizigóticos); do segundo, gémeos monozigóticos.

As gestações múltiplas induzidas por apoio médico para a concepção (ou iatrogénicas) correspondem à implantação simultânea de mais do que um embrião, resultantes da fertilização de mais do que um óvulo, qualquer que seja o método de fertilização assistida utilizado (indução da ovulação ou implantação de embriões obtidos por fertilização in vitro). É possível que ocorra a separação espontânea de embriões após a sua implantação artificial, mas é uma ocorrência muito rara.

Os gémeos polizigóticos possuem quase sempre placentas independentes, pois cada embrião implanta-se separadamente no endométrio. São, pois, gémeos pluricoriónicos. Existem, no entanto, relatos de fusão da camada externa do trofoblasto de dois embriões dizigóticos, levando à formação de uma gestação monocoriónica biamniótica.

Os gémeos monozigóticos podem partilhar uma única placenta ou possuir placentas individuais, o mesmo acontecendo com os amnion (sacos amnióticos), conforme o momento da separação dos dois embriões duplicados.

Os gémeos monozigóticos podem, portanto, ser mono ou policoriónicos e gémeos monocoriónicos podem ou não partilhar um mesmo saco amniótico. Caso a separação ocorra até ao 3º dia após a fertilização, terão dois amnion (mesmo que a implantação muito próxima das placentas no endométrio possa sugerir uma única placenta) e dois corion; as separações entre o 4º e o 7º dia levam a gestações monocoriónicas biamnióticas e, após o 7º dia, a gemelaridades monocoriónicas monoamnióticas.

Os gémeos monozigóticos em que a separação dos embriões é incompleta, por ser ainda mais tardia (após o 12º dia), são denominados “gémeos siameses”; trata-se de gémeos, sempre monocoriónicos e monoamnióticos.

Em suma, e em termos práticos de classificação, a bigemelaridade pode classificar-se sob os pontos de vista genético e morfológico:

  • geneticamente, como monozigótica ou di/polizigótica;
  • morfologicamente, como bicoriónica biamniótica (2 placentas e 2 sacos, ou fusão palcentar e 2 sacos), monocoriónica biamniótica (1 placenta e 2 sacos), ou monocoriónica monoamniótica (1 placenta e 1 saco).*

*Em termos de “prevalência global de gémeos” podem ser estabelecidos os seguintes dados: monozigóticos ~ 30%; dizigóticos ~ 70%; monocoriónicos ~ 10%; bicoriónicos ~ 90%; mesmo género 65%; género diferente ~ 35%. Os monocoriónicos são do mesmo género; os bicoriónicos podem ser do mesmo género ou de géneros diferentes.


Estas duas classificações não são totalmente sobreponíveis; isto é, embora possa ser quase certo que gémeos monocoriónicos monoamnióticos são monozigóticos, a multicorionicidade (particularmente a bicorionicidade) não é garantia de polizigotia. (ver adiante corionicidade)

A divulgação das técnicas de reprodução assistida não apenas aumentou o número absoluto de gestações múltiplas e o seu grau, mas também modificou as suas características genéticas, incrementando desproporcionadamente as gestações múltiplas heterozigóticas.

As gestações múltiplas, mono ou multizigóticas, apresentam diferente morbilidade, sendo superior nos casos de monozigotia. O aumento da proporção de multizigotias (de menor risco inerente) veio melhorar alguns dos indicadores globais de sucesso das gestações múltiplas, particularmente as bigemelares, dando uma melhoria do risco global da multigemelaridade.

Os problemas clínicos específicos que a gemelaridade coloca à equipa de perinatologia prendem-se com quatro aspectos fundamentais:

  1. A monocorionicidade;
  2. As anomalias congénitas;
  3. A prematuridade; e
  4. As exigências logísticas.

Embora todas as gestações múltiplas sejam potencialmente de maior risco do que as gestações únicas, as gestações gemelares monozigóticas, particularmente as monocoriónicas, são as que envolvem maior risco.

A partilha da placenta nas gestações monocoriónicas é um dos principais condicionantes de risco acrescido para os fetos. O maior destes é a transfusão feto-fetal: um dos gémeos recebe mais sangue da placenta do que o outro, devido a desequilíbrio nas anastomoses entre os vasos da placenta. Esta complicação parece ocorrer em 5% a 25% das gestações bigemelares monocoriónicas (particularmente nas biamnióticas), em qualquer fase da gestação. Pode haver quadros crónicos ou agudos, conforme o tempo decorrido entre o início do desequilíbrio hemodinâmico e o fim da gestação.

As consequências para o feto receptor são poli-hidrâmnio, hipervolémia com policitémia, podendo surgir insuficiência cardíaca congestiva in utero e, após o nascimento, fenómenos de hiperviscosidade e hiperbilirrubinémia. Na fisiopatologia da transfusão feto-fetal participa o sistema renina-angiotensina, verificando-se níveis elevados de hBNP (péptido natriurético cerebral humano) e endotelina-1. Mediadores vasoactivos produzidos no dador são desviados para o receptor, do que resulta hipertensão e cardiomiopatia hipertensiva.

Para o feto dador, as consequências são oligoâmnio, anemia crónica e hipovolémia, causando restrição de crescimento intrauterino, sofrimento fetal crónico e, potencialmente, morte in utero.

O risco de morte na transfusão feto-fetal grave pode chegar a 80%. O risco de anomalias congénitas por causas mecânicas é maior no gémeo dador, pela moldagem e compressão condicionada pelo seu oligoâmnio.

A morte fetal de um dos gémeos é um fenómeno frequente. Gémeos monoamnióticos (1% das gestações gemelares) têm maior risco de morte fetal (50%-60%), devido principalmente ao risco de os cordões se entrelaçarem e sofrerem compressão.

Fenómenos de transfusão feto-fetal graves incrementam, em primeiro lugar, o risco de morte fetal do gémeo dador, mas, num segundo tempo, potencialmente também do receptor. A morte de um dos gémeos desencadeia processos biológicos que afectam o gémeo com o qual partilha a circulação placentar. Os produtos tóxicos do metabolismo do cadáver entram na circulação do sobrevivente, afectando-o. Fenómenos tromboembólicos originários no gémeo falecido podem atingir o sobrevivente, provocando neste lesões isquémicas embólicas, particularmente nos órgãos de maior fluxo sanguíneo e circulação terminal, como o sistema nervoso central. Este risco é tanto maior quanto mais tarde ocorrer a morte fetal.

Por outro lado, tanto nas gestações mono como nas policoriónicas, a morte de um dos gémeos aumenta a probabilidade de se desencadear prematuramente o trabalho de parto. No entanto, o gémeo falecido em fase embrionária é geralmente reabsorvido, sem consequências para o(s) sobrevivente(s); na fase fetal precoce, se não se desencadear o trabalho de parto, evolui para o estado chamado feto papiráceo, adquirindo um aspecto mumificado. A prematuridade é, portanto, o outro risco major das gestações múltiplas, sendo hoje em dia a sua importância cada vez maior, devido ao aparecimento de maior número de gestações com riscos acrescidos.

Na maioria das gestações gemelares, o trabalho de parto inicia-se espontaneamente mais cedo do que nas gestações únicas. A idade média de término espontâneo das gestações bigemelares naturais é ~ 35 a 37 semanas, sendo de 33 semanas nas gestações trigemelares. As complicações descritas nas gestações monocoriónicas podem provocar precocemente o desencadeamento espontâneo do parto ou a sua interrupção médica, para salvar um ou todos os gémeos.

A multigemelaridade iatrogénica de elevado grau acompanha-se de uma diminuição desproporcionada do tempo de gestação viável, ocorrendo o parto tanto mais cedo quanto maior o número de fetos. O aumento do número de fetos (e suas placentas) com risco proporcional de complicações gravídicas graves (diabetes, hipertensão, eclâmpsia, síndroma HELLP, descolamento da placenta, etc.), determina a indicação médica de abortamento por causa materna, fetal ou combinada.

A fecundação assistida é mais frequente em mulheres de idade mais avançada, as quais possuem por si só um maior risco das patologias gravídicas referidas. Se a isto associarmos a adopção de técnicas ou protocolos (felizmente já abandonados em muitos países e instituições) que levam à implantação de um número elevado de embriões (para obviar o risco de insucesso em mulheres em idade fértil avançada) compreende-se que aumente o risco de prematuridade.

As gestações múltiplas apresentam também um risco acrescido de anomalias congénitas, cromossómicas e genéticas, ou secundárias a perturbações vasculares ou mecânicas. Sendo algumas destas anomalias incompatíveis com a vida fetal, aumenta o risco de morte in utero. O elevado risco de anomalias congénitas é particularmente evidente nas gestações múltiplas monozigóticas, sendo pouco significativo na multigemelaridade dizigótica.

Sendo a reprodução assistida mais frequente em casais com história longa de infertilidade, especialmente em mulheres com risco inerente elevado de conceber embriões com anomalias cromossómicas, não é surpreendente o aumento da sua prevalência. Contudo, calculando o risco de ocorrência de anomalias congénitas em gestações múltiplas iatrogénicas, se for controlada a variável idade materna, o número obtido não é superior ao das gestações únicas.

Nalguns casos de anomalias graves pondo em risco a vida fetal, certos protocolos estabelecem a indicação de abortamento. Poderá, por outro lado, colocar-se a seguinte situação: necessidade da correcção precoce ex utero de anomalia num dos gémeos, susceptível de desencadear prematuramente o parto, com possível repercussão sobre o gémeo dito “são”.

No plano logístico, a iminência do parto prematuro de uma gestação múltipla poderá originar dificuldades na preparação de vagas nas UCIN, em número igual ao de gémeos.

De facto, nem sempre sendo possível garantir um número de vagas de ventilação igual ao de gémeos, poderá ser necessária a transferência ex utero para outra UCIN, o que comporta risco de morbilidade e mortalidade associado ao transporte (mesmo utilizando o sistema especial de transporte neonatal com cuidados intensivos).

Manifestações clínicas e diagnóstico

Cabe à equipa de Perinatologia (obstetra, neonatologista, geneticista clínico, etc.) identificar o mais precocemente possível as situações de maior risco associadas a gestações múltiplas, de modo a poder corrigi-las, ou a minorar as suas consequências: número de embriões, corionicidade, anomalias congénitas, perturbações do crescimento, bem-estar embrionário ou fetal, e patologia materna associada.

Verificar o número de gémeos é relativamente fácil, através da realização precoce da ecografia obstétrica. No entanto, ainda actualmente ocorrem casos esporádicos de diagnóstico tardio de multigemelaridade espontânea.

A determinação da corionicidade (caracterização da morfologia relativamente aos corion) de gestações múltiplas espontâneas é por vezes difícil, mas deve ser recolhido o maior número possível de elementos para fazer o diagnóstico de mono ou multicorionicidade.

Os gémeos monoamnióticos são, em princípio, monocoriónicos; a dúvida pode colocar-se nos casos de gemelaridade biamniótica. Ecograficamente, as primeiras semanas após a implantação embrionária são as ideais para determinar, por ecografia, a corionicidade da gestação gemelar, pois é então geralmente possível a visualização de placentas separadas.

Caso não tenha sido possível realizar uma ecografia precoce, ou não tenham sido identificadas imagens claras de placentas independentes ou separadas, a ecografia obstétrica utiliza como critério a morfologia da confluência dos dois sacos amnióticos com o córion.

Se na secção ecográfica desta confluência existe um pequeno espaço triangular entre o âmnio e o córion (imagem em Y), provavelmente trata-se duma gestação bicoriónica; se a imagem obtida é a de ausência de qualquer separação entre o âmnio e o córion (imagem em T), trata-se provavelmente de uma gestação monocoriónica.

Na data do termo da gravidez, placentas independentes podem macroscopicamente parecer uma única, pois juntam-se no seu crescimento. No entanto, é possível identificar histologicamente a independência de placentas aparentemente únicas.

Em qualquer gestação múltipla espontânea em que não há informação ecográfica fidedigna acerca da corionicidade e é expulsa uma placenta aparentemente única, deve solicitar-se o exame histológico da placenta.

O diagnóstico da zigotia (intimamente ligado ao da corionicidade) é igualmente importante, a curto, médio e longo prazo, de tal modo que a “Declaração dos Direitos e Necessidades dos Gémeos e Múltiplos de Elevado Grau” (1995) refere explicitamente: a) o direito dos pais ao registo exacto da corionicidade e determinação da zigotia dos seus filhos gémeos do mesmo sexo; b) o direito de gémeos múltiplos do mesmo sexo, cuja zigotia não fora determinada à nascença, a poderem testá-la mais tarde.

As vantagens da determinação precoce e exacta da zigotia são:

  1. Determinar os riscos fetais e pós-natais associados à monozigotia e à dizigotia;
  2. Conhecer riscos tardios de doenças genéticas;
  3. Informar quando se trata de gémeos “idênticos” ou “fraternos”;
  4. Saber se os gémeos serão potenciais dadores de órgãos compatíveis;
  5. Determinar o risco de recorrência de gestação múltipla e;
  6. Poder obter dados para estudos de coortes de gémeos.

O método mais fácil e barato de determinar a zigotia é, de facto, verificar o sexo. Gémeos de sexos diferentes, não são monozigóticos; gémeos do mesmo sexo, podem ser, ou não, monozigóticos.

O diagnóstico ecográfico pré-natal da zigotia de fetos do mesmo sexo pode ser problemático, pois, como foi referido, a determinação da corionicidade é falível, particularmente nos casos de fetos policoriónicos. Recentemente, foi sugerida a verificação ecográfica do número de corpos lúteos ováricos no primeiro trimestre de gestação como método de elevada exactidão para a determinação da zigotia. A existência de mais do que um corpo lúteo sugere libertação simultânea de mais do que um óvulo, portanto, elevada probabilidade de polizigotia. Este método está pendente de validação com o método padrão.

No período pós-natal, para determinação de monozigotia, outro método fácil, rápido e barato, de especificidade e valor preditivo positivo elevados, mas de sensibilidade e valor preditivo negativo de monozigotia baixos, é a fenotipagem (Landsteiner, Rhesus, Kell e Duffy) dos eritrócitos do sangue, do cordão ou periférico, de ambos recém-nascidos. Antigénios eritrocitários diferentes dão certeza de heterozigotia, mas antigénios iguais não dão qualquer certeza.

A avaliação das características fenotípicas pela observação física após o parto, pode dar informações importantes, tendo-se já desenvolvido tabelas que auxiliam esta determinação, se necessário através de observações repetidas, em diferentes fases do desenvolvimento.

O estudo genético, através de análise PCR multiplex de séries estabelecidas de genes, permite a determinação com elevado grau de certeza, em casos mais difíceis, sendo considerado actualmente o gold standard.

O diagnóstico pré-natal de transfusão feto-fetal grave pode ser feito ecograficamente, em gestações monocoriónicas, através, quer da identificação de discrepância de dimensão do saco amniótico e peso em fetos inicialmente concordantes (em princípio, o feto maior é o que tem hidrâmnio), quer de sinais de insuficiência cardíaca no feto receptor (má função ventricular, ascite ou mesmo hydrops foetalis), ou de alteração dos fluxos arteriais umbilicais, da aorta e/ou artéria cerebral média (maiores no feto receptor, menores no dador).

A prova pós-natal é dada pela verificação de discrepância ponderal de 15% a 25% (discrepâncias superiores a 25% são consideradas graves), e/ou de diferença de concentração de Hb > 2,5 a 5 g/dL. A evidência de transfusão feto-fetal é tanto mais potente quanto maior a discrepância de peso e/ou hemoglobina, mas não existe homogeneidade de opinião entre investigadores quanto ao valor limiar de diagnóstico da condição. A presença de consequências, como anemia, policitémia, insuficiência cardíaca, ascite, etc., é confirmada através dos exames complementares adequados.

A discrepância ponderal entre gémeos pode ser devida, não apenas à transfusão feto-fetal (que ocorre apenas em 5% a 25% das gestações monocoriónicas, que são apenas 10% de todas as gestações bigemelares), mas também a problemas placentares, ou à presença de anomalia congénita num dos fetos.

A pesquisa de anomalias congénitas deve ser uma preocupação, pré e pós-natal, em toda gestação múltipla. A atenção deve ser particularmente maior quando há homozigotia suspeita ou confirmada. Na fertilização in vitro, é frequente proceder-se à exclusão de anomalias cromossómicas antes da implantação dos embriões. Todas as gestações múltiplas devem ser submetidas a ecografia morfológica e ecocardiografia fetal. Após o nascimento, para além das manobras de rastreio de anomalias comuns a todo recém-nascido, devem ser confirmadas eventuais suspeitas pré-natais, mantendo um nível de suspeição elevado nos casos de gestações mal vigiadas e em relação às anomalias que se manifestam ao longo do período neonatal (como a coarctação da aorta).

O diagnóstico dos problemas associados à prematuridade não é diferente do realizado nos casos de gestações únicas. Apenas há que ter em conta a possibilidade de ocorrência simultânea dos outros problemas para os quais o risco é acrescido na gestação múltipla, que podem agravar ou simular situações próprias da prematuridade. É frequente o(s) gémeo(s) com situação de estresse intrauterino ligeiro a moderado apresentar (em) uma maturação funcional superior, relativamente ao(s) casos associados a bem-estar fetal. Esta diferença pode reflectir-se não apenas na menor necessidade de cuidados, mas também em pontuação ligeiramente diferente na avaliação da idade gestacional observada.

O diagnóstico de adequação de crescimento intrauterino e pós-natal é ainda um assunto não consensual. Embora se tenham desenvolvido tabelas de crescimento adaptadas a gestações bigemelares (mesmo adaptadas a gestações de maior grau), duvidamos da sua utilidade. É nossa convicção de que a gestação múltipla não é uma variável do normal, sim um erro da natureza ou uma iatrogenia, sendo de supor que os embriões, fetos e recém-nascidos, deveriam ter o potencial de desenvolvimento normal se fossem de gestação única, pelo que admitimos que devem ser avaliados através das tabelas de crescimento das gestação simples. Apenas assim será diagnosticada correctamente a adequação do crescimento dum gémeo.

No desenvolvimento pós-natal dos gémeos é importante acompanhar as potenciais consequências das patologias associadas à monocorionicidade, prematuridade e anomalias congénitas. A ecografia cerebral é recomendada em gémeos monocoriónicos, particularmente naqueles em que ocorreram incidentes, como transfusão feto-fetal grave ou morte fetal. Deve ser dada atenção especial a sinais de paralisia cerebral e outras perturbações do neurodesenvolvimento, cuja frequência se verificou ser superior nestas situações.

Prevenção e tratamento

A prevenção dos problemas da gestação múltipla começa por uma abordagem preventiva da multigemelaridade iatrogénica. É importante verificar as situações em que está efectivamente indicada a utilização de técnicas de estimulação da ovulação, sendo imprescindível, quando indicadas, esclarecer o casal acerca dos riscos de ocorrência de gemelaridade de alto grau, dos riscos a ela inerentes e das opções existentes para diminuir este risco. Casais que não aceitam estes riscos ou são incapazes de os compreender, não deveriam ser elegíveis para este método.

A eliminação selectiva de embriões já implantados não é uma opção de primeira linha, pois levanta problemas éticos e legais óbvios; por isso, uma abordagem preventiva será sempre preferível.

O desenvolvimento de protocolos que levam a maior sucesso das gestações induzidas, permitiu adoptar políticas de implantação de apenas um ou dois embriões na fertilização in vitro. Os países em que estas abordagens foram efectivadas viram terminar ou reduzir rapidamente a epidemia de multigemelaridade iatrogénica de alto grau.

Um elevado grau de suspeição e um seguimento obstétrico rigoroso baseado em normas estritas é o segundo passo para uma eficaz prevenção dos riscos das gestações múltiplas: diagnosticar precocemente a gemelaridade, verificar a corionicidade, proceder ao rastreio de anomalias congénitas, e monitorizar o crescimento e o bem-estar fetais permitem o diagnóstico atempado dos problemas e a programação em tempo útil das intervenções que a tecnologia contemporânea coloca à disposição.

A boa acessibilidade aos cuidados de saúde à grávida, a adequada competência ecográfica dos profissionais envolvidos e uma referenciação atempada e acertada, são condições fundamentais para atingir estes objectivos.

Cada vez se torna mais evidente a vantagem da existência de Consultas de Gémeos, particularmente pré-natais, pois, segundo Papiernik e colaboradores, “todas as gestações gemelares são de alto risco para as crianças e a mãe, mesmo que decorram sem problemas aparentes”.

 

O diagnóstico atempado de transfusão feto-fetal grave em gestações monocoriónicas permite actualmente optar entre várias abordagens terapêuticas pré-natais: a amniorredução, no feto com hidrâmnio; a septostomia amniótica para igualar o volume de líquido amniótico nos dois fetos; a utilização endoscópica do laser para interromper anastomoses vasculares placentares ou para selar a ligação dos vasos umbilicais dum feto falecido à placenta; o feticídio selectivo, como forma de evitar a morte dos dois fetos; eventualmente, a interrupção médica da gestação.

A identificação precoce e exacta de complicações da gestação gemelar (como de qualquer outra) obrigará ao encaminhamento da grávida para centros perinatais especializados com o objectivo de garantir melhor vigilância, assim como terapêutica fetal e neonatal adequada.

No período neonatal, a abordagem terapêutica da multigemelaridade é a das suas complicações: anemia, hiperviscosidade, hiperbilirrubinémia, insuficiência cardíaca e hemodinâmica, ascite ou hidropisia, insuficiência respiratória, complicações da prematuridade, etc..

Os gémeos e múltiplos depois do parto

Sob o ponto de vista evolutivo, os gémeos levantam determinadas questões específicas que exigem soluções e têm influência no prognóstico. Seguidamente procede-se a uma abordagem sucinta de algumas delas.

Morbilidade e mortalidade

Sabe-se que o risco de prematuridade e/ou baixo peso nos múltiplos é cerca de 60%, e que também existe um risco elevado de disfunção de neurodesenvolvimento e de morte perinatal.

Daí a necessidade de a grávida ser acompanhada em consulta de alto risco e de o parto ocorrer em centro diferenciado. Depois do parto, podem ocorrer situações difíceis para os pais: um dos gémeos evidenciar uma anomalia congénita e o outro não; um dos gémeos poder evidenciar situação clínica que necessite de internamento em UCIN mantendo-se o outro junto da mãe; um dos gémeos ter alta e o outro permanecer internado durante mais tempo.

O risco de morte de um feto ou recém-nascido gémeo é três vezes superior ao de um feto ou recém-nascido único. Se considerarmos a morte perinatal, ela é cinco vezes superior nos gémeos e dez vezes superior nos triplos relativamente a um recém-nascido único.

Uma questão particular surge quando um dos gémeos morre e o outro sobrevive. Os pais ficam divididos entre a alegria do nascimento de um filho e a perda de outro. Também para os profissionais de saúde esta situação é difícil, sendo frequente ouvir-se: “Você ainda tem um bebé lindo!” ou “Como poderia você lidar com dois ao mesmo tempo?”. Torna-se óbvio que é importante não menosprezar a dor dos pais e criar oportunidades para conversar sobre a criança que morreu, sempre que os pais assim o expressem

Impacte no sistema familiar

Nas famílias com gémeos ou múltiplos, sem assistência adequada, existe maior risco de divórcio, doença e abuso infantil. De facto, a chegada dos gémeos ao núcleo familiar acarreta alterações estruturais importantes da dinâmica e organização familiares que podem prejudicar um ou mais dos seus membros. Se os pais tiverem acesso a informação útil, terão maior capacidade de antecipar dificuldades, o que poderá facilitar o processo de adaptação à nova situação. A consulta de bibliografia específica, já existente no nosso País, e a frequência de consultas pré-natais ou a integração em grupos de ajuda com outros pais de gémeos, são formas diferentes, mas complementares, de se atingir este objectivo. Por exemplo, se a grávida for informada sobre os benefícios biológicos, psicológicos e financeiros do aleitamento materno de recém-nascidos (pré-termo ou de termo), e se lhe forem ensinadas técnicas de aleitamento materno em simultâneo, a probabilidade de iniciar e manter o aleitamento materno após o nascimento dos gémeos será maior.

A família deve preparar a chegada dos gémeos, não só adquirindo roupa e outros equipamentos, mas também procurando obter apoio adicional para as tarefas domésticas. Pode fazê-lo recorrendo a ajuda de familiares, ou contratando serviços especializados, ou ainda, recorrendo a instituições de solidariedade social.

Quando existem outros filhos, o nascimento dos gémeos é um momento crítico para eles, pois tal implica certa separação da mãe pelas exigências de cuidados a prestar aos RN. Esta situação pode ser minorada quando os pais encontram formas de dedicar tempo e atenção aos filhos mais velhos e tentam envolvê-los nalgumas tarefas relacionadas com os gémeos.

Em suma, se a família se preparar para a chegada dos gémeos durante a gravidez, tendo em conta os cuidados de antecipação referidos, a ansiedade dos pais, as dificuldades após o parto, quer com o aleitamento materno, quer na organização familiar, serão mais facilmente ultrapassáveis.

Aleitamento em simultâneo

O aleitamento materno em simultâneo de duas, três ou mesmo quatro crianças é possível tendo em conta que a produção de leite resulta da estimulação efectuada pelas crianças, a qual é tanto maior quanto maior o seu número. O referido aleitamento permite à mãe ganhar algum tempo com uma tarefa que ocorre várias vezes por dia, libertando-a para outras. Existe, no entanto, a desvantagem de a mesma não poder dar atenção individual a cada filho. Assim, pode haver vantagem em amamentar os gémeos em simultâneo quando acordam ao mesmo tempo e choram com fome.

O posicionamento para a amamentação em simultâneo faz-se com a ajuda de várias almofadas; as crianças são colocadas de cada lado da mãe com o tronco e membros atrás da mãe, ou apoiadas em linha cruzada ou em paralelo, à frente da mãe. A maternidade é local ideal para o treino deste posicionamento pois, com o apoio da equipa, a mãe terá oportunidade para aprender e experimentar.

Se a mãe não puder ou não quiser amamentar os seus filhos, existem também técnicas de aleitamento artificial em simultâneo. Uma delas consiste em colocar as duas crianças sobre o colo, apoiando-as com um braço, enquanto o outro segura os dois biberões. Noutra técnica, as crianças são colocadas no colo da mãe viradas para a frente e a mãe envolve cada uma com um membro superior pegando no biberão com a respectiva mão.

O sono

Os gémeos podem ter mais dificuldade em adquirir um ritmo de sono regular do que a criança única, por vários motivos.

Tratando-se frequentemente de crianças pré-termo manipuladas com intervalos curtos e regulares durante o internamento na UCIN, poderá surgir a falta desse hábito em casa.

Pela sua prematuridade e/ou baixo peso, poderão necessitar de fazer intervalos das mamadas de 2 ou 3 horas durante a noite.

É frequente haver mais do que uma pessoa a cuidar dos gémeos e, consequentemente, diferentes formas de dar um biberão, o que dificulta o início duma rotina. E, se a mãe estiver ansiosa e insegura com o baixo peso ou a prematuridade, ela irá oferecer necessariamente mais refeições durante a noite.

De qualquer forma, é possível que os gémeos adquiriram uma rotina de sono até aos 6 a 9 meses de idade.

Uma questão colocada frequentemente é a da partilha do berço pelos gémeos. Pode ser desejável esta partilha enquanto são pequenos, por oferecer algumas vantagens: o acordarem ao mesmo tempo permitirá estabelecer mais precocemente uma rotina de sono e de se entreterem entre si. Existe, porém, o risco de sobreaquecimento, um dos factores que se considera associado ao risco de morte súbita do lactente.

Crescimento e desenvolvimento

O crescimento dos gémeos é semelhante ao de qualquer criança de gestação única. Os gémeos dizigóticos poderão apresentar um crescimento diferente um do outro na adolescência, pois o desenvolvimento pubertário pode ser desfasado, tanto mais se os gémeos forem de sexos diferentes.

O desenvolvimento dos gémeos de baixo risco é também semelhante ao da criança única, com excepção da linguagem. A conhecida linguagem silenciosa dos gémeos, também designada por criptofasia, parece envolver cerca de 40% dos casos; é mais frequente em gémeos monozigóticos e consiste na comunicação que se estabelece intra-par, podendo haver palavras acidentais, apenas reconhecidas pelo outro.

Esta situação resulta do facto de cada gémeo ter como modelo o seu irmão gémeo, com uma linguagem tão pobre como a dele; por isso, a linguagem de ambos vai-se modificando, ao ponto de se tornar irreconhecível para os outros, e apenas perceptível por ambos. Isto não acarreta qualquer problema, desde que os gémeos desenvolvam em simultâneo uma linguagem adequada à sua idade.

Entre os gémeos com antecedentes de problemas mais complicados (gestação em idade materna tardia, concepção assistida por técnicas mais invasivas, multigemelaridade de alto grau, complicações médicas da gravidez, monocorionicidade, transfusão feto-fetal, morte fetal de um dos gémeos, grande prematuridade, gestação de termo, etc.) o risco de paralisia cerebral é grande.

Tal risco em gémeos, em comparação com recém-nascidos de gestação simples, varia, sendo cerca de 4-9 vezes maior. De tal hipotética mas provável circunstância, os putativos progenitores deverão ser informados pela equipa técnica de concepção assistida a quem recorrem, no contexto de diagnóstico de gestação gemelar.

A educação dos gémeos tem algumas particularidades, devendo a individualidade e a privacidade ser respeitadas, procurando que cada criança tenha uma identidade própria e saiba funcionar de forma autónoma.

Nesta perspectiva, é fundamental que os pais entendam que os gémeos poderão manifestar um padrão de neurodesenvolvimento não necessariamente sobreponível. Por isso, é fundamental procurar proporcionar-lhes uma atenção e oportunidades individualizadas.

Uma das questões frequentemente colocadas pelos pais quando os gémeos entram para a escola é se ambos devem ou não frequentar a mesma turma. Por razões práticas, tem sido habitual os gémeos ficarem na mesma escola, mas deve ser evitado que sejam colocados na mesma sala de aula.

Há, no entanto, situações especiais, em que os gémeos não estão preparados para ficar afastados quando entram para a escola; por isso, é necessário que a separação se faça de modo gradual.

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Importância do problema e aspectos epidemiológicos

A ocorrência de diabetes mellitus (DM) durante a gravidez, nas suas diversas formas – diabetes pré-gestacional (DPG) tipos 1 e 2 e diabetes gestacional (DG) – pode condicionar distúrbios de índole diversa no feto e no recém-nascido, em dependência directa do controlo glicémico das grávidas, e com repercussões a médio e a longo prazo.

Anteriormente, a DPG era predominantemente do tipo 1, insulinodependente. Nos últimos anos, em especial nos países industrializados, 1/3 de todas as DPG são do tipo 2 frequente e erradamente interpretadas como gestacionais, ainda que detectadas no 1º trimestre de gravidez.

A prevalência e a incidência da DPG variam consideravelmente dependendo de factores étnicos e raciais e de fenómenos migrantes. Com o incremento relativo da diabetes tipo 2, o diagnóstico está de certo modo condicionado pelo rastreio em função de critérios de saúde pública para populações de risco.

Na generalidade, considerando embora as assimetrias populacionais, calcula-se que cerca de 1,1% são DPG. A incidência de DG, talvez até mais do que a DPG, depende, entre outros factores, da existência ou não de rastreios universais e sistemáticos durante a gravidez, da data do aparecimento e da metodologia do diagnóstico. Em geral, estima-se que entre 3%-7% de gravidezes são complicadas por DG.

Na experiência dos autores, num período de 2 anos, numa população não seleccionada de 5207 grávidas, a incidência de DG foi de 6,4%, atingindo 14,9% nas mulheres com antecedentes obstétricos de DG. Dois terços (66%) das mulheres com DG tinham uma história familiar de DM tipo 2, e 20% tinham obesidade pré-concepcional (IMC > 30%), versus 4% na população de controlo.

A idade média na data do parto foi de 32 anos, comparativamente aos 30 anos para uma população de controlo de mulheres com filhos grandes para a idade gestacional (GIG) não-diabéticas. Cerca de um terço (31,3%) das mulheres com DG necessitaram de insulinoterapia, nomeadamente nos casos com história familiar de diabetes, obesidade pré-concepcional e com DG em gravidezes prévias (33,4%, 45,8% e 36,2% respectivamente).

Reconhecendo a importância deste enorme problema de Saúde Pública, já em 1989 a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Federação Internacional de Diabetes (FID) propuseram, na Declaração de St. Vincent, o objectivo, a concretizar em 5 anos, de os resultados de uma gestação complicada de diabetes deverem aproximar-se dos da grávida não diabética. No entanto, e apesar de em centros de referência se ter observado uma redução significativa no número de abortamentos, de nados-mortos, de anomalias congénitas e de mortes no período neonatal relacionados com a diabetes na gravidez, a situação persiste.

Com efeito, mesmo nos países de desenvolvimento socioeconómico mais privilegiado, a incidência de abortamentos pode atingir 17%, a taxa de nados-mortos chega a ser 5 vezes superior, a de anomalias congénitas 4 a 10 vezes maior; a mortalidade perinatal atinge valores 5 vezes superior, a mortalidade neonatal até 15 vezes mais; relativamente à taxa de mortalidade infantil, esta poderá triplicar em relação à das gestações sem diabetes. De destacar que, com a possível excepção de maior incidência de defeitos congénitos nas DPG, todos estes maus resultados são também observados na DG.

Tendo em conta as assimetrias relacionadas com a assistência dispensada à grávida, importa reconhecer a etiopatogénese da embriofetopatia diabética e identificar os aspectos passíveis de intervenção, por forma a que os objectivos preconizados pela Declaração de St. Vincent não sejam apenas uma manifestação de intenções não concretizadas, passados mais de 25 anos.

ETIOPATOGÉNESE

A patogénese e todo o espectro da embriofetopatia diabética resultam fundamentalmente do excesso de glicose transferido da mãe para o feto, induzindo à hiperglicemia fetal – responsável primário pelas anomalias congénitas – e à consequente hipertrofia dos ilhéus pancreáticos e hiperplasia das células-β, de acordo com o diagrama representado na Figura 1.

O resultante hiperinsulinismo fetal crónico, integrando uma cascata de alterações metabólicas, é responsável pelo quadro clínico da embriofetopatia diabética, de consequências imediatas no período neonatal, podendo predispor à síndroma metabólica do adulto.

A desregulação do metabolismo glucídico materno justifica, neste modelo teórico, todo o início e manutenção da cascata da embriofetopatia diabética. No entanto, é possível que outros substratos metabólicos, para além da glicose materna, atravessem a barreira placentar contribuindo para alterações do meio fetal; as respectivas consequências dependem, não só do metabólito em si, mas dos estádios críticos do desenvolvimento em que tais alterações ocorram.

Esta hipótese é corroborada:

  • Por modelos experimentais subscrevendo o contributo de outros substratos, nomeadamente corpos cetónicos e produtos da peroxidação lipídica na patogénese das anomalias congénitas e;
  • Pela verificação em animais de laboratório de que a suplementação de determinados factores, em especial ácido araquidónico e mioinositol, “depuradores” de radicais livres de oxigénio e antioxidantes, reduz a taxa de defeitos congénitos em filhos de diabéticas. A utilidade de tais medidas e a sua aplicação na prática clínica constituem questões em aberto.

FIGURA 1. A embriofetopatia: aspetos da embriopatogénese.

Manifestações clínicas, interpretação fisiopatológica e actuação prática

Diabetes pré-gestacional (DPG)

As potenciais e múltiplas complicações evidenciam-se in utero: abortamento, morte fetal, anomalia congénita, restrição do crescimento fetal/intrauterino (RCIU) e macrossomia. O hiperinsulinismo fetal crónico, com o resultante aumento do metabolismo e consumo de oxigénio, levando à hipoxémia, para além da taxa aumentada de mortes fetais e prematuridade, constitui mais outro factor para a asfixia neonatal, frequentemente observada nos RN de mães diabética.

Embora a maioria destas complicações se relacione com o mau controlo metabólico da grávida, outras, no entanto, ocorrem mesmo em casos de diabetes bem controladas, pondo em causa metodologias e definições, intervenções e seu cumprimento e, provavelmente, outros substratos, que não apenas a glicose. Com toda esta constelação de problemas e complicações não é surpreendente que o recém-nascido de mãe diabética (RNMD) constitua uma população sujeita a taxas de internamento superiores às da população em geral.

Anomalias congénitas

Ao longo das últimas décadas tem sido postulado que, para além dos hidratos de carbono (glucose, galactose e manose) outros substractos metabólicos estariam igualmente envolvidos na etiopatogénese das malformações congénitas, desde que presentes em níveis elevados durante períodos críticos do desenvolvimento. Entre os possíveis metabólitos implicados salientam-se os corpos cetónicos em excesso, a deficiência de zinco, ácido araquidónico e mioinositol e alterações da peroxidação lipídica com produção de radicais oxigenados livres. (Figura 2)

Apesar de terem sido descritas inúmeras anomalias congénitas afectando diversos órgãos e sistemas na DPG, tanto do tipo 1 como do tipo 2, a associação é mais frequente para algumas anomalias, nomeadamente do pavilhão auricular e do foro óculo-aurículo-vertebral. Síndromas de regressão caudal são também mais frequentes, em particular a agenesia do sacro (risco 200-600 vezes superior ao da população controlo), defeitos do tubo neural e defeitos vários do SNC (desde anencefalia – risco 3 vezes maior, holoprosencefalia – risco 40-400 vezes mais elevado).

Considerando as cardiopatias, ocorrem com maior frequência defeitos do septo auricular e ventricular, transposição dos grandes vasos e persistência do canal arterial (4 a 6 vezes mais frequente). A nível nefro-urológico, anomalias como agenesia renal e duplicação ureteral têm igualmente prevalência aumentada na gravidez acompanhada de diabetes. Importa referir que a generalidade destas anomalias surge na diabetes com mau controlo metabólico durante a gravidez, com cuidados pré-concepcionais sofríveis ou nulos, em aparente correlação directa com os níveis de HbA1C, sendo a incidência de defeitos semelhante à da população de controlo nas grávidas com HbA1C < 6,9% desde que mantidos, pelo menos, durante 6-12 meses pré-concepção. Contudo, e apesar de um bom controlo metabólico (cuidados pré-concepcionais e valores adequados de HbA1C), a taxa corrigida de anomalias relacionadas com a DPG é superior à da restante população. Será pertinente questionar se os métodos utilizados para definir um “bom controlo metabólico” serão os mais adequados ou não, sendo a hiperglicemia o único agente teratogénico, qual o contributo que, isoladamente ou como adjuvante, os outros substratos possam ter na patogénese da embriofetopatia diabética. A detecção de anomalias congénitas deverá iniciar-se no primeiro trimestre por ecografia transabdominal e transvaginal, e repetida no segundo trimestre. No período pós-natal, os exame subsidiários a realizar deverão estar de acordo com os achados clínicos.

Macrossomia

Da mesma forma que para as anomalias congénitas, outros agentes teratogénicos metabólicos se propõem, que não apenas os açúcares; com efeito, a macrossomia parece resultar também de fenómenos multifactoriais interdependentes, entre eles corpos cetónicos, ácidos gordos livres, aminoácidos selectivos, e possivelmente IGF-1 e -2 a nível periférico. Os anticorpos insulínicos maternos e as hormonas contrarreguladoras da insulina são outros contributos suspeitos na etiopatogénese. A frequência da macrossomia varia entre 17%-50% nos RN de mães com DPG, consoante as séries. Contudo, importa diferenciar dois conceitos: RN grande para a idade gestacional (GIG) e macrossómicos. De facto, apesar de partilharem aspectos comuns, os verdadeiros macrossómicos evidenciam algumas particularidades decorrentes de uma distribuição anormal da sua gordura corporal, nomeadamente a nível da cintura escapulo-umeral. A questão não é meramente académica e assume, desde logo, importância prática para o obstetra, em termos de diagnóstico pré-natal e quanto à via do parto. Para o neonatologista a distinção é também importante porque apesar de ambos, GIG e macrossómicos, apresentarem uma tendência superior para hipoglicémia, policitémia, hipocalcémia e hiperbilirrubinémia; os verdadeiros macrossómicos têm ainda um risco acrescido de asfixia intraparto, de tocotraumatismo, em especial de paralisia do plexo braquial, e de cardiomiopatia. Para definir e identificar macrossomia, em vez da habitual referência a um determinado e arbitrário peso, ou à relação entre o peso de nascimento (PN) e a idade gestacional, outros parâmetros têm sido propostos, nomeadamente, razão perímetro braquial/cefálico, perímetro da coxa/cefálico, peso/perímetro cefálico, espessura de pregas cutâneas, etc., de discutível aplicação prática. Em recém-nascidos de termo, segundo a experiência dos autores, é preferível utilizar o índice ponderal (IP=peso/comprimento3 x 100) para distinguir o verdadeiro macrossómico de um GIG, por ser de maior exequibilidade na prática clínica diária. Este ponto é importante, designadamente pelas implicações quanto ao prognóstico a longo prazo.

FIGURA 2. Etiopatogénese das anomalias congénitas

Hipoglicémia

No período neonatal a hipoglicémia é um problema comum e multifactorial, devido ao hiperinsulinismo mantido e à ausência de respostas hormonais de contrarregulação conduzindo à diminuição da gluconeogénese hepática, da lipólise e a um aumento da captação periférica de glicose. Contudo, o termo hipoglicémia carece de uniformidade de critério quanto à definição. Desde logo, ao estabelecer-se um valor de glicose abaixo do qual se considera existir hipoglicémia, é fundamental referir em que produto biológico a determinação foi efetuada: sangue venoso, sangue capilar ou plasma, dado que a concentração de glicose no sangue total é cerca de 10% a 15% inferior à do plasma. Atendendo ao valor geralmente elevado do hematócrito dos RNMD, o valor a ter em conta deverá ser o plasmático e não o sérico: a determinação em sangue total é afectada pelo hematócrito (valores de glicémia sucessivamente decrescentes no sangue arterial-capilar-venoso). Porém, outras questões se colocam: que ”baixo nível de glicose” se deve considerar nocivo? Será que para o mesmo valor de hipoglicémia a repercussão a nível cerebral será diferente consoante a presença ou não de sintomatologia? Será que o RN poderá utilizar outros substractos em alternativa à glicose, nomeadamente lactato, piruvato, corpos cetónicos, etc., para o seu metabolismo cerebral? Ainda que o RN no pós-parto imediato possa utilizar lactato como substracto energético, o hiperinsulinismo mantido, inibindo a lipólise, indisponibiliza a utilização de corpos cetónicos; assim, será prudente manter a glicémia em níveis ≥ 2,6 mmol/L (~ 48 mg/dL), quaisquer que sejam as idades gestacional e pós-natal do RN. Na prática (Figura 3), importa promover a alimentação entérica precoce e, caso ela não seja exequível ou contraindicada, administrar glicose por via endovenosa (ev) ao débito de 5-6 mg/kg/min, a ajustar de acordo com as necessidades, frequentemente até ritmos de 8-10 mg/kg/min e, raramente, de 12 mg/kg/min.

FIGURA 3. Actuação perante hipoglicémia.

Perante hipoglicémia sintomática, em particular de neuroglicopénia, deve providenciar-se a administração de glicose em bólus ev na dose de 0,25-0,5 g/kg, seguida de perfusão ao ritmo necessário à manutenção da euglicémia. Deve ser iniciada a alimentação entérica com leite materno ou com fórmula logo que possível, com redução gradual da perfusão venosa por forma a evitar a ocorrência de hipoglicémia reactiva. Raramente, em emergências ou com hipoglicémias refractárias, será necessário a administração de glucagon (200-300 µg/kg) para fomentar a gluconeogénese e promover a oxidação hepática de ácidos gordos.

Hipocalcémia

A homeostasia do cálcio é conseguida através de um equilíbrio entre a sua absorção intestinal e a sua excreção renal, num processo hormonodependente. A paratormona (PTH) mobiliza o ião a partir do tecido ósseo, aumenta a sua reabsorção tubular renal e estimula a produção de 1,25-di-hidroxivitamina D. Esta, por sua vez, aumenta a absorção intestinal de cálcio e fosfato e facilita a sua mobilização óssea induzida pela paratormona. Além disso, a hipocalcémia constitui um estímulo para a libertação de paratormona.

No sangue, o cálcio circula sob duas formas: ligado a proteínas séricas (especialmente à albumina) e a iões (por ex. citrato), e sob a forma livre ou ionizada, esta última a forma fisiologicamente relevante, representando 40%-50% do cálcio total. O equilíbrio entre a deposição e a mobilização do cálcio no osso determina, em grande parte, a concentração de cálcio ionizado no sangue. Durante a gestação, o cálcio é transferido da circulação materna para a circulação fetal através de um gradiente de transporte activo transplacentar regulado pelo péptido relacionado com a paratormona (PTHrP) (parathyroid hormone-related peptide).

A paratormona e a vitamina D maternas praticamente não atravessam a placenta. Desta forma, a concentração plasmática fetal de cálcio é mantida num nível superior ao da mãe (particularmente no terceiro trimestre, quando a concentração de cálcio total no RN é de cerca de 10-11mg/dL e a do cálcio ionizado de 6 mg/dL), encontrando-se as glândulas paratiroideias fetais num estado de baixa actividade. Com o nascimento, ocorre uma suspensão súbita da transferência materno-fetal de cálcio, com subsequente diminuição da sua concentração plasmática para níveis de 8-9 mg/dL de cálcio total e de 4,4-5,4 mg/dL da forma ionizada, evidente pelas 24 horas de vida. Em resposta, ocorre uma estimulação das glândulas paratiroideias e, pela segunda semana de vida, os níveis séricos do ião atingem o nível considerado normal para crianças e adultos. A definição de hipocalcémia, em função do peso, considera cálcio total < 8 mg/dL e/ou ionizado < 4,4 mg/dL (RN ≥ 1500 g); e cálcio total < 7 mg/dL e/ou ionizado < 4,0 mg/dL (RN < 1500 g). Salienta-se que a calcémia total está dependente dos níveis séricos de albumina e do pH, sendo que, por cada variação de 1 g/dL da albuminémia, há variação no mesmo sentido de 0,8 mg/dL de cálcio total, e que a acidose eleva os níveis do cálcio ionizado, ao contrário da alcalose. Em cerca de 50% dos RN de mãe diabética ocorre hipocalcémia, tipicamente entre as 24 e as 72 horas após o parto, e em geral acompanhada de hiperfosfatémia e/ou de hipomagnesiémia, possivelmente por atraso adaptativo das glândulas paratiróides ao ambiente extrauterino. Decorridas as primeiras 72 horas de vida, as paratiróides apresentam maior actividade, pelo que nos RNMD a hipocalcémia é geralmente precoce e transitória.

A hipocalcémia correlaciona-se com a gravidade e duração da diabetes materna, sendo sobretudo prevalente em RN com doença pulmonar e/ou asfixia periparto.

A hipocalcémia neonatal nos RNMD, embora frequente, é na maioria dos casos assintomática e autolimitada, pelo que não se justifica a determinação do cálcio sérico de modo rotineiro.

A hipocalcémia sintomática, manifestada por tremor e irritabilidade, convulsões, hipersudorese, letargia, apneia, taquipneia e alterações electrocardiográficas na fase de repolarização, com prolongamento do intervalo QTc (intervalo QT corrigido para a frequência cardíaca), superior a 0,4 segundos, obriga à determinação da calcémia e à sua correção com 1-2 mL/kg/dose de gluconato de cálcio a 10% (◊ 9-18 mg/kg de cálcio elementar), – administração endovenosa lenta em 5 a 10 minutos – com monitorização electrocardiográfica pelo risco de bloqueio cardíaco, bradicárdia refractária e hipotensão.

Se necessário, deve manter-se a correcção com dose de 2-7 mL/kg/dia (máximo: 200 mg/kg em 10 minutos). A hipocalcémia é susceptível de correcção em 3 a 4 dias e, até à normalização dos valores, o cálcio sérico deve ser determinado com intervalos regulares, habitualmente de 12-12 horas. Sublinha-se que uma hipocalcémia persistente pode dever-se à coexistência de hipomagnesiémia, a qual deve ser corrigida. A correcção da hiperfosfatémia, quando presente, deve preceder a correcção da hipocalcémia, pois se o produto [Ca2+] x [PO4- ] for > 80, poderá ocorrer calcificação dos tecidos moles.

Policitémia

Policitémia define-se por hematócrito > 65% no sangue venoso em RN com ou sem sintomas. A sua incidência varia entre 0,4%-12% em RN saudáveis e deve-se ao facto de os eritrócitos fetais terem um maior volume globular médio e serem menos deformáveis que os eritrócitos mais maduros, conduzindo a hiperviscosidade sanguínea. No caso dos RNMD, mais de 30% são afectados. A sua etiopatogénese relaciona-se directamente com o hiperinsulinismo fetal crónico levando sequencialmente a um aumento do metabolismo e consumo de oxigénio, hipoxémia fetal, por sua vez determinando produção acrescida de eritropoietina e policitémia.

As consequências da policitémia são múltiplas: morte fetal, SDR, insuficiência cardíaca, hipertensão pulmonar, sinais neurológicos (tremor, irritabilidade, convulsões, apneia), trombose, gangrena e acidente vascular cerebral. O tratamento padrão, abordado com mais pormenor noutro capítulo, consiste na substituição parcelar do sangue do doente por sangue com valor de eritrócitos mais baixo e viscosidade normal, o que se consegue com diversas estratégias. A Figura 4 mostra aspecto geral do fenótipo de RNMD, ressaltando as características de macrossomia e plétora, e paralisia do plexo braquial, situação traumática a abordar noutro capítulo, adiante.

Icterícia

A imaturidade hepática presente no período neonatal é responsável pela chamada icterícia fisiológica que surge em 60%-70% dos RN (valores de bilirrubinémia em geral < 13 mg/dL); no entanto, esta icterícia só se torna importante (bilirrubinémia total ≥ 13 mg/dL) em cerca de 5% dos casos de RN termo saudáveis versus 30% dos casos de RNMD. À deficiência transitória da enzima glucuroniltransferase, com aumento consequente da circulação êntero-hepática, somam-se outros fatores, que justificam a mais elevada incidência em RNMD: prematuridade, policitémia, aumento da hemólise e macrossomia.

FIGURA 4. Fenótipo de RNMD com paralisia do plexo braquial* (URN-HDE)

*Trata-se duma fotografia histórica referente a época em que eram mais frequentes as paralisias braquiais e se usava faixa abdominal, hoje obsoleta.

Tem sido sugerido que a bilirrubina, em concentrações fisiológicas, exerce um efeito protector sobre os eritrócitos neonatais contra o estresse oxidativo. Porém, em concentrações patológicas prevalecem os efeitos citotóxicos e a hiperbilirrubinémia deve ser controlada. A avaliação clínica é pouco fidedigna e corre o risco de subestimar níveis significantes de icterícia neonatal. Os bilirrubinómetros transcutâneos mais recentes são preferíveis devido à sua capacidade de corrigir os valores de bilirrubina excluídos os efeitos da melanina e da hemoglobina e correlacionando-se favoravelmente com os valores estimados pelo laboratório (diferenças de 2-3 mg/dL com bilirrubinas < 15 mg/dL – 250 µmol/L).

Síndroma de dificuldade respiratória

Múltiplos factores, por vezes associados, contribuem para o aparecimento da síndroma de dificuldade respiratória (SDR) no RNMD. O parto pré-termo, outras condições associadas à própria diabetes, em especial a policitémia e hiperviscosidade concomitantes, a hipóxia e hipertensão pulmonar, a insuficiência cardíaca ocasional, e a alta taxa de cesarianas electivas condicionando atraso da reabsorção e eliminação do líquido pulmonar fetal (síndroma de taquipneia transitória ou “pulmão húmido”), são alguns do referidos factores.

A própria doença da membrana hialina (DMH), causada pela diminuição e/ou inibição da produção de surfactante face ao hiperinsulinismo fetal é mais frequente em RNMD, em qualquer idade gestacional.

Em gravidezes normais, com a administração antenatal de corticóides, tem-se verificado diminuição do risco de DMH. No entanto, pelo seu efeito hiperglicémico fetal e materno, o seu uso na diabética grávida não é consensual, obrigando a sua eventual administração a um controlo glicémico rigoroso, aplicando vários esquemas insulínicos, aparentemente com bons resultados. Particulamente importante, a diabetes bem controlada na gravidez não deve ser uma razão para um parto de pré-termo, efectivamente, com bons cuidados pré-natais, a gestação pode levar-se até termo, frequentemente após as 38 semanas sendo então o risco de SDR significativamente reduzido.

Cardiomiopatia hipertrófica

Em cerca de 30%-50% de diabetes tipo 1, de 25%-33% em tipo 2 e baixo risco na diabetes gestacional verifica-se cardiomiopatia reversível, com hipertrofia do septo interventricular e de uma ou ambas as paredes ventriculares, originando uma cardiopatia obstrutiva. O mecanismo deste tipo de patologia não está completamente esclarecido, embora se tenha comprovado a comparticipação da abundância em receptores para a insulina no miocárdio; como consequência, existe afinidade aumentada do miocárdio para a insulina levando a maior síntese de proteínas, glicogénio e gordura, e respectiva hipertrofia e hiperplasia.

Na fase pós-natal, com consequente diminuição da insulinémia, o número de receptores diminui, atenuando-se paralelamente a hipertrofia miocárdica. Ainda que cerca de 90%-95% dos casos sejam assintomáticos, nos restantes observa-se sinais de cardiopatia obstrutiva com baixo débito e/ou falência cardíaca.

O ecocardiograma pode confirmar o diagnóstico de cardiomiopatia obstrutiva enquanto os marcadores bioquímicos de disfunção miocárdica, nomeadamente CKMB, troponina I e pro-BNP necessitam de validação. Se for necessária terapêutica os β-bloqueadores (propranolol) poderão temporariamente diminuir a obstrução; de referir que a digoxina está contraindicada por redução do débito, aumento da própria obstrução e eventualmente exacerbando a falência cardíaca. Os sintomas resolvem-se habitualmente nas primeiras 2-4 semanas e as alterações ecocardiográficas nos primeiros 2-12 meses.

Síndroma do cólon esquerdo hipoplásico

A etiopatogénese, particularmente complexa e provavelmente multifactorial, deve-se com grande probabilidade aos episódios de hipoglicémia fetal induzidos por mau controlo diabético. As consequências desta hipoglicémia serão a libertação de glucagon e a concomitante diminuição da actividade simpática a nível da porção intestinal pré-esplénica, ambas contribuindo para a redução da motilidade do jejuno e do cólon esquerdo.

O resultado será um cólon de dimensões reduzidas e uma obstrução funcional. Este fenómeno de hipomobilidade poderá ser agravado pelo uso materno de drogas psicotrópicas com efeitos anticolinérgicos e a administração de magnésio durante a gravidez.

A apresentação clínica é a de uma obstrução intestinal orgânica ou funcional, e o diagnóstico será feito por ecografia ou radiografia simples do abdómen, por vezes com enema contrastado, que revelará as imagens características de dilatação colónica proximal, adelgaçamento em cone ao nível do ângulo esplénico com distensão pós-estenótica do cólon descendente e do sigmóide.

A terapêutica é conservadora: aspiração gástrica contínua, fluidoterapia endovenosa e, na ausência de perfuração intestinal, o próprio enema contrastado para além de confirmação diagnóstica poderá também ter efeitos terapêuticos. A cirurgia deve reservar-se para os casos de perfuração ou obstrução refractária recorrente sem resposta à terapêutica médica.

Diabetes gestacional (DG)

Grávida

Com o decorrer da gravidez, sobretudo a partir da segunda metade, o aumento do metabolismo materno exige maiores necessidades de insulina. Caso o limiar de metabolização da glicose seja ultrapassado, surge hiperglicémia. Todas as manifestações clínicas perinatais anteriormente descritas a propósito da DPG, são aplicáveis à DG, com a possível excepção das anomalias congénitas fetais, na situação presente, com menor prevalência do que na DPG. Contudo, determinados estudos apontem para uma alta taxa de defeitos congénitos na DG, provavelmente por corresponderem a casos de DPG, somente diagnosticados durante a gravidez. De facto, na última década nos países industrializados a DG tipo 2, constitui já 1/3 de todas as DPG.

Na população com diabetes gestacional, segundo a experiência dos autores, não se registaram mortes maternas, fetais ou perinatais; as intercorrências da gravidez, designadamente hipertensão gravídica, pré-eclâmpsia, oligo-hidrâmnio e RCIU, surgiram com menor incidência em relação a outras séries, sublinhando-se o bom controlo metabólico levado a cabo. Contudo, registou-se uma taxa de cesarianas de 43,9% versus 36,4% na população de controlo – mães com filhos GIG, não diabéticas.

Recém-nascido

A idade média na data do nascimento foi de 38 semanas, com um peso médio de 3,121 g (± 424 g) e um comprimento médio de 48,55 cm (± 1,77 cm). Os principais problemas clínicos são discriminados no Quadro 1, que estabelece a comparação entre RNMD e RN grandes para a idade gestacional (GIG) de mães não diabéticas. De salientar que, ao considerarmos a relação peso de nascimento/idade gestacional superior ao percentil 90 nos RNMD, esta percentagem foi extremamente baixa (2,9%); porém, ao aplicarmos o índice ponderal (IP > P90), essa percentagem sobe para 16,1%, o que se torna ainda mais evidente com o avançar da idade gestacional (22% e 25% às 39 e 40 semanas gestacionais, respetivamente). Tal facto sugere uma população de lactentes pequenos e obesos, em contraste com a de RN GIG de grávidas não diabéticas. Como tal, propomos que se utilize o IP como melhor indicador de macrossomia e não apenas a relação PN/IG.

Nesta coorte de RNMD registámos 10,3% de RN LIG (leves para a idade gestacional), em flagrante contraste com o diagnóstico obstétrico de restrição de crescimento fetal/intrauterino (RCIU) de apenas 0,9%, questionando a capacidade da avaliação obstétrica deste parâmetro há uma dezena de anos. A elevada taxa de cesarianas observada (43,9% versus 36,4% na população de controlo) não pode ser atribuída à macrossomia per se, pondo em causa induções electivas e fracassadas, agravando os problemas respiratórios destes neonatos com síndroma de adaptação pulmonar após cesarianas em RN de termo (síndroma de taquipneia transitória ou “pulmão húmido”).

Em suma, não se tendo registado quaisquer mortes maternas ou neonatais, resultados que suplantam muitas das séries publicadas, a morbilidade neonatal da DG, superior à da população em geral, continua a representar um importante problema de Saúde Pública.

QUADRO 1 – Morbilidade neonatal em RNMD e em GIG de mães não diabéticas.

Abreviaturas: RNMD: Recém-nascido de mãe diabética; GIG: RN Grande para a idade gestacional.

 RNMDGIGX2
 (n=211)(%)(n=157)(%)(p)
Fractura da clavícula4295,40,79
Paralisia do plexo braquial10,521,20,47
Anomalias congénitas94,394,70,582
Prematuridade2110,2116,60,959
Hipoglicémia63,142,40,663
SDR84,142,40,342
Icterícia6331,62816,8< 0,001
Policitémia73,695,40,437
Hipocalcémia94,721,20,054

Prognóstico

Se no 1º trimestre de gravidez as principais consequências da DPG se traduzem em anomalias congénitas e abortamentos, no final do 2º trimestre, período em que se verifica um aumento da diferenciação e maturação cortical cerebrais, um ambiente intrauterino desfavorável pode resultar em compromisso de vários tipos: cognitivo, psíquico e sensorial.

Factos provados cientificamente sugerem que estas crianças filhas de diabéticas apresentam défice psicomotor e psicossocial ligeiros a moderados, ainda que incidentes pós-natais possam igualmente contribuir para este prognóstico menos favorável.

Durante o 3º trimestre, devido à proliferação de adipócitos, células musculares e células-β dos ilhéus, as alterações metabólicas ocorridas poderão ter repercussões a longo prazo na idade adulta, nomeadamente quanto à incidência de obesidade, intolerância à glicose e diabetes não insulinodependente, de acordo com a hipótese de Barker: origem fetal de doenças com manifestações a partir da 4ª e 5ª décadas de vida. Este aspecto faz parte de um capítulo do livro (Volume 1- Parte IX).

Particularmente importante, do ponto de vista pediátrico, é determinar se a síndroma metabólica do adulto começa a manifestar-se precocemente e quais as características de apresentação. Nesta perspectiva, alargámos o leque de crianças filhas de mãe com DG para 335 e tomámos como população de controlo 295 crianças dos mesmos estratos sócio-económicos e da mesma área de distribuição geográfica.

Os resultados encontrados estão documentados nos quadros 2 e 3. Ainda que o IP, pelo menos para RN de termo ou próximo de termo, seja mais adequado para definir a composição corporal, neste estudo utilizámos o IMC na data do nascimento como parâmetro de comparação com as curvas de IMC no seguimento até à entrada para a escola (idade média 72 meses).

Pela análise do quadro 2, verificamos que a idade gestacional média dos filhos de mãe diabética insulinodepente (FMD ID) é significativamente inferior à dos filhos de mãe diabética não insulinodepente (FMD NID) e que à da população de controlo, em ambos os sexos. O IMC ao nascimento dos três grupos analisados é semelhante entre si; porém, há que ter em conta a diferença de idades gestacionais, sendo que, nos RNMID se verifica uma idade gestacional para um mesmo IMC semelhante aos restantes grupos.

No estudo de seguimento aos 72 meses de idade média (Quadro 3), verificamos um cruzamento ascendente de percentis de IMC transversal a todos os grupos, denotando o panorama preocupante actual de crianças com excesso de peso e de algumas, obesas. Esta tendência é particularmente acentuada nas raparigas FMD ID (Percentil IMC 15-50 ao nascimento versus 85-97 ao resultado do estudo de seguimento). Da mesma forma, as pressões arteriais sistólicas (PAS) são sempre mais elevadas nestas mesmas raparigas FMD IN, ainda que sem significado estatístico.

O peso relativo da carga genética, em confronto com noxas intrauterinas e pós-natais, não está completamente esclarecido. No entanto, pelo menos em modelos animais, a prevenção da hiperglicémia na gravidez reduz significativamente a prevalência de diabetes em futuras gerações. Os dados por nós documentados sublinham estas preocupações e confirmam que, apesar da Declaração de St. Vincent de 1989, este desidrato está longe de ter sido conseguido.

QUADRO 2 – Dados ao nascimento de filhos de mães diabéticas e população controlo.

Sexo feminino
 DG (n=160)Não-DG (n=138)
 ID (n=50)NID (n=110)  
Id. gestacional (X±Dp)37,7±0,8338,2±1,16p=0,00239,3±3,57p=0,001
IMC (X±Dp)
Percentil
13,1±1.49
15-50
13,2±1.25
15-50
p=0,41613,2±1.50
15-50
p=0,491
Sexo masculino
 DG (n=175)Não-DG (n=151)
 ID (n=55)NID (n=120)  
Id. gestacional (X±Dp)37,8±0,5638,0±1,49p=0,01739.07±1,14p=0,001
IMC (X±Dp)
Percentil
13,2±1.09
15-50
13,0±1.33
15-50
p=0,62313,3±1.03
15-50
p=0,154

 

QUADRO 3 – Dados do estudo de seguimento de filhos de mães diabéticas e da população controlo.

Sexo feminino
 DG (n=119)Não-DG (n=138)
ID (n=32)NID (n=87)  
Idade (Meses±dp)70±5.872±6.0p=0,17473±6.1p=0,029
IMC (X±dp)
Percentil
17.4±2.80
85-97
16.6±2.18
50-85
p=0,17616,6±2.53
50-85
p=0,541
PAS (mmHg±dp)101.4±10.6398.5±8.63p=0,05999,65±10,65p=0,289
PAD (mmHg±dp)54.7±8.8052.6±8.02p=0,18654,08±8.62p=0,343
Sexo masculino
 DG (n=135)Não-DG (n=151)
ID (N=44)NID (N=91)  
Idade (Meses±dp)72±5.971±9.2p=0,36274±6.8p=0,001
IMC (X±dp)
Percentil
16.5±2.25
50-85
16.7±3.33
50-85
p=0,57616.7±2.15
50-85
p=0,326
PAS (mmHg±Sd)102.1±9.0898.8±9.66p=0,14797,68.0±11,40p=0,090
PAD (mmHg±Sd)53.0±9.4152.6±7.72p=0,87354,9±10,39P=0,230

Estratégias possíveis de intervenção

De acordo com estudos de medicina baseada na evidência, segundo os quais um bom controlo metabólico pode alterar favoravelmente o panorama da diabetes na gravidez, porque é que, mesmo em países desenvolvidos, a generalidade dos resultados deixa tanto a desejar?

Em parte, porque muitos destes resultados reflectem cuidados pré-concepcionais e gestacionais muito heterogéneos e frequentemente insatisfatórios. Ainda que a carga genética possa ser desfavorável e ainda que outros substractos metabólicos para além da glicose, actuando em diferentes fases do desenvolvimento, possam contribuir para a etiopatogénese desta síndroma, de momento, contudo, a prioridade reside nos cuidados pré-concepcionais intensivos às mulheres diabéticas e na identificação das mulheres com risco de desenvolverem DG.

Nesta perspectiva, tais situações, uma vez diagnosticadas, deveriam beneficiar de um programa de controlo adequado, com redobrada atenção aos FMD não apenas no período neonatal incentivando, entre outras medidas, o aleitamento materno exclusivo e um estudo evolutivo de seguimento rigoroso com eventual controlo analítico de parâmetros precoces de síndroma metabólica do adulto com início na idade pediátrica.

Agradecimentos: Os autores, muito reconhecidamente, agradecem a colaboração da Professora Cláudia Silva da Faculdade de Ciências da Saúde/Universidade Fernando Pessoa, Porto, responsável pela análise estatística dos dados constantes deste capítulo.

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Definições e importância do problema

A utilização abusiva de drogas e determinadas substâncias, por vezes em associação (marijuana, morfina, cocaína, heroína, álcool, metadona, etc.), atingiu nas últimas décadas proporção de verdadeira epidemia com repercussão na grávida e no feto – futuro RN – pela exposição crónica aos referidos compostos.

Para melhor compreensão do problema importará definir fundamentalmente três conceitos interligados:

  1. Toxicodependência ou toxicomania: estado de intoxicação periódica ou crónica provocado pelo consumo repetido de uma substância (natural ou sintética), o qual é acompanhado por um desejo invencível ou pela necessidade de continuar a consumir a substância e de a obter por todos os meios, com tendência para aumentar as doses e para dependência psíquica, e frequentemente também física, em relação aos efeitos da mesma substância;
  2. Síndroma de abstinência (ou de privação): conjunto de sinais e sintomas específicos resultantes da suspensão ou redução do consumo da substância que criou dependência (sensação de a pessoa “não poder passar sem a mesma”), sendo que os referidos sinais e sintomas desaparecem com a administração da própria substância ou de um seu sucedâneo, como a metadona no caso da morfina; cabe referir, a propósito, que no contexto de utilização abusiva de substâncias, as acções verificadas podem ser o oposto das acções características das mesmas;
  3. Síndroma de abstinência neonatal (SAN): como se poderá deduzir, no feto (futuro RN), por efeito da exposição crónica aos referidos compostos, poderá surgir também dependência, acarretando ulterior quadro de manifestações clínicas (síndroma de abstinência neonatal) de duração variável, por privação brusca do efeito da substância a partir do momento da laqueação do cordão umbilical; descreve-se ainda uma SAN iatrogénica em situações que requereram sedação para realização de procedimentos invasivos ou intervenções cirúrgicas; saliente-se que o SAN não se define pela necessidade de terapêutica farmacológica.

A administração abusiva de substâncias e drogas (legais e ilegais) constitui um verdadeiro problema de saúde pública. Os efeitos adversos da toxicodependência na gravidez são variados e relacionam-se com cuidados pré-natais inadequados, risco aumentado de prematuridade, restrição de crescimento intrauterino, morte in utero, risco de síndroma de abstinência e toxicidade, risco de doenças infecciosas de transmissão vertical, risco social (emprego precário, situação económica débil, capacidade parental reduzida com negligência dos filhos) e risco de perturbação do neurodesenvolvimento da criança.

Dados estatísticos dos EUA (National Survey on Drug Use and Health, 2011) estimam que entre cerca de 5% das grávidas, tomam medicamentos não recomendados no referido período, incluindo as chamadas substâncias ilícitas. A análise retrospectiva de uma amostra representativa dos EUA revelou que entre 2000 e 2009 a taxa de RN com SAN aumentou de 1,2 para 3,39 por 1.000 nascimentos hospitalares por ano. Em Portugal, em diversos estudos epidemiológicos realizados em diferentes décadas foram apuradas “relações de casos por mil nados-vivos” entre 2,7/1.000 e 10/1.000 (entre 1990 e 2006), testemunhando o aumento da prevalência e a importância da toxicodependência na mulher portuguesa em idade fértil.

Na grávida toxicodependente (TD), sobretudo nos casos de consumo de heroína, poderão surgir episódios de síndroma de abstinência cujas consequências poderão ser fundamentalmente o aborto, a morte fetal, a restrição de crescimento fetal e o parto pré-termo.

A terapêutica de substituição na grávida, realizada com metadona ou buprenorfina, parece reduzir as complicações na gravidez, não evitando, contudo, a SAN. Uma referência especial à marijuana cuja utilização nos EUA em 2006 atingiu a cifra superior a 11 milhões de utilizadores entre os 18 e 25 anos e com uma frequência nas grávidas, variando conforme as regiões, entre 5-35%.

Um dos factores mais pejorativos no grupo de grávidas toxicodependentes é a concomitância de determinadas infecções classicamente ligadas a comportamentos de risco, tais como, por VHB, VHC, HPV, VIH, etc., contribuindo para comorbilidade com repercussões no feto e RN.

Etiopatogénese

Os efeitos de drogas e substâncias sobre o feto/RN dependem de diversos factores: idade gestacional em que a substância actua; duração da exposição fetal; tipo de droga consumida, via de administração e concentração sanguínea atingida; estilo de vida da grávida.

Os mecanismos pelos quais as substâncias actuam são diversos: acção teratogénica; acção carcinogénica; interferência com a diferenciação de tecidos e órgãos; depressão ou sedação do feto/RN; dependência e ulterior síndroma de abstinência (privação brusca do efeito após laqueação do cordão umbilical).

Importa distinguir duas situações resultantes da exposição a determinadas substâncias in útero:

  • Toxicidade aguda, resultante da exposição directa à droga e que acarreta alterações neurocomportamentais semelhantes a SAN, mas que melhoram à medida que a substância é eliminada e;
  • Toxicidade não aguda, com agravamento à medida que ocorre a metabolização e a excreção da droga.

As substâncias que mais frequentemente são consumidas pela grávida são sistematizadas no Quadro 1.

QUADRO 1 – Substâncias de consumo abusivo pela grávida

Analgésicos narcóticos (opiáceos)

    • Heroína
    • Meperidina
    • Morfina
    • Propoxifeno
    • Metadona
    • Pentazocina
    • Codeína

Simpaticomiméticos (estimulação do SNC)

    • Anfetamina
    • Fenmetrazina
    • Metanfetamina
    • Cocaína
    • Dextroanfetamina

Hipnóticos e sedativos (depressão do SNC)

    • Barbitúricos (efeitos de curta ou longa duração)
    • Glutetimida
    • Fenotiazinas
    • Hidrato de cloral
    • Álcool
    • Sedativos e tranquilizantes menores (diazepam, clorodiazepóxido, etc.)
    • Alcalóides da beladona (escopolamina, atropina)
    • Hidrocarbonetos voláteis (gasolina, tolueno, etc.)

Alucinógenos

    • Dietilamida do ácido lisérgico (LSD)
    • Mescalina
    • Marijuana (Cannabis sativa L) – por vezes considerada em grupo à parte
    • Fenilciclidina-hidrocloreto (“pó de anjos”)


Os opiáceos ligam-se aos receptores de opiáceos do SNC. Algumas das manifestações clínicas de privação resultam de hipersensibilidade alfa-2 adrenérgica, particularmente ao nível do locus ceruleus. No caso da cocaína, tal tipo de manifestações pode explicar-se do seguinte modo: a cocaína previne a recaptação de neurotransmissores (epinefrina, norepinefrina, dopamina e serotonina) nas terminações nervosas, resultando em hipersensibilidade ou resposta exagerada aos neurotransmissores ao nível dos órgãos efectores.

Os referidos opiáceos constituem a causa mais frequente de SAN. Em cerca de 90% dos RN nestas circunstâncias surgem manifestações clínicas de grau variável. Destes, em mais de metade (50-75%), a sintomatologia necessita de tratamento. A incidência e a gravidade de SAN é superior nos RN expostos a metadona comparativamente aqueles expostos à heroína e à buprenorfina.

Seguidamente são descritos de modo sucinto os efeitos de algumas das substâncias atrás discriminadas, reservando para a alínea “Manifestações clínicas” o quadro relacionado com a síndroma de abstinência neonatal.

Heroína

A heroína pode originar restrição do crescimento fetal e baixo peso de nascimento; um dos efeitos biológicos é a elevação do magnésio sérico fetal e neonatal. Um fenómeno não completamente explicado é o aumento do número de casos de síndroma de morte súbita do lactente. Curiosamente, pela indução da glucuronil-transferase e das enzimas responsáveis pela produção de surfactante pulmonar, verifica-se respetivamente menor incidência de hiperbilirrubinémia e de DMH.

Morfina

O abuso de morfina na gravidez não está associado a anomalias congénitas.

Metadona

A metadona é um analgésico opiáceo sintético com uma semi-vida longa (16 a 25 horas no período neonatal). A sua indicação mais frequente (no contexto do tema que se apresenta) é a de substituir outras substâncias utilizadas no regime de abuso pela mãe durante tempo prolongado, num processo lento de retirada para evitar síndroma de abstinência materna. Nos fetos submetidos de modo prolongado à acção da metadona não se verifica incidência aumentada de anomalias congénitas, sendo que o respectivo peso de nascimento médio é superior ao verificado, por exemplo, nos fetos submetidos à acção da heroína. No entanto, o perímetro cefálico médio (não necessariamente acompanhado de restrição de crescimento fetal) é inferior ao verificado em fetos não expostos à droga. O mecanismo destas alterações é desconhecido. De salientar que a metadona administrada à grávida com fins terapêuticos de substituição poderá, por sua vez, originar síndroma de abstinência neonatal se o parto ocorrer ainda durante o processo de “desmame” da mesma. Alguns estudos têm descrito que a metadona afecta menos os prematuros que os recém-nascidos de termo, necessitando os primeiros de doses menores de opiáceos, menor duração do tratamento e do internamento (relacionado com o SAN). Admite-se que esta situação seja explicada pela imaturidade dos sistemas de metabolização, menor desenvolvimento das conexões nervosas, menor duração da exposição ao opiáceo e menor transmissão durante o 3º trimestre.

Anfetaminas

Admite-se que esta substância não tenha efeitos teratogénicos. Pode verificar-se restrição do crescimento fetal, parto prematuro, descolamento da placenta e sofrimento fetal. A existência de SAN secundário à exposição a anfetaminas é controversa. Um estudo retrospectivo refere que apenas 4% dos RN com sintomas atribuíveis a SAN por anfetaminas necessitaram de terapêutica. Não existem dados prospectivos que suportem a existência de SAN a anfetaminas.

Cocaína

Como resultado do consumo crónico deste composto (inalado, fumado, aspirado, por via IV, etc.), assim como de um seu derivado designado por crack, verifica-se maior risco de aborto, hipoperfusão placentar com consequente hipoxia crónica, descolamento da placenta, ruptura prematura das membranas e parto prematuro, entre outras repercussões. A mortalidade neonatal é mais elevada e relacionável fundamentalmente com restrição de crescimento fetal, difícil adaptação à vida extrauterina, anomalias congénitas e morte súbita. Alguns autores consideram mesmo, pelo seu efeito teratogénico, a individualização dum quadro de embriofetopatia cocaínica. Tendo sido demonstrado que a actividade da colinesterase, uma das enzimas de degradação da cocaína, está diminuída na grávida e feto, existindo nestes, maior susceptibilidade à referida droga.

Fenobarbital

O fenobarbital é utilizado frequentemente como droga de abuso em todas as classes socioeconómicas. Na mãe poderá verificar-se a ocorrência de síndromas de abstinência recorrentes (traduzidas por convulsões), com acção deletéria sobre a própria mãe e feto. Este fármaco atravessa a placenta distribuindo-se rapidamente por todos os órgãos do feto, com maior concentração no baço e encéfalo. Os efeitos da exposição in utero traduzem-se essencialmente por fenómenos hemorrágicos e anomalias congénitas menores. Os RN de mães dependentes de fenobarbital são geralmente de termo, sem compromisso do crescimento intrauterino. A incidência de síndroma de abstinência por fenobarbital não é conhecida.

Álcool

O álcool é teratogénico, se consumido nas primeiras 10-12 semanas após a concepção, sendo os efeitos mais acentuados com a absorção de cerca de 30-50 gramas de álcool absoluto por dia. Um quadro dismorfológico (embriofetopatia alcoólica) integrando defeitos congénitos, por vezes associados e de expressividade variável, pode ser identificado no RN: defeitos cardíacos e nefro-urológicos, fissura palpebral pequena, ptose palpebral, estrabismo, prega do epicanto, microftalmia, orelhas em abano, nariz pequeno, filtro longo, lábio superior fino, retrognatismo, lábio leporino, fenda palatina, microcefalia, etc..

No período neonatal precoce são notórios sinais de restrição de crescimento intrauterino, hipotonia, irritabilidade, sendo o prognóstico reservado, designadamente em termos de neurodesenvolvimento.

Alguns estudos chamaram a atenção para o papel da associação deletéria álcool-nicotina/cotinina do fumo do tabaco. A nicotina/cotinina na gestação está associada a aborto espontâneo, prematuridade, restrição do crescimento fetal e baixo peso de nascimento. Um maço de cigarros fumado por dia conduz a decréscimo de aproximadamente 300 gramas do peso de nascimento num RN de termo. Os efeitos tóxicos podem ser explicados, quer pelo monóxido de carbono (CO), quer pelo vasospasmo induzido pela nicotina.

Diazepam

A exposição a este fármaco está associada a restrição de crescimento fetal, defeitos cardíacos e hemangiomas. No RN duas ordens de problemas neonatais no período pós-parto imediato poderão surgir:

  1. Síndroma relacionada com efeito do próprio fármaco, manifestada por hipotonia, letargia e dificuldade de sucção;
  2. Síndroma de abstinência: tremores, irritabilidade, hipertonia, diarreia, sucção vigorosa, etc..

LSD (dietilamida do ácido lisérgico)

Relativamente ao LSD importa referir a elevada incidência de anomalias congénitas associadas, sobretudo do globo ocular (catarata, microftalmia, displasia retiniana, etc.). Muito utilizada por adolescentes na década de 60, existe hoje nos EUA tendência para reincidência do seu abuso.

Marijuana e seus derivados (haxixe)

A marijuana é um extracto da planta Cannabis sativa contendo mais de 420 compostos, muitos dos quais biologicamente activos. Pela sua elevada lipossolubilidade, atravessa facilmente a placenta exercendo efeito directo e prolongado nas células fetais, tendo uma eliminação demorada (cerca de 4 semanas) e uma semi-vida de cerca de 1 semana.

Admite-se também que, pela elevação do nível de CO (muito mais elevado do que acontece com nicotina/cotinina), origina hipóxia fetal crónica. Partilha com a cocaína o efeito de elevação da pressão arterial na grávida e redução do leito vascular.

Outros efeitos descritos são: parto prematuro, maior incidência de eliminação de mecónio in utero, baixo peso de nascimento, etc.. Como efeitos a médio e longo prazo no RN, lactente e criança citam-se: alteração do padrão do sono, atraso da maturação do sistema visual, défice de atenção, etc..

Outras substâncias

Uma referência a outras substâncias como:

  • Pentazocina, analgésico não narcótico que pode originar restrição de crescimento fetal e síndroma de abstinência;
  • Substâncias inaladas (tolueno ou 1,1,1-tricloro-etano, gás butano, óxido nitroso, etc.) que, durante a gravidez poderão levar a restrição de crescimento fetal, prematuridade e síndroma malformativa semelhante à embriofetopatia alcoólica;
  • Ecstasy, com acções similares à anfetamina e mescalina, tem efeitos estimulantes e psicadélicos durando cerca de 3-6 horas; os estudos disponíveis não têm referido incidência aumentada de aborto ou de anomalias congénitas.

Manifestações clínicas de abstinência (SAN) e diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas relacionadas com SAN, assim como a data do seu aparecimento, são variáveis e não dependem exclusivamente do tipo de substância consumida pela mãe. Admite-se que estejam relacionados com as seguintes condições:

  • Exposição materna: tipo de substância, frequência, dose, medicação concomitante (particularmente fármacos psicotrópicos), outras drogas (incluindo álcool e tabaco) e idade gestacional em que ocorre o consumo;
  • Factores maternos: nutrição, infecções, estresse, comorbilidades (incluindo psiquiátricas);
  • Metabolismo opióide placentário;
  • Factores genéticos (maternos e do feto);
  • Factores relacionados com o recém-nascido: prematuridade, infecções, taxa de metabolismo e excreção da droga;
  • Factores ambientais: capacidade dos cuidadores em dar resposta às necessidades do RN e ambiente físico.

Globalmente, tais manifestações traduzem repercussões da privação ao nível dos sistemas nervoso central e autónomo, e digestivo, as quais podem ser assim sintetizadas:

  1. Irritabilidade, hiperexcitabilidade, tremores, hipertonia, hiperreflexia osteotendinosa, choro de tonalidade aguda, reflexo de Moro vivo, abalos mioclónicos, convulsões (2-11%), diminuição do período de sono, etc.;
  2. Hipersudorese, instabilidade térmica, febre, obstrução nasal, crises esternutatórias, taquipneia, etc.;
  3. Dificuldades alimentares, incoordenação da sucção-deglutição, vómitos, diarreia, perda de peso excessiva, desidratação, recusa alimentar, etc..
Nesta perspectiva, pode concluir-se que, o diagnóstico provisório de SAN é essencialmente clínico, sendo fundamental a elaboração de anamnese perinatal e exame objectivo rigorosos, no pressuposto de elevado índice de suspeita clínica.

 

Para o estudo evolutivo durante o internamento hospitalar existem diversos instrumentos e escalas disponíveis (por exemplo a escala de Lipsitz, a escala de Finnegan, etc.). O objetivo é permitir avaliar a gravidade do SAN, sendo utilizadas para iniciar, ajustar e desmamar a terapêutica farmacológica. Apesar de não existirem provas científicas que suportem a utilização de uma escala em detrimento de outra, em Portugal, tal como na maioria dos países, utiliza-se mais frequentemente a Escala de Finnegan, a aplicar de 4/4 horas. Esta escala integra um conjunto de parâmetros clínicos aos quais se atribui determinada pontuação, sendo que se pode considerar a situação em vias de melhoria à medida que a pontuação final diminui. (Quadro 2)

Seguidamente são referidas algumas particularidades das manifestações em função da substância em causa.

QUADRO 2 – Escala de Finnegan.

Sinais de SANPontuação(Registos de 4-4 horas)
Choro gritado excessivo2 
Choro gritado excessivo contínuo3 
Sono pós-prandial
1 hora3 
2 horas2 
3 horas1 
Reflexo de Moro hiperactivo2 
Reflexo de Moro marcado3 
Tremor após estimulação, ligeiro1 
Tremor após estimulação, acentuado2 
Hipertonia ligeira3 
Hipertonia  marcada6 
Convulsões8 
Sudação1 
Temperatura rectal 37,8 ºC-38,3 ºC2 
Temperatura rectal > 38,3ºC2 
Bocejos > 3-4 vezes por cada 4 horas 1 
Escoriações
nariz1 
joelhos1 
dedos dos pés1 
Obstrução nasal1 
Espirros1 
Adejo nasal1 
FR > 601 
Retracção costal2 
Sucção “frenética”1 
Recusa alimentar1 
Regurgitação1 
Vómitos em jacto1 
Fezes moles2 
Fezes líquidas3 
Pontuação final  

Opiáceos, barbitúricos e benzodiazepinas

A SAN ocorre em cerca de 60-90% dos RN expostos, na maioria dos casos cerca dos 2-3 dias de vida; no entanto, o quadro clínico pode verificar-se desde o pós-parto imediato até 1-2 semanas. No caso da heroína a sintomatologia inicia-se habitualmente nas primeiras 24 a 48 horas de vida. A metadona condiciona SAN nas primeiras 48 a 72 horas de vida (semivida mais prolongada com declínio lento dos níveis), podendo ainda surgir somente entre as 2-4 semanas de vida (SAN tardia). Nos RN expostos a buprenorfina o início dos sintomas ocorre cerca das 40 horas de vida. Sinais como agitação, tremores, sono entrecortado e intolerância alimentar poderão prolongar-se durante cerca de 3-6 meses. Nos dias e semanas seguintes poderão surgir alterações neuro-comportamentais. De salientar que as convulsões surgem em cerca de 8% de RN de mães submetidas a tratamento com metadona, e em cerca de 2% de RN de mães abusando de heroína. No caso dos barbitúricos o SAN inicia-se entre o 1º e o 14º dia (pico aos 4-7 dias); outros sedativos hipnóticos têm SAN mais tardio (diazepam até aos 12 dias e cloradiazepóxido até aos 21 dias).

Cocaína

No caso da cocaína cabe particularizar os seguintes sinais (mais de intoxicação do que de SAN): irritabilidade, tremores, choro gritado, hiperreflexia, recusa alimentar, obstrução nasal, taquipneia e alteração dos padrões do sono. A criança pode evidenciar alterações neuro-comportamentais que podem ultrapassar o período neonatal.

Marijuana

Os RN de mães consumidoras de marijuana evidenciam geralmente alterações neuro-comportamentais a curto, médio e longo prazo.

O quadro clínico compatível com SAN, pela sua inespecificidade, sobretudo quando oligossintomático, obriga a estabelecer o diagnóstico diferencial com determinadas situações tais como, infecções, problemas metabólicos (hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesiémia), hipertiroidismo, hemorragia do SNC, EHI e outras.

Exames complementares

De acordo com a história clínica (salientando-se que a anamnese realizada à mãe é muitas vezes não concludente), está indicada a realização de determinados exames complementares na tentativa de esclarecimento da situação.

As amostras biológicas podem ser obtidas (com consentimento esclarecido) a partir da mãe ou do RN: urina, mecónio, líquido amniótico, vernix caseosa, cabelo, unhas, etc.. No entanto, todos os testes apresentam limitações clinicamente significativas e nalguns casos apenas estão disponíveis no contexto de investigação. De salientar que a presença da droga, ou de metabólitos de certa droga, no mecónio ou cabelo, permite deduzir administração dos mesmos durante o 2º e 3º trimestres, e exposição fetal prolongada. Os testes toxicológicos na urina do RN têm baixa sensibilidade (taxa elevada de falsos negativos) permitindo apenas a detecção se a exposição à droga for recente. A pesquisa de drogas numa amostra de urina ou mecónio, nos casos em que for justificada a sua realização, deve ser efectuada o mais precocemente possível porque a metabolização e excreção da maioria das drogas é rápida. A metadona, buprenorfina e oxicodona não são detectadas nos kits habitualmente utilizados.

Aspectos técnicos específicos relacionados com a realização de tais análises ultrapassam os objetivos do livro.

Tratamento

O tratamento tem como principais objectivos estabilizar as manifestações clínicas e restaurar a atividade normal do RN, nomeadamente estabelecer um ganho ponderal consistente e manter padrões de sono e alimentação adequados. A abordagem inclui medidas gerais e farmacológicas.

Medidas gerais

Estas medidas, que deverão ser individualizadas em função do contexto clínico, são: estimulação sensorial mínima (ambiente calmo, com pouca luz), posição em flexão, de preferência, com imobilização suave e almofadada, prevenção do choro excessivo recorrendo a carícias suaves e à chupeta, etc.. A utilização de luvas no RN poderá evitar escoriações que resultam da actividade excessiva do RN.

Se houver antecedentes maternos de regime com metadona deve providenciar-se aleitamento materno. Este está contraindicado se houver antecedentes de seropositividade para VIH, abuso materno de álcool, anfetaminas, heroína, cocaína, etc..

O regime alimentar deverá ser semelhante ao indicado em condições normais, respeitando o apetite da criança, muitas vezes com refeições pequenas e frequentes. Caso a progressão ponderal seja insuficiente deverá incrementar-se o suprimento energético com fórmulas hipercalóricas (150-250 kcal/kg/dia). Pode agravar a diarreia.

O rooming-in ou alojamento comum mãe/RN está indicado nos casos em que não há necessidade de terapêutica farmacológica, promovendo desta forma as competências parentais.

Quer durante a hospitalização, quer após a alta para o domicílio, das medidas gerais fazem parte ainda o apoio por equipa multidisciplinar (incluindo apoio pela família e pelo serviço social) e estímulo da interacção mãe-filho, reconhecendo-se à partida, as dificuldades no seguimento das crianças filhas de mãe TD.

Medidas farmacológicas

A decisão de iniciar tratamento farmacológico deverá fundamentar-se num sistema objetivo de avaliação da gravidade de SAN, como a Escala de Finnegan. Nestes casos o RN deverá ser internado na Unidade de Neonatologia.

As indicações para tratamento farmacológico podem ser assim sistematizadas:

  • Escala de Finnegan com pontuação ≥ 8 em três avaliações consecutivas; ou
  • Escala de Finnegan com pontuação ≥ 12 em duas avaliações consecutivas; ou
  • Convulsões.

De salientar, no entanto, que cada caso deverá ser ponderado para decisão de iniciar farmacoterapia, nomeadamente, valorizando agravamento clínico progressivo com repercussão importante no RN (irritabilidade progressiva, dificuldade alimentar e perda de peso significativa).

A escolha do fármaco a utilizar depende sobretudo da droga consumida pela mãe. Em Portugal, de acordo com a Secção de Neonatologia da Sociedade Portuguesa de Pediatria, o enquadramento das diferentes situações é o seguinte:

SAN aos opiáceos

A morfina é a droga de primeira linha. A metadona é uma alternativa, mas a sua semi-vida é muito prolongada e variável no RN tornando difícil a avaliação da sua eficácia. O fenobarbital pode ser utilizado como segunda droga nos casos em que os sintomas não estão controlados com as doses máximas de morfina ou metadona. A buprenorfina mostrou-se segura e eficaz, bem como a clonidina (em monoterapia ou em associação a opiáceos), mas ambas as drogas necessitam de mais estudos para serem recomendadas para uso regular.

SAN aos não opiáceos

O fenobarbital constitui a droga de 1ª linha.

Durante a terapêutica é fundamental a monitorização cardiorrespiratória e a vigilância dos efeitos secundários, nomeadamente depressão respiratória, hipotensão, retenção urinária e atraso no esvaziamento gástrico.

Do ponto de vista prático, inicia-se a terapêutica com uma dose baixa e que se aumenta progressivamente até ao controlo dos sintomas (Índice de Finnegan consistentemente < 8). Após 72 horas de controlo sintomático inicia-se a redução progressiva até à suspensão. A vigilância deve ser mantida por mais 72 horas após interromper a farmacoterapia.

Em Portugal os fármacos mais frequentemente utilizados são:

*Morfina

  • Dose inicial 0,04 mg/kg a cada 3-4h, aumento de 0,04 mg/kg/dose até à dose máxima de 0,2 mg/kg/dose;
  • Desmame: 10% da dose diária a cada 48h, com suspensão quando atingir 0,1-0,12 mg/kg/dia.

*Metadona

  • Dose inicial 0,05-0,1 mg/kg a cada 6-12h, aumento de 0,05 mg/kg/dose até obter efeito, passando então a cada 12-24 horas;
  • Desmame: 0,05 mg/kg/dia, com suspensão quando atingir uma dose inferior a 0,05 mg/kg/dia.

*Fenobarbital

  • Dose inicial 15 mg/kg oral ou ev, seguindo-se a dose de manutenção de 5 mg/kg/dia (2 administrações), com dose máxima de 8 mg/kg/dia;
  • Desmame: 10% da dose diária a cada 72h. Se associado a morfina, esta deve ser suspensa antes de iniciar a redução do fenobarbital. Suspender quando a dose for inferior a 2 mg/kg/dia.

*Clonidina

  • Dose inicial 0,5-1 mcg/kg a cada 3-6h, com dose máxima de 1 mcg/kg a cada 3h;
  • Desmame: 0,25 mcg/kg a cada 6h.

Critérios para alta

  • Na ausência de SAN recomenda-se vigilância em internamento durante, pelo menos, 7 dias se a mãe estiver em programa de metadona, e 5 dias se a mãe for consumidora de outras drogas;
  • Na presença de SAN protelar a alta até 72 horas sem terapêutica farmacológica e livre de sintomas;
  • RN clinicamente estável, sem dificuldades alimentares e com aumento ponderal consistente;
  • Adequação dos pais na prestação de cuidados;
  • Avaliação e orientação pela assistente social;
  • Visitas domiciliárias com marcação prévia.

Prognóstico e prevenção

Os dados que permitem estabelecer o prognóstico dependem da possibilidade de seguimento completo das crianças filhas de mãe TD, seguimento que é difícil se não existir um programa estruturado de apoio multidisciplinar domiciliário, incluindo, claro está, a vertente preventiva. Tal dificuldade decorre designadamente do ambiente desorganizado em que vive a mãe ou a família, e tanto mais quanto mais jovem for aquela (frequentes faltas às convocatórias, mudanças frequentes de residência, institucionalização das crianças por deficiente apoio familiar, etc.).

De acordo com os dados disponíveis da literatura nacional e internacional (seguimento até aos 6 anos de idade) podem ser sintetizados os seguintes desfechos:

  • Má progressão ponderal/hipocrescimento;
  • Dificuldades nas áreas de percepção e cognição;
  • Défice de concentração, atenção e memória;
  • Alterações comportamentais;
  • Alterações neurológicas (sobretudo do tono muscular e coordenação), etc.;
  • Maior probabilidade de SMSL.

Estes achados são mais prevalentes se houver antecedentes de TD à heroína e à metadona.

O problema da toxicodependência, com enorme carga social, é muito complexo e multifactorial; por isso, a sua prevenção deverá incidir sobre múltiplas frentes cuja abordagem, pela sua magnitude, ultrapassa o âmbito deste capítulo.

Considerando como tópico central a díade mãe-filho, cabe salientar o papel importante dum sistema eficaz e sistemático de visitas domiciliárias a cargo de equipa multidisciplinar (envolvendo fundamentalmente médicos de família, pediatras, equipas de enfermagem, técnicos de acção social, psiquiatras comunitários, etc.) para apoio das famílias em risco numa perspectiva proactiva, quer de prevenção primária da toxicodependência, quer de desintoxicação em idade pré-concepcional.

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Definição e importância do problema

A dor é definida como uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a lesão tecidual. Trata-se, pois, dum fenómeno subjectivo demonstrável no RN, já a partir das 24 semanas de gestação; efectivamente, os elementos do SNC necessários para a transmissão do estímulo doloroso ao córtex cerebral estão presentes desde aquela idade gestacional, conquanto a maturação funcional e estrutural do sistema neurossensorial progrida durante a vida pós-natal.

O reflexo doloroso característico do primeiro trimestre é exagerado e hipersensível, devido a proliferação e diferenciação das células nervosas e ao aumento do número de receptores. Esta situação mantém-se até o início do período neonatal. Neste período, a resposta ao estímulo doloroso torna-se mais específica e localizada devido ao desenvolvimento, da actividade neural, factores tróficos, marcadores e formação de sinapses específicas.

O desenvolvimento cognitivo é determinante na reacção ao estímulo doloroso o que significa que, em cada faixa etária, a reação à dor pode variar. Apesar da existência de recursos relativamente reduzidos para a analgesia no período neonatal, existem alternativas seguras e eficazes para o tratamento doloroso neste grupo etário. Salienta-se que a indicação da analgesia deverá ser individualizada e sempre considerada em recém-nascidos portadores de doença potencialmente dolorosa e/ou submetidos a cirurgia ou manobras invasivas.

De acordo com estudos epidemiológicos, em média, cada RN hospitalizado em UCIN é sujeito a cerca de 8-10 procedimentos dolorosos por dia nas primeiras semanas de vida; no caso dos RNMBP tal acontece cerca de 500 ou mais vezes durante o respectivo internamento. Entre as múltiplas “agressões” associadas aos cuidados contam-se estímulos intensos auditivos, visuais, tácteis/manuseamentos intempestivos, punções, entubações, ventilação mecânica e aspiração de secreções. Nos doentes do foro cirúrgico assume importância a dor provocada por manobras cruentas ao nível de vários territórios.

Nesta perspectiva, em todas as unidades neonatais existe a preocupação de reduzir ao mínimo a dor, a qual se exprime de modo peculiar no RN.

Cabe referir, a propósito do combate à dor (analgesia ou conjunto de medidas que suprimem ou atenuam a dor) que por vezes o mesmo é utilizado em associação a outro tipo de medida (sedação ou conjunto de medidas de acalmia); o objectivo final é, minorando o estresse, proporcionar o máximo de bem-estar à criança, o que tem repercussões funcionais positivas ao nível de diversos órgãos e sistemas.

Etiopatogénese

Face a estímulo doloroso, o RN apresenta uma resposta global de estresse traduzida por alterações de tipo cardiovascular, respiratório, imunológico, hormoral, metabólico e comportamental.

Com efeito, a dor activa determinados mecanismos compensatórios do sistema nervoso autónomo. As alterações fisiopatológicas resultantes da percepção de dor (nocicepção) podem ser sistematizadas do seguinte modo: taquicárdia, elevação da pressão arterial sobretudo à custa da pressão sistólica, taquipneia ou bradipneia/apneia, variação da pressão intracraniana, hipoxémia, hipercápnia, libertação de mediadores como renina, endorfinas, catecolaminas, e cortisol ou seus precursores.Verifica-se igualmente catabolismo proteico, consumo de gorduras e hiperglicémia. Embora a especificidade e a sensibilidade destes “indicadores” variem muito, tais sinais e fenómenos são de fácil aplicação e estão disponíveis nas unidades de cuidades intensivos neonatais.

O estímulo doloroso prolongado pode ter consequências a médio prazo, tais como hemorragia intracraniana e leucomalácia periventricular. A longo prazo, demonstrou-se que o referido estímulo poderá ter repercussão sobre a estrutura (neurónios e sinapses) do próprio sistema nervoso central. Torna-se assim compreensível que o manejo inadequado do estresse num recém-nascido seja susceptível de ter impacte negativo na criança, predispondo no futuro a problemas de ordem cognitiva e comportamental.

Avaliação da dor

A avaliação e medição da dor na criança que não possui linguagem falada coloca problemas complexos pela dificuldade na concepção de um instrumento sensível e válido, e de fácil aplicação na prática clínica.

Em complemento do que foi referido antes, cumpre salientar os parâmetros fisiológicos que podem ser “medidos” para avaliar ou “objectivar” a dor, com a noção de que se trata de medidas fisiológicas objectivas, mas pouco específicas: frequência cardíaca (elevação), frequência respiratória (maior variabilidade, elevação ou apneia), pressão arterial sistólica (elevação), sudorese palmar (aumento), pressão transcutânea ou saturação transcutânea em O2 (diminuição) e hormonas de estresse.

De facto, podem ser obtidas reacções ou sinais orgânicos similares como resultado de estímulos desagradáveis (de desconforto), mas não dolorosos. Por outro lado, a avaliação da dor no RN pré-termo e no RN em estado crítico levanta problemas particulares, pois as manifestações encontradas poderão corresponder às manifestações da própria doença de base, sendo a dificuldade maior nos casos de disfunção cerebral.

A avaliação comportamental baseia-se na modificação de determinadas expressões comportamentais desencadeadas pelo estímulo doloroso; as que têm sido mais estudadas são: a resposta motora à dor (alterações do tono e movimentos do corpo), mímica facial, choro e padrão de sono-vigília.

O choro, considerado o método primário de comunicação dos recém-nascidos (RN), é por isso pouco específico; nos casos dos recém-nascidos de extremo baixo peso, na maioria das vezes entubados, tal dado não poderá ser avaliado.

A actividade motora isolada parece ser um método sensível, pois os RN pré-termo e de termo evidenciam classicamente um repertório organizado de movimentos após a estimulação sensorial.

A expressão facial fornece informações válidas, específicas e sensíveis sobre a intensidade da dor e permite uma comunicação eficaz entre o RN e os respectivos prestadores de cuidados.

Em comparação com os parâmetros fisiológicos, os parâmetros comportamentais são mais específicos, embora menos objectivos, dependendo da interpretação de cada observador.

Na prática clínica são utilizadas as chamadas escalas (ou valorização de modo estruturado de determinados parâmetros fisiológicos ou comportamentais), atribuindo-se pontuação aos referidos parâmetros; assim, é possível chegar-se a pontução total ou somatório dos pontos atribuídos a cada parâmetro isoladamente.

Tendo como base tal critério, a avaliação da dor poderá ser feita de modo sistematizado pela equipa assistencial, designadamente nas seguintes circunstâncias:

  • Procedimentos cirúrgicos;
  • Manobras invasivas;
  • RN submetidos a ventilação mecânica;
  • RN com lesões traumáticas, incluindo traumatismos de nascimento;
  • RN com enterocolite necrosante;
  • Queimaduras da pele;
  • Abrasão causada por sensores transcutâneos, monitores ou dispositivos de contacto.

Entre várias escalas, cabe salientar quatro, de aplicação relativamente fácil:

  • NFCS (Neonatal Facial Coding Scale) ou escala de avaliação da mímica facial – presença ou ausência de 8 parâmetros observáveis na fronte e face (Quadro 1);
  • NIPS (Neonatal Infant Pain Scale) ou escala de avaliação da dor para recém-nascidos – englobando presença ou ausência de parâmetros comportamentais e fisiológicos de dor (Quadro 2);
  • CRIES (Crying, Requiring O2 for saturation > 90%, Increased vital signs, Expression, and Sleeplessness), escala utilizada para a avaliação da dor pós-operatória de RN (Quadro 3);
  • PIPP (Premature Infant Pain Profile), a escala mais adequada para avaliação da dor em RN pré-termo (Quadro 4).

A escala CRIES integra cinco parâmetros; a cada um é atribuída a pontuação de 0 a 2, obtendo-se a pontuação máxima de 10. A determinação faz-se cada 2 a 4 horas no período de 48 horas após intervenção cirúrgica. Se a pontuação for igual ou superior a 5, está indicada analgesia.

Como limitações há referir, por exemplo, a dificuldade de avaliação do choro e da mímica facial em doentes submetidos a ventilação mecânica.

A escala de PIPP é a mais indicada para avaliação da dor neste grupo etário por considerar as alterações próprias desta faixa de pacientes. Salienta-se que a mesma foi validada quanto à sua aplicabilidade em situações de pós-operatório.

QUADRO 1 – NFCS (Neonatal Facial Coding Scale).

Se a pontuação for superior a 3 está indicada analgesia
Parâmetro Pontuação 0
(ausência)
Pontuação 1
(presença)
Fronte saliente  
Pálpebras contraídas  
Sulco nasolabial mais acentuado  
Lábios entreabertos  
Boca esticada/protusão labial  
Lábios franzidos  
Língua tensa  
Tremor do mento  

QUADRO 2 – NIPS (Neonatal Infant Pain Scale).

Se a pontuação for superior a 3 está indicada analgesia
ParâmetroPontuação 0Pontuação 1Pontuação 2
Estado de alertaA dormir e/ou calmoDesconfortável e/ou calmo
Membros superioresRelaxadosFlectidos/estendidos
Membros inferioresRelaxadosFlectidos/estendidos
RespiraçãoRegularIrregular
ChoroAusenteQueixosoVigoroso
Expressão facialRelaxadaContraída

QUADRO 3 – CRIES (Escala de avaliação da dor no pós-operatório).

Parâmetro                                    Pontuação (0), (1), (2)
Choro → Ausente (0), Forte (1), Inconsolável (2)
FiO2 para SpO2 > 90% → 21% (0), 21-30% (1), > 30% (2)
FC e PA → Não > FC e PA (0), Até > 20% FC ou PA (1), >20% FC ou PA
Mímica facial → Relaxada (0), Careta esporádica (1), Contraída (2)
Sono/vigília → Normal (0), Intervalos curtos (1), Ausente (2)
PA=pressão arterial; FC=frequência cardíaca
Se pontuação 5 está indicada analgesia

QUADRO 4 – Escala do perfil de dor, do recém-nascido prematuro (PIPP).

Pontuação igual ou inferior a 6 →  indica ausência de dor; entre 6 e 11 → indica dor leve;  se superior ou igual a 12 → dor moderada a intensa.

PIPPIndicadores0123
 IG (semanas)36 ≥ semanas  e 6 dias32 a 35 semanas e 6 dias28 a 31 semanas e 6 dias< 28 semanas
Observar RN por um período 15mEstado de alerta Activo
Acordado
Olhos abertos
Movimentos faciais presentes
Quieto
Acordado
Olhos abertos
Sem mímica
Activo
Dormindo
Olhos fechados
Movimentos faciais presentes
Quieto
Dormindo
Olhos fechados
Sem mímica facial
Registar FC e Sat. em O2 (SpO2)
(% ou grau de diminuição)
FC máxima
Saturação mínima
↑0 a 4 bpm
↓ 0 a 2,9%
↑ 5 a 14 bpm
↓ 2,5 a 4,9%
↑15 a 24
↓5 a 7,4%
↑≥ 25 bpm
↓≥ 7,5 %
Observar o RN por 30 segundosTesta  franzida
Olhos “espremidos”
Sulco naso labial
Ausente
(0-9% do tempo de observação)
Ausente
Ausente
Mínima
(10 a 39% do tempo de observação)
Mínimo
Mínimo
Moderado
(40 a- 69% do tempo de observação)
Moderado
Moderado
Máximo
(+ de 70% do tempo de observação)
Máximo
Máximo

Actualmente é possível a utilização de tecnologia (algesímetro) que permite, de modo objectivo, medir quantitativamente as alterações fisiopatológicas resultantes do estímulo doloroso (resposta nociceptiva atrás referida) com base nas propriedades de condutância da pele. Em Portugal este tópico foi investigado por L. Pereira-da-Silva na UCIN do Hospital Dona Estefânia.

Prevenção

A prevenção da dor no RN passa pela aplicação dum conjunto de medidas que promovem o conforto e reduzem o estresse, tais como: diminuir o ruído (alarmes, diálogos, etc.), assim como a incidência da luz intensa, (protecção das incubadoras com cobertor, utilização de luz com focos de intensidade variável, etc.), manutenção de ciclos de sono dia/noite preservando períodos livres para o contacto com os pais. Nesta perspectiva, o balanceio e o uso de colchões de água poderão contribuir para regular o estado de alerta e diminuir o estresse.

Outras medidas incluem manipulação mínima, boa gestão dos cuidados concentrando determinados procedimentos para a mesma hora no sentido de evitar estimulação excessivamente frequente do RN (colheitas de sangue, aspiração traqueal, posição confortável em flexão sempre que possível utilização dos chamados “ninhos ou lençóis /fraldas enrolados em torno do corpo, etc.) e reduzir ao mínimo indispensável a utilização de fitas adesivas sobre a pele.

Tratamento

Para o alívio ou inibição da dor (analgesia), podem ser utilizadas medidas não farmacológicas e medidas farmacológicas.

A dor também pode ser aliviada ou inibida através da diminuição ou extinção da sensibilidade dolorosa em determinada região do organismo; é o conceito de anestesia local, que se pode considerar uma forma de analgesia. A este propósito, é importante realçar que o conceito de que a “infiltração com fins anestésicos é tão dolorosa quanto a própria agulha utilizada como procedimento com fins terapêuticos” não parece ser verdadeira de acordo com os resultados de estudos científicos.

Os anestésicos tópicos actuam por bloqueio dos canais de sódio nas terminações nervosas nociceptivas responsáveis pela condução do estímulo doloroso à medula-espinhal.

Medidas analgésicas não farmacológicas

  • Contacto pele com pele
    Esta medida, preconizada em RN aparentemente saudáveis necessitando de procedimento que provoca dor (como por ex. punção capilar, punção venosa, injecção IM, etc.) pode ser concretizada pelo contacto físico mãe-filho durante a realização daquele.
  • Amamentação
    Colocando o lactente ao peito, verifica-se alívio da dor enquanto se realiza o procedimento. Estudos interessantes demonstraram, com efeito, que a amamentação bloqueia impulsos aferentes ao nível da medula-espinhal e, ao mesmo tempo, estimula a libertação de endorfinas.
  • Sucção não nutricional
    Em função do contexto clínico poderá utilizar-se esta medida através de colocação de chupeta na boca; demonstrou-se, com efeito, que durante os movimentos rítmicos de sucção se atenua a dor, a qual retorna quando há interrupção da sucção.
  • Solução de sacarose
    As soluções ligeiramente doces têm efeito analgésico demonstrado em diversos estudos; na prática utiliza-se solução de sacarose a 24% (24 gramas de sacarose/100 mL de água) na dose de 0,05 a 1,5 mL colocada na porção anterior da língua cerca de 2 minutos antes do procedimento a realizar (punções, aplicação de linhas IV, etc.).

Medidas analgésicas farmacológicas (gerais)

No âmbito das medidas farmacológicas podem ser utilizados fundamentalmente dois tipos de fármacos: analgésicos não opióides e analgésicos opióides. São referidos os mais frequentemente utilizados em Portugal.

Analgésicos não opióides

*Paracetamol

No período neonatal, dentro deste grupo de fármacos, emprega-se quase invariavelmente o paracetamol, o analgésico não opióide mais investigado e mais seguro no período neonatal.

As doses a utilizar são:

  • No RN de termo (10-15 mg/kg/dose cada 6 ou 8 horas);
  • No RN pré-termo (10 mg/kg/dose cada 8 ou 12 horas).

O início de acção é lento, cerca de 1 hora, pouco efectivo para processos muito dolorosos. Deve ser administrado por via oral, sendo que a absorção rectal é irregular (dose rectal: ~ 15-25 mg/kg cada 8 ou 12 horas). Poderá utilizar-se a via parentérica IV, sendo útil como coadjuvante na analgesia pós-operatória, por não interferir na agregação plaquetar. O paracetamol está contraindicado nos casos de crianças com défice enzimático eritrocitário de G-6PD (desidrogenase da glucose -6 fosfato); apesar da sua hepatotoxicidade, ela é baixa nesta faixa etária.

Analgésicos opióides

Nos RN submetidos a terapia intensiva são utilizados com maior frequência estes fármacos, os quais constituem a mais importante arma de analgesia. O fundamento da sua acção baseia-se no facto de existirem receptores opióides dispersos no SNC; tais receptores, uma vez activados, inibem a transmissão do estímulo doloroso aos centros superiores.

*Morfina

Potente analgésico e um eficaz sedativo, a morfina pode ser utilizada através das vias IV, SC ou IM. Em bólus a dose a aplicar é: 0,05-0,15 mg/kg/dose IV em 5 minutos; ou em alternativa, a mesma dose por via IM ou SC. Pode ser repetida após 4 horas.

Em perfusão contínua IV:

      • RN de termo à 5-10 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 10-20 mcg/kg/hora (se dor intensa);
      • RN pré-termo à 2-5 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 5-10 mcg/kg/hora (se dor intensa);
      • RN acordado e sem ventilação mecânica, poderá utilizar-se a dose de infusão contínua de 3 a 8 mcg/kg/hora.

Como efeitos colaterais (frequentes em todos os opióides) citam-se: depressão respiratória, íleo paralítico, náuseas, vómitos, retenção vesical, hipersudorese, etc..

Tendo em conta a libertação de histamina que provoca, pode surgir broncospasmo, facto a ter em consideração nos doentes com DBP.

Pela supressão do tono adrenérgico que origina, poderá surgir hipotensão arterial. Para combater a depressão respiratória emprega-se o antagonista naloxona, que é um agente antagonista não selectivo de opióides, extremamente potente. Como possui uma semivida curta, a maioria dos pacientes poderá necessitar de doses repetidas.

Nos casos de tratamento com morfina poderá verificar-se fenómeno de tolerância e, consequentemente, ulterior síndroma de abstinência aguda (convulsões, hipertensão, alterações do foro digestivo, entre outras manifestações). Tal poderá evitar-se, em certa medida, procedendo à redução gradual da dose (diariamente, cerca de 25-50% da dose previamente instituída).

Caso se comprove tal síndroma, está indicado o emprego de naloxona como antagonista efectivo da morfina (embora contraindicada nos lactentes de mãe toxicodependente e nos submetidos a tratamento com morfina durante mais de 6 dias), salientando-se que o período em que poderá ser utilizado em segurança para reversão da síndroma de abstinência é curto (apenas dentro do período < 6 dias de tratamento prévio com morfina).

*Fentanil

Em bólus a dose a aplicar é 1-3 mcg/kg/dose IV, cada 2 a 4 horas.

Em perfusão contínua IV (de preferência):

      • RN de termo à 0,5-1 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 1-2 mcg/kg/hora (se dor intensa);
      • RN pré-termo à 0,5 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 1 mcg/kg/hora (se dor intensa).

Também com o fentanil, poderá surgir fenómeno de tolerância, sobretudo quando se utiliza infusão contínua (obrigando eventualmente à necessidade de doses crescentes para obter efeito.

Como efeito colateral poderá observar-se bradicárdia. Se o tratamento for superior a 3 dias, deverá providenciar-se redução gradual da dose para evitar síndroma de abstinência.

Como antagonista emprega-se também a naloxona: dose de 0,01 mg/kg para reversão da depressão respiratória. A naloxona está contraindicada no RN de mãe toxicodependente. Doses elevadas de morfina > 5 mcg/kg, injectadas rapidamente, poderão levar a rigidez muscular sobretudo a nível torácico, com compromisso ventilatório.

*Meperidina

Actualmente está praticamente proscrita. Apresenta um metabólito tóxico a normeperidina, e pode diminuir o limiar convulsivo principalmente em RN com insuficiência renal.

*Tramadol

Trata-se dum opióide sobre o qual ainda existem aspectos não esclarecidos quanto a farmacocinética, farmacodinâmica e segurança. Cabe apenas referir que, de acordo com estudos realizados, este fármaco evidenciou excelentes propriedades analgésicas com efeitos acessórios irrelevantes – em comparação com a morfina – no que se refere a obstipação e depressão respiratória.

Em perfusão IV tem sido utilizado para a dor moderada, na dose de 0,10-0,25 mg/kg/hora, sem relato de efeitos adversos importantes.

Medidas analgésicas farmacológicas (locais)

Considerando os vários anestésicos locais disponíveis no mercado, a mistura eutética de prilocaína (25%) e lidocaína (25%) sob penso adesivo, com a marca registada EMLA® (sigla de eutectic mixture local anesthetics) produz analgesia em pele intacta durante cerca de 60-90 minutos após a aplicação; pode ser usada em RN de termo e pré-termo com idade gestacional superior a 32 semanas e idade pós-natal superior a 7 dias.

Como resultado da sua aplicação poderão surgir eritema, vesículas e petéquias. Estudos recentes demonstraram que a aplicação de EMLA® é um método seguro desde que a área de aplicação não ultrapasse 100 cm2 e sejam evitadas aplicações repetidas (risco de metemoglobinémia, mais marcado se se associar o paracetamol).

Em circunstâncias especiais poderá utilizar-se lidocaína a 0,5%, sem adrenalina, na dose de 5 mg/kg, por via SC. O início do efeito deste último fármaco é quase imediato e a sua duração é de 30 a 60 minutos após a infiltração.

Sedativos

Os sedativos são agentes farmacológicos (não analgésicos), utilizados como complemento dos analgésicos; agem diminuindo a actividade, ansiedade e agitação do paciente, podendo levar à amnésia de eventos dolorosos ou não dolorosos.

Tais fármacos têm indicações muito restritas: realização de procedimentos diagnósticos que implicam certo grau de imobilidade do doente (por ex.TAC, RM, ECG, EEG, etc.) em situações acompanhadas de dor, tratadas com analgésicos.

Por outras palavras, a utilização continuada de sedativos deve ser desencorajada, pois comporta certos riscos como por ex.: prolongamento do período de ventilação mecânica, HIPV e LPV, entre outros.

Além disso, cabe ao clínico, antes da sua prescrição, excluir outras causas de agitação ou irritabilidade, como hipoxémia, ou a própria dor.

Os sedativos mais frequentemente utilizados com os objectivos descritos são:

Midazolam

Em bólus a dose a aplicar é 0,05-0,15 mg/kg/ dose IV, cada 2 a 4 horas.

Em perfusão contínua IV (de preferência): 10-60 mcg/kg/hora.

Como nota importante há que realçar a necessidade de reajustamento (diminuição) de dose se se utilizar em associação com morfina ou fentanil, para evitar depressão respiratória e hipotensão. É um fármaco com boa actividade sedativa hipnótica, sendo 2 a 4 vezes mais potente que o diazepam.

Hidrato de cloral

Utiliza-se em procedimentos terapêuticos ou de diagnóstico de curta duração a dose de 25-75 mg/kg, podendo ser repetida cada 6 ou 8 horas (vias oral ou rectal). Em RN pode levar a hiperbilirrubinémia (directa e indirecta) e acidose metabólica. Em RN pré-termo o efeito residual da droga pode manter-se até 64 horas após a administração.

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Introdução

A área dos Cuidados Paliativos (CP), enquanto especialidade médica estruturada, teve início na década de 60 do século XX no Reino Unido com o trabalho generoso e persistente de Cicely Saunders. Deve-se a esta personalidade ímpar, enfermeira, assistente social e médica, a criação em 1967 do Hospício de S. Cristóvão, primeiro local especificamente preparado para receber crianças e jovens com doenças graves, em fase avançada ou em fim de vida, adoptando uma filosofia extrapolada dos adultos e promovendo a formação de profissionais de saúde para a tarefa de melhorar a qualidade de vida daqueles.

E, tratando-se de um sistema assistencial com um âmbito alargado (designadamente abrangendo os períodos pré- e perinatal, da infância, adolescência e juventude pré-adultícia), com um modelo de cuidados que hoje está altamente organizado e funcionando com base científica, a Organização da Nações Unidas (ONU) passou a considerar os CP como um direito humano e uma prioridade. 

Para tentar enquadrar o tema, importa referir alguns números, que são expressivos:

    • Cerca de 10 em cada 10.000 crianças e jovens sofrem de doenças que limitam ou ameaçam as suas vidas;
    • 1 em cada 10.000 crianças com os referidos problemas morre cada ano.

Conceitos básicos

Para se compreender o valor e o significado desta prática médica no âmbito da área da Pediatria, torna-se necessário:

  1. Revisitar a base etimológica da palavra paliativo: derivada da palavra paliar, que significa aliviar, atenuar ou suprimir os sintomas, tais como dor, sofrimento, angústia sem efeito directo na etiopatogénese no processo mórbido que os provoca;
  2. Mencionar certos conceitos associados à morte (pela associação de ideias, por vezes distorcida, que por vezes se faz com cuidados paliativos):
    1. a distanásia ou obstinação terapêutica, envolvendo meios extraordinários e desproporcionados ao benefício esperado; e
    2. a eutanásia ou procedimento que tende a pôr termo à vida em situação desesperada e irreversível, evitando o sofrimento.

Definições

Uma das definições mais consensuais é a que deriva da Association for Children with Life-threatening or Terminal Conditions and their Families:

Sistema de cuidados activos totais incidindo sobre o corpo, a mente e o espírito da criança, incluindo também o apoio à família:

  • Iniciando-se quando se diagnostica uma doença complexa, potencialmente fatal ou limitante da sua vida e;
  • Continuando para além do período em que a criança deixa de receber tratamento específico para a doença em causa.

Pode concluir-se globalmente que tal modalidade de cuidados (atenuação ou prevenção de diversas formas de estresse provocados pela doença física ou psíquica, com o objectivo de melhoria da qualidade de vida) é centrada, não na patologia, mas sim nas pessoas (no doente, na família e nos profissionais envolvidos no processo assistencial).

Tal atitude pressupõe, pois, providenciar resposta humanizada, individualizada e continuada a necessidades e problemas vários, respeitando vínculos, valores e o princípio da autonomia.

Por outro lado, importa salientar duas ideias basilares: 1- paliar não significa prestação de cuidados exclusivamente em fim de vida e; 2 – dado considerando que as medidas a aplicar não são dirigidas à etiopatogénese da doença, paliar não significa abandono do doente.

Tipologia das indicações para cuidados paliativos

A Association for Children with Life Threatening or Terminal Conditions and their Families distingue quatro categorias de doenças com indicação para cuidados paliativos:

  1. Doenças curáveis, embora com possibilidade de falência terapêutica: o cancro é o paradigma desta categoria;
  2. Doenças cuja cura não é possível, embora a terapêutica possa modificar a respectiva evolução natural e prolongar a vida: a fibrose quística e a distrofia muscular de Duchenne são exemplos;
  3. Doenças incuráveis, mesmo com terapêutica apropriada: são exemplos as doenças hereditárias do metabolismo;
  4. Doenças não progressivas cujas sequelas podem constituir uma ameaça de vida para o doente: é exemplo paradigmático a encefalopatia na sequência de asfixia perinatal grave; embora posteriormente a doença não progrida, as suas consequências incluem sintomatologia diversa e devastadora, incluindo designadamente convulsões, pneumonia de aspiração, escoliose progressiva, perturbações cardiorrespiratórias, etc..

Nesta perspectiva, e quanto ao planeamento e execução dos cuidados paliativos pediátricos/CPP (incluindo neonatais/CPN) à semelhança do que acontece com os adultos, podem ser discriminados diferentes níveis de actuação:

  • Nível 1 (básico) – De carácter universal, estendendo-se a todas as pessoas que cuidam de crianças, incluindo, claro, os profissionais de saúde. Exige formação básica sobre o tema em análise para que os cuidadores em geral possam sentir-se sensibilizados, quer para o alívio da dor e doutros sintomas do paciente, quer para o alívio do sofrimento psicológico e emocional das famílias;
  • Nível 2 (generalista) – Inclui o apoio de profissionais com interesse especial em cuidados paliativos (com ou sem formação nesta área) nos casos em que as necessidades paliativas são frequentes; por exemplo, pacientes assistidos em unidades de neonatalogia, de oncologia, e de neurologia;
  • Nível 3 (especialista) – Inclui a prestação de cuidados por especialistas com formação avançada em cuidados paliativos pediátricos, em dedicação exclusiva e colaborando concomitantemente em acções de formação e em investigação.

Nalgumas situações, perante um diagnóstico fetal de tempo de vida limitado ou de patologia potencialmente fatal, o reconhecimento das necessidades paliativas poderá preceder o momento do nascimento. Em tais circunstâncias, exigindo-se uma resposta diferenciada, poderá haver necessidade de cooperação entre as equipas da Neonatologia e da Obstetrícia.

Especificidades

  1. Ao contrário do que se passa no adulto, no grupo etário pediátrico em diversos períodos (desde o recém-nascido e lactente ao jovem e adolescente) há a salientar características únicas relacionadas designadamente com o desenvolvimento, maturidade biológica e emocional, e certas realidades psicossociais (comunidade, escolaridade, etc.).
    Relativamente a tais características, importa relevar os seguintes aspectos: – enorme diversidade diagnóstica, frequentemente associada à incerteza prognóstica; – trajectória de doença longa, por vezes de décadas, desde a infância à idade adulta; – a circunstância de pais e familiares em geral, assumindo-se como os primeiros cuidadores, implicar a inclusão da família na equipa de cuidados paliativos.
  1. Por outro lado, relativamente ao período de recém-nascido, que comporta uma especificidade acrescida, importa relevar os seguintes aspectos: – os cuidados paliativos neonatais são frequentemente prestados em meio hospitalar, fruto das exigências tecnológicas da população assistida; – o local preferencial de cuidados deve ser ponderado individualmente, de acordo com os recursos disponíveis e num modelo culturalmente adequado; – tanto quanto possível, e sempre que desejado pelos pais, devem ser exploradas outros locais, por exemplo: como alojamento conjunto no serviço de obstetrícia, zonas requalificadas na unidade de cuidados intensivos neonatais, unidades pediátricas independentes, ou domicílio.
  1. A questão das especificidades dos Cuidados Paliativos Pediátricos (CPP) foi abordada num importante documento da Organização Mundial de Saúde (OMS), focando, a propósito, os seguintes aspectos:
    • Representam um cuidado global ao corpo e espírito, incluindo o apoio à família;
    • Começam com o diagnóstico da doença e continuam, independentemente de o tratamento para a doença continuar ou não;
    • Os profissionais de saúde devem avaliar as necessidades e aliviar o sofrimento (físico, psicológico e social), tanto do paciente como da família;
    • Exigem uma abordagem multidisciplinar, incluindo a família e utilizando os recursos comunitários disponíveis, eventualmente escassos;
    • Podem ser iniciados em diversos ambientes e circunstâncias: nos hospitais, nos cuidados de saúde primários e nos domicílios.

A equipa de cuidados paliativos

A equipa de cuidados paliativos (pediátricos e neonatais) englobando obrigatoriamente um líder/coordenador, compreende um conjunto de intervenientes com especificidades (fundamentalmente, profissionais e técnicos ou especialistas no âmbito da saúde, mas também familiares do paciente) e está envolvida em tomadas de decisão complexas e dolorosas de forma holística, integrada e interdisciplinar. Pressupõe-se que a equipa, não individualmente, mas como um todo, é responsável pelas decisões que toma.

Como suas funções gerais, citam-se:

  • Assegurar a comunicação interna;
  • Promover a reflexão e o diálogo entre os profissionais;
  • Manter uma disponibilidade permanente para responder às necessidades;
  • Promover o apoio emocional e psicológico ao doente e familiares;
  • Manter actualizado o nível científico.

Sob o ponto de vista organizativo, existe consenso quanto à necessidade de a equipa elaborar um documento escrito conhecido como plano geral, antecipado, de cuidados e, para cada paciente, um plano individual de intervenção específica (personalizado, humanizado).

Todas as intervenções deverão ter em conta o supremo bem e os superiores interesses da criança e jovem, salientando-se que algumas situações clínicas poderão implicar a decisão de não continuidade ou suspensão de determinados procedimentos.

 

A competência para comunicar constitui um aspecto fundamental da formação de todos os intervenientes. Com efeito, para além da aprendizagem técnica básica, a comunicação deverá ser objecto de prática constante utilizando diversas estratégias ensino-aprendizagem, tais como a de role-playing. (ver adiante)

No âmbito da comunicação, a desenvolver por todos os elementos da equipa, no sentido de diminuir o sofrimento parental (físico, psicológico, social, espiritual), há determinados aspectos que devem ser realçados:

  • Dever imperioso de escutar os pais/família com angústias e garantir que as mensagens transmitidas foram compreendidas;
  • Saber dar “más notícias” segundo metodologia correcta; subentende-se aqui o “lado humano” e subjectivo da clínica, fundamental para se estabelecer confiança multidireccional entre todos os intervenientes no processo);
  • A comunicação em geral (e a de más notícias, em especial) deve ser planeada pela equipa e realizada em reunião multiprofissional, o mais precocemente possível; idealmente, tal comunicação deve ser transmitida sempre pelo mesmo elemento.

Notas importantes:

    1. Quando a morte se torna iminente, é fundamental:
      • assegurar à família que o agravamento da situação não se deveu às escolhas, mas sim ao progresso natural da doença, e;
      • que irão ser mantidas todas as intervenções que promovam a qualidade de vida pelo tempo necessário.
    2. Outro aspecto delicado diz respeito à forma como se aborda uma ordem de não reanimação. Em geral, é sugerido por especialistas que se tenha uma conversa com os pais sobre a legitimidade de permitir uma morte natural, colocando a tónica numa acção positiva que previne o sofrimento (conforto), enfatizando o respeito pela pessoa (dignidade) e realçando o compromisso de um acompanhamento diferenciado e permanente (ver atrás o conceito de distanásia).

Tratamento da dor e doutros sintomas

O tratamento “da dor e doutra sintomatologia” susceptível de comprometer o mal-estar dos pacientes constitui um dos princípios fundamentais da filosofia dos cuidados paliativos. Para a sua detecção precoce é necessária aplicação de escalas de avaliação da dor, o que pressupõe destreza do profissional na interpretação neuro-comportamental da resposta do recém-nascido.

Todos os profissionais envolvidos na prestação dos cuidados em análise, devem conhecer estratégias não farmacológicas para controlo da dor e fomentar a sua aplicação; eis as principais: promoção da sucção não nutritiva, sacarose oral, posicionamento adequado, toque de contenção, voz suave (preferencialmente da mãe), redução da estimulação ambiental, promoção do método canguru e amamentação.

Nas unidades de cuidados intensivos neonatais (UCIN), sendo grande a frequência de intervenções dolorosas (inserção de cateteres, colheita de sangue, punções, etc.), deve atender-se a estes momentos, sendo a analgesia determinante para o bem-estar do paciente. Tanto quanto possível, os procedimentos devem ser planeados de forma a respeitar uma manipulação mínima e os períodos de sono/repouso do recém-nascido.

Em conformidade com as noções gerais referidas, transcreve-se um fluxograma de actuação, definido por peritos (Carragner e McNamara) e adoptado em diversas instituições:

  1. Identificação rigorosa, precoce, dinâmica das necessidades paliativas;
  2. Consenso multiprofissional (obstetrícia/neonatologia);
  3. Comunicação de más notícias aos pais (disponibilizar todas as opções, incluindo cuidados paliativos);
  4. Conhecimento dos desejos dos pais (apoiar independentemente da escolha);
  5. Plano inicial de intervenção (acordado com a família, dinâmico, bem documentado, partilhado entre todos os profissionais);
  6. Avaliação interdisciplinar dinâmica das opções/necessidades;
  7. Planeamento dos cuidados antecipatórios (gravidez, parto, período neonatal);
  8. Cuidados em fim de vida;
  9. Luto.

Sem formação (aprendizagem e treino) não será possível identificar e satisfazer, na medida do possível, as necessidades espirituais, emocionais, psicossociais e físicas dos pais e familiares. Por outro lado, a falta de formação dos profissionais e dos familiares para compreenderem as diversas etapas dos cuidados paliativos constituem uma forte barreira para a prestação de cuidados de qualidade.

(ver Capítulos sobre: Analgesia e Sedação na Parte XXVIII e Dor no RN na Parte XXXI).

Prevenção do esgotamento da equipa

Cuidar de doentes graves e em risco de vida, bem como apoiar as famílias nas suas múltiplas necessidades, podem levar os profissionais de saúde, e em particular os médicos, a uma situação caracterizada por esgotamento, mal-estar e perda de autoconfiança; se tal perda não for identificada nem acompanhada, poderá levar a sérias consequências para a saúde física e emocional dos mesmos profissionais.

Assim, a sobrecarga emocional mal controlada pode levar ao estado de exaustão física, emocional e mental, conduzindo a um progressivo sentimento de inadequação, impotência e fracasso.

Enfim, a equipa deve estar ciente das capacidades de cada um dos seus membros para superar a sobrecarga de trabalho, evitando o envolvimento exagerado, mantendo uma comunicação aberta entre pares, e pedindo ajuda quando necessário. A equipa deve, pois, autocuidar-se.

Apoio ao luto

O luto é definido como um processo reactivo a uma perda com uma duração e complexidade variáveis de acordo com a personalidade e narrativa de cada um dos progenitores. Trata-se duma resposta adaptativa à experiência de uma perda inevitável. Muitas perdas são vivenciadas à medida que o doente e a sua família se movimentam através das etapas da doença que levará à morte.

Perante uma família que sofreu uma perda perinatal ou neonatal, todos os membros da equipa devem cooperar no apoio através da compaixão, do empenhamento na ajuda, no respeito pela integridade dos seus membros e na partilha de informação de forma honesta e rigorosa. O trabalho em equipa deve prevalecer sobre o domínio de qualquer dos seus elementos.

Em suma, o apoio ao luto representa, pois, uma componente importante dos cuidados paliativos.

Cuidados paliativos pediátricos e neonatais em Portugal

Os cuidados paliativos pediátricos não são ainda uma realidade funcional, não só em Portugal, como também noutros Países. Existe, contudo, de há muito, sensibilidade para o cuidar em fim de vida, e alguns exemplos de boas práticas, destacando-se alguns que nos chegam de Institutos de Oncologia, Neuropediatria e Unidades de Cuidados Intensivos Neonatais.

Em 2013, a Sociedade Portuguesa de Neonatologia elaborou um documento nesta área intitulado – Consenso em Cuidados Paliativos Neonatais e em Fim de Vida, resultado de um estudo Delphi que contou com a colaboração de 41% dos neonatalogistas nacionais e reuniu as considerações consensuais no painel.

O documento refere que os cuidados paliativos neonatais (CPN), visam a promoção da qualidade de vida do recém-nascido (RN) e família, e a diminuição do seu sofrimento ao longo de uma doença grave, potencialmente fatal ou limitadora do tempo de vida. Os critérios adoptados são os que vigoram internacionalmente através do documento da Association for Children with Life Threatening or Terminal Conditions, anteriormente citado. É dada ênfase seguidamente aos pontos principais do referido documento:

  1. Os CPN são importantes para o RN com doenças progressivas, sem opção curativa, na qual o tratamento é paliativo desde o diagnóstico. São exemplos as seguintes situações:
    • recém-nascido no limiar da viabilidade,
    • determinadas cardiopatias complexas, síndromas polimalformativas major, determinadas doenças metabólicas, doenças genéticas (trissomia 13 e 18),
    • doenças neurodegenerativas, encefalopatia hipóxico-isquémica grave com mau prognóstico,
    • defeitos congénitos graves do sistema nervoso central ou quadros clínicos caracterizados por graves sequelas neurológicas;
  1. Os CPN são importantes para RN em que o tratamento curativo não constitui solução para o problema, ou em que a morte é previsível, mas obrigando a internamentos longos e complexos. Temos como exemplos:
    • síndroma de aspiração meconial muito grave,
    • septicémia com falência multiorgânica e sem melhoria clínica,
    • hérnia diafragmática muito grave e sem melhoria clínica ou situações de intestino curto com graves problemas de absorção.

OS CPN são igualmente importantes em situações de doenças irreversíveis não progressivas, acompanhadas de incapacidade grave. Assim, o prognóstico relacionado com a qualidade de vida futura ajuda também a determinar se o RN poderá beneficiar de CPN. É o caso de situações de paralisia cerebral muito grave, com necessidades complexas de saúde, ou RN com graves sequelas pulmonares.

Barreiras à instituição dos cuidados paliativos pediátricos

Em Portugal, os cuidados paliativos pediátricos (incluindo os perinatais e os neonatais) são já referidos em legislação, em documentos reguladores centrais e em recomendações de peritos. Contudo, à semelhança do que acontece noutros países, existem diversos obstáculos à instituição desta modalidade assistencial:

  • Incerteza no prognóstico;
  • Dificuldade da família em reconhecer e/ou aceitar que a criança tem uma doença incurável;
  • Dificuldades de comunicação, tempo limitado dos médicos e falta de recursos humanos;
  • Escassez de formação dos profissionais de saúde para a prestação de cuidados paliativos;
  • Conflitos entre familiares e entre os profissionais e familiares sobre os objectivos dos cuidados e do plano de intervenção.

Importa referir que os pais valorizam a comunicação sensível e cuidadosa, incluindo uma conversa aberta e franca que os ajude a acompanhar o seu filho ao longo de todo o processo de doença, incluindo os cuidados em fim de vida e o processo de morrer.

Num estudo efectuado por Meyer e colaboradores, os pais identificaram as seguintes prioridades a atender na prestação dos cuidados paliativos:

  • Informação honesta e rigorosa;
  • Acesso fácil aos profissionais que cuidam do seu filho;
  • Uma boa comunicação e coordenação de cuidados;
  • Apoio emocional por parte da equipa;
  • Preservação da integridade da relação pais-filho e;
  • Espiritualidade.

As circunstâncias, sistematizadas a seguir, podem tipificar, directa ou indirectamente, certas barreiras à aplicação dos cuidados paliativos:

  1. Muitos pais sentem necessidade de ser escutados, respeitados e incluídos no processo de decisão, e de não ficarem sujeitos a juízos morais por parte dos profissionais;
  2. Embora a maioria dos profissionais assuma atitudes paliativas a nível individual, nem todos dispõem de competências em comunicação, de capacidade de empatia, de disponibilidade para a escuta activa, nem de capacidade para ajudar os pais na procura de um sentido que lhes permita ultrapassar os dias difíceis que vivem durante a doença;
  3. A doença grave de um recém-nascido leva muitos pais a fazerem um luto de antecipação de perda, originando problemas emocionais e psicológicos para os quais é necessária atenção e orientação apropriada; assim, os cuidados paliativos neonatais têm o seu centro no recém-nascido, mas devem igualmente dedicar toda a atenção aos pais, não apenas durante o internamento, mas também durante a ocorrência do óbito e no apoio ao luto.

Concluindo, todos os elementos da equipa devem ter formação adequada, actualizada e sustentável no tempo, de modo a manter a qualidade dos serviços prestados, evitando a criação de barreiras.

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Importância do problema

Como é referido no capítulo 1, o desenvolvimento em Portugal dum plano de assistência perinatal levado a cabo nos últimos trinta anos englobando, entre outras medidas, a regionalização de cuidados e a criação dum sistema nacional de transporte neonatal inter-hospitalar, contribuiram decisivamente para francos progressos que se traduziram em melhoria das taxas de mortalidade infantil e perinatal.

Do plano de cuidados pré-natais faz parte a avaliação do risco e a transferência atempada da grávida para um centro de referência, quer por causas maternas, quer por causas fetais; o objectivo é proporcionar um nível de cuidados mais adequados à situação clínica, em obediência a um conceito clássico validado por estudos científicos.

Trata-se do conceito de “transporte in utero” segundo o qual “a melhor incubadora de transporte é o útero materno”.

Porém, em cerca de 10 a 20% dos RN sem antecedentes de risco pré-natal poderão surgir problemas clínicos graves com indicação de transferência. Daí a importância da existência dum sistema organizado de transporte permitindo que os RN doentes beneficiem de cuidados especializados prestados por neonatologista/intensivista pediátrico e enfermeira especialista, antes e durante a transferência para uma unidade de nível de cuidados mais diferenciado ou terciária (UCIN), onde existam recursos técnicos e humanos adequados à gravidade e especificidade da respectiva situação clínica.

Em Portugal, o modelo em funcionamento há mais de três décadas tem recebido reconhecimento internacional face aos resultados obtidos.

Princípios gerais

No âmbito do sistema de transporte do RN – que pressupõe organização, estruturas próprias e esquema coordenado – há que atender a um conjunto de princípios gerais tendo em vista a eficácia, eficiência e efectividade dos cuidados a prestar.

Assim, torna-se fundamental:

  1. Preferir, sempre que possível, o transporte pré-natal (já mencionado);
  2. Transferir o RN de modo seguro;
  3. Garantir que durante o transporte as condições assistenciais técnológicas e humanas sejam semelhantes ou melhores do que as praticadas na instituição que solicita a transferência; tal pressupõe a utilização de ambulância de tipo “medicalizado” (com médico e enfermeiro com competências diferenciadas em medicina intensiva), equipada com diverso material para reanimação, designadamente, incubadora, ventilador e equipamento portátil de monitorização;
  4. Assegurar que os benefícios da transferência ultrapassem os riscos inerentes à mesma;
  5. Diminuir a morbilidade e mortalidade neonatais através dos cuidados prestados pela equipa de saúde responsável pelo transporte;
  6. Haver boa relação custo-benefício, equacionando a decisão;
  7. Comunicar prévia e bidireccionalmente utilizando diversos meios tais como, via telefónica, videotelefónica, correio electrónico ou outro; tal pressupõe o funcionamento pleno e coordenado de três polos de comunicação, em obediência à ponderação sobre a alínea 6 (ver atrás):
    • equipa da instituição que decide sobre a transferência,
    • equipa móvel, de transporte,
    • equipa da instituição receptora de modo a ponderar e decidir a necessidade e benefícios da transferência, a qual deve ser comunicada e explicada aos pais;
  8. Actuar de modo humanizado, o que implica, entre outras atitudes, promover o contacto prévio mãe/pai – filho RN; em condições ideais: a mãe deve acompanhar o filho e à mesma (ou aos pais) devem ser entregues folha informativa com contactos da instituição de saúde que vai receber a criança e, sempre que possível, também uma fotografia do RN;
  9. Promover sempre a estabilização clínica do RN no hospital de origem antes do início do transporte.

Indicações

As principais indicações de transferência de RN para unidades com nível mais diferenciado de cuidados são:

  1. RN de peso < 1.500 gramas e/ou idade gestacional < 32 semanas;
  2. RN com dificuldade respiratória e/ou crises de apneia, estando indicada ventilação mecânica;
  3. RN com defeitos congénitos graves, estando indicada intervenção cirúrgica e terapia intensiva;
  4. RN em estado crítico com patologia diversa (metabólica, infecciosa, neurológica, hematológica, etc.);
  5. RN com encefalopatia hipóxico-isquémica com indicação de tratamento atendendo à eventual necessidade de terapia por hipotermia induzida.

Requisitos durante o transporte

A manutenção dos cuidados durante o transporte obriga a um conjunto de requisitos:

  • Manuseamento cuidadoso (com especial relevância nos casos de imaturidade) evitando lesões traumáticas;
  • Colocação de rolos e ninhos de contenção para melhor posicionamento e conforto;
  • Colocação de cintos de segurança;
  • Temperatura adequada, evitando, quer a hipotermia, quer a hipertermia (RN em incubadora de transporte ou berço aquecido) (Figura 1);
  • Oxigenação adequada, evitando, quer a hiperóxia, quer a hipóxia (importância do oxímetro de pulso);
  • Suprimento energético e hidroelectrolítico adequados (fluidos, electrólitos, alimentação parentérica, etc.);
  • Assépsia rigorosa tentando evitar a colonização microbiana e a infecção.

FIGURA 1. RN com capuz e envolvido em saco à base de estanho (material isolador) para evitar o arrefecimento.

Organização

Em Portugal continental existem três centros de coordenação dependentes de hospitais centrais em rotatividade por períodos variáveis, respectivamente: Lisboa (apoio à zona sul), Coimbra (apoio à zona centro), e Porto (apoio à zona norte). Efectua-se, na grande maioria das vezes, transporte por via terrestre utilizando a ambulância devidamente equipada para o grupo etário neonatal/pediátrico. (ver adiante)

Nas regiões autónomas (Açores e Madeira), e em situações especiais no continente, é possível utilizar a via aérea (helicóptero ou avião) quando a distância ou a situação clínica assim o exigirem.

A equipa (constituída por médico neonatologista/intensivista, enfermeira especializada, e técnico de ambulância de emergência/TAE) é recrutada de diversos hospitais e maternidades, em geral de zonas próximas do centro de coordenação, ou do próprio centro, segundo escala pré-determinada, garantindo apoio permanente 24 horas/dia, durante todo o ano.  

Na zona sul, adaptando o sistema já existente na zona norte e centro, passou a haver desde Janeiro de 2012 apenas uma equipa e uma ambulância para efectuar transporte simultaneamente neonatal e pediátrico, designada por TIP – transporte inter-hospitalar pediátrico (pertencente ao INEM – Instituto Nacional de Emergência Médica), adaptada, possuindo incubadora com ventilador (geminado), para recém-nascidos, e maca com ventilador pediátrico (portátil) para crianças em idade pediátrica.

A decisão sobre a instituição receptora depende das vagas existentes nas unidades da região e do tipo de patologia do RN que é transportado. O esclarecimento sobre as referidas vagas pode ser obtido permanentemente através de contacto por telefone móvel entre os hospitais e a equipa da ambulância que procede à evacuação.

A gestão e manutenção de todo o material da ambulância, incluindo consumíveis, assim como a organização de escalas rotativas de médicos e enfermeiros está a cargo do centro de coordenação do hospital/maternidade da respectiva região.

Trata-se, pois, dum modelo organizativo de parceria entre o INEM (cedendo ambulância equipada e TAE) e hospitais centrais do Serviço Nacional de Saúde (cedendo serviço organizativo e recursos humanos).

Noutros países existem outros modelos (por ex. organização de toda a logística a partir duma única instituição dando apoio à respectiva zona de influência).

Equipamento

Não cabendo, no âmbito desta obra, especificações técnicas sobre ambulâncias para o transporte de RN, é feita apenas uma resenha do material existente na ambulância de transporte neonatal e dos principais medicamentos indispensáveis.

Material

  • Estetoscópio e termómetro convencional;
  • Incubadora de transporte com sistema de aquecimento por convecção, com fonte de luz e bateria recarregável, e ainda sistema de regulação de temperatura servocontrolado;
  • Monitores electrónicos (de temperatura, cardiorrespiratório, de pressão arterial, oxímetro de ambiente/FiO2, oxímetro de pulso, etc.);
  • Sonda temperatura rectal (monitorização da temperatura central no transporte de doentes com indicação para hipotermia induzida);
  • Sistema de aspiração de secreções com sondas de aspiração estéreis, de calibres CH 5, 6, 8, 10;
  • Fonte de oxigénio e ar comprimido (cilindros com capacidade para 1.000 litros);
  • Balão tipo Ambu para ventilação manual com IPPB ou balão auto-insuflável;
  • Sistema para CPAP nasal;
  • “Máscaras” para ventilação, aplicáveis a RN de termo e pré-termo;
  • Material para entubação traqueal/tubos traqueais de diversos diâmetros → 2,5 (RN < 1.000 gramas); → 3 (RN com 1.000-1999 gramas); → 3,5 (RN com 2.000-2999 gramas); → 3,5 a 4 (RN > 3.000 gramas); laringoscópio de lâmina recta para RN com pilhas carregadas e sobresselentes;
  • Máscara laríngea;
  • Material para drenagem torácica;
  • Ventilador geminado com a incubadora permitindo ventilação por volume, por pressão ou ventilação de alta frequência oscilatória;
  • Sistema para administração de NO (óxido nítrico inalado);
  • Material para canalização arterial e venosa – artério e venoclise (cânulas, conjunto de agulhas tipo “borboleta”, agulha para injecção intraóssea, agulhas 18, 19, 20, seringas (tipo insulina de 1 mL, de 5 e 10 mL), material para cateterismo umbilical;cateteres venosos e arteriais umbilicais de diferentes calibres;
  • Sistemas de torneira de três vias;
  • Bomba de perfusão com seringa;
  • Material de pequena cirurgia;
  • Fitas reactivas para micrométodos (determinações no sangue capilar e urina, por ex. glicémia e glicosúria);
  • Sistema portátil para gasometria.

Fármacos

Soro fisiológico, glucose em água a 5% e 10%, bicarbonato de sódio molar (1 mL<>1 mEq), cloreto de potássio, cloreto de sódio a 10% e 20%, gluconato de cálcio a 10%, adrenalina a 1/1.000, diazepam, vitamina K1 (ampolas de 0,5 e 1 mg), fenobarbital, difenil-hidantoína, furosemido, dopamina, dobutamina, prostaglandina E1, gentamicina, ampicilina, lidocaína, surfactante, etc..

Miscelânea

Bata, máscaras, avental de plástico, óculos de protecção, luvas esterilizadas, sacos colectores de urina, etc..

Procedimentos

Antes do transporte

Aspectos gerais

Ao ser solicitado o transporte, a equipa do hospital de origem deverá transmitir previamente à equipa de transporte todos os dados da história clínica (eventualmente por via electrónica), sem prejuízo da informação clínica convencional, como resultados de exames complementares de diagnóstico que deverão acompanhar sempre o doente.

Eis alguns aspectos práticos:

  • Há que informar sobre o estado clínico do RN, o peso, dados fundamentais para o cálculo de doses de fármacos e fluidos a administrar;
  • É obrigatório discutir, aconselhar e programar o plano de transferência do RN;
  • Há que coordenar com o hospital emissor a hora aproximada de chegada;
  • Há que contactar o hospital receptor, confirmar a vaga, e transmitir dados clínicos do doente;
  • Há que mostrar disponibilidade por parte da equipa de transporte para aconselhar/orientar a equipa do hospital de origem.

Em suma, os bons resultados do paciente em relação ao transporte inter-hospitalar dependem fundamentalmente das medidas a tomar antes do início da viagem com o objectivo de garantir a estabilização clínica – estabilizar antes de transportar. O transporte deve ser seguro, quer para o RN, quer para a equipa.

É essencial a correção prioritária de determinadas situações a cargo da equipa médica do hospital de origem (implicando formação básica em cuidados especiais e em ventilação mecânica de curta duração), até à chegada da ambulância com a equipa de transporte.

As medidas essenciais de estabilização prévia dizem respeito a:

  • Acesso vascular para suprimento de fluidos, electrólitos, glucose e fármacos (garantia de normovolémia, normoglicémia, normopressão arterial, equilíbrio hidroelectrolítico, etc.;
  • Correcção da acidose;
  • Sedação e analgesia em função do contexto clínico;
  • Manutenção da normotermia corporal (~ 36,5ºC) monitorizando a temperatura rectal, e/ou cutânea, com sensor electrónico ao nível do hipocôndrio direito (RN sob fonte de calor, envolvimento do RN em saco de PVC exceptuando a face, etc.); para atingir tal temperatura cutânea (~ 36,5ºC), deverá providenciar-se ambiente de termoneutralidade na incubadora (garantindo a temperatura central do organismo com menor consumo de oxigénio);  

Se o RN estiver vestido e/ou ou no interior de concentrador de calor (“túnel” de perspex), por sua vez dentro da incubadora, a temperatura do ambiente desta pode ser inferior à referida atrás: peso ~ 1.000 gramas → 32ºC; peso ~ 2.000 gramas → 28ºC; peso ~ 3.000 gramas → 27ºC.

  • Administração de prostaglandinas (medicamento armazenado a 4ºC) a iniciar se houver suspeita de cardiopatia cianótica, pressupondo indicações dadas pela equipa de cardiologia pediátrica após contacto prévio, ou experiência do pediatra neonatologista.

   A dose de prostaglandina E1 (Prostin®) é:

    • inicial → 0,05-0,1 mcg/kg/minuto IV,
    • de manutenção 0,01-0,05 mcg/kg/minuto IV,
    • devido ao risco de apneia, está indicada nestes casos a entubação traqueal para início de ventilação mecânica, monitorizando a saturação transcutânea em O2 (SpO2);
    • Ventilação artificial de apoio com ventilador por pressão, utilizando os seguintes parâmetros:
      • PIP: 20 cm H2O,
      • PEEP: 3 cm H2O,
      • Relação I/E : 1/1,
      • FiO2: 50-60%,
      • Tempo inspiratório: 0,4 segundos;
  • Administração de surfactante se comprovada SDR por imaturidade pulmonar;
  • Ventilação por volume garantido ou ventilação de alta frequência consoante a situação clínica de base do RN;
  • Assistência ventilatória não invasiva – CPAP (ver adiante capítulo sobre “problemas respiratórios do RN”).
Situação especial
Indução da hipotermia em casos de encefalopatia hipóxico-isquémica (EHI)

Desde que os RN preencham critérios de selecção para efectuar esta terapêutica, a iniciar no hospital de origem segundo directivas do hospital receptor, idealmente a criança deverá chegar ao hospital receptor até 6 horas após o início do quadro de EHI (período designado “janela terapêutica” para tentar garantir a eficácia da medida e o melhor prognóstico.

A hipotermia passiva deve manter-se durante o transporte com o objectivo de se atingir a temperatura considerada neuroprotetora de 34,5ºC rectal o mais rapidamente possível.

Situações do foro cirúrgico
Onfalocele e gastrosquise
  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre;
  • Não administrar alimentação per os;
  • Prescrição de antibioticoterapia nos casos de gastrosquise e de onfalocelo rota;
  • Fluidoterapia IV com suprimento duplo ou triplo correspondente às necessidades de manutenção;
  • Protecção das vísceras expostas (gastrosquise ou onfalocelo rota);
Atrésia do esófago e obstrução intestinal

(atrésia duodenal, atrésia jejuno-ileal, anomalia anorrectal, íleo meconial, doença de Hirschprung, enterocolite necrosante)

  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre (aspiração contínua com pressão negativa ~ 10-20 cm H2O nos casos de atrésia do esófago);
  • Não administrar alimentação per os;
  • Fluidoterapia IV em todas as situações. Como particularidade, nos casos de enterocolite necrosante, suprimento duplo ou triplo das necessidades de manutenção, e suporte inotrópico para incrementar a perfusão mesentérica.
Anomalias congénitas das vias aéreas inferiores

(hérnia diafragmática de Bochdalek, enfisema lobar congénito, sequestro pulmonar, anomalia adenomatóide quística)

  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre;
  • Entubação traqueal para início de ventilação mecânica;
  • Sedação e analgesia;
  • Detecção de possível quadro de hipertensão pulmonar (aplicação de dois oxímetros de pulso para avaliação da SpO2, num dos membros inferiores e no membro superior direito, respectivamente pós e pré-ductal.
Obstrução das vias aéreas superiores

(atrésia dos coanos, sequência de Pierre Robin, etc.)

  • Na atrésia dos coanos: colocação de tubo de Guedel (tamanho 0 ou 00) por via oral, fixando-o;
  • Na sequência de Pierre Robin, colocação do RN em decúbito ventral e, eventualmente, entubação traqueal.
Teratoma sacrococígeo
  • Manipulação cuidadosa evitando a compressão da região sacrococígea;
  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre;
  • Antibioticoterapia de largo espectro abrangendo nomeadamente anaeróbios e Gram-negativos;
  • Decúbito ventral ou lateral envolvendo o tumor em compressas esterilizadas e secas.
Defeitos do tubo neural
  • Protecção da região afectada colocando o RN em decúbito ventral e imobilizando-o pela região axilar e coxas;
  • Não manipulação da área medular eventualmente exposta, humidificando-a e aplicando gotas de soro fisiológico frequentemente;
  • Não utilização de luvas com látex.

Notas:

    • Salienta-se a necessidade de garantir manuseamento do RN em condições de assépsia.
    • Outros procedimentos inerentes a situações específicas são abordados nos capítulos respectivos.
    • O RN deverá ser acompanhado de amostra de cerca de 10 mL de sangue materno sem anticoagulante.
    • Reitera-se a necessidade de informação clínica (escrita convencional ou enviada por via electrónica).

Durante o transporte

O RN somente deverá ser colocado na incubadora de transporte (previamente aquecida e ligada à corrente eléctrica do hospital) uma vez verificada a estabilização clínica.

Antes de iniciar viagem, a incubadora passará a estar ligada à bateria, e o RN à fonte de gases da ambulância.

Durante o transporte, com a equipa à cabeceira do doente, deverá proceder-se a:

  • Verificação da permeabilidade das vias aéreas, da permeabilidade da venoclise, da expansão da caixa torácica, do funcionamento da bomba de perfusão;
  • Monitorização da temperatura, das frequências respiratória e cardíaca, da SpO2, e da pressão arterial.

Na eventualidade de intercorrências durante a viagem (por ex. paragem cardiorrespiratória, obstrução das vias aéreas, extubação traqueal, pneumotórax, etc.) a ambulância deve efectuar paragem para facilitar a actuação emergente.

No caso de suspeita de pneumotórax, deve proceder-se, em condições de assépsia e após desinfecção da pele com solução antisséptica, a punção diagnóstica de emergência com seringa de 20 mL e agulha 21G, intercalando torneira de 3 vias; a punção deve fazer-se ao nível do IIº espaço intercostal na linha médio-clavicular do lado afectado, aspirando a seguir (seringa contendo soro fisiológico quando se efectua a operação pela primeira vez após punção; havendo ar ectópico no espaço pleural, observa-se “o borbulhar”). O ar aspirado é esvaziado em operações sucessivas rodando de cada vez a torneira para as posições de aspirar e esvaziar.

Este procedimento de emergência implica ulteriormente (na ambulância ou na UCIN) a eventual aplicação de drenagem permanente subaquática com dreno apropriado (II-IIIº espaço intercostal-linha axilar anterior ou Vº-VIº na linha axilar posterior) ligado a tubo de vidro passando através de tampa de frasco com líquido/soro fisiológico ou água estéreis, colocado em plano inferior ao doente; o comprimento do tubo em cm mergulhado abaixo do “nível de água” dá o valor da pressão negativa criada, em cm de H2O.

No caso de paragem cardiorrespiratória, há que proceder a manobras de reanimação neonatal (como no bloco de partos) implicando eventual re-entubação e ventilação manual com balão Ambu ou balão auto-insuflável, massagem cardíaca e administração de fármacos. (ver capítulo sobre “reanimação do RN”)

Admissão na UCIN

Trata-se do momento de “passagem de testemunho” da equipa de transporte à equipa do hospital receptor, havendo, em tal circunstância, oportunidade para:

  1. Relatar todos os eventos ocorridos durante o transporte, entregar a nota de transferência e resultados dos exames complementares de diagnóstico, caso existam e;
  2. Comentar aspectos relatados no relatório informativo de transferência que acompanha o doente.

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Importância do problema

Para uma correcta actuação nos casos em que se verifica alteração do equilíbrio hidro-electrolítico no RN, torna-se fundamental compreender a homeostase da água corporal e dos electrólitos, com especial ênfase para o sódio e potássio.

Este problema assume particular acuidade em situações de patologia grave do RN, especialmente no RN pré-termo de muito baixo peso e na fase de adaptação fetal à vida extrauterina.

Neste capítulo são descritas certas particularidades do balanço hidro-electrolítico no RN, em complemento da abordagem global feita na  Parte X.  

Água corporal, sódio e potássio

Pelas 15 semanas de gestação, a água corporal total corresponde a cerca de 95% do peso do feto. À medida que a gestação progride, a água corporal diminui, sendo que, pelas 24 semanas representa cerca de 86% do peso e, no termo, cerca de 75-80%.

Durante o crescimento fetal ocorrem igualmente modificações quanto à relação de água no espaço extracelular e no espaço intracelular: entre as 24 e 37 semanas o espaço extracelular diminui passando, respectivamente, de 59% do peso corporal para 44% do referido peso; pelo contrário, o espaço intracelular no mesmo período aumenta de 27% para 34% do peso corporal. Pode depreender-se que no RN pré-termo a magnitude do espaço extracelular em termos de percentagem do peso corporal é superior à do RN de termo. (Figura 1)

Os mecanismos homeostáticos que dizem respeito a estes movimentos da água e ao espaço extracelular são regulados pela intervenção dum conjunto de processos integrando hormonas e outros componentes de características hormonais, os quais têm particularidades e limitações no RN e, sobretudo, no RN pré-termo (RN PT).

FIGURA 1. Modificação gradual dos espaços líquidos do organismo no decurso da vida fetal e primeiro ano de vida.

Rim

Em circunstâncias de normalidade o sistema renal maturo reage ao aumento do volume no espaço extracelular com incremento da filtração glomerular e diminuição da reabsorção tubular de sódio e água filtrados no glomérulo; ora, esta resposta no RN PT é limitada tendo em conta o número reduzido de nefrónios.

Com efeito, o número de nefrónios vai aumentando com a gestação e, com a maturação dos mesmos, a taxa de filtração glomerular continua a aumentar nos 2 anos subsequentes.

Por outro lado, no RN em geral, e no RN PT em especial, a capacidade de concentração urinária é limitada em relação ao lactente e criança mais velha, o que compromete a resposta à contracção do espaço extracelular.

Coração e vasos

O débito cardíaco é directamente proporcional ao enchimento ventricular e, consequentemente, à perfusão renal (lei de Starling); ora, no RN de termo em geral, e no RN PT em especial, tal resposta é mais limitada tendo em conta a menor massa de miocárdio contráctil, o que compromete a resposta à expansão do espaço extracelular.

Sistema renina-angiotensina-aldosterona

Retomando o que foi dito a propósito da lei de Starling, cabe acrescentar que a menor perfusão renal – do que resulta menor taxa de filtração glomerular – conduz a menor oferta de sódio ao túbulo distal. As células justaglomerulares respondem a este fenómeno aumentando a produção de renina com as seguintes consequências: 1 – aumento da produção da angiotensina II; 2 – aumento da pressão arterial sistémica; 3 – aumento da filtração glomerular; 4 – maior secreção de aldosterona, a qual promove incremento da reabsorção de sódio e água no túbulo distal.

No que respeita a este mecanismo, que está desenvolvido já no RN PT, a limitação principal prende-se com as situações de patologia grave (insuficiência respiratória, assistência ventilatória, etc.).

Péptido natriurético auricular (PNA)

Este péptido é segregado na parede auricular cardíaca, a qual possui determinados receptores sensíveis ao aumento do volume sanguíneo; como resultado da distensão da referida parede e aumento do volume auricular o péptido produzido aumenta a taxa de filtração glomerular, diminui a produção de renina, diminui a secreção de aldosterona e reduz a pressão arterial através de bloqueio do efeito vasoconstritor da angiotensina.

Este mecanismo está comprometido em RN PT, sobretudo no PT extremo, com idade gestacional inferior a 28 semanas, e em maior grau se existir insuficiência respiratória (ver Glossário geral – péptidos natriuréticos).

Hormona antidiurética (HAD-sistema arginina-vasopressina)

A secreção da HAD, cuja acção é aumentar a reabsorção de água no túbulo distal renal e especialmente no tubo colector, inicia-se por volta das 14 semanas de gestação. A sua concentração aumenta com a idade gestacional, atingindo os níveis iguais aos do RN de termo por volta das 24 semanas.

A limitação quanto a este mecanismo da homeostase prende-se também com a fraca resposta tubular renal à hormona.

Catecolaminas

A noradrenalina limita a filtração glomerular e estimula a bomba de sódio-potássio ao nível do túbulo renal, reduzindo a excreção de sódio; de referir que as catecolaminas aumentam após o parto. Este mecanismo também está limitado no RN PT.

O sódio (Na) é o electrólito com maior concentração no líquido extracelular e plasma, de cuja composição electrolítica fazem parte outros catiões (potássio, cálcio e magnésio) e aniões (cloreto, bicarbonato e proteínas). A composição electrolítica sérica do RN também é determinada pela idade gestacional; com efeito, no RN pré-termo existe maior proporção de sódio e cloro por kg de peso devido à maior proporção do líquido extracelular.

No RN de termo verifica-se um balanço de Na positivo e menor capacidade de excreção renal a partir das 48 horas de vida.

Nos RN pré-termo (PT), sobretudo nos de peso < 1.500 gramas (MBP) verifica-se uma fracção excretada de sódio (Na) urinário aumentada (FeNa) da ordem de 4-5%, a qual se mantém até cerca da 4ª-6ª semana, data em que é atingido o valor que se verifica no RN de termo.

O potássio (K) é o catião mais abundante no líquido intracelular; estima-se que o conteúdo de potássio corporal total na data de nascimento seja da ordem de 40 mEq/L. De salientar que os valores de K plasmático são superiores aos verificados na criança maior, o que é explicado pela menor actividade da ATPase-Na+/K+ (bomba de sódio – potássio) que determina taxa mais elevada de transferência do líquido intracelular para o extracelular).

Em condições fisiológicas no RN de termo verifica-se menor capacidade de excreção devido à baixa taxa de filtração glomerular (TFG) e de secreção tubular. No RN PT (sobretudo de idade gestacional inferior a 32 semanas – muito pré-termo) a limitação quanto à secreção tubular renal é ainda mais acentuada.

Equilíbrio hidroelectrolítico na transição para a vida extrauterina; implicações clínicas

Tendo em conta a indicação frequente da fluidoterapia IV no RN com patologia – quer seja ou não pré-termo – e a imaturidade funcional renal, torna-se fundamental descrever as fases de adaptação fetal à vida extrauterina no que respeita à homeostase da água e electrólitos para compreensão das estratégias a adoptar.

Após o nascimento são descritas três fases:

Pré-diurética

Nesta fase pós-parto – primeiras horas de vida – verifica-se expansão do espaço extracelular com hipervolémia explicável pelos seguintes factores:

  • Reabsorção do líquido pulmonar fetal (LPF);
  • Fluidoterapia administrada à parturiente com hiponatrémia de diluição;
  • Passagem de água do espaço intracelular para o extracelular;
  • Baixa TFG do RN com défice de excreção de água e Na; contudo, o resultado final também contribui para a hiponatrémia de diluição, que se pode manter durante a primeira semana;
  • Menor excreção de K com tendência para hiperpotassémia não oligúrica (isto é, não acompanhada de disfunção renal).

Nesta fase existe risco de sobrecarga hídrica em situações associadas a fluidoterapia; contudo, se as perdas de água através da pele e do sistema respiratório forem importantes e não compensadas por fluidoterapia, poderá surgir elevação do Na no espaço vascular (hipernatrémia).

Esta fase transitória pode ser mais prolongada (dias) em situações de difícil adaptação à vida extrauterina (por ex. asfixia perinatal).

Diurética

Segue-se uma fase caracterizada por:

  • Diurese abundante surgida de modo abrupto, originando perda de água e retoma da proporção do espaço extracelular que se verifica cerca das 37 semanas (44% do peso) (ver atrás);
  • Perda de Na paralelamente a ulterior diminuição do compartimento extracelular a que se associa perda de Na pela urina; o resultado final poderá levar a hiponatrémia de depleção;
  • Concomitantemente, surge aumento progressivo da excreção de K, o que contribui para diminuir progressivamente a hiperpotassémia não oligúrica da fase pré-diurética.

Se a perda de água (relativamente superior à perda de sódio) for elevada, torna-se mais provável o aparecimento de hipernatrémia associada a défice de água (desidratação hipernatrémica).

Pós-diurética

Esta fase é caracterizada por diurese variável, com aumento da secreção tubular de K, estabilidade dos respectivos níveis séricos, e excreção renal estável de Na; se esta perda renal de Na não for compensada, poderá surgir hiponatrémia.

Perdas e necessidades em fluidos (manutenção)

Na perspectiva da administração de água e electrólitos (fluidoterapia) e da garantia de manutenção das condições fisiológicas (homeostase), torna-se fundamental conhecer as respectivas necessidades e perdas (habituais ou fisiológicas, e anormais). É igualmente importante reter as seguintes noções:

  1. O movimento e renovação (turnover) de água no organismo (entradas/suprimento e saídas/perdas) são, relativamente ao peso, tanto maiores e mais rápidos quanto menor a idade e maior a velocidade do crescimento; deduz-se que esta particularidade cria maior vulnerabilidade e maior probabilidade de desequilíbrio;
  2. A água é fundamental para o crescimento;
  3. Como resultado dos processos metabólicos em geral, produz-se água endógena.

Assim, na prática, para o cálculo do suprimento de fluidos e garantia da manutenção do equilíbrio torna-se fundamental:

  1. Repor as perdas insensíveis (PI) de água (saída pela pele e sistema respiratório);
  2. Repor as perdas sensíveis de água (saída pelos sistema renal-urina, digestivo-fezes, e sudação activa);
  3. Contabilizar a chamada água endógena (produzida no próprio organismo como resultado da oxidação de proteínas, hidratos de carbono e gorduras), considerando esta parcela ~ 5-10 mL/kg/dia como suprimento ou entrada (ver Parte X).

Perdas insensíveis (PI)    

Na prática clínica é fundamental ter em conta os factores que interferem nas PI:

Factores de incremento de PI

*Fototerapia → + 30-50%
*Hipertermia → + 30-50%
*Taquipneia → + 20-30%
*Convecção forçada → +30-50%
*Berço aquecido com aquecimento radiante superior → + 50-100% (não incubadora)
*Prematuridade extrema (peso < 1.000 gramas) → +100-300%
*Lesão da pele ou defeitos de encerramento (por ex. onfalocele, gastrosquise) → variável

Factores de decréscimo de PI

*Assistência ventilatória/mistura gasosa humidificada (tubo endotraqueal) → – 20-30%
*Humidificação do ambiente da incubadora → – 50-100%
*Cobertura de plástico ou de “estanho” (incubadora ou berço aquecido) → – 30-50%
*Dupla parede da incubadora → -30-50%.

  • Como regras gerais, pode fixar-se que:
    • as PI oscilam entre 20 e 80 mL/kg/dia;
    • os cálculos das PI devem ser feitos caso a caso tendo em conta, nomeadamente, o peso e idade gestacional, a humidade ambiental e a condição de doença e sua gravidade;
  • Após a primeira semana de vida as perdas insensíveis no RN pré-termo aproximam-se das perdas insensíveis do RN de termo tendo em conta o processo relativamente rápido de maturação cutânea.    

Perdas urinárias

Em complemento do que foi descrito atrás, a propósito da adaptação renal à vida extrauterina – cabe recordar que a quantidade de água necessária para a formação da urina depende da função renal e da carga de soluto renal.

Como regras gerais, pode fixar-se que:

  • As perdas urinárias oscilam entre 25 e 60 mL/kg/dia;
  • Os cálculos das perdas urinárias devem ser feitos caso a caso, tendo em conta, nomeadamente, o peso e idade gestacional, a humidade ambiental, a condição de doença e sua gravidade, assim como a eventual administração de solutos a partir do nascimento.

Perdas fecais

Após a primeira semana de vida as referidas perdas correspondem a cerca de 10 mL/kg/dia.

Perdas e necessidades em fluidos (crescimento)

Em fase de estabilização clínica haverá que fornecer água necessária para o crescimento (taxa ~ 5-20 g/kg/dia), cerca de 12-14 mL/kg/dia no RN de termo e 15-25 mL/kg/dia no RN pré-termo, acrescentando esta parcela aos cálculos descritos atrás para a manutenção [-1) + -2) + -3)] (ver atrás – manutenção).

O Quadro 1 sintetiza de modo global as perdas e necessidades em fluidos em mL/kg/dia, no RN de termo e no RN pré-termo de muito baixo peso (MBP) para a manutenção, assim como para o crescimento.

QUADRO 1 – Perdas e necessidades em fluídos.

Perdas de fluídos (mL/ Kg/ dia)
Perdas insensíveis:  20-80
Perdas urinárias:  25-60
Perdas fecais:  2-10
Necessidades em fluídos (mL/ Kg/ dia)
RN de termo →
(D = dia de vida)
D1-D2: 70
D3-D4: 80
D5-D6: 90
(S = semana de vida) S2-3-4: 120 mL/kg/dia
RN pré-termo →
(D = dia de vida)
D1: 60-70
D2: 80-90
D3: 100-110
D4: 120-140
D5-6: 125-150
(S = semana de vida) S2-3-4: 150 -200
Necessidades hídricas adicionais para o crescimento (mL/kg/dia)
RN de termo → 12-14; RN pré-termo  → 15-25

Objectivos práticos e monitorização

Tendo em consideração as noções explanadas, a estratégia da fluidoterapia hidroelectrolítica consiste fundamentalmente na administração inicial de fluidos IV (em regra dextrose em água a 5% com registo do débito de glicose em mg/kg/minuto) aos quais são incorporados, a partir de determinada fase, Na (NaCl) e K (KCl), procedendo concomitantemente ao registo dos seguintes parâmetros:

  • Peso diário (em circunstâncias especiais – RN em terapia intensiva – registo do peso de 8-8 horas); perda de peso > 20% nos primeiros cinco dias indica, em princípio, perda insensível não devidamente contabilizada; perda < 2% nos primeiros cinco dias indica, em princípio, retenção hídrica;
  • Registo rigoroso da entrada/suprimento de fluidos IV, ou por via oral/entérica; é fundamental também contabilizar os líquidos que servem de veículo à administração de medicamentos ou utilizados para “lavagem” de cateteres inseridos em linhas endovenosas;
  • Diurese (utilizando saco colector de urina ou, quando tal for inviável, pesagem da fralda seca antes e imediatamente após a micção, acautelando a eventualidade de evaporação da urina caso se ultrapasse determinado tempo após a eliminação de urina. O objectivo é manter diurese entre 1 e 3 mL/kg/hora;
  • Ionograma sérico com especial realce para o Na e K. O objectivo é manter natrémia entre 130 e 150 mEq/L, e a potassémia entre 3,5 e 6 mEq/L;
  • Osmolalidade sérica e urinária. Idealmente a osmolalidade sérica deverá manter-se entre 274-305 mOsm/kg de água e a osmolalidade urinária entre 150 e 400 mOsm/kg de água;
  • Densidade urinária, utilizada na prática, com mais frequência do que a osmolalidade; a densidade urinária deverá ser mantida entre 1.008 e 1.012, sendo que densidade de 1.012 <> osmolalidade entre 280 e 400 mOsm/kg de água.

Como regra geral pode estabelecer-se que a adição de electrólitos aos fluidos depende da diurese e da concentração plasmática de electrólitos.
A administração de sódio (Na), de potássio (K) e de cloro (Cl) no RN pré-termo de muito baixo peso obedece à seguintes regras:

  • Na: início de administração sob a forma de cloreto de sódio (NaCl) somente após início da diurese e após perda de peso superior a 7% do peso de nascimento); com efeito, até então ter-se-á verificado contracção do espaço extracelular que, entretanto, contribuiu com suprimento endógeno de Na ao espaço vascular.

Em síntese:

Iniciar sódio após perda > 7% do peso ao nascer:

  • RN de termo: 2-3 mEq/kg/24h;
  • RN pré-termo de peso entre 1.000-1.500 g: até 3-5 mEq/kg/24h;
  • RN pré-termo de peso inferior a 1.000 g: até 4-8 mEq/kg/24h;
  • Se as necessidades forem superiores, será de considerar perfusão independente de solução de Na, em torneira de 3 vias;
  • Se houver perdas anormais há que contabilizá-las para o suprimento extra.

Conclui-se, pois, que as necessidades em Na podem ser superiores nos RN PT de muito baixo peso (em geral com < 32 semanas-34 semanas).

  • K: início de administração somente após diurese francamente mantida (sob a forma de KCl) na dose de 2 mEq/kg/dia.

Após os 10 dias de vida, em geral, dose de 3 mEq/kg/dia é suficiente para manter balanço positivo quanto a crescimento em todas as idades gestacionais.

Integrando os parâmetros descritos, o Quadro 2 pode orientar o clínico à cabeceira do doente no sentido de restringir ou liberalizar o suprimento de líquidos.

QUADRO 2 – Regras para o reajustamento da fluidoterapia.

1 – Restrição do suprimento de líquidos
    • Diurese > 4 mL/kg/hora
    • Na sérico < 130 mEq/L
    • Ganho ponderal nos primeiros 3 dias de vida
    • Edema sem sinais de compromisso hemodinâmico (pele rosada, boa perfusão periférica, frequência cardíaca e pressão arterial normais)
2 – Liberalização do suprimento de líquidos
    • Diurese < 0.5 mL/kg/hora
    • Na sérico > 150 mEq/L
    • Perda de peso ~ 15% do peso de nascimento ou > 2%/dia.
    • Sinais de desidratação na fase pós-diurética e de melhoria da função pulmonar: deficiente perfusão periférica/preenchimento capilar periférico lento, palidez, perda do turgor da pele, fontanela anterior deprimida, e hipotensão e choque em situações graves.

Nota: O suprimento de nutrientes acompanhando o de fluidos e electrólitos é abordado noutros capítulos.

Alterações iónicas  do sódio e potássio

Como complemento dos capítulos da Parte X, são descritas as alterações iónicas do sódio e potássio, chamando-se a atenção para certas particularidades no RN.

Hiponatrémia

Definição

A hiponatrémia é definida como o valor de Na plasmático inferior a 130 mEq/L.

Etiopatogénese

São descritos classicamente os seguintes mecanismos de hiponatrémia:

  1. Hiponatrémia de diluição no pós-parto imediato
    • Nesta situação a hiponatrémia é transitória – período pós-parto imediato – resultando da expansão do espaço extracelular por suprimento excessivo de fluidos intra-parto. De recordar que a esta fase se segue a fase de contracção do referido espaço extracelular.
  2. Hiponatrémia de diluição na primeira semana de vida (precoce ou tardia)
    Verifica-se água corporal aumentada (hipervolémia) fundamentalmente por:
    • Suprimento excessivo de líquidos;
    • Associada a lesão renal aguda (LRA) intrínseca com oligúria, ou a LRA funcional;
    • Associada a outras situações como: insuficiência cardíaca congestiva, nefropatia congénita, etc.;
    • Associada à síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIADH): secreção aumentada de HAD como resposta a estímulos osmóticos e não osmóticos.
  1. Hiponatrémia de depleção relacionada com diversos factores que promovem a excreção renal de Na: por ex. diuréticos de ansa e tiazídicos, metilxantinas, prostaglandinas, indometacina, dopamina, variante da síndroma de Bartter (defeito de transporte do cloro no ramo ascendente da ansa de Henle), etc.. A hiponatrémia de depleção pode ser acompanhada de hipovolémia (diminuição da água corporal) por ex. em casos de diarreia, vómitos, drenagem de fluidos, etc..
  1. Hiponatrémia de depleção tardia
    Surge em situações de normovolémia com água corporal normal no contexto de imaturidade renal (RN pré-termo de idade gestacional inferior a 34 semanas, entre a 2ª e 4ª semana pós-natal). Os factores fundamentais que podem contribuir para esta situação são:
    • Excreção aumentada de sódio por imaturidade tubular renal (défice da actividade da Na/K- ATPase e/ou por défice de resposta à aldosterona);
    • Desvio de sódio plasmático para os tecidos com necessidades aumentadas para o crescimento, designadamente o tecido ósseo;
    • Suprimento de Na inferior às necessidades.
Manifestações clínicas e exames complementares

As manifestações clínicas, por vezes inexistentes, dependem dos valores séricos: hipotonia e hiporreactividade nos casos de valores entre 120 e 130 mEq/L, e vómitos, hiperexcitabilidade e convulsões nos casos com valores inferiores a 120 mEq/L.

A SIADH, que surge em cerca de 1-2% dos RN submetidos a terapia intensiva, ocorre tipicamente no contexto de patologia respiratória e do SNC (meningite, EHI, etc.). Os critérios fundamentais de diagnóstico, para além da hiponatrémia e da ausência de edema e de insuficiência cardíaca são: osmolaridade urinária elevada, osmolaridade plasmática diminuída, função renal e suprarrenal normais, FeNa aumentada.

A síndroma de Bartter, para além doutras manifestações, cursa com hiponatrémia e natriurese.

Tratamento

A hiponatrémia de diluição no pós-parto imediato obriga na maior parte das vezes a atitude expectante vigiando o valor sérico do Na.

Na hiponatrémia de diluição assintomática correspondendo a valores de natrémia entre 120-130 mEq/L (incluindo SIADH) está indicada apenas a restrição hídrica; nos casos sintomáticos e/ou se a natrémia for inferior a 120 mEq/L, deve ser administrado sódio IV durante o período entre 1 e 4 horas, para se atingir valor de 130 mEq/L aplicando a fórmula:

Na (mEq/L) a administrar = 0,6 X peso (em kg) X 130 – Na (em mEq/L) do doente 

Na prática: utilizando soluto de NaCl a 20% (15 mL) + água destilada (85 mL) obtém-se uma solução (100 mL) em que 1 mL<>0,5 mEq.

Nos casos de hiponatrémia de depleção aplica-se a mesma fórmula, com suprimento de sódio em cerca de 24 horas.

Hipernatrémia

Definição

A hipernatrémia é definida como o valor de Na plasmático superior a 150 mEq/L. Detectada com a frequência de cerca de 15% em RN submetidos a terapia intensiva, a sua importância deriva, sobretudo, do risco de HIPV em RN pré-termo.

Etiopatogénese

São descritos os seguintes mecanismos:

  1. Suprimento hídrico deficitário;
  2. Suprimento excessivo de sódio (por exemplo, veiculado pelo bicarbonato de sódio e soro fisiológico administrados em diversas circunstâncias);
  3. Perdas hídricas excessivas: perdas insensíveis aumentadas, podendo conduzir a desidratação hipernatrémica, diarreia e vómitos, perdas renais aumentadas em relação com nefropatia, uropatia obstrutiva, tubulopatia, hipercalcémia, etc..
Manifestações clínicas

Nas situações de suprimento hídrico deficitário e de perdas hídricas excessivas (correspondendo a água corporal diminuída) verifica-se perda de peso, taquicárdia, hipotensão, acidose metabólica e oligúria. De salientar que a hipernatrémia nesta circunstância não significa excesso de sódio corporal, mas sim maior concentração do ião por défice de água.

Nas situações de suprimento excessivo de sódio (acompanhado de água corporal aumentada) verifica-se aumento de peso (> 2% em relação às 24 horas anteriores), edema, taquicardia, hipertensão e diurese normal.

Tratamento

O tratamento incide essencialmente na causa: primeiramente, reposição das perdas insensíveis através de suprimento hídrico adequado; depois, restrição do suprimento de sódio (que não deverá ser inferior a 0,5 mEq/kg/hora).

Hipopotassémia (Hipocaliémia)

Definição

A hipopotassémia é definida como o valor de K plasmático inferior a 3,5 mEq/L sendo que se considera o valor inferior a 2,5 mEq/L como crítico.

Etiopatogénese

São descritos os seguintes mecanismos causais:

  1. Suprimento deficitário de K;
  2. Perdas anormais de causas renais, digestivas, metabólicas, medicamentosas, etc. (diuréticos tiazídicos, furosemido, aminoglicosídeos, corticóides, tubulopatia com défice de reabsorção tubular, uropatia obstrutiva, diarreia, drenagem gástrica, diálise, hiperglicémia, hipercalcémia, insuficiência renal poliúrica, etc.);
  3. Captação intracelular incrementada de K (alcalose metabólica, administração de insulina, hipotermia, etc.).
Manifestações clínicas e exames complementares

As manifestações mais frequentes de hipopotassémia são: hipoactividade, letargia, bradicárdia, arritmia, hiporreflexia, distensão abdominal e íleo paralítico.

O ECG evidencia sinais de intervalo QT prolongado, onda T achatada e de depressão do segmento ST.

Tratamento

O tratamento é substitutivo, consistindo em aumentar o suprimento de K por via oral ou IV utilizando cloreto de potássio (que contribui para corrigir também a hipoclorémia que acompanha quase sempre a hipopotassémia).

Nas formas ditas ligeiras de RN estável (potassémia entre 3 e 3,5 mEq/L) pode utilizar-se a solução de KCl a 7,5% na dose de 3 mEq/kg/dia 4 vezes por dia. Deve vigiar-se laboratorialmente a situação para decisão terapêutica ulterior. (De salientar que esta estratégia é utilizada igualmente como prevenção nos casos de utilização prolongada de diuréticos).

A solução de KCl pode associar-se ao leite na dose de 2,5-3 mEq/kg/dia.

Nos casos de RN em estado crítico, com sintomatologia mais exuberante (arritmia, bradicárdia, íleo paralítico, etc.) e/ou com valores inferiores a 3 mEq/L, utiliza-se a via IV administrando K na dose de 0,3-0,4 mEq/kg/hora e utilizando a concentração de K de 20-40 mEq/L na solução, procedendo sempre a vigilância electrocardiográfica.

Hiperpotassémia

Definição

A hiperpotassémia é definida como o valor de K plasmático superior a 6 mEq/L, sendo que se considera o valor superior a 7,5 mEq/L como limite crítico. Salienta-se que a velocidade de elevação do potássio é mais importante do que a concentração sérica exacta do ião.

É frequente em RNPT com idade gestacional inferior a 30 semanas, sobretudo entre as 24 e 72 horas de vida

Tratando-se duma situação que comporta morbilidade e mortalidade significativas, relacionávies sobretudo com o seu efeito sobre a condução cardíaca, pode culminar na assistolia e paragem cardíaca.

Etiopatogénese

São descritos os seguintes mecanismos causais:

  1. Libertação excessiva de K intracelular (hemólise, hematomas, hemorragia intracraniana, hipercatabolismo celular, asfixia perinatal, etc.);
  2. Suprimento excessivo de K;
  3. Eliminação renal diminuída (imaturidade renal, IRA, IRC, uropatia obstrutiva, nefropatia de refluxo, etc.);
  4. Medicamentos (indometacina, captopril, espironolactona, etc.).
Manifestações clínicas

O quadro clínico caracteriza-se fundamentalmente por arritmia e alterações do ECG; estas, por ordem de gravidade, incluem: maior amplitude das ondas T, em “pico”, bloqueio cardíaco com alargamento do complexo QRS, arritmia e paragem cardíaca.

Tratamento

O tratamento depende essencialmente da situação de base e dos valores do potássio plasmático que devem ser monitorizados frequentemente.

Nas hiperpotassémias moderadas (6,0-7,5 mEq/L) sem alterações do ECG deve suspender-se o suprimento de potássio e administrar-se glucose IV com ou sem insulina. No esquema prático mais habitual procede-se a perfusão de solução de glucose a 25% (0,5 mL/kg/hora) associada a insulina (0,15U/kg/hora), esta última com duração de acção variando entre 1 a 4 horas (entrada de K na célula).

As formas graves (K > 7,5 mEq/L), associadas a alterações do ECG, constituem uma emergência médica, estando indicado o seguinte procedimento:

  • Gluconato de cálcio a 10% IV (1-2 mL/kg em 5 a 10 minutos) cuja acção pode durar até cerca de 4 horas; esta perfusão, cujo efeito é restaurar a excitabilidade da membrana celular, pode ser repetida;
  • Bicarbonato de sódio a 3% IV (1-3 mEq/kg em 10 minutos) cuja acção pode durar 2-4 horas; esta perfusão promove a entrada do K na célula e combate a acidose. Recorda-se que o bicarbonato deve ser administrado por acesso diferente do gluconato de cálcio;
  • Insulina na dose referida atrás;
  • Salbutamol (promovendo a deslocação do K do espaço extracelular para o intracelular) na dose de 4 mcg/kg em 5 mL de água destilada durante 20 minutos; este procedimento pode ser repetido. A via inalatória também pode ser utilizada.

Nas hiperpotassémias refractárias, para além da utilização simultânea de gluconato de cálcio, bicarbonato de sódio, glicose/insulina e salbutamol, está indicada a associação a medidas que promovem a eliminação do K [resinas permutadoras de iões, diuréticos de ansa (furosemido)] e, eventualmente, diálise peritoneal:

  • Resinas (por ex. suspensão de poli-estireno-sulfonato de sódio <> 15 g/60 mL) na dose de 1 g/kg 4 vezes por dia; como acções acessórias salienta-se o risco de hipercalcémia e calcificação do tubo digestivo com possibilidade de obstrução;
  • Furosemido na dose de 2 a 4 mg/kg/dia IV dividida em 4 vezes ou em perfusão contínua;
  • Diálise, hemodiafiltração ou exsanguinotransfusão, com a colaboração da equipa de nefrologia e da UCIN.

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Etiopatogénese e importância do problema

Cálcio e Fósforo

O cálcio (Ca), o mineral mais abundante no corpo humano, assume grande importância no recém-nascido em crescimento pelas funções de formação óssea e participação em processos metabólicos intra e extracelulares. Está igualmente envolvido na coagulação sanguínea, condução nervosa, contracção muscular e função cardíaca. Durante a gravidez o cálcio é transferido activamente da mãe para o feto através da placenta, com maior magnitude no terceiro trimestre.

O fósforo (P) é igualmente transferido para a circulação fetal através de transporte activo via placenta; no primeiro trimestre atinge concentração superior à do cálcio, decrescendo depois até ao final da gestação, precisamente no período em que se verifica o maior acréscimo de cálcio.

O recém-nascido está dependente da absorção intestinal de cálcio, do tipo de cálcio fornecido, e da forma como este se liga às gorduras ou proteínas. A relação adequada entre o suprimento de cálcio e fósforo (Ca/P) é também determinante para a sua absorção e retenção.

Magnésio

O magnésio (Mg), depois do potássio (K), é o segundo catião intracelular mais abundante: cerca de 60% do total encontra-se no tecido ósseo, 30% nos músculos, e 10% noutros tecidos. Actuando como coenzima em mais de 300 processos, a sua acção mais importante relaciona-se com o bloqueio da transmissão neuromuscular, diminuição da excitabilidade do músculo estriado e diminuição do tono da musculatura lisa. Tal como o cálcio, transferido para o feto, atinge o maior acréscimo no terceiro trimestre da gestação. Na data do nascimento os níveis sanguíneos de Mg dependem dos respectivos níveis maternos; na vida pós-natal a regulação depende da PTH. Baixa concentração de Mg incrementa a secreção de PTH, a qual contribui para mais elevada reabsorção tubular do mesmo. Pelo contrário, elevando-se a concentração sérica de Mg, é estimulada a secreção de calcitonina que diminui a reabsorção tubular do catião.

Entre o Ca e o Mg ocorre uma interacção fisiológica pois, qualquer alteração de um dos iões provoca alteração no outro. A PTH promove a elevação do teor de ambos, enquanto a calcitonina leva à diminuição. Como implicações clínicas importantes desta interacção há que salientar que a situação de hipocalcémia refractária ao tratamento poderá constituir um epifenómeno de hipomagnesiémia.

HIPOCALCÉMIA

Definição e importância do problema

A hipocalcémia é um problema comum no período neonatal, dado que o suprimento exógeno de cálcio nos primeiros dias de vida é inferior ao que corresponde à transferência materno-fetal transplacentar no último trimestre de gestação (cerca de 100-150 mg/kg de peso fetal/dia).

Nos RN de termo define-se hipocalcémia como valor sérico de cálcio ionizado (Ca2+) inferior a 4,40 mg/dL (1,10 mmol/L) e/ou de cálcio total inferior a 8,0 mg/dL (2,0 mmol/L). Dado que o Ca2+ é a única forma fisiologicamente activa do cálcio, este doseamento é o considerado preferível para estabelecer o diagnóstico.

Nos RN pré-termo, define-se hipocalcémia como valor de cálcio sérico total inferior a 7,0 mg/dL (1,75 mmol/L) e de cálcio ionizado (< 0,75-1,1 mmol/L ou < 3-4,4 mg/dL).

Salienta-se que a hipoalbuminémia pode levar à falsa sugestão de hipocalcémia porque em tal circunstância o valor sérico de Ca total está diminuído, embora o Ca ionizado (Ca2+) esteja normal. Por isso, em situações suspeitas de hipo- ou hipercalcémia, é preferível a determinação do Ca ionizado.

A hipocalcémia ocorre em cerca de 1 a 2% dos RN aparentemente saudáveis. A frequência é superior nos RN de mães diabéticas (RNMD, cerca de 50%) em relação directa com a gravidade da diabetes materna e associada habitualmente a hipomagnesiémia e a secreção diminuída de hormona paratiroideia (PTH).

Globalmente, nos RN pré-termo surge, como média, em 30% dos casos.

Ao contrário da hipoglicémia, não origina lesões estruturais no SNC.

Etiopatogénese e factores de risco

A normocalcémia depende da interacção de vários factores, nomeadamente do equilíbrio com outros iões, do equilíbrio ácido-base do organismo, e de respostas hormonais reguladas pela hormona paratiroideia (PTH), calcitonina e 1,25-(OH)2 vitamina D.

Os efeitos da PTH (não transferida através da placenta) são: elevação das concentrações séricas de Ca e Mg e diminuição das de P; tal resulta fundamentalmente da acção ao nível do osso (libertação de Ca, P, Mg com diminuição dos respectivos depósitos), rim (aumento da reabsorção de Ca e Mg, diminuição da reabsorção de P, e aumento da produção de 1,25-(OH)2 vitamina D).

Os efeitos da calcitonina (também não transferida através da placenta) são: diminuição das concentrações séricas de Ca, Mg e de P; tal resulta fundamentalmente da acção ao nível do osso (aumento de depósitos por diminuição da libertação de Ca e P), e do rim (aumento da excreção de Ca, P, e Mg).

Os efeitos do metabólito di-hidroxilado da vitamina D [1,25-(OH)2 colecalciferol], transferido através da placenta, são: elevação das concentrações séricas de Ca e P; tal resulta fundamentalmente da acção ao nível do intestino (aumento da absorção de Ca e P), osso (aumento da libertação de Ca e P), e rim (aumento da reabsorção de Ca e P).

São descritas duas formas clínicas de hipocalcémia em função da data de aparecimento:

  • Precoce (início antes das 48 e 72 horas de vida e relacionada com eventos intrauterinos ou perinatais); e
  • Tardia (iniciada em geral a partir da primeira semana de vida e relacionada com eventos iatrogénicos ou com defeitos congénitos). Estas formas clínicas integram grupos de risco diversos.

Hipocalcémia precoce

Após o parto existem factores predisponentes de hipocalcémia precoce; com efeito, após laqueação do cordão umbilical é interrompido o suprimento de cálcio proveniente da mãe e verifica-se uma sobrecarga endógena de fosfato (P) devido ao consumo das reservas de glicogénio com libertação concomitante de P para o espaço extracelular.

Diminuindo fisiologicamente os níveis de cálcio (Ca), a glândula paratiroideia é estimulada, do que resulta elevação dos níveis de PTH com o objectivo de elevação do referido cálcio sérico. Esta resposta à PTH em termos de elevação do cálcio sérico (traduzindo-se por mobilização do cálcio ósseo) faz-se em cooperação com o 1,25-di-hidroxi-colecalciferol (traduzindo-se por reabsorção tubular renal de cálcio e fosfatúria).

Ora, este mecanismo, em determinados grupos de RN de risco, é limitado:

  • RN pré-termo (RNPT);
  • RN de mãe diabética (RNMD);
  • RN com antecedentes asfixia perinatal;
  • RN de mãe epiléptica.

Nos primeiros três grupos de RN, em conjunto, o mecanismo geral descrito como resposta ao declínio do Ca sérico está retardado, verificando-se quadro de hipoparatiroidismo transitório, diminuição transitória dos níveis do metabolito di-hidroxilado da vitamina D (ou 1,25-di-hidroxi-colecalciferol) e aumento dos níveis de calcitonina (cujo significado não está completamente esclarecido).

Como mecanismos específicos, descritos respectivamente em cada grupo de risco, citam-se:

  • No RNPT, a taxa de natriurese intensifica as perdas de Ca urinário;
  • No RNMD, a menor actividade da PTH, assim como a hipomagnesiémia materna e fetal explicam a maior incidência e maior duração da hipocalcémia;
  • Na asfixia perinatal a hipoxémia e acidose, levando a catabolismo tecidual, originam libertação importante de P com consequente hiperfosfatémia e repercussão na paratiroideia (resistência relativa à PTH);
  • O tratamento materno com fármacos anticonvulsantes, como o fenobarbital e a difenil-hidantoína, pode incrementar o catabolismo hepático da vitamina D com consequente hipocalcémia na mãe e no feto.

Hipocalcémia tardia

Esta forma é tipificada pelas seguintes situações:

Hipoparatiroidismo

São descritas as seguintes formas de apresentação:

  • Hipoparatiroidismo congénito
    • ligado ao cromossoma X;
    • forma autossómica dominante, em relação com genes localizados no cromossoma 16 ou 18;
    • forma integrando a síndroma de DiGeorge (anomalias dos 3º e 4º arcos branquiais determinando, entre outras anomalias, ausência de timo e paratiroideias).
  • Hipoparatiroidismo secundário a hiperparatiroidismo materno, procedimentos cirúrgicos – tiroidectomia, paratiroidectomia –, doença autoimune, e a carência de vitamina D).
Pseudo-hipoparatiroidismo (insensibilidade periférica à PTH)

São descritas três formas (todas com hipocalcémia e hiperfosfatémia), distintas pelas variantes quanto a anomalias duma “proteína de ligação Gs-alfa” do receptor da PTH e da produção de adenilato-ciclase.

Furosemido e bicarbonato de sódio

Estes fármacos originam alcalose com consequente diminuição do cálcio ionizado; por outro lado, o furosemido origina igualmente calciúria importante.

Nutrição parentérica

Através da administração de lípidos a elevação de ácidos gordos livres pode formar complexos insolúveis com o Ca.

Défice de suprimento ou de absorção de Ca

As situações mais típicas de défice de absorção de Ca são a doença celíaca e a síndroma do intestino curto.

Excesso de suprimento de P

O excesso de fosfato (por ex. relacionado com a ingestão de fórmulas lácteas com elevado teor de P), para além de inibir a resposta da PTH, exerce efeito semelhante à calcitonina.

Alterações do equilíbrio ácido-base

A alcalose como consequência da administração de solutos alcalinizantes ou de hiperventilação (por ex. em situações de displasia broncopulmonar) pode precipitar hipocalcémia através da diminuição da concentração de Ca ionizado (tetania pós-acidótica).

 Manifestações clínicas e diagnóstico

A hipocalcémia no período neonatal pode ser assintomática, sobretudo na forma precoce.

As formas sintomáticas surgindo apenas em cerca de 0,2% dos casos [irritabilidade muscular, hipertonia em extensão descrevendo-se um quadro típico chamado espasmo carpo-pedal, (actualmente raro dado o investimento na prevenção), laringospasmo, tremores, convulsões generalizadas ou focais] podem ser desencadeadas pela coexistência doutras alterações iónicas, como hipomagnesiémia, hipercaliémia e alcalose metabólica.

Pode haver repercussão cardíaca traduzida por taquicárdia, sinais electrocardiográficos (prolongamento do intervalo Q-T no electrocardiograma, por vezes associado a arritmia).

Dado que os sinais clínicos e electrocardiográficos de hipocalcémia são inespecíficos e não patognomónicos desta situação, o diagnóstico definitivo só poderá ser feito através do doseamento sérico do cálcio, de preferência -como foi referido – da sua fracção ionizada; na mesma amostra de sangue é aconselhável proceder ao doseamento simultâneo do P e do Mg por serem frequentemente coexistentes alterações destes últimos, com manifestações semelhantes.

Outros doseamentos séricos (PTH, calcitonina, vitamina D ou seus metabólitos) devem ser reservados para situações de hipocalcémia prolongada, refractária ou recorrente.

Como nota prática, importa reter que a hipocalcémia prolongada deve orientar o clínico para a detecção de situações como hipoparatiroidismo congénito ou síndroma de DiGeorge.

Tratamento

O objectivo do tratamento da hipocalcémia é repor o nível sérico do Ca através da administração de sais de cálcio.

Nos casos de hipocalcémia assintomática precoce, recomenda-se uma atitude expectante, tendo em consideração que muitas destas situações são autolimitadas. A hipocalcémia, no entanto, mesmo assintomática, deve ser tratada sempre no RN pré-termo, e também sempre que seja verificado nível sérico de cálcio total inferior a 6,0 mg/dL.

São adoptados os seguintes procedimentos:

  1. Hipocalcémia assintomática ou sintomática na ausência de convulsões, tetania ou apneia
    Perfusão contínua de gluconato de cálcio a 10% na dose de 5-8 mL/kg/dia; na ausência de contra-indicação e de boa tolerância oral, a mesma dose poderá ser dividida em três a quatro tomas por dia (tendo em conta a seguinte correspondência: solução de gluconato de cálcio a 10% <> 9,4 mg de Ca elemento/mL ou 102 mg de gluconato de cálcio/mL);
  1. Hipocalcémia acompanhada de convulsões, tetania ou apneia
    Bólus de gluconato de cálcio a 10% à 1-2 mL/kg em 10 minutos, eventualmente a repetir mais 3-4 vezes ao longo de 24 horas caso se mantenha a sintomatologia; após bólus eficaz: perfusão IV contínua de gluconato de cálcio a 10% na dose de 5-8 mL/kg/24 horas.
    A administração deve ser interrompida após normalização da calcémia e desaparecimento dos sinais clínicos. Torna-se fundamental corrigir outros desequilíbrios associados e contabilizar eventual terapêutica hipocalcemiante em curso.
  1. Hipocalcémia tardia
    Para além de tratamentos específicos em função dos factores etiológicos, é fundamental: diminuir o suprimento de P (utilizando fórmulas lácteas com baixa concentração de P); aumentar o suprimento de Ca (suplemento); e aumentar a relação Ca/P.

Notas importantes:

    • Deve ser sempre garantida concomitantemente a administração, tanto por via oral como por via intravenosa, da dose diária de Ca recomendada em situações habituais de normalidade.
    • Uma vez que a administração de cálcio intravenoso pode originar complicações graves, sempre que possível e não exista contra-indicação, deve ser preferida a via oral.
    • São complicações possíveis da administração intravenosa de cálcio o extravasamento da solução com deposição de cálcio nos tecidos moles circundantes e necrose tecidual, ou mesmo deposição subcutânea em diversos órgãos; bradicárdia ou mesmo paragem cardíaca; litíase renal; e possivelmente também calcificações cerebrais nos RN em estado crítico.
    • O Ca não deve ser administrado: 1) por via intra-arterial (risco de lesão vascular); 2) por via IM (risco de necrose tecidual); 3) através de cateter venoso umbilical com cateter localizado intra-hepático ou perto do coração.
    • Não está recomendada a prevenção de hipocalcémia nos RN de risco, devendo estes ser vigiados clinicamente e medicados com dose basal adequada de cálcio; constitui excepção o caso do RN com peso de nascimento < 1.000 gramas.

Prognóstico

Quando diagnosticada e corrigida precocemente, a hipocalcémia tem bom prognóstico. Salienta-se contudo que a verificação de convulsões pode comportar risco imediato de vida.

HIPERCALCÉMIA

Definição e importância do problema

Define-se hipercalcémia neonatal como valor sérico de Ca total superior a 2,75 mmol/L (11mg/dL), ou de Ca ionizado superior a 1,4 mmol/L (5,6 mg/dL). De referir que a hiperproteinémia pode originar elevação da Ca total, mas não do Ca ionizado. Trata-se dum problema clínico raro no RN, em geral iatrogénico ou secundário a situações de hipofosfatémia grave (< 0,5 mmol/L ou < 2 mg/dL).

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Os factores etiológicos da hipercalcémia podem ser sistematizados do seguinte modo:

Hiperparatiroidismo primário (forma autossómica recessiva)

Nalgumas destas formas raras de hiperparatiroidismo a produção excessiva de PTH, por insensibilidade dos receptores da paratiroideia ao Ca ionizado, pode originar hipercalcémia elevada com hipotonia, dismineralização óssea e fracturas.

Hiperparatiroidismo secundário

Esta forma pode resultar de adenoma ou de hipoparatiroidismo materno do qual resulta hiperplasia paratiroideia, sendo que as alterações bioquímicas são transitórias ao contrário do que acontece na forma primária.

Outras doenças da paratiroideia

Incluem a hipercalcémia hipocalciúrica familiar benigna (forma autossómica dominante cujas manifestações são dominadas pela obstipação e hipotonia) e a hipercalcémia infantil idiopática, provavelmente relacionada com secreção anormal de calcitonina e resposta aumentada à vitamina D.

Hipercalcémia de causa nutricional

São exemplos:

  • Hipofosfatémia;
  • Verifica-se mobilização de Ca a partir do osso, sendo que este evento, por não haver deposição óssea do mesmo, poderá levar a nefrocalcinose;
  • Intoxicação pela vitamina D (aumento da absorção intestinal de Ca);
  • Intoxicação pela vitamina A (aumento da mobilização do Ca ósseo).

Necrose gorda subcutânea

Admite-se que se trata de anomalias do metabolismo das gorduras (com libertação de Ca a partir dos tecidos) associada a sensibilidade anómala à vitamina D. Ocorre sobretudo em RN macrossomáticos sujeitos a hipotermia, asfixia perinatal e parto traumático. Precedendo a hipercalcémia surgem placas bem demarcadas ao nível das proeminências ósseas, nádegas, regiões genianas, etc..

Doenças da tiroideia

Quer o hipotiroidismo (originando provavelmente absorção aumentada do Ca), quer o hipertiroidismo (originando mobilização de Ca a partir do ossso) podem levar a hipercalcémia.

Situações iatrogénicas

As mais frequentes são: – hipertratamento da hipocalcémia; – excesso de administração de Ca no decurso de exsanguinotransfusão para prevenção da hipocalcémia; – tratamento com tiazidas que promovem excreção urinária aumentada de Ca.

Tratamento

Nas formas assintomáticas pode adoptar-se atitude expectante até valores séricos de Ca ~ 12,5 mg/dL.

As medidas terapêuticas incluem:

  • Furosemido como agente calciurético administrado na dose de 1 mg/kg/dose cada 2 a 4 horas durante 1 a 2 dias;
  • Corticóides (por ex. prednisolona na dose de 1 mg/kg/dia durante 3-4 dias);
  • Outros fármacos poderão ser utilizados: fosfatos, inibidores da sintetase das prostaglandinas, etc..

HIPOFOSFATÉMIA

DEFINIÇÃO, ETIOPATOGÉNESE; CLÍNICA E TRATAMENTO

Os valores de referência para o P sérico no RN, situam-se entre 4,8-8 mg/dL.

A hipofosfatémia, potencial causadora de hipercalcémia (ver atrás) pode surgir em RNMBP submetidos a nutrição parentérica ou em lactentes alimentados com fórmulas lácteas com baixo teor de fosfatos (défice de suprimento).

Outras causas no RN podem ser assim sistematizadas:

  • Desvios transcelulares
    • Glucose IV, administração de insulina.
  • Perda renal
      • Hiperparatiroidismo, raquitismo hipofosfatémico ligado ao X, idem autossómico dominante, diuréticos, expansão de volume em fluidoterapia, glucocorticóides, etc..
  • Multifactorial
      • Sépsis, diálise;
      • Carência de vitamina D, raquitismo vitamina D dependente (em lactentes).

Se os valores séricos forem inferiores a 0,8 mmol/L (2,5 mg/dL), será necessário perfundir uma solução endovenosa de fosfato e interromper temporariamente a nutrição parentérica.

HIPERFOSFATÉMIA

DEFINIÇÃO, ETIOPATOGÉNESE; CLÍNICA E TRATAMENTO

A causa mais frequente de hiperfosfatémia (> 8 mg/dL) é a disfunção renal.

Outras causas no RN podem ser assim sistematizadas:

  • Desvios transcelulares
    • Hemólise aguda, síndroma de lise tumoral, rabdomiólise, acidose láctica.
  • Suprimento aumentado
    • Iatrogénica [tratamento da hipofosfatémia, enemas, laxantes, intoxicação pela vitamina D (em lactentes)].
  • Excreção diminuída
    • Disfunção renal;
    • Calcinose tumoral familiar (doença rara, AR, manifestada noutras idades).
  • Reabsorção aumentada no túbulo proximal
    • Hipoparatiroidismo e pseudo-hipoparatiroidismo.

Em situações de hiperfosfatémia deve dosear-se a creatininina e a ureia no sangue pela probabilidade de estar em causa quadro de disfunção renal. Em presença de hiperfosfatémia ligeira e hipocalcémia acentuada deve proceder-se ao doseamento de PTH, o que poderá levar a distinguir hipoparatiroidismo de pseudo-hipoparatiroidismo.

O tratamento da hiperfosfatémia aguda depende da gravidade e etiologia da mesma. Nas formas ligeiras, e perante função renal mantida, existe probabilidade de resolução espontânea com restrição do suprimento de P.

HIPOMAGNESIÉMIA

Definição e etiopatogénese

Define-se hipomagnesiémia como a verificação de valor sérico de Mg inferior a 1,6 mg/dL (0,66 mmol/L). Habitualmente, as manifestações clínicas só surgem quando o valor é inferior a 1,2 mg/dL (0,49 mmol/L).

Os factores etiológicos da hipomagnesiémia podem ser sistematizados do seguinte modo:

  • Défice de suprimento de Mg
    • Síndroma de intestino curto em que se verifica défice de absorção;
    • RN de mãe diabética (RNMD) no qual são descritos os seguintes mecanismos:
      1. défice de resposta da PTH a valor sérico baixo de Mg;
      2. hipomagnesiémia fetal causada pela perda urinária materna de Mg decorrente da poliúria durante a gravidez; tal défice fetal continua na vida pós-natal.
    • RN com restrição de crescimento intrauterino (RCIU) associado a défice de transferência transplacentar materno-fetal de Mg.
  • Excesso de perda de Mg
    Tal poderá acontecer nos casos de exsanguinotransfusão com sangue citratado: o citrato forma complexos com o Mg, diminuindo a sua concentração na forma livre.
  • Alterações da homeostase do Mg
    Como exemplos citam-se o hipoparatiroidismo neonatal e a hiperfosfatémia.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da hipomagnesiémia são semelhantes às da hipocalcémia: sinais de hiperexcitabilidade neuromuscular, convulsões tónicas, clónicas, focais ou generalizadas, etc.. A repercussão cardíaca pode traduzir-se em alterações do ECG: inversão da onda T e depressão do segmento ST.

  1.  

Nota importante: a hipomagnesiémia pode indiciar hipocalcémia refractária à terapêutica; com efeito, administração de Mg constitui um coadjuvante do tratamento da hipocalcémia.

Tratamento

O tratamento da hipomagnesiémia aguda tem como objectivo essencial a reposição do Mg (sulfato de magnésio) identificando e corrigindo a sua etiologia. Em geral utiliza-se o sulfato de Mg a 50% na dose de 0,1-0,2 mL/kg por via IM ou IV lenta durante 1 hora.

O sal com esta concentração contém 49.3 mg de Mg – elemento por mL ou 500 mg de sulfato de Mg por mL. A administração de sulfato de Mg IV ou IM – que pode ser repetida cada 12 ou 24 horas – obriga à monitorização cardíaca do RN, pelo risco de arritmias e alterações da condução auriculoventricular.

Havendo tolerância oral, uma vez calculada a dose diária de Mg, pode utilizar-se PO de 8-8 ou de 12-12 horas na condição de se utilizar concentração do sulfato de Mg a 5 ou 10%; tal implica diluição prévia do sulfato de Mg a 50%.

O tratamento obriga a determinação sérica diária do Mg e vigilância clínica no sentido de evitar a hipermagnesiémia.  

Quando diagnosticada e tratada adequadamente, a recuperação da hipomagnesiémia é completa.

Nota: A administração de cálcio ou vitamina D em situação de hipomagnesiémia não tratada, pode agravar o défice de Mg.

HIPERMAGNESIÉMIA

Definição e etiopatogénese

Define-se hipermagnesiémia como a verificação de valor sérico de Mg superior a 3 mg/dL. No RN a causa mais frequente desta alteração é a administração de Mg à mãe em relação com eclâmpsia materna ou parto pré-termo; a coexistência de asfixia perinatal e de prematuridade constituem factores agravantes, na medida em que existe défice de excreção urinária de Mg em tais situações.

Manifestações clínicas

As principais manifestações clínicas (em geral surgindo somente a partir de valores de Mg > 6 mg/dL) incluem depressão respiratória e neuromuscular; a duração de tais sinais depende mais da duração do tratamento com Mg instituído à mãe grávida do que do nível de hipermagnesiémia.

Tratamento

Deve adoptar-se atitude expectante a qual inclui, para além da interrupção de medicações contendo Mg, eventual suporte respiratório em função do contexto clínico.

Pode utilizar-se furosemido (1 mg/kg/dose cada 2 ou 4 horas) associado a fluidoterapia IV no sentido de promover a excreção urinária de Mg.

Nos casos de toxicidade neuromuscular está indicada a administração de gluconato de cálcio a 10% (0,1-0,3 mL/kg/dose) IV lento. Em casos extremos e refractários poderão estar indicadas a exsanguinotransfusão ou a diálise.

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Etiopatogénese e importância do problema

A glicose constitui a principal fonte energética para o metabolismo fetal e, designadamente, para a função do encéfalo. Toda a glucose utilizada no feto é transportada através de gradiente de difusão facilitada, sendo que a concentração de glucose no sangue fetal é cerca de 70% da concentração no sangue materno.

Para a compreensão das alterações do metabolismo da glicose no período neonatal imediato é fundamental reter as seguintes noções:

  1. As reservas de glicogénio, fonte de glucose, em vários órgãos, principalmente fígado e músculo estriado, no feto/RN de termo e de peso adequado para a idade gestacional, são escassas; e tal escassez das mesmas é mais acentuada no RN pré-termo de baixo peso e/ou no RN com restrição de crescimento fetal;
  2. Não existe produção significativa de glucose pelo próprio feto apesar de as enzimas da neoglucogénese e da glicogenólise estarem relativamente funcionantes no termo da gestação (excluindo as situações de doenças hereditárias do metabolismo);
  3. Na vida fetal o teor em glucose proveniente da mãe cifra-se em cerca de 4-6 mg/kg/minuto.

Após o nascimento, verificando-se uma interrupção brusca da glicose fornecida por via umbilical, coincidindo com a laqueação do cordão, a concentração de glicose sanguínea (glicémia) no RN desce rapidamente para níveis inferiores aos da vida fetal, estimando-se então as necessidades em glicose da ordem de 5-8 mg/kg/minuto, superiores às do feto, e cerca de 3 a 4 vezes superiores às do adulto.

Para que a glicémia se mantenha em níveis normais, é necessária uma interacção complexa de vários mecanismos hormonais, a saber:

  • A elevação do glucagom e das catecolaminas estimulando a glicogenólise hepática;
  • A elevação do cortisol e da hormona de crescimento estimulando a neoglucogénese e;
  • A diminuição da secreção de insulina cuja acção é a utilização da glucose pelos tecidos, reduzindo a glicémia (antagonista da do glucagom).

A glicogenólise contribui para a espoliação das reservas de glicogénio, o que, por sua vez, activa a neoglucogénese.

Como alternativa ao “substrato energético glucose” existem outros substratos (lactato, aminoácidos – sobretudo alanina -, ácidos gordos livres, corpos cetónicos), salientando-se que o RN – sobretudo o pré-termo e o de baixo peso – evidencia resposta limitada à utilização de tais compostos.

Em suma:

  1. Este processo de adaptação fetal endócrino-metabólica à vida extrauterina é mais limitado no RN pré-termo e no RN de baixo peso com restrição de crescimento fetal tendo em conta, nomeadamente, a imaturidade das enzimas da glicogenólise e da neoglicogénese, assim como a escassez mais acentuada das reservas de glicogénio e de músculo (fonte de aminoácidos);
  2. A concentração da glicose no sangue do RN depende da integridade e maturidade dos mecanismos reguladores referidos.

A importância deste problema decorre sobretudo da possibilidade de lesão neuronal e de sequelas neurológicas, atribuíveis à diminuição da glicémia abaixo de determinados valores (hipoglicémia), associada por vezes a alterações da microcirculação e a factores como hipóxia ou infecção. De realçar que a hipoglicémia grave no RN se associa a necrose neuronal selectiva em múltiplas regiões do encéfalo, incluindo designadamente o córtex superficial, o hipocampo e o putamen caudato. As principais consequências histopatológicas dizem respeito, sobretudo, a necrose neuronal com ruptura das sinapses e membrana celular comprometendo seriamente a transmissão sináptica.

Por outro lado, valores elevados (hiperglicémia) podem ter igualmente efeitos deletérios no SNC e de diurese osmótica, entre outros.

A alimentação precoce com colostro e leite materno contribui para evitar a tendência do RN para a diminuição da glicémia, e até elevando-a, pelas seguintes razões: estimulação dos precursores neoglucogénicos como o aminoácido alanina, estimulação de enzimas necessárias à cetogénese como a lactase, e diminuição da secreção de insulina.

Pelo contrário a prática habitual de administração de soro glucosado a 5% ou 10%, de “sabor doce”, que deve ser desencorajada – para além de desmotivar o RN para a sucção de colostro de “sabor salgado” – diminui a secreção de glucagom e a neoglicogénese, sem garantir valor da glicémia dentro da normalidade e estável.

Neste capítulo são abordados dois problemas clínicos relacionados com alteração do metabolismo da glicose (hipoglicémia e hiperglicémia) no RN.

HIPOGLICÉMIA

Definição

A definição de hipoglicémia (não totalmente consensual entre os vários grupos de investigação) é biológica: depende dos valores laboratoriais obtidos de amostras de sangue ou plasma, uma vez que nem sempre é sintomática; conceptualmente, considera-se baixo o valor plasmático de glicose a que corresponde elevada probabilidade de lesão funcional.

No recém-nascido saudável, o valor limite de normalidade mais consensual em amostra de plasma é 40 mg/dL (2,2 mmol/L) após as 12 horas de vida, com valores fisiologicamente mais baixos nas primeiras 3 horas de vida, sendo que se atinge o mínimo cerca das 1-2 horas (1,5 mmol/L, 27 mg/dL) com recuperação espontânea pelas 3 horas de vida.

Este limite tem sido definido em função de determinados parâmetros: epidemiológico (dois desvios padrão abaixo da média), clínico (nível para o qual surge sintomatologia), metabólico (valor para o qual surge contrarregulação metabólica) ou neurofisiológico (valor para o qual surgem alterações do fluxo cerebral).

Nesta perspectiva, a definição mais útil é a dita operacional, ou seja, a que corresponde ao limiar que obrigue a intervenção terapêutica, de acordo com a situação clínica do recém-nascido e a presença de factores de risco.

Assim, considera-se valor limite inferior de normalidade da glicémia (determinada em amostra de plasma) justificando intervenção terapêutica:

  • No RN saudável com mais de 3h de vida: < 2 mmol/L (36 mg/dL);
  • No RN sintomático: < 2,5 mmol/L (45 mg/dL);
  • No RN com hiperinsulinismo: < 3,5 mmol/L (64 mg/dL).

A determinação da glicémia deve ser feita utilizando um método rápido, sensível e barato, exequível à cabeceira do doente, e com pequena quantidade de sangue capilar (na prática, para rastreio, utiliza-se micrométodo com tiras-reagente pelo método da glucose-oxidase – Dextrostix®, BMtest®, etc.); de salientar que, com sangue total, o valor obtido é cerca de 10-15% inferior ao do plasma.

Considera-se actualmente que a determinação plasmática é a mais correcta, já que a determinação em sangue total é afectada pelo hematócrito (valores de glicémia respectivamente decrescentes no sangue: arterial > capilar > venoso).

São salientadas as seguintes regras práticas:

    • valores alterados baixos de glicémia, determinados por micrométodo, obrigam sempre a confirmação em amostras de plasma;
    • a verificação de glicémia < 20-25 mg/dL em todo e qualquer RN obrigará à administração de glucose IV com o objectivo de ser atingido o nível plasmático de glucose > 45 mg/dL;
    • com base em estudos anatomoclínicos, metabólicos, e de neurodesenvolvimento, para garantir a homeostase e evitar lesão do SNC, mesmo na ausência de sintomatologia, é crucial que se mantenha o valor da glicemia > 45 mg/dL no 1º dia de vida, e > 50 mg/dL, a partir das 24 horas de vida.

Aspectos epidemiológicos

A hipoglicémia constitui o problema metabólico mais frequente no RN.

De acordo com diversos estudos epidemiológicos, estima-se incidência entre 2 a 3/1.000 nados-vivos. Tendo em conta as particularidades fisiopatológicas da prematuridade e da restrição do crescimento intrauterino, não é de estranhar que em tais grupos de RN se verifiquem incidências maiores (5-10%).

 Etiopatogénese e classificação

A hipoglicémia pode surgir de forma transitória no recém-nascido por diversos mecanismos em que predominam, relativamente à glucose: diminuição da oferta; ou consumo excessivo.

Diminuição da oferta de glicose

Como grupos de risco ou de grande probabilidade de hipoglicémia em que prevalece este mecanismo, citam-se:

Prematuridade (gravidez encurtada)

No RNPT a probabilidade de hipoglicémia explica-se sobretudo pelo défice de reservas de glicogénio (fonte de glicose) e de gordura, cujo acréscimo se verifica sobretudo no terceiro trimestre.

São também determinantes a imaturidade da neoglucogénese (sobretudo por défice da actividade da fosfoenolpiruvatoquinase) e de várias enzimas implicadas no metabolismo da glucose. Verifica-se igualmente imaturidade da cetogénese.

Restrição de crescimento fetal ou intrauterino (RCIU)

Nos RN com RCIU os mecanismos são semelhantes aos descritos no RNPT, tendo menor relevância a imaturidade enzimática caso não exista prematuridade concomitante.

Verifica-se o papel preponderante das reservas diminuídas de glicogénio e de gordura, e do défice de neoglucogénese. De salientar que frequentemente existem situações associadas susceptíveis de aumentarem o consumo pré- e pós-parto como a asfixia perinatal. Uma das particularidades da hipoglicémia na RCIU é a tendência para se prolongar por cerca de 48-72 horas.

Asfixia perinatal

Nestas circunstâncias, a hipóxia e a acidose, incrementando a actividade e a libertação de catecolaminas, levam a glicogenólise e aumento de consumo da glicose por glicólise anaeróbia, baixando, por isso, a glucose no sangue. Tal acontece por necessidade de suprimento energético (glucose) à célula cerebral face ao défice de oxigenação.

Este mecanismo é, na generalidade, comum a outras situações, como infecção perinatal, hipotermia e RN com cardiopatia congénita cianótica (neste último caso em situações acompanhadas de défice de fluxo sanguíneo hepático dificultando a glicogenólise e a saída de glicose para o sangue).

Consumo excessivo de glucose

Como grupos de risco ou de grande probabilidade de hipoglicémia em que prevalece este mecanismo, citam-se:

RN de mãe diabética

O exemplo paradigmático deste mecanismo é o hiperinsulinismo fetal/neonatal por hiperplasia das células b dos ilhéus de Langerhans face à hiperglicémia materna no contexto de diabetes; o efeito no RN quanto a valor glicémico verifica-se após a laqueação do cordão umbilical (hipoglicémia nas primeiras horas e tanto mais acentuada e mais duradoira quanto mais elevada a hiperglicémia materna).

Outros efeitos do hiperinsulinismo são: incremento da síntese de proteínas e de glicogénio hepático causando macrossomia, cardiomiopatia com hipertrofia do septo e parede ventricular e hematopoiese extramedular.

A síndroma de policitémia/hiperviscosidade, isoladamente ou muitas vezes associada a problemas do RNMD, constitui também exemplo de consumo incrementado de glucose pela maior massa eritrocitária.

Outras situações acompanhadas de hiperinsulinismo

Cabe referir fundamentalmente:

  1. A utilização de medicamentos administrados à mãe grávida estimulando a produção de insulina e a libertação de catecolaminas (por ex. corticóides, beta-simpaticomiméticos, propranolol, tiazidas, etc.);
  2. A utilização de perfusão de dextrose intra-parto com suprimento de glucose superior a 8-10 gramas/hora originando estimulação das células b dos ilhéus pancreáticos;
  3. Certas formas clínicas de doença hemolítica por incompatibilidade Rh em que se admite que a hemólise maciça, originando incremento da glutationa reduzida, provoque estimulação das referidas células beta e hiperprodução transitória de insulina;
  4. Nutrição parentérica com cateter central, empregando soluções com elevada concentração de glucose, poderá estimular a secreção de insulina com consequente hipoglicémia; nos casos de cateter arterial umbilical (com solução de dextrose para manutenção da permeabilidade do mesmo) em posição incorrecta (entre D11 e L1), dirigido para o tronco celíaco que irriga directamente o pâncreas, poderá verificar-se igualmente estimulação da secreção de insulina com idênticas consequências;
  5. Exsanguinotransfusão com sangue hiperglicémico contendo citrato-fosfato-dextrose.

Outros mecanismos

A hipoglicémia pode surgir também de forma persistente ou recorrente por diversos mecanismos tais como: doenças hereditárias da neoglucogénese, da cetogénese, da glicogenólise, alterações endócrinas (hipopituitarismo, insuficiência adrenocortical, défice de hormona de crescimento, hiperinsulinismo congénito, certas formas da chamada síndroma de Beckwith – Wiedemann, etc.).

O hiperinsulinismo congénito (anteriormente designado nesidioblastose), constituindo a causa mais comum de hipoglicémia persistente no recém-nascido, deve ser destacado. A sua base etiopatogénica engloba várias entidades clínicas a que correspondem outros tantos mecanismos: alteração na regulação da secreção de insulina, defeitos dos canais de potássio regulados pelo ATP, formas autossómicas recessivas e dominantes (em relação com mutações de genes no cromossoma 11), défice da activação da glucoquinase, défice da activação do glutamato desidrogenase, défice da isomerase da fosfomanose, etc..

A síndroma de Beckwith-Wiedemann também merece ser destacada por cursar em 50% dos casos com hipoglicémia hiperinsulinémica por hiperplasia das células beta dos ilhéus; caracteriza-se fundamentalmente por visceromegália, onfalocele, macroglóssia, gigantismo e microcefalia.

O gigantismo é relacionado com mutações no cromossoma 11p15.5 em região próxima à dos genes da insulina e do IGF-2. Por outro lado, associa-se a tendência para certas neoplasias como tumor de Wilms, hepatoblastoma, carcinoma da suprarrenal, rabdomiossarcoma, etc..

Como será fácil depreender, as formas persistentes e recorrentes de hipoglicémia, estão habitualmente associadas a manifestações clínicas mais graves e a maior probabilidade de sequelas neurológicas.

Os Quadros 1 e 2 sintetizam as principais situações clínicas com risco elevado de hipoglicémia neonatal, especificando-se, nalgumas delas, a respectiva etiopatogénese.

[Nota referente à terminologia de hiperinsulinismo: Embora no RNMD exista hiperinsulinismo fetal (congénito), o mesmo não é considerado de causa genética (permanente), mas adquirido in utero (transitório)].

QUADRO 1 – Hipoglicémia neonatal (formas transitórias).

(*) Consultar texto sobre a etiopatogénese e o Capítulo sobre Embriofetopatia Diabética

Problemas maternos (*)

    • Diabetes (pré-gestacional e gestacional)
    • Drogas (beta-bloqueantes, hipoglicemiantes orais, tiazidas, )
    • Administração de glicose intraparto (> 8-10 gramas/hora)

Problemas neonatais (*)

    • Prematuridade (RNPT)
    • RN de mãe diabética
    • Restrição do crescimento intrauterino (RCIU) ou macrossomia
    • Asfixia perinatal
    • Hipotermia
    • Infecção sistémica
    • Policitémia
    • Nutrição parentérica

QUADRO 2 – Hipoglicémia neonatal (formas persistentes).

Causas endócrinas e doenças hereditárias do metabolismo

Hiperinsulinismo

    • Hiperinsulinismo congénito
    • Síndroma de Beckwith – Wiedmann

Défice de regulação hormonal

    • Hipopituitarismo
    • Défice de hormona de crescimento
    • Alterações adreno-corticais

Défice de oxidação dos ácidos gordos

    • Défice de oxidação dos ácidos gordos de cadeia média e longa

Doenças por erros da neoglucogénese

    • Défice de frutose 1,6-difosfatase

Glicogenoses

    • Défice de glucose-6-fosfatase
    • Défice de glicogénio sintetase

Outras

    • Galactosémia
    • Leucinose
    • Acidémia propiónica

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos a hipoglicémia é assintomática, não se verificando sequelas. Tal poderá explicar-se pelas circunstâncias de aquela não persistir para além de 2-3 horas, e de se verificar a utilização de lactato e corpos cetónicos como substratos metabólicos alternativos.

As manifestações clínicas de hipoglicémia – que são inespecíficas – globalmente constituem um epifenómeno da libertação de catecolaminas (por ex. taquicárdia e sudação), e do défice de glicose cerebral (por ex. tremores, hiperexcitabilidade, letargia, convulsões, coma, etc.). Outros sinais associados incluem: apneia, cianose, dificuldade respiratória, recusa alimentar, hipotensão, mioclonias, etc..

Diagnóstico

Uma vez que, como foi referido, a hipoglicémia nem sempre é sintomática, torna-se imprescindível proceder ao rastreio através de fitas reagentes-Dextrostix®, BMtest®, etc. – (colheita de sangue capilar na região calcaneana) – a partir das 3 horas de vida e nas primeiras 24-72 horas, – nos RN considerados de risco elevado, com prioridade para: RN PT e/ou de MBP, RN com RCIU, RNMD, RN macrossomáticos (> 4.000 gramas), RN grandes ou de peso excessivo para a idade gestacional.

Por outro lado, tal determinação é obrigatória sempre que exista qualquer sinal suspeito.

Chama-se a atenção para a necessidade de a técnica de colheita de sangue capilar ser realizada correctamente (cuidados de assépsia e aquecimento prévio do pé com o objectivo de promover vasodilatação e facilitar o fluxo de sangue).

No RN sem factores de risco, uma determinação confirmada de glicémia plasmática muito baixa deve levantar a suspeita de hipoglicémia de causa metabólica ou endócrina.

Determinadas situações obrigarão a esclarecimento etiológico mais complexo (investigação alargada incluindo outros exames laboratoriais), nomeadamente: hipoglicémia sintomática no recém-nascido de termo, alterações da consciência ou convulsões, hipoglicémia persistente ou recorrente, necessidade de perfusão endovenosa de glicémia com valores superiores a 10 mg/kg/minuto (ver adiante), síndroma malformativa associada a hiperinsulinismo, e história familiar de morte súbita ou de síndroma de Reye.

O Quadro 3 resume os exames complementares e parâmetros laboratoriais a investigar nos casos de hipoglicémia persistente ou recorrente (suspeita de doença endócrina ou hereditária do metabolismo).

QUADRO 3 – Investigação em casos de suspeita de doença endócrina ou doença hereditária do metabolismo (hipoglicémia persistente ou recorrente).

Sangue

    • Metabólitos intermediários (glicose, lactato, piruvato, alanina, ácidos gordos livres e corpos cetónicos)
    • Electrólitos, função hepática, pH e gases no sangue
    • Amónia
    • Aminoácidos
    • Carnitina total e livre
    • Perfil de acilcarnitinas
    • Insulina e péptido C, hormona de crescimento, cortisol e hormonas tiroideias

Urina

    • Corpos cetónicos
    • Ácidos orgânicos
    • Substâncias redutoras

Outros

    • Exame oftalmológico
    • Ecografia transfontanelar ou TAC


Constituem principais critérios de diagnóstico de hiperinsulinismo perante glicose no sangue < 50 mg/dL:

  1. Insulina no plasma < 2 uU/mL;
  2. Ácidos gordos no plasma < 1,5 mmol/L;
  3. Beta-hidroxibutirato < 2,0 mmol/L.

A elevação da glucose em 40 mg/dL, ou mais, após administração de glucagom (50 mcg/kg até máximo de 1 mg IV ou IM), coincidindo com hipoglicémia, sugere estado hiperinsulinémico com reservas de glicogénio adequadas e enzimas da glicogenólise intactas.

Se a amoniémia estiver elevada, atingindo 200 mmol/L, há que admitir mutação nos genes implicados na activação da glutamato desidrogenase/ deficiência desta enzima (ver atrás).

Tratamento

O principal objectivo do tratamento da hipoglicémia neonatal é manter o nível de glucose plasmática superior a 45 mg/dL.

Hipoglicémia sintomática

Uma vez diagnosticada, e independentemente do factor etiológico, é utilizado o seguinte procedimento:

  • Administração de glucose IV em bolus: 200 mg/kg (2 ml/kg de soro glicosado a 10%) em cerca de 2 a 3 minutos; de salientar que este procedimento (200 mg/kg em bolus inicial) é desaconselhado por certos autores, como Rozance (bibliografia de 2020);
  • O referido bolus deve ser sempre seguido de administração contínua de glicose IV na dose de ~ 8 mg/kg/minuto durante cerca de 1 hora, ao fim da qual se deve proceder à determinação da glicémia com fita reagente.

Se o valor da glicémia for > 45 mg/dL, a dose de glucose deve ser reduzida para 6 mg/kg/minuto durante três horas; se o valor da glicémia se mantiver > 45 mg/dL, deve reduzir-se progressivamente o suprimento de glucose em 1 mg/kg/minuto cada 12 horas (verificando a glicémia com tira reagente cerca de 1 hora após redução da dose) até se atingir a dose de glucose IV de 4 mg/kg/minuto, a manter durante mais cerca de 24 horas com determinações da glicémia de 8-8 horas; se durante a administração IV da solução de glucose neste período os valores da glicémia forem > 45 mg/dL, suspende-se a perfusão de glucose com ulteriores determinações da glicémia, três a 4 vezes por dia em função do contexto clínico.

Se o valor da glicémia se mantiver < 45 mg/dL após bolus inicial e início de perfusão de glucose na dose de 8 mg/kg/minuto, deve repetir-se o bolus e aumentar a dose de glucose progressivamente, não ultrapassando 12 mg/kg/minuto.

No RN com hiperinsulinismo persistente (demonstração de níveis excessivos de insulina para as concentrações séricas simultâneas de glicose) adopta-se o seguinte procedimento: – deve manter-se a glicémia > 64 mg/dL (> 3,5 mmol/L), o que poderá obrigar à necessidade de suprimento de glucose da ordem de 15 a 20 mg/kg/min e de soluções glucosadas com concentração superior a 10%; – deve igualmente manter-se o suprimento alimentar por via entérica sempre que possível (preferência para o leite materno, se necessário com a utilização de sonda orogástrica) assegurando acesso venoso permanente.

Regras práticas importantes:

    1. A alimentação entérica (preferência para o leite materno) pode ser iniciada em ritmo contínuo por sonda gástrica, acompanhada de redução lenta do volume de solução de glicose IV concomitantemente administrada.
    2. Durante a correcção da hipoglicémia deve atender-se a:
      • regras do suprimento hídrico recomendado em função do peso de nascimento, dias de vida, situação clínica, etc.;
      • limites máximos de concentração do soluto de glucose IV: até 12,5% se aplicado em veia periférica, e até 20% se aplicado em veia central.
    3. Como medida inicial de emergência, se o acesso venoso for difícil, pode ser administrado glucagom intramuscular (100 mcg/kg em bolus), que promove a glicogenólise hepática, a neoglicogénese e a cetogénese; no entanto, esta medida deve ser evitada em RN com RCIU cujas reservas de glicogénio (substrato para a acção do glucagom) são deficitárias.
    4. Nas hipoglicémias refractárias em geral (apesar do suprimento aumentado de glicose (o hiperinsulinismo, já referido, é um dos exemplos) está indicada a administração de fármacos hiperglicemiantes:
      • Corticosteróides (fármacos de primeira escolha aumentando a neoglicogénese): hidrocortisona IV (10 mg/kg/dia, em duas doses) ou prednisolona por via oral (1-2 mg/kg/dia em 3 doses) não ultrapassando 5 dias; nos casos de hiperinsulinismo poderá haver necessidade de tratamento mais prolongado.
      • Glucagom IM ou IV na dose inicial de 300 mcg/kg e na dose de manutenção podendo variar entre 100 e 200 mcg/kg de 12-12 horas.
      • Outros fármacos implicando precauções especiais e experiência da equipa assistencial: diazóxido IV: 10-15 mg/kg/dia (com efeitos colaterais importantes, por ex. trombocitopénia, hipotensão, etc.), análogo de somatostatina (octreotido), etc..
      • Pancreatectomia indicada nos casos em que se verifica:
        • hipoglicémia refractária [à glucose IV + diazóxido (até 20 mg/kg/dia) e a análogos da somatostatina], ou
        • adenoma do pâncreas.

Hipoglicémia assintomática

No caso de glicémia < 36 mg/dL (< 2 mmol/L) tratando-se de RN de termo, assintomático, de peso adequado para a idade gestacional e sem factores de risco, com idade superior a 3 horas de vida, o RN deve ser alimentado – de preferência com leite materno – determinando-se a glicémia ao cabo de 2-3 horas após a refeição. Alguns autores empregam uma dose de dextrose em gel bucal (200 mg/kg, podendo ser repetida), precedendo a alimentação oral descrita.

No caso de glicémia mantida < 36 mg/dL, ao mesmo tempo que é providenciada a alimentação entérica (por via oral ou por sonda em função do contexto clínico) deve ser iniciada administração de soluto de glucose IV na dose de 6 mg/kg/minuto, procedendo-se depois de modo idêntico ao descrito anteriormente para o tratamento da hipoglicémia sintomática.

Prevenção

As medidas de prevenção da hipoglicémia neonatal têm em vista facilitar a adaptação metabólica do feto à vida extrauterina na perspectiva dos eventos descritos a propósito da etiopatogénese.

  1. No RN saudável sem factores de risco: promoção do aleitamento materno colocando aquele ao peito da mãe já no bloco de partos para estímulo da secreção do colostro e leite; com efeito, o leite materno diminui o consumo de glicose, fomentando a cetogénese.
  2. RN com RCIU e RNPT com idade gestacional inferior a 32 semanas: suprimento de glicose endovenosa a 10% em dose semelhante à produção hepática endógena (> 6 mg/kg/minuto) e início precoce da alimentação com leite materno.
    No RNPT em que não haja contra-indicação de alimentação entérica, a administração de triglicéridos de cadeia média promove a elevação da glicose no sangue; por outro lado, deve ser evitado o suplemento de polímeros de glicose pelo risco de intolerância alimentar e pelos riscos associados à hiperosmolaridade (por ex. enterocolite necrosante).
  3. RN de mãe diabética (RNMD): o nadir esperado da hipoglicémia verifica-se em geral cerca das 4-6 horas de vida, podendo manter-se até às 48 horas, particularmente nos casos de glicémia materna pré-intraparto > 8 mmol/L (> 144 mg/dL).
    O procedimento preventivo inclui início precoce da alimentação e determinação da glicémia imediatamente antes da mamada, esperando obter-se valores estáveis e boa adaptação ao peito ou biberão.
  4. Nalguns centros existe experiência, com bons resultados, da utilização de gel de dextrose por via bucal.

Prognóstico

A probabilidade de sequelas neurológicas depende fundamentalmente da gravidade da hipoglicémia, da sua duração sem tratamento correctivo e especialmente da eventualidade de surgimento de convulsões.

As sequelas neurológicas descritas em estudos epidemiológicos dizem respeito a alterações do desenvolvimento cognitivo, a anomalias motoras e a convulsões recorrentes.

HIPERGLICÉMIA

Definição e importância do problema

O diagnóstico de hiperglicémia neonatal é biológico: define-se pela verificação de glicose plasmática em concentração > 125 mg/dL no RN de termo e > 150 mg/dL (> 8,2 mmol/L) no RNPT.

Trata-se duma alteração metabólica neonatal menos frequente que a hipoglicémia, embora ocorra com elevada prevalência nos RNPT submetidos a terapia intensiva, especialmente nos de peso inferior a 1.250 gramas (cerca de 30%-40%). Nalguns estudos tem-se verificado elevação da mortalidade e da duração do internamento quando os valores da glicémia ultrapassam 150 mg/dL nas primeiras 24 horas de internamento.

A importância deste problema clínico, com implicações prognósticas, decorre fundamentalmente das repercussões na osmolaridade do soro (o incremento de 18 mg/dL de glicémia provoca elevação de 1 mOsm/L) com consequências em vários territórios, nomeadamente SNC (probabilidade de hemorragia intraperiventricular-HIPV).

Etiopatogénese

O suprimento excessivo de glicose endovenosa é um factor causal frequente de hiperglicémia, sobretudo no RNPT, em relação inversa com a idade gestacional; a frequência atinge o acme nos RN pré-termo extremo (22-27 semanas).

Com efeito, em tais circunstâncias, há que valorizar as seguintes particularidades da fisiopatologia:

  • Neoglucogénese não totalmente inibida pela presença de glicose;
  • Insuficiência de insulina;
  • Certo grau de resistência periférica à acção da insulina e;
  • Elevação dos níveis circulatórios de catecolaminas e cortisol.

A administração parentérica de lípidos constitui outro factor etiológico: aumenta a neoglucogénese fundamentalmente através do aumento da oxidação de ácidos gordos.

Determinados fármacos, tais como a dexametasona, aminofilina e cafeína poderão originar hiperglicémia transitória através do estímulo de enzimas da neoglicogénese; no caso da cafeína verifica-se concomitantemente estimulação de enzimas da glicogenólise hepática.

Nas infecções sistémicas (em que existe igualmente probabilidade de hipoglicémia) o mecanismo da hiperglicémia relaciona-se com anomalias da resposta da insulina à elevação da glicose sanguínea, assim como da neoglicogénese e da glicogenólise por acção de mediadores inflamatórios.

No âmbito de procedimentos cirúrgicos, a hiperglicémia explica-se pela dor e estresse que originam libertação de catecolaminas, glucagom e cortisol favorecendo a glicogenólise hepática. Noutras situações acompanhadas de estresse (asfixia perinatal, SDR, etc.) verifica-se idêntico mecanismo.

A hiperglicémia pode igualmente constituir um epifenómeno duma entidade clínica rara designada por diabetes mellitus transitória neonatal (englobando outras alterações para além da hiperglicémia: desidratação, acidose metabólica e cetonémia), associada em cerca de 30% dos casos a antecedentes familiares de diabetes mellitus. Mais frequente nos RN com RCIU, o mecanismo relaciona-se essencialmente com atraso na maturação dos mecanismos libertadores de insulina das células beta dos ilhéus pancreáticas. Habitualmente verifica-se regressão completa do quadro clínico ao cabo de 1-3 meses de vida extrauterina.

Em suma, no Quadro 4 são discriminados os factores etiológicos mais comuns da hiperglicémia neonatal.

QUADRO 4 – Factores etiológicos mais comuns de hiperglicémia neonatal.

Administração endovenosa

    • Glicose
    • Lípidos

Fármacos

    • Cafeína, aminofilina
    • Dexametasona

Estresse, dor

    • Asfixia
    • Dificuldade respiratória (SDR)
    • Hemorragia intraperiventricular (HIPV)
    • Infecção sistémica
    • Procedimentos cirúrgicos com anestesia

Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial

Em geral a hiperglicémia não se acompanha de manifestações clínicas específicas. A glicosúria secundária a hiperglicémia pode levar a poliúria.

Nos casos de diabetes mellitus transitória, como foi descrito, pode verificar-se perda de peso, desidratação e acidose metabólica.

No âmbito da vigilância laboratorial da urina para pesquisa de glicosúria, há que reter uma noção prática importante: algumas tiras reagentes de diagnóstico rápido detectam “açúcares” em geral, os quais poderão englobar outros para além da glicose (como por ex. a galactose, o que indicaria a presença de galactosémia).

 Tratamento

A actuação no caso da hiperglicémia deve ser sobretudo preventiva, ponderando o possível efeito dos factores etiológicos descritos eventualmente presentes. Como norma geral, deve providenciar-se nutrição adequada, mantendo a glicémia no intervalo de valores que não originem diurese osmótica ou necessidade de intervenção agressiva (no caso de glicémia entre 150-180 mg/dL).

Com a utilização de bombas de perfusão permitindo doses e ritmos de administração e concentrações de glicose bem controlados, monitorizando a glicose plasmática e urinária, não será necessária a utilização de insulina.

Se, apesar dos referidos procedimentos, a glicémia persistir > 300 mg/dL, mesmo reduzindo a glicose administrada, deve ser utilizada insulina regular na dose de 0,05-0,1 Unidades/kg IV, com monitorização rigorosa da glicémia.

Nos casos comprovados de diabetes mellitus transitória neonatal pode utilizar-se insulina regular IV ou SC: em regra 0,1-0,5 U/kg/dose IV ou SC de 6-6 ou 8-8 horas, ou de modo contínuo na dose de 0,1 U/kg/hora.

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Importância do problema

A alimentação do RN pré-termo (RN PT) pode considerar-se uma urgência nutricional tendo em consideração a escassez de reservas de nutrientes acumuladas durante a gestação. Pode deduzir-se que quanto menor a idade gestacional e o peso de nascimento, menor a quantidade de reservas; este aspecto tem, pois, maior acuidade nos RN de muito baixo peso (RN MBP) – inferior a 1.500 gramas, pois o período de maior acumulação de reservas de nutrientes e de energia corresponde ao terceiro trimestre da gestação.

Com efeito, é no período compreendido entre a 26ª e 36ª semanas pós-concepcionais que se verificam maior velocidade de ganho de peso e de crescimento longitudinal por hiperplasia e hipertrofia celulares (maior que em qualquer outro momento da vida humana incluindo o período da puberdade). Contudo, a esta fase corresponde também grande vulnerabilidade (trata-se do conceito de período crítico) pela maior possibilidade de efeitos adversos caso surjam carência ou inadequação de suprimento em energia e nutrientes, com repercussões futuras; este aspecto tem maior relevância ao nível do sistema nervoso pela possibilidade de alterações irreversíveis no campo da cognição e comportamento.

No RN com antecedentes de gravidez encurtada (isto é, nascido prematuramente) esta fase a que corresponde grande velocidade de crescimento in utero ocorre em ambiente extrauterino. Por isso, o suprimento nutricional adequado ao RNPT constitui um verdadeiro desafio para os pediatras-neonatologistas tendo em conta diversos factores tais como as particularidades ou limitações anatomofisiológicas inerentes, designadamente no que respeita à imaturidade do tubo digestivo.

Neste capítulo são abordados aspectos fundamentais e algumas especificidades da alimentação no RN pré-termo, em complemento do que foi referido nos primeiros três capítulos da Parte XI, sobre Nutrição.

Salienta-se que este tópico corresponde a uma área do conhecimento científico em que existem controvérsias e dúvidas pela falta de estudos aleatórios e controlados.

 Objectivo da nutrição do RNPT

A Academia Americana de Pediatria (AAP) recomenda que o regime nutricional considerado “ideal” para os RNPT proporcione taxas de crescimento e desenvolvimento semelhantes às observadas no período pré-natal sem, no entanto, conduzir a sobrecarga das funções metabólica e excretora ainda imaturas, com vista ao desenvolvimento neurológico normal.

Diversos estudos recentes têm chamado a atenção para os riscos inerentes a uma estratégia nutricional dita “mais generosa mas agressiva” que, embora produzindo melhores taxas de crescimento a curto prazo, podem conduzir a problemas metabólicos e cardiovasculares tardios; é o chamado dilema nutricional que é colocado ao neonatologista.

Na prática, o crescimento considerado adequado para um lactente com antecedentes de prematuridade deverá ser semelhante ao crescimento que teria in utero, o que corresponde ao incremento de cerca de 10-15 gramas/kg/dia. Todavia, tal nem sempre é possível tendo em conta a multiplicidade de problemas clínicos associados à prematuridade, que comprometem as possibilidades de suprimento de nutrientes; de tal situação poderão resultar défices nutricionais impondo eventualmente necessidades suplementares, o que deverá ser tido em conta na fase de recuperação.

Métodos de alimentação

O suprimento de nutrientes e energia pode realizar-se de dois modos: por via entérica e por via parentérica.

No sentido lato, a chamada alimentação entérica (AE) é um método em que é utilizada a via fisiológica – a digestiva – para suprimento alimentar incluindo a alimentação natural “ao peito” (leite materno), por biberão contendo fórmula ou alimentos especiais, ou por sonda gástrica; no sentido restrito ela diz respeito à administração de leite materno, de fórmula, ou de alimentos especiais substitutivos, por sonda gástrica (consultar Glossário).

Para nutrição inicial ou temporária (até máximo de 2-3 meses) são utilizados tubos nasogástricos (NG), ou nasojejunais (NJ) por fluoroscopia.

A chamada nutrição parentérica (NP) é um método em que os nutrientes e energia são administrados por via IV nos casos em que a situação clínica do RN não permite a utilização da via digestiva; pode ser total (administração exclusiva) ou parcial (associada à alimentação por via digestiva). Embora seja dada ênfase neste capítulo à nutrição do RNPT, cabe referir que, em função do estado clínico do RN, a alimentação entérica por sonda gástrica e a nutrição parentérica também são utilizadas em RN de termo. A NP no RN, quer seja ou não PT, é abordada no capítulo seguinte.

Necessidades nutricionais

Fluidos

As necessidades em fluidos do RN variam em função da idade gestacional, peso de nascimento, idade pós-natal e respectiva situação clínica e ambiental. Como complemento do que foi explanado no Quadro 1 do capítulo sobre Nutrientes (Parte XI).  

Salienta-se que os RN em incubadora em berço aquecido com aquecimento radiante superior requerem maior suprimento em líquidos do que os RN em incubadora em ambiente de humidade controlada. Os RN com peso < 1.000 gramas nas primeiras 24 horas de vida poderão necessitar de > 100-150 mL/kg/dia, obrigando a vigilância rigorosa da diurese, peso e doseamento de electrólitos no sangue.

Como valores médios no RN pré-termo em geral, oscilando em função das perdas, idade gestacional e idade pós-natal, são estabelecidas as necessidades em fluidos da ordem de 140-160 mL/kg/dia (em situações específicas, podendo ultrapassar 160 mL/kg/dia).

Energia

De acordo com a ESPGHAN e AAP tem sido recomendado para RNPT em alimentação entérica, a partir da primeira semana de vida, o suprimento energético, respectivamente, de 110-150 kcal/kg/dia, e de 120 kcal/kg/dia. Suprimentos superiores a 150 kcal/kg/dia estão indicados se o crescimento não for satisfatório.

Quer se trate de AE, quer de NP, os macronutrientes são distribuídos do seguinte modo em termos de percentagem (%) relativa do valor calórico total (VCT):

    • Proteínas: ~ 15% VCT <> 3,5 g/kg/dia;
    • Hidratos de carbono: ~ 55-65% VCT<> 16 g/kg/dia;
    • Gorduras: ~ 35-50% VCT<> 7 g/kg/dia.

O Quadro 1 discrimina a energia consumida que justifica tais necessidades no RNMBP.

QUADRO 1 – Necessidades energéticas (kcal/kg/dia) em função do consumo.

Energia para a manutenção 40-70
Dispêndio metabólico em repouso40-60
Dispêndio com a actividade0-5
Dispêndio com a termorregulação0-5
Energia para o crescimento 35-55
Dispêndio com a síntese15-20
Energia proveniente das reservas20-35
Energia para digestão/ absorção e perdida nas fezes 15
 

Salienta-se que no RN submetido a nutrição parentérica, as necessidades energéticas são menores uma vez que não é consumida energia com a digestão e absorção intestinais, nem se verifica perda energética pelas fezes. Com efeito, verificam-se incremento ponderal e taxas de retenção de azoto com suprimento energético da ordem de 80-100 kcal/kg/dia.

Pelo contrário, as necessidades em energia podem ser superiores em RN com actividade aumentada, hipotermia, SDR, infecção, situações submetidas a intervenção cirúrgica, RCIU, etc..

Proteínas e aminoácidos

No RN PT as necessidades de proteínas e aminoácidos devem ser individualizadas em função da idade gestacional, idade pós-natal e condição clínica, tendo em vista garantir a sua utilização. Por outro lado, deve haver uma relação adequada entre suprimento de proteínas e aminoácidos e suprimento energético. Suprimento excessivo pode levar a alterações metabólicas com efeito deletério ao nível do SNC, enquanto suprimento deficitário poderá conduzir a défice de mielinização e de crescimento dos órgãos.

Recorda-se que para além dos aminoácidos essenciais “clássicos” para o adulto da espécie humana e também para a criança, acrescentam-se para o RNPT: arginina, cistina, taurina, glicina e tirosina.

Uma limitação no RN PT é a imaturidade enzimática (por ex. das vias de degradação, das vias do ciclo da ureia, da fenilalanina-hidroxilase, etc.), sendo que o suprimento excessivo de aminoácidos poderá dar origem a alterações metabólicas tais como hiperamoniémia, urémia, hipertirosinémia, com riscos vários incluindo o de toxicidade neurológica.

Para evitar o catabolismo torna-se necessário o suprimento mínimo de 1,2 a 2 gramas/kg/dia (para a alimentação entérica) e 1 a 1,5 gramas/kg/dia (para a nutrição parentérica, no pressuposto de suprimento energético de 30 kcal/kg/dia).

Um aspecto importante a reter é o seguinte: o suprimento de aminoácidos, mesmo com baixo suprimento energético, poupa as proteínas endógenas por aumentar a síntese proteica.

Hidratos de carbono

Os hidratos de carbono constituem uma fonte energética de rápida utilização, o que contribui para evitar o catabolismo tecidual. Em condições de estabilidade clínica, e em obediência à %VCT, foi estabelecida a necessidade de suprimento médio ~ 16 gramas/kg/dia. O principal hidrato de carbono como fonte energética é a glicose armazenada sob a forma de glicogénio cujo acréscimo (tal como as gorduras) se verifica sobretudo no terceiro trimestre.

Gorduras

As gorduras são nutrientes importantes para o crescimento e desenvolvimento do SNC, salientando-se o seu papel fundamental na sinaptogénese, mielinização, assim como no desenvolvimento da retina e da membrana celular; da composição estrutural desta última cabe salientar os ácidos gordos poli-insaturados de longa cadeia (LCPUFA): o ácido docosa-hexanóico (DHA) e o ácido araquidónico (ARA). Uma vez que somente a partir do terceiro trimestre da gestação se verifica o maior acréscimo dos referidos nutrientes, torna-se fácil compreender a especial vulnerabilidade do RNPT ao défice de suprimento daqueles, sendo que a incorporação de LCPUFA nas membranas neurais depende da transferência transplacentar dos referidos ácidos gordos e do suprimento pós-natal.

Tratando-se de AE, o suprimento de gorduras, deve corresponder a 7 gramas/kg/dia; para evitar a deficiência em ácidos gordos essenciais (designadamente ácido linoleico e linolénico) torna-se necessário o suprimento mínimo de 0,5-1 grama/kg/dia (~ 2-4% do VCT); as gorduras na totalidade não deverão ultrapassar 50% do VCT.

Minerais, oligoelementos e vitaminas

As necessidades em minerais, oligoelementos e vitaminas, abordadas de modo genérico no capítulo sobre nutrientes (volume 1- parte XI), são especificadas para o RN no capítulo seguinte.

Estimando-se uma prevalência de 1/530 de carência em vitamina B12 na mãe grávida e RN, certas escolas preconizam o rastreio de tal carência na grávida e/ou no RN.

Esquemas de alimentação entérica (AE)

Vias de administração

Nos RN com idade gestacional igual ou superior a 34 semanas e/ou sucção-deglutição estabelecida, a administração de leite deve ser iniciada por via oral e ao peito da mãe (por conseguinte, em condições ideais, com leite materno); caso tal não seja possível, poderá administrar-se leite de fórmula adequado à condição clínica do RN PT através de biberão/tetina.

Nos RN com idade gestacional inferior a 34 semanas, ou naqueles em que a situação clínica não permite a sucção, a alimentação entérica é propiciada através de técnicas utilizando, dum modo geral, sondas:

  • Nasogástrica (de mais fácil fixação do que a orogástrica, mas aumentando a resistência da via aérea);
  • Orogástrica (preferida nos casos de SDR e/ou com risco de apneia);
  • Transpilórica (com uma oliva de tungsténio na extremidade, “mais pesada”, para facilitar a passagem desta para o duodeno enquanto se verifica peristaltismo); está indicada nos casos de refluxo gastresofágico importante ou intolerância gástrica; com tal sonda não é possível beneficiar das enzimas gástricas que promovem a digestão das gorduras).

Em situações específicas o leite ou alimento líquido pode ser administrado através de acessos cirúrgicos (gastrostomia ou jejunostomia).

As sondas convencionais, fabricadas com polietileno ou cloreto de polivinil, devem ser substituídas cada 3-4 dias. Actualmente são utilizadas sondas de poliuretano ou silicone, mais flexíveis, de maior diâmetro interno, e menos susceptíveis de originarem lesão traumática da mucosa.

Técnicas

O objectivo principal da alimentação no RN PT (após período fisiológico inicial de perda e de recuperação do peso de nascimento) é propiciar um crescimento aproximado ao verificado in utero para idêntica idade gestacional (~ 10-25 gramas/kg/dia). Menor acréscimo de peso indicará, em princípio, suprimento energético deficitário, enquanto acréscimo superior poderá estar relacionado com sobrecarga de fluidos. Na prática, tal objectivo é em geral conseguido com suprimento de volume de leite entre 150-160 mL/kg/dia.

Tratando-se de alimentação com fórmula, poderá haver, de facto, variação do volume dentro de pequenos limites tendo em conta a concentração calórica utilizada (por ex. 80 kcal/100 mL ou 70 kcal/100 mL).

  1. Nos RN alimentados por via oral (excluindo RN com aleitamento materno exclusivo) pode ser utilizada a seguinte estratégia:
    • RN com peso de nascimento entre 1.500-2.000 gramas: 3-4 mL cada 3 horas com incrementos diários por refeição de 3-4 mL;
    • RN com peso de nascimento superior a 2.000 gramas: 5 mL cada 3 horas com incrementos diários por refeição de 5 mL.
  1. Nos RN alimentados por sonda nasogástrica duas técnicas podem ser utilizadas: intermitente (com seringa, injectando o leite em bolus, ou com seringa vertical sem êmbolo- método gravitacional), contínua empregando bomba de perfusão, ou combinação das duas:
    1. 2.1 Intermitente A administração do leite materno ou fórmula pela via gástrica intermitente (cada 2 ou 3 horas) é considerada mais fisiológica relativamente à contínua pelo facto de favorecer o processo cíclico de secreção das hormonas intestinais e do sistema biliar, propiciando melhor tolerância; por outro lado, não exige o emprego de bombas de perfusão e comporta menor risco de precipitação dos nutrientes no sistema de administração. Utiliza-se em geral o seguinte esquema (versátil em função da tolerância), considerando volumes por refeição de 2-2 ou de 3-3 horas):
      • RN de peso < 1.000 gramas: volume inicial: 10-20 mL/kg/dia; incremento de + 10 mL/kg/dia nos RN com peso < 750 gramas, e de + 20 mL/kg/dia nos RN com peso entre 750-999 gramas;
      • RN de peso 1.000-1.499 gramas: volume inicial: 20-30 mL/kg/dia; incremento de + 20 mL/kg/dia;
      • RN de peso 1.500-2.499 gramas: volume inicial: 30-40 mL/kg/dia; incremento de + 30-40 mL/kg/dia;
      • RN de peso igual ou superior a 2.500 gramas: volume inicial: 50 mL/kg/dia; incremento de + 50 mL/kg/dia.
      O objectivo desta progressão em volume (que deve ser individualizado em função do estado clínico) é atingir 140-160 mL/kg/dia, salientando-se que este esquema não se aplica aos RN alimentados PO.
    2. 2.2 Contínua Aplicam-se neste caso as regras respeitantes aos volumes a administrar atrás mencionadas. A alimentação gástrica contínua está especialmente indicada nos casos de prematuridade extrema (RN de peso inferior a 1.000 gramas), SDR e intolerância à técnica intermitente.
  1. Intermitente/contínua Trata-se duma variante que combina as técnicas de administração intermitente e contínua: por ex. alimentação contínua durante uma hora seguida de pausa de 2-3 horas.

Alimentação entérica mínima ou trófica

Está provado que o jejum prolongado, originando atrofia da mucosa intestinal, compromete a integridade anatomofisiológica da mesma e facilita, entre outros efeitos adversos, a passagem de bactérias para a corrente sanguínea. Por outro lado, demonstrou-se que a utilização de pequeno volume de leite (idealmente materno) sem objectivos de cumprimento das necessidades nutricionais, constitui importante estímulo para garantir a referida integridade anatomofisiológica e imunológica do tracto intestinal, uma vez que o mesmo conduz à libertação de factores de crescimento, de secreções exócrinas várias (pancreáticas, biliares, etc.), à secreção de hormonas intestinais com efeitos trófico, maturativo, e de estímulo da motilidade intestinal, ao desenvolvimento do microbioma, etc.. Os resultados a curto e médio prazo são, fundamentalmente, menor incidência de intolerância alimentar e de colestase, menor tempo de NP, mais fácil transição para a AE “plena”, etc..

Na prática, a partir da fase de estabilização hemodinâmica, e desde o 1º dia, administra-se leite (0,5-10 mL/kg/dia, sendo o volume total dividido em várias parcelas nas 24 horas, cada 3, 4, 6 ou 8 horas, por ex. em função do contexto clínico e tolerância); é a chamada alimentação entérica não nutricional ou trófica. O volume de leite deve ser incrementado em função da situação clínica do RNPT, podendo eventualmente haver necessidade de o reduzir se se verificar intolerância.

Por outro lado, a chamada “sucção não nutricional” ou não acompanhada de suprimento de leite, deve ser estimulada nos RN PT o mais precocemente possível (inicialmente com chupeta, dedo com luva esterilizada, e, se houver condições clínicas, com o mamilo-aréola da mãe mesmo antes da chamada “subida do leite”), não só como “habituação” para a fase de autonomia de sucção/deglutição de leite, mas igualmente pela razão de a referida sucção constituir um estímulo para a secreção láctea e da lipase salivar.

Preparados de reforço nutricional do leite materno

Está provado que o leite da própria mãe do RN pré-termo (leite materno pré-termo) é o preferido para o mesmo, especialmente se se tratar de RNMBP. Tal se explica pela maior biodisponibilidade de nutrientes, propriedades imunológicas, presença de enzimas, hormonas e factores de crescimento.

Relativamente ao leite humano de termo (maturo), o de pré-termo possui maior carga calórica e maior concentração de proteínas, sódio e cloro; por outro lado, possui mais baixa concentração de lactose do que o leite humano maturo. Estas diferenças em composição, que persistem durante o 1º mês de lactação, são consideradas benéficas para o RN pré-termo.

Apesar destas diferenças, diversos estudos sugerem que o leite humano pré-termo não satisfaz as necessidades para o crescimento de RN pré-termo quanto a proteínas, cálcio, fósforo, sódio, ferro, cobre, zinco e algumas vitaminas. Nesta perspectiva, tem sido recomendada a suplementação ou enriquecimento do leite materno a administrar a RN pré-termo com preparados em pó (comercializados em pacotes), reforçando o conteúdo do mesmo em energia, proteínas, hidratos de carbono, cálcio e fosfato. No Quadro 2 mostra-se o incremento obtido com a referida suplementação.

QUADRO 2 – Incremento nutricional do leite materno após suplementação (por 100 mL de leite materno).
[incremento <> diferença do valor antes e depois da seta →]

Energia (kcal): 10 →14
Proteínas (g): 0,6 →1g
Hidratos de carbono (g): 2 →2,4
Gordura (g): vestigial 
Sódio (mmol): 0,3 →0,9
Cálcio (mmol): 1 →2,2
Fósforo (mmol): 0,7 →1,2


A adjunção do reforço ao leite humano nas circunstâncias referidas é iniciada a partir do suprimento ≥ 100 mL/dia.

Noutros tipos de suplementação podem ser utilizados polímeros de glucose (3,8 kcal/grama de pó), ou triglicéridos de média cadeia, [requerendo mínima digestão por serem absorvidos directamente para o sistema porta (7,7 kcal/mL)].

Fórmulas para pré-termo

Na ausência de leite humano, as fórmulas para pré-termo constituem o substituto mais apropriado. Como alternativa, em função do contexto clínico, hidrolisados de proteínas ou fórmulas elementares. Em comparação com as fórmulas para bebés de termo, as primeiras possuem mais elevada concentração de proteínas (2,5 g/100 mL contra 1,8 g/100 mL), maior carga calórica (75 kcal/100 mL contra 90 kcal/100 mL), e mais elevada concentração de minerais, vitaminas e oligoelementos.

Regras práticas da AE

  • O resíduo gástrico – a verificar antes de cada refeição – não deverá exceder o volume de 2-4 mL/kg; caso tal se verifique, o referido volume residual deve ser reintroduzido (com o objectivo de manter o balanço electrolítico); ou seja, o volume da refeição próxima deve ser subtraído do volume correspondente ao referido resíduo.
  • A alimentação entérica deve ser suspensa – por período variável em função do contexto clínico – nos casos de distensão abdominal, vómitos ou dificuldade respiratória.
  • A presença de resíduo gástrico > 10 mL/kg poderá dever-se a alteração funcional da motilidade em relação com a prematuridade, ou a patologia oclusiva diversa: ECN, esquema alimentar inadequado, alterações metabólicas, infecção sistémica, hipotermia, hipoxémia, etc..
  • Após a refeição o RN (monitorizado) deve ser colocado em decúbito ventral com a cabeça e tronco elevados.
  • As crianças necessitando de AE prolongada durante vários meses poderão ser candidatas à gastrostomia.

Transição da via entérica para a via oral

Dum modo geral esta transição deve ser gradual e ter início quando a situação clínica o permitir: coordenação da sucção – deglutição, estabilidade clínica, idade corrigida superior a 34 semanas e peso superior a 1500 gramas. No caso de crianças com antecedentes de gastrostomia, tal transição poderá ser mais difícil implicando eventualmente a necessidade de colaboração da equipa de fisiatria tendo em vista a estimulação motora.

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Definição e importância do problema

Mesmo que as estratégias ventilatória e antimicrobiana praticadas numa unidade de cuidados intensivos neonatais sejam de excelência, a qualidade assistencial praticada nestas pode considerar-se deficitária se não for dada a devida atenção ao suporte nutricional.

Os recém-nascidos total ou parcialmente impossibilitados de utilizar a via entérica, requerem nutrição parentérica (NP), método em que os nutrientes são administrados por via intravenosa.

Apesar de haver, desde há muito, programas informatizados que auxiliam a prescrição de NP neonatal, as premissas em que assentam os critérios não são muitas vezes consensuais e estão em contínua mudança.

Este capítulo baseia-se nas actuais Recomendações da Sociedade Portuguesa de Neonatologia de 2019, publicadas em Port J Pediatr 2019;50:209-219 (parte I) e Port J Pediatr 2019;50:220-231 (parte II), por sua vez orientadas por recomendações conjuntas de quatro sociedades científicas, publicadas em 2018: European Society of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN), European Society for Parenteral and Enteral Nutrition (ESPEN), European Society of Pediatric Research (ESPR) e Chinese Society of Parenteral and Enteral Nutrition (CSPEN). No final do mesmo é incluído um Anexo para consulta rápida de doses de nutrientes recomendadas por nutrição parentérica em recém-nascidos pré-termo.

GENERALIDADES

Normas de orientação e recomendações

As recomendações nacionais sobre NP neonatal revistas em 2008 (Acta Pediatr Port. 2008; 39: 125-34), reflectiram-se em assinalável adesão dos neonatologistas e melhoria da prática clínica. Um inquérito sobre as práticas de prescrição, respondido por 72% dos coordenadores de unidades neonatais portuguesas, revelou que 83% das unidades seguiam tais recomendações, 87% iniciavam aminoácidos no primeiro dia pós-natal e 95% iniciavam lípidos nos primeiros três dias pós-natais. Talvez por não haver recomendação nacional similar sobre a preparação de NP neonatal, foram detectados pontos débeis (por ex. controlo de qualidade) noutro inquérito nacional contemporâneo feito aos responsáveis pela sua preparação.

Particularmente para recém-nascidos muito e extremo pré-termo, são revistos aspectos fundamentais relacionados com os critérios de prescrição dos macro e micronutrientes, quer usando a prescrição individualizada com preparação em farmácia hospitalar, quer bolsas comerciais de composição fixa prontas a usar.

Indicações

A NP está indicada sempre que não é possível estabelecer uma nutrição entérica suficiente por período prolongado, nomeadamente nas seguintes situações:

  • Prematuridade, sobretudo < 33 semanas de gestação;
  • Anomalias congénitas principais do aparelho gastrintestinal ou que se reflictam no seu funcionamento, por ex., atrésia do esófago, atrésia intestinal, gastrosquise e hérnia diafragmática;
  • Doenças que atinjam gravemente o tubo digestivo, por ex., enterocolite necrosante e síndroma do intestino curto;
  • Restrição de crescimento intrauterino especialmente associado a prematuridade e a alterações nos achados Doppler;
  • Asfixia perinatal grave;
  • Cardiopatia congénita com compromisso da perfusão visceral e no pós-operatório precoce de cirurgia cardíaca.

Contraindicações e limitações

A NP não deve ser utilizada se houver: desidratação aguda, acidose metabólica mantida, desequilíbrios hidroeletrolíticos e metabólicos persistentes (acidose metabólica e alterações da natrémia, caliémia, glicémia e calcémia), insuficiências renal ou hepática agudas.

Em grande parte das situações associadas a estresse (por ex., cirurgia, sépsis), não está preconizado interromper a NP, mas sim proceder a ajustes individuais.

Formulação das misturas

Geralmente, são usadas misturas binárias de NP, isto é, duas misturas separadas, respectivamente:

  • Uma solução hidroeletrolítica contendo glicose, aminoácidos, eletrólitos e oligoelementos e, outra;
  • Uma emulsão de lípidos e vitaminas.

Por motivos económicos e de conveniência, há autores que propõem que as misturas preparadas em farmácia hospitalar sejam incluídas numa só bolsa (designada por mistura ternária ou “três-em-um”); contudo, tal estratégia está condicionada por alterações na estabilidade e compatibilidade físico-química de vários componentes.

Notas importantes:

    • As noções básicas, que integram este capítulo relacionam-se na sua generalidade com os tópicos anteriormente abordados noutros capítulos sobre balanço hidro-eletrolítico.
    • Todas as doses descritas neste capítulo, de preparados, compostos ou elementos diversos, referem-se a RN de termo ou pré-termo no contexto de nutrição parentérica.

Preparação individualizada e bolsas de composição fixa

Actualmente, na maioria das unidades neonatais portuguesas é usada a prescrição de NP individualizada e preparação em farmácia hospitalar (compounding). A prescrição é geralmente feita com auxílio de suporte informático, procedimento que comprovadamente melhora a eficiência da prescrição, reduz erros de prescrição e poupa muitos cálculos aos prescritores e preparadores. Tal preparação individualizada deve ser centralizada em farmácia hospitalar e preferida em recém-nascidos muito pré-termo com risco acrescido de desequilíbrios metabólicos, como hipo- e hiperglicémia, hipo- e hipernatrémia e hipo- e hipercaliémia.

Recentemente, passaram a ser comercializadas bolsas de NP neonatal de composição fixa, com as vantagens de estarem prontas a usar, serem de fácil armazenamento e terem garantida a estabilidade dos nutrientes.

Estimativa da osmolalidade

A osmolalidade é expressa em mOsm/Kg de água (solvente) e a osmolaridade em mOsm/L de solução (soluto + solvente).

Sendo a osmolalidade obtida por medição e a osmolaridade por cálculo, foi validada por osmometria uma equação simples para estimativa da osmolalidade de soluções de NP neonatal, baseada nas concentrações dos quatro componentes mais influentes: glicose, aminoácidos, fósforo e sódio; as concentrações de glicose e aminoácidos são expressas em g/L, a de fósforo em mg/L e a de sódio em mEq/L: Osmolaridade (mOsm/L) = (aminoácidos x 8) + (glicose x 7) + (sódio x 2) + (fósforo x 0,2) – 50; equação equivalente foi disponibilizada com as concentrações molares de azoto, glicose, sódio e fósforo. A referida equação, que pode ser incorporada em folha de cálculo e em programas informáticos, tem sido sugerida por vários autores, verificando-se boa correlação com as equações propostas pela American Society for Parenteral and Enteral Nutrition (ASPEN).

Vias de administração

Na NP binária, a solução aquosa com glicose e aminoácidos é geralmente perfundida utilizando linha individual, à qual se liga a perfusão lipídica por conexão em Y, o mais próximo do local de venopunção ou da inserção de cateter. A opção de administrar NP por via periférica ou por via central depende de vários factores, como a duração prevista da NP, a osmolalidade da solução e a facilidade de acesso de uma via central.

Via periférica

Está indicada quando é prevista NP por período inferior a 2 semanas, existem bons acessos periféricos e bom estado nutricional. São limitações as venopunções frequentes e o suprimento insuficiente de energia e nutrientes, dado que soluções com teor adequado de nutrientes facilmente excedem 900 mOsm/Kg.

Via central

Está indicada quando é prevista NP por período prolongado, utilizando osmolalidade dos componentes em mOsm/Kg: > 900, ou concentração de glicose > 12,5 g/dL na solução final. Mesmo por via central, a osmolalidade não deve ser > 1.700 mOsm/Kg, ou a concentração de glicose não ser > 15 g/dL.

Tipos de cateter mais usados:

  • venoso central, de inserção percutânea periférica (epicutâneo-cava); ou venoso de inserção percutânea central (por ex., na veia subclávia, tipo Arrow®) – se previsão de NP inferior a 2-3 semanas;
  • venoso central, com túnel (eg, tipo Broviac®) – se previsão de NP superior a 2-3 semanas.

Utilizando os vasos umbilicais:

  • veia umbilical, se via periférica não disponível, especialmente em recém-nascidos < 1.000 g e utilização por menos de 5 dias;
  • artéria umbilical, apenas se não houver outra alternativa e se a utilização for inferior a 48 horas.

Heparinização de cateteres

Existe controvérsia sobre a vantagem do uso de heparina para evitar a oclusão de cateteres centrais destinados à administração de NP neonatal. Actualmente, os peritos no âmbito da ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN não recomendam o seu uso profiláctico por rotina. No entanto, de acordo com uma revisão sistemática concluiu-se que havia vantagem da adição de heparina à solução hidroelectrolítica, na dose de 10-15 UI/kg/d.

Um procedimento preventivo alternativo ao uso de heparina por rotina, para promover a permeabilidade de cateteres aplicados intermitentemente, é a sua lavagem (flushing) semanal, com pequenos volumes de soro fisiológico heparinizado (5-10 UI/ml).

De salientar que a heparina não deve ser adicionada às emulsões lipídicas por poder alterar a sua estabilidade.

Armazenamento e filtros

Os dois principais factores que determinam a estabilidade de soluções de NP durante o armazenamento são a temperatura e a exposição à luz.

Segundo um estudo sobre a estabilidade físico-química de soluções binárias de NP neonatal comprovou-se que estas se mantêm estáveis por 4 meses à temperatura de 4-8 ºC.

Todas as soluções de NP devem ser protegidas da luz natural e artificial (incluindo fototerapia), durante o armazenamento e a administração, para reduzir a probabilidade de degradação de algumas vitaminas e a formação de peróxidos de hidrogénio e lipídicos.

Durante a administração é recomendado o uso de filtros de 1,2 micras na administração de misturas ternárias e de 0,22 micras para misturas binárias, a fim de reter micropartículas ou precipitados.

Complicações

As complicações mais frequentemente associadas à NP neonatal incluem: sépsis relacionada com cateter central, oclusão trombótica do cateter central, assim como extravasamento, fractura do cateter central e migração deste.

A doença metabólica óssea e a colestase associada à NP são consequência de pausa alimentar prolongada com dependência de NP exclusiva.

Vigilância clínica e laboratorial

Antropometria: peso (diariamente), comprimento e perímetro cefálico (semanalmente).

Avaliação laboratorial:

  • Na primeira semana pós-natal, diariamente – glicemia, densidade urinária, glicosúria, gasometria no sangue, ionograma sérico e calcémia; e duas a três vezes por semana – hemograma, urémia (BUN) e creatininémia.
  • Após a primeira semana, para além das análises referidas, devem ser avaliadas semanalmente as transaminases, fosfatase alcalina, bilirrubinas total e conjugada, γ-glutamil transpeptidase, albuminémia e trigliceridémia.

Para evitar a espoliação excessiva em recém-nascidos muito pré-termo estáveis, a periodicidade do controlo analítico pode ser menos frequente.

PRESCRIÇÃO INDIVIDUALIZADA

Líquidos

QUADRO 1 – Suprimento diário de líquidos (mL/kg), desde a primeira semana pós-natal.

Dia pós-natalD1D2D3D4D5≥ D6
Termo40-6050-7060-8060-100100-140140-170
Pré-termo ≥ 1.500 g60-8080-100100-120120-140140-160140-160
Pré-termo < 1.500 g80-100100-120120 -140140-160160-180140-160


Considerações:

  • Nos primeiros dias pós-natais, os principais determinantes do balanço hídrico no recém-nascido muito pré-termo são a oligúria relativa e a perda transepidérmica de água. Para não exceder o suprimento hídrico recomendado, é necessário contrariar a perda transepidérmica providenciando humidade ambiente de 80-90% e ambiente de termoneutralidade, preferencialmente em incubadora de dupla parede.
  • A humidade deve ser diminuída rapidamente a partir dos 5 dias pós-natais, para evitar o risco de infecção. Uma estratégia complementar é utilizar cobertor de plástico. A seguir à fase de oligúria relativa, segue-se outra de diurese e natriurese, sendo desejável que o recém-nascido muito e extremo pré-termo perca 7-10% do peso de nascimento.
  • Embora seja controverso, poderá ser necessário aumentar o suprimento de líquidos (não mais do que 10% das necessidades basais) se for usada incubadora aberta ou fototerapia.
  • Parâmetros orientadores da prescrição:
    • Densidade urinária – é desejável que se situe entre 1005-1010;
    • Natrémia – na primeira semana pós-natal reflecte essencialmente o estado de hidratação (a hiponatrémia indica hiperidratação, e a hipernatrémia desidratação);
    • Diurese – é desejável que se situe entre 1-3 mL/kg/h, considerando oligúria o valor < 0,5-1 mL/kg/h e poliúria > 6-7 mL/kg/h;
    • Evolução ponderal – nos primeiros dias pós-natais, reflete o estado de hidratação.

Energia

QUADRO 2 – Suprimento diário (kcal/kg) de energia recomendado.

D <> Dia vida

Dias pós-nataisD 1D 2-6≥ D 7
Termo4060-8090-100
Pré-termo45-5560-8090-120

Considerações:

  • O suprimento energético excessivo aumenta o risco de acumulação exagerada de massa gorda; o suprimento insuficiente predispõe à restrição de crescimento, compromisso do neurodesenvolvimento e alteração da imunidade.
  • Idealmente, a glicose deve contribuir com 45-55% da energia total, os lípidos com 30-40% e os aminoácidos com 10-15%; os lípidos não devem exceder 40-60% da energia não-proteica.
  • Um grama (1 g) de glicose fornece 4 kcal; um grama (1 g) de aminoácidos fornece igualmente 4 kcal; e um grama (1 g) de lípidos fornece 9 kcal.

Glicose

QUADRO 3 – Suprimento diário (mg/kg/min) de glicose recomendado

    • Início: termo 2,5-5 mg/kg/min; pré-termo 4-8 mg/kg/min
    • Posteriormente, deve-se aumentar gradualmente 1-2 mg/kg/min, ajustando a dose para manter glicemia entre 45-120 mg/dL
    • Dose mínima: termo 2,5 mg/kg/min (3,6 g/kg/d) e pré-termo 4 mg/kg/min (5,8 g/kg/d)
    • Dose máxima 12 mg/kg/min (17,3 g/kg/d) no termo e pré-termo


Considerações:

  • A dose máxima recomendada de glicose é de 12 mg/kg/min (17,3 g/Kg/d). Um suprimento exagerado de glicose pode promover a lipogénese e excessivo armazenamento de gordura, aumento da susceptibilidade a infecções e retinopatia da prematuridade.
  • Situações como estresse, infecção e medicação com metilxantinas podem predispor a hiperglicemia. Na fase aguda de doença (por ex, sépsis), o suprimento de glicose não deve exceder 5-7 mg/kg/min no primeiro dia de doença.
  • Em caso de hiperglicemia (>145 mg/ dL), a dose de glicose deve ser diminuída; poderá também ser necessário diminuir a de lípidos pelo seu efeito hiperglicemiante mediado pela neoglicogénese.
  • O uso de insulina deve ser apenas considerado se a hiperglicemia persistir apesar de de o suprimento de glicose ser reduzido para 4 mg/kg/min, e/ou se a glicemia se mantiver >180 mg/dL.

Parâmetros orientadores da prescrição:

  • Glicemia venosa ou capilar: hiperglicemia se >145 mg/dL e hipoglicemia se <40 mg/dL.
  • Pesquisa de glicosúria (fitas reagentes).

Aminoácidos

QUADRO 4 – Suprimento diário (g/kg) de aminoácidos recomendado.

Dias pós-nataisD 1≥ D 2Máximo
Termo> 1,52,5-3,03,0
Pré-termo> 1,52,5-3,53,5


Considerações:

  • A administração parentérica de aminoácidos é considerada menos fisiológica que a entérica, por ser feita directamente para a circulação sistémica, sem passar pelo metabolismo hepático e esplâncnico.
  • O suprimento de energia não-proteica > 65 kcal/kg/d promove a retenção azotada; contudo, se tal suprimento for inferior não se deve limitar a dose de aminoácidos, uma vez que a quantidade que não é utilizada para a retenção azotada é oxidada para produção de energia.
  • Em recém-nascidos pré-termo, o início precoce de aminoácidos, estimulando a secreção endógena de insulina, poderá contribuir para prevenir a hiperglicé

Parâmetros orientadores da prescrição:

  • Urémia e azoto ureico (BUN): valores de referência 5,5-22 mg/dL. O valor da urémia equivale a 2,14 do valor de BUN (por ex., 20 mg/dL de urémia equivalem a 9,3 mg/dL de BUN). O azoto ureico constitui um bom indicador do suprimento proteico, exceptuando nos primeiros dias pós-natais, muito influenciados pelo estado de hidratação e função renal. Um valor baixo de BUN indica suprimento insuficiente; todavia, um valor no limiar superior poderá apenas reflectir uma eficiente oxidação dos aminoácidos e não sua intolerância.

Lípidos

QUADRO 5 – Suprimento diário (g/kg) de lípidos recomendado.

    • Início com 1-2 g/kg desde o primeiro dia pós-natal
    • Aumento diário de 0,5-1 g/kg até ao máximo de 4 g/kg
    • Administrar por perfusão contínua durante as 24 h

 

Considerações:

  • As emulsões lipídicas são uma boa fonte de energia, de ácidos gordos essenciais e de substracto para acréscimo de gordura em recém-nascidos muito pré-termo com escassa reserva adiposa fetal.
  • É necessária a dose mínima de 1 g/kg/d para evitar o défice de ácidos gordos essenciais que ocorre ao fim de 72 h sem suprimento exógeno, usando as actuais emulsões lipídicas. Idealmente, a emulsão lipídica deve conter ácidos gordos n-6 e n-3 (óleo de peixe), substâncias com boa capacidade antioxidante (por ex., α–tocoferol e ácidos gordos monoinsaturados) e, porventura, ácidos gordos de cadeia média (menos dependentes da carnitina).
  • Embora os recém-nascidos pré-termo sejam deficitários em carnitina (que facilita o transporte dos ácidos gordos para o interior da mitocôndria onde são oxidados), com a sua suplementação não foram verificadas vantagens.
  • Uma vez que as emulsões lipídicas são iso-osmolares, podem ser administradas por via periférica.
  • Especialmente em recém-nascidos pré-termo, todo o sistema de perfusão (seringa, tubos) da emulsão lipídica deve estar protegido da luz, em especial da fototerapia, para evitar a formação de peróxidos de lípidos e de hidrogénio e consequente lesão celular.
  • Receios não comprovados do uso parentérico de lípidos, não se aconselhando a limitação da sua administração: 1) Não está comprovado que predisponha à doença pulmonar crónica ou à retinopatia da prematuridade; 2) Na trombocitopénia, admite-se que outros cofactores são responsáveis pelos efeitos adversos atribuídos aos lípidos, como o défice de vitamina E (responsável pela redução do número de plaquetas) e a administração de heparina (interferindo com a função plaquetar); 3) Estudos in vitro e in vivo não demonstraram claramente que os lípidos endovenosos interferem negativamente no sistema imune, nomeadamente na actividade dos monócitos; e 4) A utilização de lípidos endovenosos pode predispor à sépsis por Staphylococcus coagulase negativo e Candida; contudo, as vantagens nutricionais da sua utilização são francamente superiores aos riscos.
  • Na hiperbilirrubinémia não conjugada, na fase aguda de sépsis, na hipertensão pulmonar e na trombocitopénia grave e não explicada, poderá ser necessário reduzir a dose dos lípidos, porventura para 1 g/Kg/d para evitar o défice de ácidos gordos essenciais.

Parâmetro orientador da prescrição:

  • Trigliceridémia: não deve exceder 265 mg/dL.

Sódio

QUADRO 6 – Suprimento diário de sódio (mEq/kg) recomendado.

Pode vir a necessitar: a 3 mEq/kg/d; b 7 mEq/kg/d
Dias pós-nataisD 1-3D 4 e 5D ≥6
Termo0-21-32-3
Pré-termo ≥ 1.500 g0-2 a2-53-5
Pré-termo < 1.500 g0-2 a,b2-5 b3-5 b

Considerações:

  • Sódio (Na): 1 mmol = 1 mEq = 23 mg.
  • Em recém-nascidos pré-termo, nos primeiros dias pós-natais deve permitir-se o balanço negativo fisiológico de sódio, sob pena de predispor à morbilidade, nomeadamente persistência do canal arterial e displasia broncopulmonar. Embora alguns autores tenham descrito que a administração de sódio por NP desde o primeiro dia pós-natal não se associa a hipernatrémia, a maioria das sociedades científicas recomenda que se protele a sua administração ou não se exceda 2 mEq/Kg/d até que ocorra perda de > 6% do peso ao nascer, que indica o estabelecimento de natriurese suficiente. Tal interpretação pode ser enviesada se a diminuição de peso resultar da perda transepidérmica de água (e não da natriurese), por não ter sido providenciada a adequada de humidade ambiente.
  • Durante a primeira semana pós-natal, a natrémia reflecte o estado de hidratação; posteriormente, indica também a reserva de sódio. A hipernatrémia nos primeiros dias pós-natais pode resultar de desidratação por exagerada perda transepidérmica de água ou de inadequado suprimento de sódio. A hiponatrémia pode resultar de hemodiluição por oligúria, perda renal no caso de recém-nascidos muito pré-termo, ou do uso de diuréticos e cafeína.
  • Se as necessidades de sódio forem superiores às recomendadas, o suprimento basal deve ser fornecido por NP e o suplementar por perfusão independente em Y de solução com sódio, usando por exemplo NaCl 20% (1 ml = 3,4 mEq); este método permite ajustar de forma conveniente a dose em função da natrémia.

Parâmetro orientador da prescrição:

  • Natrémia: valores de referência 135-145 mEq/L.
  • Sódio urinário: uma amostra de urina com Na < 20 mEq/L associada a hiponatrémia ou uma excreção fraccionada de sódio (FENa) < 3% em recém-nascidos de termo ou < 4% em recém-nascidos pré-termo, indica depleção da volémia.

Cloro

QUADRO 7 – Suprimento diário de cloro (mEq/Kg) recomendado.

Dias pós-nataisD 1-3D 4-5D ≥ 6
Termo e Pré-termo0-32-52-5


Considerações:

  • Cloro (Cl): 1 mmol = 1 mEq = 35,5 mg.
  • O suprimento de cloro geralmente acompanha o de sódio e a dose não deve exceder a de sódio e de potássio para evitar a acidose metabólica hiperclorémica.
  • Em recém-nascidos muito e extremos pré-termo, o suprimento excessivo de cloro associa-se à acidose metabólica hiperclorémica (> 114 mEq/L). Isto pode ser prevenido ou resolvido substituindo parcialmente o cloro por acetato.

Parâmetros orientadores da prescrição:

  • Cloremia: valores de referência 96-106 mEq/L.
  • Gases no sangue: para vigilância de acidose.

Potássio

QUADRO 8 – Suprimento diário de potássio (mEq/Kg) recomendado.

Iniciar ≥ D2 se diurese ≥ 1 ml/kg/h
Necessidades de acordo com a maturidade e peso  

    • Termo: 1-3 mEq/kg
    • Pré-termo ≥ 1.500 g: 1-3 mEq/kg
    • Pré-termo < 1.500 g: 1-2 mEq/kg


Considerações:

  • Potássio (K): 1 mmol = 1 mEq = 39 mg.
  • Embora alguns autores refiram que a administração de potássio por rotina desde o primeiro dia pós-natal não se associa hipercaliémia, as sociedades científicas recomendam que seja iniciada a sua administração apenas quando se verificar diurese ≥ 1 ml/kg/h, na ausência de hipercaliémia.
  • Em recém-nascidos ventilados, as alterações súbitas da caliémia podem resultar de variações do equilíbrio ácido-base: a acidose metabólica com acidémia associa-se à hipercaliémia e a alcalose metabólica à hipocaliémia.
  • A hipercaliémia em particular pode ocorrer associada ou não a oligúria. A hipercaliémia não-oligúrica pode ocorrer na presença de hematoma, hemólise e falta de administração de corticóides pré-natais em recém-nascidos muito pré-termo. Nestes, a hipocaliémia pode resultar de suprimento insuficiente face à elevada demanda, perda renal ou uso de diuréticos e cafeína.
  • Se as necessidades de potássio forem superiores às recomendadas, o suprimento basal deve ser fornecido por NP e o suplementar por perfusão independente em Y de solução com potássio, usando por exemplo KCl 7,5% (1ml = 1 mEq); este método permite ajustar de forma conveniente a dose em função da caliémia.

Parâmetros orientadores da prescrição:

  • Caliémia: valores de referência 3,5-4,5 mEq/L.
  • Diurese.

Cálcio e Fósforo

Quadro 9 – Suprimento diário (mg/Kg) de cálcio e fósforo recomendado.

 TermoPré-termo
1ª semana pós-natal
Pré-termo
> 1ª semana pós-natal
Cálcio   
mg/kg30 – 6032 – 80100 – 140
mmol/kg0,8 – 1,50,8 – 2,02,5 – 3,5
Fósforo   
mg/kg20 – 4031 – 6277 – 108
mmol/kg0,7 – 1,31,0 – 2,02,5 – 3,5
Ratio Ca:P   
mg:mg1,3 – 1,71,31,3 – 1,7
molar1,0 – 1,31,01,0 – 1,3

 

Considerações:

  • Cálcio (Ca): 1 mmol = 2 mEq = 40 mg; Fósforo (P): 1 mmol = 31 mg; a valência do fósforo varia conforme esteja na forma de fosfato monobásico ou dibásico.
  • Utilizando a ratio Ca:P de mg:mg 1,7:1 (molar 1,3:1) antes recomendada em recém-nascidos muito pré-termo, era frequente ocorrer hipercalcémia, hipofosforémia e hipocaliémia em presença de doses recomendadas de aminoácidos (> 2,5 g/kg/d). Isto era devido ao crescimento celular induzido pelo adequado suprimento de aminoácidos, o que originava a mobilização intracelular de potássio e fósforo, consequente hipocaliémia e hipofosforémia, com mobilização óssea de cálcio em resposta à hipofosforé Mulla et al (2017) demonstraram que, em recém-nascidos muito pré-termo, a utilização da ratio Ca:P mg:mg de 1,3:1 (ou equimolar de 1:1), à custa do aumento da dose de fósforo, obvia o problema.
  • Na actual recomendação da ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEM são propostas doses muito elevadas de cálcio e fósforo em recém-nascidos pré-termo (Quadro 9), o que levanta preocupações quanto à sua compatibilidade, estabilidade e risco de precipitação. Para que a segurança esteja garantida, será necessário testar tais doses associadas a diferentes tipos e concentrações de soluções de aminoácidos, diferentes sais de fosfato e diferentes pH das soluções finais, o que parece não ter sido ainda totalmente analisado. São factores determinantes da boa compatibilidade de cálcio e fósforo nas soluções de NP a utilização de sais orgânicos de cálcio e fósforo e pH < 7,1 na solução final, que promove a formação de fosfato de cálcio dibásico (60 vezes mais compatível que o monobásico). Não estando provada cientificamente a garantia de compatibilidade e estabilidade mineral usando as tais doses elevadas (Quadro 9), será preferível adoptar, pelo menos de início, os valores descritos por Mulla et al (2017): cálcio 88-90 mg/kg/d, fósforo 68-70 mg/kg/d e ratio Ca:P molar de 1 (ou de 1,3:1 em mg).
  • Ao optar-se por administrar fósforo nos primeiros dias pós-natais, importa contabilizar a quantidade apreciável de sódio contida na maioria dos sais de fósforo, por ex. 2 mEq de sódio por 1 ml de glicerofosfato de sódio.
  • Soluções com elevada concentração de cálcio devem ser administradas por cateter central, pelo risco de necrose tecidual quando há extravasamento ao ser usada a via periférica.

Parâmetros orientadores da prescrição:

  • Fosforémia e fosfatase alcalina: não há marcadores bioquímicos precoces confiáveis de doença metabólica óssea da prematuridade. No entanto, de entre os marcadores bioquímicos mais usados, a hipofosforémia (< 5,5 mg/dL ou < 1,8 mmol/L) e a elevação da fosfatase alcalina (> 900 UI/L), particularmente a combinação de ambos, são os marcadores com maior sensibilidade e especificidade, sendo a calcémia um mau marcador.

Magnésio

QUADRO 10 – Suprimento diário de magnésio recomendado.

 TermoPré-termo
1ª semana pós-natal
Pré-termo
> 1ª semana pós-natal
Magnésio   
mg/kg2,4 – 5,02,0 – 5,05,0 – 7,5
mmol/kg0,1 – 0,20,1 – 0,20,2 – 0,3
mEq/kg0,2 – 0,40,2 – 0,40,4 – 0,6


Considerações:

  • Magnésio (Mg): 1 mmol = 2 mEq = 24 mg.
  • A suplementação parentérica de magnésio só deve ser iniciada se a magnesiémia estiver dentro dos limites normais, especialmente em recém-nascidos pré-termo nos primeiros dias pós-natais, quer pela baixa taxa de filtração glomerular e limitada capacidade da sua excreção renal, quer por possível exposição pré-natal a sulfato de magnésio usado como tocolítico.

Parâmetro orientador da prescrição:

  • Magnesiémia – valores de referência para recém-nascidos de termo e pré-termo 0,7-1,5 mEq/L.

Vitaminas hidrossolúveis

QUADRO 11 – Suprimento diário de vitaminas hidrossolúveis recomendado para recém-nascidos de termo e pré-termo.

VitaminaDose/kg
Vitamina C (ácido ascórbico), mg15 – 25
Tiamina (vitamina B1), mg0,35 – 0,5
Riboflavina (vitamina B2), mg0,15 – 0,2
Piridoxina (vitamina B6), mg0,15 – 0,2
Niacina (nicotinamida ou vitamina B3), mg4,0 – 6,8
Vitamina B12 (cobalamina), μg0,3
Ácido pantoténico (vitamina B5), mg2,5
Biotina (vitamina B7), μg5,0 – 8,0
Ácido fólico, μg56


Considerações:

  • Embora a dose parentérica ideal da maioria das vitaminas hidrossolúveis não tenha sido determinada em recém-nascidos, o Quadro 11 indica as doses recomendadas.
  • As vitaminas hidrossolúveis devem ser administradas diariamente e adicionadas à emulsão lipídica para aumentar a sua estabilidade.
  • Sugerido o produto Soluvit N® (Fresenius Kabi) na dose diária de 1 ml/kg, contendo cada 1 ml: vitamina C 10,0 mg, tiamina 0,25 mg, riboflavina 0,36 mg, niacina 4,0 mg, piridoxina 0,40 mg, vitamina B12 0,5 μg, ácido pantoténico 1,50 mg, biotina 6,0 μg e ácido fólico 40 μ

Vitaminas lipossolúveis

QUADRO 12 – Suprimento diário de vitaminas lipossolúveis recomendado em recém-nascidos de termo e pré-termo.

a máximo 11 mg/dia; b as soluções multivitamínicas actuais fornecem dose superior
VitaminaTermoPré-termo
Vitamina A (retinol)
UI150-300/kg ou 697/dia227-455 ou 700-1.500/kg/dia
μg2.300/dia227-455/kg
Vitamina D (calciferol)
UI40-150/kg ou 400/dia80-400/kg ou 200-1.000/dia
Vitamina E (a-tocoferol)
UI2,8-3,5/kg/dia2,8-3,5/kg/dia
mg2,8-3,5/kg/dia a2,8-3,5/kg/dia a
Vitamina K, (fitomenadiona)
μg10/kg/dia b10/kg/dia b

Considerações:

  • Vitamina A 1 μg = 3,33 UI; Vitamina D 1 μg = 40 UI; Vitamina E 1 mg = 1 UI.
  • As vitaminas lipossolúveis devem ser administradas diariamente e adicionadas à emulsão lipídica para aumentar a sua estabilidade.
  • A dose de vitamina K1 fornecida pela solução de vitaminas lipossolúveis pressupõe que esta tenha sido administrada no primeiro dia pós-natal para prevenção da doença hemorrágica do recém-nascido.
  • Sugerido o produto: Vitalipid N Infantil® (Fresenius Kabi): se peso < 2,5 kg, a dose diária é de 4 ml/kg; se peso ≥ 2,5 kg, a dose diária máxima é de 10 ml. Cada 1 ml de Vitalipid N Infantil® (Fresenius Kabi), contém: vitamina A 69 μg (230 UI), vitamina D2 1 μg (40 UI), vitamina E 0,64 mg (0,70 UI) e vitamina K1 20 μ

Oligoelementos

QUADRO 13 – Suprimento diário (μg/kg) de oligoelementos recomendado.

Oligoelemento Termo Pré-termo
Zinco 250 400 – 450
Cobre 20 40
Selénio 2 – 3 7
Crómio 0 0
Manganês 1 1
Molibdénio 0,25 1
Iodo 1 – 10 1
Ferro 50 – 100 200


Considerações:

  • A transferência mãe-feto quantitativamente mais elevada dos oligoelementos ocorre no terceiro trimestre. Embora a dose parentérica da maioria dos oligoelementos não tenha sido determinada em recém-nascidos pré-termo, o Quadro 13 indica as doses recomendadas.
  • O zinco deve ser administrado desde o início da NP exclusiva. As soluções correntes de oligoelementos incluem manganês e molibdénio, cuja suplementação parentérica só está recomendada se a NP for superior a duas semanas. As soluções de NP estão geralmente contaminadas com alumínio e crómio, o que perfaz as necessidades, não sendo necessária a sua suplementação parentérica.
  • Para evitar a toxicidade, na colestase e na insuficiência hepática, as doses de cobre e manganês devem ser reduzidas. Na insuficiência renal aguda, deve ser reduzida a dose de selénio.
  • Sugerido suplementar com gluconato de zinco 0,1% (1 ml = 1000 µg de zinco) desde o início da NP. A partir das 2 semanas de NP, pode usar-se a solução completa de oligoelementos, por ex., Peditrace® (Fresenius Kabi) 1 ml/kg, contendo cada 1 ml (μg): Zn 250, cobre 20, manganês 1, selénio 2, iodo 1 e flúor 57. Em recém-nascidos pré-termo, torna-se necessário adicionar gluconato de zinco 0,1% para perfazer a dose recomendada de zinco.

 BOLSAS COMERCIAIS PRONTAS A USAR 

Como alternativa à prescrição individualizada de NP com preparação em farmácia hospitalar (em condições de assepsia, aquando da mistura dos componentes, sob câmara de fluxo laminar), passaram a estar disponíveis bolsas comerciais de NP neonatal de composição fixa e prontas a usar. Entre as suas potenciais vantagens, incluem-se: – melhoria da estabilidade físico-química das soluções, – maior garantia quanto à mistura e suprimento de macro e micronutrientes, – melhor custo-efectividade, – redução dos erros de prescrição e da contaminação bacteriana, – e disponibilidade dum produto durante 24 horas, em qualquer dia da semana, sem a dependência dos serviços farmacêuticos.

Por estes motivos, as ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEM recomendam a utilização destas bolsas, preferindo-as relativamente à prescrição e preparação individualizada em farmácia hospitalar, inclusive para recém-nascidos pré-termo, desde que estes estejam em condições de estabilidade, e as referidas bolsas sejam usadas por períodos inferiores a 2-3 semanas, com a devida monitorização laboratorial.

Contudo, tal modalidade não deve ser usada em recém-nascidos muito e extremo pré-termo com risco de desequilíbrio metabólico, como hipo- e hiperglicémia, hipo- e hipernatrémia e hipo- e hipercaliémia, tendo em consideração, em tal contexto, a necessidade de serem ajustados, para correcção, os suprimentos de macro e micronutrientes até à estabilização metabólica.

Em Portugal, encontram-se comercializadas as bolsas de NP neonatal prontas a usar Numeta® (Baxter), tendo as Pediaven NN® (Fresenius Kabi) a autorização de introdução no mercado, cedida pelo INFARMED.

Bolsas Numeta® (Baxter)
Segundo o fabricante, a Numeta G13%E® (Baxter), está indicada em recém-nascidos pré-termo e a Numeta G16%E® (Baxter) nos de termo.

Trata-se de bolsas tricompartimentadas, contendo respectivamente solução de glicose, solução de aminoácidos com eletrólitos e emulsão de lípidos. No momento da administração, activa-se a remoção do selo entre os compartimentos de glicose e de aminoácidos/eletrólitos e, ao pretender administrar-se também lípidos, activa-se a remoção do selo do respectivo compartimento.

As soluções Numeta® (Baxter) não contêm vitaminas nem oligoelementos, os quais devem ser adicionados quando se decide a sua administração.

SITUAÇÕES PARTICULARES

Sépsis

Na fase aguda da sépsis pode ocorrer hiperglicémia por aumento da resistência à insulina e hipertrigliceridémia por elevação das catecolaminas e cortisol e diminuição da actividade da lipoproteína lípase.

Ao complicar-se com trombocitopénia, não há comprovação de que os lípidos endovenosos diminuam o número ou função das plaquetas; admite-se que tais factos sejam devidos respectivamente a défice de vitamina E e à perfusão de heparina.

Na fase aguda da sépsis, não está demonstrado que haja maior necessidade de aminoácidos, anotando-se que o excesso de nutrientes na fase catabólica pode ser contraproducente.

Actuação prática

  1. A glicose deve ser a fonte energética preferencial; se ocorrer hiperglicémia (> 145 mg/dL), o suprimento de glicose deve ser reduzido, se necessário até 2,5 mg/kg/min no recém-nascido de termo e 4 mg/kg/min no pré-termo.
  2. Se ocorrer hipertrigliceridémia (> 265 mg/dL), o suprimento de lípidos deve ser reduzido, se necessário para 1 g/kg/d para evitar o défice de ácidos gordos essenciais.
  3. Na fase aguda da sépsis deve ser garantido o suprimento de, pelo menos, 60 kcal/kg/d e 2,5 g/kg/d de aminoácidos.

Colestase

No recém-nascido, a colestase associada à NP é multifactorial, sendo factores independentes a duração da NP e a dose elevada de glicose, e não a dose de lípidos ou de aminoácidos.

Quanto aos componentes das emulsões lipídicas, admite-se que o elevado teor em fitoesteróis e ácidos gordos n-6 e o baixo teor em a-tocoferol predispõem à colestase associada à NP, enquanto o elevado teor em óleo de peixe tem efeito de protecção.

Por outro lado, deve ter-se em conta a potencial toxicidade do cobre e manganês na colestase, pela dificuldade da sua excreção pela bílis.

Como forma de prevenir ou mitigar a colestase associada à NP (bilirrubina conjugada > 2 mg/dl), descreve-se a seguir a:

Actuação prática

  1. Reduzir a dose de glicose, porventura para níveis que não excedam a sua capacidade oxidativa (8,3 mg/kg/min).
  2. Aumentar a nutrição entérica e reduzir/suspender a NP logo que possível.
  3. Preferir emulsões lipídicas que contenham óleo de peixe e a-tocoferol.
  4. Conforme a gravidade da colestase, suspender ou reduzir a solução de oligoelementos por conterem cobre e manganês.

Hiperbilirrubinémia não conjugada

Em recém-nascidos pré-termo, há controvérsia sobre a possibilidade de os ácidos gordos livres resultantes da hidrólise dos triglicéridos deslocarem a bilirrubina ligada à albumina, elevando a fracção livre de bilirrubina para níveis neurotóxicos. Tal parece não ocorrer se a ratio molar ácidos gordos livres:albuminénia for < 6; ou seja, será menos provável se os níveis de albuminénia estiverem dentro dos limites de referência.

A actuação prática consiste em recém-nascidos pré-termo, reduzir a dose de lípidos se bilirrubinémia não-conjugada for > 10 mg/dL

Hipertensão pulmonar

Em recém-nascidos de termo e pré-termo, a perfusão endovenosa de lípidos pode agravar a hipertensão pulmonar, com efeito dependente da dose e do tempo.

A actuação prática consiste, dependendo da gravidade da hipertensão pulmonar, em suspender temporariamente os lípidos, ou diminuir o respectivo suprimento até 1 g/kg/d.

Grande cirurgia

Nos recém-nascidos submetidos a grande cirurgia, devidamente anestesiados e analgesiados, há necessidade de ligeiro acréscimo do suprimento energético (cerca de 15%) no pós-operatório imediato (cerca de 4 h após a cirurgia). Durante este período, também está comprovado que o turnover proteico não aumenta significativamente.

Como actuação prática refere-se que no pós-operatório, inclusive imediato, não há necessidade de aumentar o suprimento energético-proteico se a analgesia for adequada.

ANEXO: Consulta rápida – Doses diárias em recém-nascidos pré-termo.

 1º dia pós-natalIncremento diárioMáximo
* Enquanto não houver estudos suficientes que garantam a compatibilidade e estabilidade mineral usando doses superiores.
Líquidos (ml/kg/d)60 – 100
humidade 80-90%
10 – 15160 – 180
Energia (kcal/kg/d)45 – 5590 – 120
Glicose (mg/kg/min)4 – 8q.b. para glicémia
45-120 mg/dL
12
 Aminoácidos (g/kg/d)> 1,50,5 – 13,5
 Lípidos (g/kg/d)1 – 20,5 – 14
 Na (mEq/ kg/d)0 – 2
após perda > 6% peso nascimento
3 – 5
(até 7)
 Cl (mEq/kg/d)Idêntica ao NaIdêntica ao Na
 K (mEq/kg/d)1 – 3
após diurese > 1 mL/Kg/h
1 – 3
 Ca (mg/kg/d)32 – 80100 – 140
(*ou 88 – 90 mg/kg/d, máximo 68 mg/dL)
 P (mg/kg/d)Dividir dose Ca por 1,3Dividir dose Ca por 1,3Dividir dose Ca por 1,3
 Mg (mEq/kg/d)0,2 – 0,40,4 – 0,6
Vitaminas hidrossolúveis (ml/kg/d)
(Soluvit N Infantil ®)
11
Vitaminas lipossolúveis (ml/kg/d)
(Vitalipid N Infantil®)
1 – 214
 Oligoelementos
< 2 semanas NP
≥ 2 semanas NP


Zn 400 – 450 µg/kg/d




Zn 400 – 450 µg/kg/d
Peditrace® 1 ml/kg/d + Zn (para perfazer 400-450 µg/kg/d)

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Definição, importância do problema e aspectos epidemiológicos

A doença metabólica óssea (DMO) da prematuridade é uma situação clínica caracterizada por défice de mineralização da substância osteóide (por suprimento deficitário de cálcio ou fósforo) observada no RN/lactente em fase de crescimento com antecedentes de prematuridade, na idade pós-concepcional correspondente à gestação de termo.

Trata-se dum problema clínico cuja frequência é inversamente proporcional ao peso de nascimento e idade gestacional, compreendendo um espectro variado de alterações: desde a desmineralização ligeira (osteopénia), à desmineralização grave acompanhada de fracturas (raquitismo).

A importância desta situação decorre essencialmente de determinado tipo de morbilidade que tem acompanhado a diminuição da mortalidade de RN pré-termo; por outro lado, a partir da década de 70, começou a chamar-se a atenção para a necessidade de suplementação mineral, principalmente de fósforo, nas primeiras semanas de vida extrauterina para garantir uma mineralização óssea semelhante à verificada in utero, em RN pré-termo.

A DMO surge mais frequentemente na raça negra e em lactentes nos quais se verificou perda de peso mais acentuada no período neonatal precoce; estes últimos integram fundamentalmente os RN de idade gestacional <28 semanas e peso de nascimento <1.000 gramas, evidenciando alterações radiológicas ósseas em cerca de 60% dos casos.

Em diversos estudos epidemiológicos tem sido demonstrada maior frequência da doença em RNMBP alimentados com leite materno (~40%) comparativamente a RNMBP alimentados com fórmula para pré-termo (~20%). Em cerca de 30% dos casos de osteopénia verifica-se evolução para a forma mais grave de DMO: o raquitismo.

Etiopatogénese

O cálcio (Ca) é o catião mais abundante do organismo: cerca de 98% do cálcio corporal encontra-se nos ossos, constituindo um dos seus principais componentes inorgânicos (o RN de termo contém ~28 gramas de Ca).

O fósforo (P) constitui o segundo ião mais abundante do organismo. A sua distribuição é preferencialmente óssea, encontrando-se cerca de 80% no esqueleto (o RN de termo contém ~16 gramas de P), e cerca de 9% no músculo esquelético; o restante 1% distribui-se pelos lípidos da membrana celular, pelos compostos de alta energia (ATP), proteínas intracelulares de tradução de sinal, ARN e ADN.

A deposição crescente (ou acréscimo) de Ca e de P, quer durante a vida intrauterina, quer no período neonatal, depende duma oferta adequada dos referidos minerais, de vitamina D, e duma regulação hormonal que, por um lado, favoreça a mineralização e, por outro, limite a reabsorção óssea, promovendo aumento do conteúdo mineral ósseo.

O acréscimo ou incorporação mineral no feto (com ênfase para o Ca e P) ocorre a partir das 24 semanas de idade gestacional, continuando até ao final da gestação na presença de relação Ca/P constante (relação ideal de 2/1 ao nível ósseo e 1,7/1 no conteúdo extra-ósseo corporal). O pico máximo da referida incorporação mineral surge entre as 34 e 36 semanas de gestação (Ca<>120-140 mg/kg/dia e P <> 60-80 mg/kg/dia).

Vários factores hormonais favorecem o processo de mineralização óssea fetal:

  • A proteína relacionada com a PTH (PrPTH) que tem papel importante na manutenção do gradiente de Ca transplacentar;
  • A produção placentar de 1,25(OH)2 – vitamina D regulando a produção de proteínas transportadoras de Ca;
  • As baixas concentrações de PTH limitando a mobilização mineral óssea;
  • A presença de concentrações elevadas de calcitonina, favorecendo a deposição mineral;
  • Libertação de factores de crescimento semelhantes à insulina (IGF-I), estimulando o crescimento ósseo e incrementando a mineralização;
  • Elevados níveis de estrogénios circulantes no sangue materno, favorecendo a mineralização.

O resultado final da acção conjunta destes factores é a ocorrência de 80% da mineralização óssea no terceiro trimestre de gestação.

Estudos recentes demonstraram uma associação entre carência materna de vitamina D e ulterior alteração do desenvolvimento neurocognitivo dos lactentes filhos, disfunção notória já a partir dos 3 meses de idade.

Após o nascimento, a absorção intestinal constitui o factor determinante do suprimento mineral.

Em suma, um dos factores que contribui para a génese da DMO no RN/ lactente com antecedentes de prematuridade é a existência de reservas deficitárias de minerais, designadamente de cálcio e de fósforo; com efeito, como foi referido, cerca de 80% da mineralização óssea ocorre no 3º trimestre da gestação.

O insuficiente suprimento do fósforo estimula a produção de 1,25(OH)2 – vitamina D com consequente aumento da absorção intestinal de cálcio e de fósforo. Por outro lado, verifica-se inibição da libertação de PTH, do que resulta diminuição da perda renal de fósforo e aumento da perda renal de cálcio (hipercalciúria). Com a referida inibição da libertação da PTH obter-se-ia, em princípio, “garantia de não reabsorção óssea” se a produção de 1,25(OH)2 – vitamina D não se mantivesse. Contudo, este metabólito continuando “em acção”, estimula a acção de osteoblastos, levando à remoção de Ca e P ósseos pela activação dos osteoclastos.

Mantendo-se insuficiente o suprimento em cálcio e fósforo, gera-se um círculo vicioso, com consequente intensificação da espoliação de Ca e P ósseos. Em tal circunstância, a par do défice em cálcio resultante do baixo suprimento, observa-se perda renal importante.

Uma vez que pacientes com DMO poderão evidenciar nível sérico normal do metabólito hepático mono-hidroxilado 25(OH) – vitamina D com suplemento de 400 UI de vitamina D, pode concluir-se que a carência da referida vitamina D não constitui, só por si, factor determinante de raquitismo.

Por outro lado, o nível elevado do metabólito renal di-hidroxilado – 1,25(OH)2 – vitamina D, sugere deficiência mineral “numa tentativa” de intensificar a absorção intestinal de Ca e de P para restaurar as respectivas reservas espoliadas no organismo.

Assim, neste processo patológico dinâmico, tal como a deficiência em fósforo afecta a homeostase do cálcio, também a deficiência em cálcio afecta a homeostase do fósforo.

O Quadro 1 resume as principais características bioquímicas das referidas deficiências.

QUADRO 1 – Bioquímica das Deficiências em P e Ca.

→ Deficiência em P:

P sérico < 4 mg/dL, hipofosfatúria (< 1 mg/kg/dia), hipercalciúria (> 4 mg/kg/dia);
Nota: hipercalcémia (> 11 mg/dL) pode surgir nas formas graves de deficiência em P

→ Deficiência em Ca:

Ca sérico < 8,5 mg/dL, hiperfosfatúria, hipocalciúria (< 1 mg/kg/dia)

Factores predisponentes

Na prática clínica, as situações que nos RN com antecedentes de prematuridade favorecem o desenvolvimento de DMO, podem ser assim sistematizadas:

  • Idade gestacional <32 semanas, especialmente com peso de nascimento <1.000 gramas;
  • Má absorção (incluindo de minerais);
  • Alimentação com leite da própria mãe (ou leite humano prematuro) com insuficiente teor em cálcio e fósforo relativamente ao leite “de termo”;
  • Deficiência materna em vitamina D;
  • Nutrição parentérica prolongada no pressuposto de suprimento deficitário de Ca e de P, em comparação com o acréscimo intrauterino em idêntico período de tempo;
  • Tratamento com diuréticos originando perda renal de cálcio proporcional à perda de sódio;
  • Problemas clínicos diversos que determinam o atraso no início da alimentação entérica e/ou deficiente suprimento mineral no regime alimentar em relação com limitações da concentração ou do volume de leite;
  • Imobilização prolongada, conduzindo à diminuição da massa óssea;
  • Utilização de corticóides, determinando diminuição da absorção intestinal, perda renal de cálcio e redução do conteúdo mineral ósseo.

Actualmente, investiga-se nalguns centros o possível papel duma proteína solúvel designada por alfa-Klotho (alfa-Kl, termo baseado na mitologia grega), cujos níveis séricos aumentam com a idade gestacional. A mesma tem influência na indução da resistência ao estresse oxidativo e no metabolismo fosfo-cálcico.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de DMO (que podem passar despercebidas em mais de metade dos casos se não existir índice elevado de suspeita) podem ser detectadas, em geral, cerca das 6 a 12 semanas de idade pós-natal. O respectivo espectro é variado, desde sinais inespecíficos, como ausência de evolução do crescimento longitudinal e do perímetro cefálico, a sinais clássicos da síndroma raquítica nos casos de evolução avançada: craniotabes, fontanela anterior alargada, alargamento das metáfises dos punhos e joelhos, e fracturas.

As fracturas das costelas (por vezes múltiplas e suspeitadas clinicamente em apenas cerca de 10-15% dos casos) poderão ser causa de dificuldade respiratória e dor.

De salientar que a deficiência materna em vitamina D pode originar fracturas no RN.

A dolicocefalia pode ser explicada pela menor consistência dos ossos do crânio (por défice conteúdo mineral ósseo) e postura mantida da cabeça por hipoactividade motora originando deformação; admite-se que tal dolicocefalia possa originar miopia (miopia na ausência de retinopatia da prematuridade).

Exames complementares

Havendo necessidade de detectar a doença o mais precocemente possível, os exames a programar em função do contexto clínico poderão ser realizados, quer atendendo a factores predisponentes ou de risco (por ex. RN pré-termo de peso <1.250 gramas), quer a dados clínico-biológicos já disponíveis:

  • Doseamento da actividade da fosfatase alcalina (quinzenal), assim como do cálcio, fósforo e creatinina séricos (em geral, semanal, desde a segunda semana até à data de alta hospitalar);
  • Colheita de urina de 6 horas para determinação da calciúria (Cau), fosfatúria (Pu) e creatininúria (Cru) (no mesmo dia da determinação sérica);
  • Exame radiográfico ósseo (punho) entre o 28º e 35º dias de vida sempre que haja suspeita clínica e/ou biológica de DMO.

A verificação de P sérico <4 mg/dL em RN alimentado com leite materno sugere défice do referido mineral e possível DMO, a confirmar mediante os resultados da calciúria, fosfatúria e relação calciúria/ creatininúria. De salientar a importância da avaliação periódica do bicarbonato sérico, uma vez que a acidose favorece a “dissolução” óssea.

A fosfatase alcalina (FA) elevada (em concentração cerca de 5 vezes o valor de referência para o adulto), na ausência de doença hepática, estabelece a indicação de estudo radiológico ósseo; trata-se, no entanto, dum marcador pouco sensível. Mais sensível é a isoenzima óssea da FA cuja determinação ainda não faz parte da prática clínica corrente.

  • Considerando, no conjunto, os resultados dos exames atrás descritos, a verificação, no soro ou urina (u) de:
    • P sérico <4 mg/dL associado a:
      • Cau >4 mg/kg/dia + Pu <1 mg/kg/dia ou
      • Cau/Cru >0,6 ou a
      • Relação Cau/Pu ≥1

legitima o diagnóstico de DMO relacionada com suprimento mineral inadequado.

  • Se Cau ≥4,8 mg/dL<> 1,2 mmol/L; e Pu >1,2 mg/Dl <> 0,4 mmol/L;

e relação Cau/Pu <1, considera-se que o suprimento de Ca e P administrado ao RN é adequado.

A fosfatúria pode determinar-se calculando a percentagem de reabsorção tubular de fosfato (%RTF) segundo a fórmula:

Pu (mg/dL) Cr sérica (mmol/L)
% RTF = ______________ x ____________________ x 100
Cru (mmol/L) P sérico (mg/dL)

considerando-se hipofosfatúria se % RTF >95% (<> fosfatúria <1 mg/kg/dia)

De acordo com os critérios de Koo, as alterações radiológicas ósseas, dependendo da gravidade e da duração da desmineralização, podem ser assim sistematizadas:

  • Grau I: presença de rarefacção óssea;
  • Grau II: grau I + alterações metafisárias, alargamento metafisário em taça e alteração subperióstica;
  • Grau III: grau II + fracturas.

De salientar que:

    1. As alterações radiológicas esqueléticas somente se tornam evidentes se se verificar défice de mineralização para além de 30-40%; assim, os sinais bioquímicos podem preceder em 2 a 4 semanas os sinais radiológicos;
    2. Se deverá proceder a radiografia do punho: se P sérico <4 mg/dL nos RN de peso <1.000 gramas, mesmo na ausência de alteração de parâmetros bioquímicos.

Outros exames

  • Doseamento do metabólito 25 (OH)-vitamina D; já foi referido antes que, na presença de suplemento de vitamina D (400 UI/dia), o valor é normal.
    Nota: no que respeita ao metabólito 1,25(OH)2 – vitamina D, a respectiva concentração sérica é normal ou elevada, sendo que a hipofosfatémia estimula a secreção de 1,25(OH)2 – vitamina D.
  • Técnica de densimetria/absorciometria óssea – SPA (sigla do inglês single-photon absorptiometry) que permite avaliar de modo seriado as alterações da mineralização óssea em determinado local; o local onde se convencionou proceder a tal avaliação é a epífise distal do rádio.
  • Técnica de densimetria/absorciometria óssea – DEXA (sigla de dual-energy X ray absorptiometry) que permite medir o conteúdo mineral ósseo de modo seriado e, por conseguinte, monitorizar a velocidade de acréscimo mineral; esta modalidade, permitindo medir com maior precisão o referido conteúdo mineral empregando dose baixa de radiação, não permite, no entanto, fazê-lo à cabeceira do doente, o que constitui uma limitação nos casos de RN submetidos a terapia intensiva.
  • Técnica de ecografia quantitativa
    Trata-se duma nova técnica em expansão em países como a Espanha, Itália e Alemanha, com a vantagem de poder ser utilizada à cabeceira do doente.
    De salientar que estes exames imagiológicos mais sofisticados e mais rigorosos, não estão acessíveis à maioria dos serviços de neonatologia na actualidade.

Prevenção e tratamento

As estratégias que têm como objectivo prevenção primária da DMO devem incidir fundamentalmente sobre a eliminação ou redução da multiplicidade de factores que contribuem para a prematuridade.

Nas situações de prematuridade acompanhada dos factores predisponentes ou de risco está indicada vigilância rigorosa do balanço do Ca e do P, com suplementação dos referidos minerais.

No RN pré-termo, não existe consenso quanto à idade em que se deve iniciar o suplemento de Ca e P. Em geral, nas crianças alimentadas com leite humano, a suplementação (com aditivos do leite materno) inicia-se quando se atinge o volume de 100 mL/dia por via entérica.

Nos casos em que tal não é possível são utilizadas as fórmulas com mais elevado conteúdo de minerais relativamente às fórmulas padrão (fórmulas para pré-termo).

A interrupção de tal suplementação é levada a cabo quando o lactente atinge o peso comparável ao do RN de termo, tendo em consideração diversos estudos realizados sobre o período em que ocorre o acréscimo máximo de minerais in utero. Nos casos de RN com peso de nascimento <1.000 gramas está indicada a suplementação, pelo menos durante 3 meses, ou até ser atingido o peso de 3.500 gramas.

No RN pré-termo está indicada a dose profiláctica clássica de vitamina D, igualmente aplicável a lactentes de termo (160 UI/kg/dia até máximo de 400 UI/dia), pois os mecanismos de hidroxilação hepática (formação de vitamina 25(OH)-vitamina D) e de hidroxilação renal (formação de 1,25(OH)2-vitamina D) estão funcionalmente activos.

Se os parâmetros clínicos, bioquímicos e radiológicos legitimarem o diagnóstico de DMO, para além das medidas já descritas, há que adoptar os seguintes procedimentos:

  • Reduzir ao mínimo – sempre que possível – a interferência de factores predisponentes;
  • Restringir as medidas de fisioterapia que poderão contribuir para o aparecimento de fracturas ósseas;
  • Tratamento das fracturas ósseas (imobilização adequada de membros, etc.);
  • Incrementar o suprimento oral em fósforo utilizando fosfato monossódico (25 mg duas vezes/dia <> 50 mg/dia, podendo ser incrementado até 37,5 mg duas vezes/dia <> 75 mg/dia; este suprimento poderá ser reduzido progressivamente para metade se o valor de P >4 mg/dL e relação Cau/Pu <1 se mantiverem durante duas semanas consecutivas, sendo que a monitorização de Ca e P séricos deverá ser mantida durante 4 semanas;
  • Administrar gluconato de cálcio a 10% por via oral na dose de 100 mg/kg/dia (não concomitantemente para evitar precipitação) se se verificar valor sérico do Ca <8 mg/dL, mantendo-se o suprimento do fosfato monossódico.

Prognóstico

Relativamente às fracturas ósseas, uma das manifestações da forma mais exuberante de DMO (em cerca de 20% dos RNMBP aos 3 meses de idade pós-natal), de acordo com os estudos disponíveis não existe risco elevado de tal patologia em idades subsequentes.

Existindo ainda muitos aspectos controversos relativamente ao conteúdo mineral ósseo futuro e ao risco de osteoporose no adulto, ao analisar os resultados de séries estudadas a médio e longo prazo – nem sempre realizados com metodologias sobreponíveis – é importante entrar em consideração com os resultados de estudos demonstrando que ex utero o acréscimo mineral é mais demorado do que in utero (respectivamente 12 contra 5 semanas para idêntico acréscimo).

Na literatura, também há relatos de casos em que se verificou associação entre baixa estatura na segunda infância e valores mais elevados de FA no período neonatal.

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Definições e importância do problema

Define-se problema respiratório no RN (ou, no sentido genérico, síndroma de dificuldade respiratória/ SDR) como a verificação de dois ou mais dos seguintes sinais:

  • Frequência respiratória >60/minuto;
  • Cianose respirando ar;
  • Adejo nasal;
  • Retracções costais ou xifoideia;
  • Gemido expiratório. (Figura 1)

Outro critério para definir síndroma de dificuldade respiratória baseia-se na valorização do chamado índice de Silverman-Andersen. (Quadro 1)

Não havendo dificuldade respiratória, o índice de Silverman-Andersen será 0 (zero), isto é, 0/10. Numa perspectiva de avaliação prática inicial, convencionou-se considerar a existência de dificuldade respiratória nas situações em que o referido índice é igual ou superior a 4 na primeira hora de vida, e igual ou superior a 3 a partir da segunda hora de vida.

FIGURA 1. RN com dificuldade respiratória, sendo notórias a retracção xifoideia e a cianose.

QUADRO 1 – Índice de Silverman–Andersen.

resp = respiração; abd = adominal
PontuaçãoExpansão torácicaRetracção
intercostal
Retracção
xifoideia
Adejo nasalGemido
expiratório
0Boa, síncrona com expansão abdominal0000
1Amplitude irregular sem sincronismo com resp. abd.Ligeira ou ausenteLigeiraLigeiroAudível com estetoscópio
2Expansão torácica com retracção abd.AcentuadaAcentuadaAcentuadaAudível sem estetoscópio


Na literatura científica é clássico considerar o termo de síndroma de dificuldade respiratória como sinónimo de “síndroma de dificuldade respiratória típico da prematuridade ou doença da membrana hialina” (imaturidade pulmonar por défice de surfactante).

Notas importantes: 1- A presença de estridor pode sugerir colapso da via aérea superior por laringo ou traqueomalácia; e, se for acentuado, obstrução mecânica alta. 2 – A auscultação de sibilâncias ou de expiração prolongada pode estar relacionada com estenose traqueobrônquica.

Genericamene, aplica-se a designação de insuficiência respiratória às situações de dificuldade respiratória em que são valorizados critérios biológicos, tais como determinação de pH e gases no sangue. Salienta-se, no entanto, como excepção a este conceito, a verificação de apneia prolongada: este critério clínico, isoladamente, legitima a definição de insuficiência respiratória. Adiante, a propósito dos critérios para ventilação na UCIN, será dada ênfase a este conceito fisiopatológico.

Os problemas respiratórios manifestam-se em cerca de 3 a 5% dos RN de acordo com estatísticas englobando nados-vivos seguidos em maternidade. Considerando a globalidade dos RN pré-termo, tais problemas surgem em cerca de 1/3 dos mesmos.

Este tipo de patologia constitui uma causa importante de morbilidade e de mortalidade neonatais, nomeadamente no RN pré-termo. Tal pode ser explicado pelas seguintes circunstâncias:

  • Complexidade dos mecanismos de adaptação pulmonar à vida extrauterina;
  • Defeitos do desenvolvimento pulmonar condicionando anomalias congénitas;
  • Imaturidade anatómica e funcional do sistema respiratório no RN pré-termo;
  • Susceptibilidade do RN às infecções.

Particularidades da fisiologia da respiração no RN

Resistência pulmonar ao fluxo de gases

As particularidades anatomofisiológicas mais importantes com influência no fluxo de ar são descritas na caixa a seguir.

    • O  pequeno calibre das vias aéreas do RN explica os valores elevados da resistência pulmonar ao fluxo do ar (no RN= 25 a 30 cm H2O/L/seg.; no adulto = 1,9 a 2 cm H2O/Litro/segundo).
    • A traqueia do recém-nascido mede 5-6 mm de diâmetro (10 mm aos 3 anos e 15-18 mm na idade adulta) e 40 mm de comprimento (contra 11  a 13 cm no adulto).
    • A língua grande do RN impede ou dificulta a respiração pela boca, o que condiciona um tipo de respiração predominantemente por via nasal.
    • O diafragma desempenha papel importantíssimo (em termos quantitativos, cerca de 80%) na mecânica ventilatória relativamente aos outros músculos torácicos. Poderão, portanto, deduzir-se as enormes repercussões que decorrem das paralisias diafragmáticas de origem obstétrica, por exemplo.
    • O tórax é muito flexível, (tem maior distensibilidade) isto é, a grelha costal é exageradamente “mole”, o que explica a propensão para se verificarem sinais de retracção com maior acuidade no RN pré-termo (maior compliance torácica).
    • O reflexo da tosse não está perfeitamente desenvolvido, o que explica a facilidade de se verificarem sindromas de aspiração alimentar em caso de regurgitação.
    • Ao movimento do ar opõem-se a resistência ao fluxo e as propriedades elásticas.   
    • Resistência ao fluxo=1/r4, isto é, a resistência ao fluxo é inversamente proporcional à 4ª potência do raio das vias aéreas.
    • A Resistência pode traduzir-se pela ratio:  variação da pressão/variação do débito ou fluxo (processo dinâmico).
    • Para que se verifique deslocação de ar dum local para outro, é necessário que exista um gradiente de pressões.

Compliance pulmonar

Esta designação (com terminologia de língua inglesa rotineiramente utilizada na gíria médica) define a característica de distensibilidade (complacência) alveolar, traduzida pela relação entre variação de Volume (V)/variação de Pressão (P), em mL/cm H2O; ou seja, o fenómeno da possibilidade de o alvéolo se distender, aumentando o seu volume (V) como resposta a um determinado aumento de pressão (P), durante a inspiração.

No recém-nascido a compliance é cerca de 2 mL/cm H2O aos 3 minutos de vida, 4 aos 60 minutos de vida e 5-14 pela idade de 7 dias, enquanto no adulto é da ordem dos 170 mL/cm H2O. (Figura 2)

Não será, portanto, difícil compreender a necessidade de um esforço muscular bastante superior para encher de ar os alvéolos no período neonatal pela menor compliance ou distensibilidade pulmonar, então verificada.

A força oposta (o inverso da) à distensibilidade é a resistência elástica do tórax ou elastância; tal resistência – elástica no RN – resulta quase exclusivamente da tensão superficial (TS) ou forças de tensão ao nível da superfície de contacto ar-líquido nos alvéolos (sendo que no adulto a comparticipação de tais forças é apenas 50%).

FIGURA 2. Curva volume/ pressão no recém-nascido (inspiração e expiração).

A TS depende da ausência ou presença de surfactante: mais surfactante à menor TS à maior aumento do volume alveolar. A pressão intra-alveolar (P) necessária para se opor à tendência de os alvéolos colapsarem é dada pela fórmula de La Place,

P = 2 x TS 
            R

em que R = raio do alvéolo; quanto maior o R (alvéolo mais expandido), menor pressão (P) necesária para o “abrir ou o expandir” mais. (ver adiante surfactante)

Volumes pulmonares no período neonatal

Na Figura 3 podemos comparar, de modo estático, os volumes pulmonares num RN normal e num RN em que a função respiratória está alterada.

Para compreender a fisiopatologia e a resposta a eventuais intervenções terapêuticas, incluindo a ventilação artificial não invasiva, importa igualmente recordar aspectos básicos (dinâmicos) da mecânica pulmonar, tendo como modelo a Figura 3-A (Fases do ciclo respiratório).

A frequência respiratória corresponde ao número de excursões respiratórias/ciclos respiratórios por minuto. Durante uma inspiração normal, o sistema respiratório gera pressão negativa intratorácica com consquente entrada de ar nos pulmões (volume corrente).

Reportando-nos ao esquema da Figura 3-A, importa referir que, numa inspiração provocada artificialmente por insuflação de ventilador artificial, é gerada uma pressão positiva inspiratória (PIP), também designada por pressão inspiratória máxima de “pico”. Tempo inspiratório ou Ti corresponde à curva ascendente de convexidade superior prolongando-se com o plateau.

O volume de ar introduzido nos pulmões (durante certo tempo, o tempo inspiratório/TI – traduzido por curva ascendente) é mantido na via aérea durante certa pausa para a difusão de gases nos alvéolos (para simplificar, a duração do plateau/horizontalidade da linha após concluída a inspiração, não foi especificada no esquema).

A esta pressão obtida na via aérea durante esta pausa, chama-se pressão plateau, a qual depende da PIP e da distensibilidade pulmonar (compliance).

FIGURA 3. Volumes pulmonares num RN normal e num RN com SDR.

Figura 3-A Fases do ciclo respiratório

Durante a expiração normal, o pulmão é esvaziado de forma passiva em função da retracção elástica pulmonar (Tempo expiratório/Te <> curva descendente de concavidade superior que não toca na linha de base, mantendo-se ligeiramente distanciada e superior a esta por se gerar uma pressão final positiva expiratória (PEEP), superior à que corresponde à linha basal.

Efectivamente, em situação fisiológica, de normalidade, no final da expiração (quer da expiração normal, quer da expiração forçada – ver atrás CRF e VR – ), os alvéolos não se colapsam, ficando medianamente distendidos, precisamente por se gerar, no final, a referida PEEP fisiológica, garantindo a normalidade das trocas gasosas e evitando, pois, a atelectasia.

Existe tecnologia permitindo gerar, aumentar e regular de modo controlado a PEEP artificialmente: amplificando a designada PEEP fisiológica, a partir do volume residual, pode contribuir-se, de modo minimamente invasivo, para a melhoria das trocas gasosas.

Trocas gasosas ao nível dos pulmões

Relação ventilação-perfusão

Em condições óptimas de trocas gasosas ao nível da membrana alvéolo-capilar, a relação entre a ventilação alveolar (VA) e o débito sanguíneo capilar (Q) deve ser igual a 1.

Na Figura 4 podemos esquematicamente examinar as situações em que tal relação está alterada.

  • Hipoventilação alveolar
    Está esquematizada na hipótese C: VA/Q <1: é o que acontece nas situações de obstrução brônquica ou de depressão respiratória impedindo que o ar alveolar seja suficientemente renovado, estando intacta a pefusão sanguínea capilar. Há, consequentemente, ao mesmo tempo, diminuição da PO2 e elevação da PCO2.

FIGURA 4. Anomalias da relação ventilação-perfusão em A, B, C e D. Alvéolo normalmente irrigado e ventilado em E.

  • Shunts
    Nestas circunstâncias, verifica-se uma mistura de sangue venoso com sangue arterial, o que traz como consequência uma diminuição da PaO2.
    Na hipótese A: o sangue perfunde alvéolos não ventilados (v. g. atelectasias, membranas hialinas). O sangue não oxigenado vai eventualmente misturar-se, a jusante, com o sangue oxigenado, proveniente de capilares vizinhos eferentes de alvéolos onde se processou a oxigenação (shunt capilar).
    Na hipótese B: neste caso, não se verifica passagem de sangue através dos capilares pulmonares, por exemplo, em caso de foramen ovale ou de canal arterial (shunt anatómico).
    Os shunts anatómicos capilares são característicos da circulação de tipo fetal, embora possam ser restabelecidos em certas circunstâncias de vida extrauterina, mesmo que não exista malformação cardiovascular; é o que se passa em situações de acidose e hipoxémia.
    O diagnóstico destes shunts baseia-se na prova da “hiperóxia” e que consiste na administração de O2 a 100% durante 20 minutos e concomitante medição de PaO2. A situação será tanto mais grave quanto maior a percentagem de O2 no ar inspirado para obter PaO2 normal.*

*Citada por razões históricas dado o desenvolvimento de novas tecnologias para atingir o mesmo objectivo.

A Figura 5 mostra a relação entre a pressão alveolar de O2 (PAO2) e a pressão arterial de O2 (PaO2) em função do grau de mistura de sangue arterial (mais oxigenado) com sangue venoso (menos oxigenado) em situações de curto-circuito (shunt) direito-esquerdo; ou seja, para idêntica pressão alveolar de O2, a pressão arterial de O2 é tanto maior quanto menor a percentagem de mistura de sangue não oxigenado (por ex. com pressão alveolar de O2 de 200 mHg obtém o PaO2 de 200 mmHg se não houver mistura (0%); se houver mistura de 20% de sangue não oxigenado com a mesma pressão de O2 obtém-se Pa de 100 mmHg (menor).

  • Espaço morto
    Corresponde à hipótese assinalada em D: VA/Q >1; os alvéolos são normalmente ventilados, mas não são irrigados. Existe aumento da PCO2 sem diminuição da PO2.
Afinidade da hemoglobina para o oxigénio

A existência de hemoglobina fetal F no RN modifica a afinidade desta para o O2.

Como se pode depreender da Figura 6, a curva de dissociação da hemoglobina desloca-se para a esquerda, dada a afinidade aumentada da hemoglobina para o oxigénio em tais circunstâncias; tal afinidade resulta dum défice de 2,3-diphosphoglicerato (2,3-DPG), défice tanto maior quanto menor for a idade gestacional.

Verifica-se, pelo contrário, deslocação para a direita quando diminui o pH, aumenta a PCO2, ou aumenta a temperatura.

Como resultado duma muito maior captação de O2 pela HbF a quantidade de O2 a distribuir pelos tecidos é muito menor, o que implica (para que se verifique uma oxigenação tecidual eficiente), uma taxa de Hb circulante no RN superior à doutro grupo etário.

FIGURA 5. Evolução da PaO2 em função. 1) da PAO2 (pressão de O2 no ar alveolar); 2) da importância da mistura sangue venoso – sangue arterial (Shunt dto – esq.).

FIGURA 6. Curva de dissociação de HbO2.

Noções complementares em síntese

    • A relação ventilação/perfusão (V/Q) deve ser idealmente = 1. Os shunts veno-arteriais intrapulmonares e a hipoventilação alveolar resultam em alteração dessa relação, sendo a principal causa de alteração das trocas gasosas no recém-nascido com síndroma de dificuldade respiratória (SDR).
    • O dióxido de carbono (CO2) difunde-se rapidamente do sangue para o alvéolo e a sua eliminação depende da ventilação alveolar por minuto, a qual é determinada pelo produto do volume corrente menos o espaço morto e a frequência.
    • Ventilação alveolar por minuto = (volume corrente – espaço morto) x frequência.
    • O volume corrente é o volume de gás inalado (ou exalado) em cada respiração (ou em cada ciclo respiratório do ventilador); o espaço morto corresponde à parcela do volume corrente que não participa nas trocas gasosas (volume contido nas vias aéreas); frequência é o número de ciclos respiratórios por minuto.
    • O aumento, tanto do volume corrente como da frequência, leva a um aumento da ventilação alveolar e, consequentemente, a uma redução da pressão arterial de dióxido de carbono (Pa CO2). No entanto, como o espaço morto se mantém constante, as alterações no volume corrente são mais eficazes na eliminação de dióxido de carbono do que as alterações na frequência.
    • A hipoxémia resulta habitualmente de uma perturbação da relação ventilação/perfusão ou de shunts direita-esquerda. No recém-nascido com SDR, a principal causa de hipoxémia é a deficiente ventilação dos alvéolos relativamente à sua perfusão. Os shunts podem ser intracardíacos (cardiopatias congénitas cianosantes) ou extracardíacos (pulmonares ou via canal arterial patente).

Etiopatogénese e classificação

Para além dum sistema repiratório intacto, para o início e manutenção da respiração normal, torna-se essencial a contribuição dum certo número de condições básicas descritas no capítulo sobre adaptação fetal à vida extrauterina.

Assim, tendo em conta os fenómenos da adaptação cardiorrespiratória fetal à vida extrauterina, e examinados os factores com influência no início e manutenção da função respiratória, será mais fácil compreender a classificação das SDR com base na etiopatogénese (Quadro 2); nesta perspectiva, são consideradas duas grandes causas: as de localização no sistema respiratório, e as de localização extra-sistema respiratório.

Como em toda e qualquer situação clínica, para o diagnóstico diferencial dos quadros clínicos de SDR, torna-se fundamental a realização de história clínica e de exames complementares em função dos dados colhidos e observados. Em termos de anamnese, por exemplo: a verificação de prematuridade aponta para SDR do tipo I; a verificação de líquido amniótico meconial aponta para síndroma de inalação amniótico-meconial; antecedentes de amnionite, ruptura prolongada de membranas e/ou de febre intraparto sugerem pneumonia, integrada ou não num quadro de infecção sistémica, etc..

QUADRO 2 – Classificação das síndromas de dificuldade respiratória (SDR) no RN.

Causa no sistema respiratório

1 – SDR tipo I (doença da membrana hialina)
2 – SDR tipo II (taquipneia transitória ou “pulmão  húmido”)
3 – SDR por inalação amniótico-meconial
4 – SDR dita secundária (pneumonia fetal e/ou neonatal, síndromas associadas a “ar ectópico” (pneumotórax, pneumomediastino, etc.), hemorragia pulmonar, displasia broncopulmonar, síndromas associadas a anomalias congénitas (hérnia diafragmática de Bochdalek, agenésia pulmonar, hipoplasia pulmonar, etc.)

Causa extra-sistema respiratório

1  – SDR por anomalias cardiovasculares
2  – SDR de causa metabólica (acidose, alcalose, hipoglicémia, etc.)
3  – SDR de causa neuromuscular (hemorragia do SNC, efeito de fármacos, anomalias congénitas do SNC – por ex. defeito de Arnold-Chiari, paralisia do frénico associada a paralisia do plexo braquial, etc.)
4  – SDR de causa hematológica (anemia grave de etiologia diversa, síndromas associadas a policitémia/hiperviscosidade, etc.)
5  – SDR de causa funcional (choque hipovolémico de etiologia diversa, infecção sistémica, etc. ).

Actuação inicial

Para além de um conjunto de procedimentos prioritários, importa um exame físico rigoroso e exames complementares fundamentados:

  • O RN deverá ser colocado em incubadora, em condições de assépsia e de termoneutralidade;
  • Deverá promover-se a monitorização das frequência cardíaca e respiratória, da oxigenação, da pressão arterial e da temperatura;
  • Deverá garantir-se o equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base;
  • Deverá prevenir-se e detectar-se eventual infecção.

Estes objectivos conseguem-se através de vigilância ou monitorização clínica, biofísica, bioquímica e imagiológica em unidade de cuidados especiais ou em unidade de cuidados intensivos.

No âmbito dos exames complementares de imagem assumem particular importância, em primeiro lugar a radiografia do tórax e, em certos casos, a ecografia torácica.

O Quadro 3 proporciona dados imagiológicos torácicos importantes para a orientação diagnóstica.

QUADRO 3 – Tórax e sinais radiológicos.

Imagem observadaOrientação diagnóstica

Pulmão Denso

Granitado difuso com ou sem broncograma “Miliar” de nódulos grosseiros assimétrica
Opacidade difusa

 

Doença da membrana hialina
Inalação – Infecção
Pneumonia – Hemorragia pulmonar

Pulmão Húmido

Diminuição homogénea da transparência
Linha cisural
Opacidades perivasculares

 

Perturbações da reabsorção do líquido alveolar/edema pulmonar

Pulmão Arejado

Hipertransparência acentuada dum campo pulmonar
Hipertransparências difusas, lineares, paralelas aos brônquios

 

 

Pneumotórax; Malformações
Enfisema lobar
Enfisema intersticial

Diafragma

Cúpula abaixada
Cúpula elevada

 

Enfisema; Pneumotórax
Paralisia do nervo frénico; Atelectasia

Mediastino

Hipertransparência em torno da silhueta cardíaca




Desvio mediastínico

 

 

Pneumomediastino
Hérnia diafragmática
Eventração diafragmática
Agenesia pulmonar
Hipoplasia pulmonar
Atelectasia
Enfisema lobar congénito
Malformação quística
Tumor
Hidrotórax
Pneumotórax

A ecografia torácica é de grande utilidade em situações compatíveis clinicamente com derrame pleural ou pericárdico, para avaliação da dinâmica do diafragma havendo suspeita de paralisias, e ainda, para avaliação do grau de recrutamento alveolar (de arejamento ou colapso).

Na perspectiva de detecção de insuficiência respiratória e de eventual repercussão multiorgânica – que poderão determinar a transferência do RN para UCIN – estão indicados determinados procedimentos:

  • Oximetria de pulso para determinação da saturação em O2 (SpO2)
    Na oximetria de pulso utiliza-se um foto-sensor cutâneo (oxímetro de pulso, de preferência com dois aparelhos: na mão direita e noutra extremidade) para determinar de modo contínuo a percentagem de saturação de Hb em oxigénio (SpO2) disponível para transporte do mesmo. Idealmente, a SpO2 no RN de termo deve ser ≥95% nas primeiras 7-12 horas pós-parto).
    A SpO2 (que nos dá na prática clínica diária a monitorização cutânea contínua da oxigenação) é afectada pela curva de dissociação da oxi-hemoglobina. (ver atrás, Figura 6)
    O método tem limitações, citando-se alguns exemplos: saturações de 88-93% correspondem a PaO2 entre 50 e 80 mmHg. Valores extremos, elevados ou baixos, têm fraca correlação com a PaO2 (exemplo: saturação de 98 ou 99% pode corresponder a PaO2 variando entre 95 e >200 mmHg).
    Como vantagens citam-se: fácil de utilizar; não requer calibração manual; os valores determinados são pouco influenciados pela temperatura e perfusão da pele (ao contrário do que acontece com o monitor de pressão transcutânea de O2).
    Com os referidos monitores (oxímetros) é possível proceder, também, à monitorização das frequências cardíaca, respiratória e da pressão arterial.
  • Determinação inicial do pH e gases no sangue
    • PaO2
      Com a determinação da pressão arterial de O2 há possibilidade de regular a concentração de oxigénio necessária para manter os valores fisiológicos de 70-80 mmHg.
      De notar que um valor inferior pode ser responsável por hipóxia celular com consequente acidose metabólica, e um valor exageradamente elevado pode ser tóxico para os vasos retinianos com possibilidade de sequelas no RN pré-termo, nomeadamente retinopatia, podendo originar cegueira.
    • PCO2
      A determinação da pressão de CO2 permite apreciar o valor da ventilação alveolar. Os valores normais oscilam entre 35 e 45 mmHg.
      Um aumento da pressão de CO2 (hipercápnia) pode ser sinal de obstrução, atelectasia, perturbação do mecanismo central da respiração, ou de patologia neuromuscular.
      Uma hipocápnia, pelo contrário, pode constituir a tradução do fenómeno de compensação respiratória duma acidose metabólica e, também, eventualmente de perturbações do mecanismo central da respiração
    • pH
      O valor normal deste parâmetro está compreendido entre 7,35 e 7,40. De notar também que uma acidose grave pode ter consequências deletérias: vasoconstrição dos capilares pulmonares e sequelas ao nível do S.N.C.
      No RN pré-termo é actualmente considerada lícita a estratégia de hipercapnia permissiva: tolerar PCO2 mais elevadas (45-55 mmHg), tentando reduzir o tempo de suporte ventilatório ao RN. Neste contexto, valores de pH ≥7,22 nos primeiros cinco dias de vida do RN pré-termo com SDR, e de ≥7,20 nos dias seguintes, são amplamente aceites de acordo com as normas europeias de abordagem do SDR.
    • BE (“Excesso de base”)
      Este parâmetro permite calcular a quantidade de iões básicos necessária para neutralizar uma perturbação de origem metabólica no espaço extracelular (no RN = ± 0,5 peso do corpo em kg). Num estado normal de equilíbrio, o BE = 0. Portanto, uma acidose metabólica corresponde a um BE negativo cujo valor se correlaciona com o número de mEq de bicarbonato necessário para a correção da acidose.
  • Capnografia não invasiva
    Método não disponível em todas as unidades neonatais, poderá ser útil na detecção de apneia, quer de tipo central, quer obstrutiva.
  • Outros exames e índices de avaliação
    • Salientando-se que nas situações de patologia respiratória poderá verificar-se compromisso multiorgânico, cabe referir que após concretização de procedimentos prioritários, e uma vez verificada a estabilização clínica hemodinâmica, poderão estar indicados determinados exames complementares tais como hemograma com plaquetas, hematócrito, grupo sanguíneo, PCR, glicémia, ionograma, estudo da coagulação, exames microbiológicos, hemocultura, exame sumário da urina, urocultura, etc..
    • Na valorização do grau de insuficiência respiratória são classicamente usados os seguintes índices:
      1. não invasivos: SpO2/FiO2;
      2. invasivos:
        • PaO2/FiO2;
        • índice de oxigenação (PMA x FiO2/PaO2); e
        • diferença alvéolo-arterial de oxigénio (A-a DO2= PAO2-PaO2).
[PMA: pressão média na via aérea; PaO2: pressão parcial arterial de O2 pós-ductal; A-a DO2: diferença alvéolo-arterial de oxigénio; PAO2: pressão alveolar de O2]. Estes índices serão igualmente abordados adiante, no capítulo sobre “ventilação mecânica”.

Cuidados básicos ao RN com problemas respiratórios

Em obediência aos princípios da actuação atrás sintetizados, os cuidados básicos ao RN com SDR (em unidades de cuidados intermédios ou em UCIN) deverão contemplar determinados critérios, abordados nesta alínea.

Balanço hidroelectrolítico

Torna-se fundamental proceder aos registos do peso diário assim como do suprimento de fluidos e electrólitos, do débito urinário (pós-algaliação ou colocação de saco colector), das perdas pelas fezes e das perdas insensíveis. Com efeito, a manutenção do balanço hidroelectrolítico dentro da normalidade é condição indispensável para garantir ventilação-perfusão normais e trocas gasosas eficazes.

Humidade e temperatura ambientais

O ambiente termo-neutro (a garantia do consumo mínimo de oxigénio) implica humidade relativa ~ou >50%. Por outro lado, uma humidificação dentro dos limites recomendados contribui para diminuir a perda de líquidos através da pele e, consequentemente, a perda de calor corporal. Situações que implicam entubação traqueal necessitam de humidade relativa >60%.

Nos RN de peso <1.000 gramas poderá haver necessidade de humidade relativa ~80-90% e manutenção de temperatura cutânea abdominal de 36,9ºC (nestes casos, com sensor aplicado na pele do abdómen, ligado a sistema automático de aquecimento servocontrolado).

Nos RN de peso entre 1.000-1.499 gramas, com tal sistema automático, deverá providenciar-se temperatura cutânea abdominal de 36,7ºC; se 1.500-1.999 gramas: 36,5ºC.

Recorda-se que a hipotermia (temperatura axilar <36,5ºC: ligeira- 36-36,4ºC; moderada- 32-35,9ºC; grave- <32ºC), originando vasoconstrição pulmonar, poderá levar a situação de hipoperfusão e hipertensão pulmonares, agravando o quadro respiratório. O Quadro 2 do capítulo sobre “prematuridade” especifica a temperatura ambiente recomendável para RN de diversos subgrupos de peso. Exceptua-se a situação de hipotermia induzida como estratégia neuroprotectora nos casos de encefalopatia hipóxico-isquémica, com indicação para a mesma.

Cuidados da pele

A integridade da pele é importante para manutenção do balanço hídrico e da temperatura corporal; por outro lado, a perda da integridade da mesma comporta igualmente risco de infecções sistémicas. Na prática clínica deverá evitar-se sempre que possível o uso de adesivos e outras práticas que contribuam para a lesão da pele, chamando-se a atenção para a necessidade de protecção daquela sobre proeminências ósseas, sobretudo no RN de prematuridade extrema (<1.000 gramas).

Posição do RN

A colocação de doentes com dificuldade respiratória em posição correcta é muito importante para garantir a melhoria da função respiratória e a eficácia dos restantes cuidados. A este propósito cabe salientar o seguinte:

  • Estando o RN submetido a ventilação mecânica, mudanças de posição do corpo, não planeadas ou mal efectuadas, podem alterar a posição do TET (ver adiante);
  • A posição em decúbito dorsal prolongada, leva a atelectasias segmentares posteriores;
  • A colocação do RN em posição de decúbito lateral durante ventilação mecânica pode ajudar no que diz respeito a melhoria de áreas de atelectasia ou de enfisema intersticial;
  • A posição em decúbito ventral tem sido referida como bastante vantajosa por melhorar a ventilação, permitindo a total expansão pulmonar e facilitando a drenagem de secreções (RN monitorizado).

Nota importante: esta posição está proscrita em RN saudáveis em berço convencional, para dormir.

Manutenção da permeabilidade das vias aéreas

Determinadas medidas com o objectivo de manter a permeabilidade das vias aéreas (facilitando a oxigenação do sangue e permitindo a remoção do CO2) incluem:

  • Aspiração suave de secreções, drenagem postural, vibração torácica e percussão suave, sobretudo em situações de atelectasia ou de pneumonia;
  • A aspiração das vias aéreas, realizada por pessoal de enfermagem especializado, deverá ser reduzida ao mínimo, nomeadamente no RN pré-termo extremo; com efeito, aspirações excessivas, sem indicação clínica para tal, poderão conduzir a lesões traumáticas e, por vezes, a efeitos secundários graves como por ex. pneumotórax.

Após a descrição dos cuidados básicos, importa descrever de modo sucinto os cuidados especiais que, fundamentalmente, correspondem à assistência respiratória.

Assistência respiratória ao RN

Independentemente da etiologia e gravidade do problema respiratório neonatal, no conceito lato de assistência respiratória (ou suporte respiratório) incluem-se:

Métodos não invasivos

  • A administração de suplemento de oxigénio (oxigenoterapia), em proporções variadas utilizando diversas técnicas e procedimentos adiante descritos, em função dos parâmetros clínicos e biológicos de cada caso;
  • Suporte respiratório com pressão positiva/CPAP nasal.

Métodos invasivos

  • Ventilação mecânica invasiva convencional implicando entubação traqueal e ventiladores sofisticados e incluindo a administração de gases inalados (tais como mistura oxigénio-hélio/heliox ou óxido nítrico/iNO);
  • Ventilação de alta frequência oscilatória (VAFO);
  • ECMO (oxigenação por membrana extracorporal).

De salientar que, com os progressos da ciência e tecnologia, a tendência actual é a utilização de métodos e estratégias cada vez menos invasivos.

A assistência respiratória ao RN deve ser progressiva e, idealmente, o menos invasiva possível, com base na etiologia do processo. Os processos em que predomina a diminuição da distensibilidade/compliance pulmonar, aumento do trabalho respiratório e perda do volume residual funcional beneficiarão se for incrementada a pressão na via aérea. Nos casos em que predomina o aumento da resistência da via aérea, haverá benefício se se aumentar o fluxo do gás.

 

Neste capítulo faz-se referência à assistência respiratória por métodos não invasivos.

Modalidades de oxigenoterapia

A oxigenoterapia pode ser aplicada, quer nas situações em que se verifica respiração espontânea, quer em RN submetidos a ventilação artificial, segundo várias modalidades.

Nos casos de RN respirando espontaneamente, com SDR ligeira, evidenciando adequada ventilação-minuto, e sinais de hipoxémia ligeira (SpO2 <89%) poderá haver necessidade de providenciar apenas suplemento de O2 [variando a FiO2, e pressupondo que o dispositivo/fonte de O2 possua um misturador para regular a referida FiO2], no sentido de obter valores da SpO2 entre 90 e 95%.

Importa realçar contudo que a assistência respiratória poderá ser levada a cabo com ar ambiente, o qual contém proporção de 21% de O2 (por ex., já na sala de partos no contexto de reanimação neonatal).

Portanto, o suplemento de oxigénio deve ser aquecido à temperatura do RN, e humidificado, podendo ser administrado segundo diversas modalidades.

Cânulas nasais com baixo fluxo de gás

Trata-se do método clássico de administração de oxigénio consistindo na aplicação de cânula nasal dupla/pronga (ou em alternativa, sonda única empregando sonda vulgar de calibre 8 FG introduzida numa das narinas até cerca de 3 cm).

Com esta modalidade deve utilizar-se um debitómetro de precisão permitindo débitos <1 L/minuto (por ex. 0,25 – 0,50 – 0,75 L/min, etc.). Determinando a concentração de oxigénio na hipofaringe (FhO2) com este método, é possível estabelecer a seguinte relação, respectivamente entre débito e FhO2:

0,25 L/min<>30%; 0,50 L/min<>45%; 0,75 L/min<>60%; 1 L/min<>65%

Nota importante: no RN pré-termo (<28 semanas) em que a camada da pele é extremamente delgada, pode verificar-se absorção transcutânea de oxigénio se o mesmo RN não estiver vestido (e se eventualmente o ambiente da incubadora proporcionar elevada concentração de FiO2); assim, poderá verificar-se incremento de PaO2 ~9 mmHg (~1,2 kPa) se a FiO2 do habitáculo for ~95%.

Cânulas nasais com alto fluxo de gás

Actualmente, nos pacientes com respiração espontânea, verifica-se a tendência de utilização de uma modalidade de cânulas nasais para inalação de alto fluxo.

Trata-se dum método de assistência respiratória não invasiva permitindo administrar gás aquecido (34-37ºC) e humidificado (95-100%) a um fluxo constante; este fluxo constante é mais elevado que o fluxo inspiratório do paciente e do que o utilizado em cânulas nasais convencionais atrás citadas. O O2 com percentagem de ar misturado e regulável é o gás mais utilizado.

Tendo como referência os fluxos atrás descritos para as cânulas nasais convencionais, cabe salientar que a definição de alto fluxo ainda não é consensual; na prática corrente, considera-se aceitável considerar alto fluxo: – no RN pré-termo ou de termo à 1 L/min; – em lactentes à 2 L/min; – em crianças maiores à 6 L/min; – em adultos à até 60 L/min. Constitui prática corrente iniciar o procedimento com o fluxo ~2 L/kg/min. (Figuras 7 e 8)

O sistema de inalação de alto fluxo (ou alto débito) tem diversas vantagens, destacando-se as seguintes:

  • O efeito de “lavagem” do espaço morto da nasofaringe; – o preenchimento de todo o espaço aéreo da nasofaringe com gás “limpo”, removendo o ar expirado ao ponto de o paciente inspirar novo gás oxigenado no ciclo seguinte;
  • Eliminação de CO2 promovendo maior rendimento da oxigenação;
  • Promoção do recrutamento alveolar gerando-se uma pressão de distensão alveolar contínua;
  • Com a aplicação do sistema de alto fluxo contínuo poderá gerar-se, inavertidamente, pressão positiva contínua, isto é, efeito CPAP. (ver adiante)

Como indicações principais citam-se:

  • Na fase pós-extubação traqueal;
  • Pós-ventilação com CPAP;
  • Como tratamento de SDR em RN pré-termo com idades gestacionais ~32-34 semanas ponderando outros aspectos da situação clínica na globalidade.

Pressão positiva contínua na via aérea

Nos RN com respiração espontânea pode administrar-se suplemento de O2 em fluxo contínuo empregando:

  • dispositivo com a funcionalidade e tecnologia exclusivamente para CPAP;
     ou
  • ventilador convencional que, para além da modalidade PIP associada a fluxo contínuo possui simultaneamente funcionalidade para pressão de distensão contínua. 
  1. Ao conceito genérico de pressão positiva contínua/ pressão de distensão alveolar contínua, isto é, de maior expansão alveolar no fim da expiração (em comparação com os casos em condições fisiológicas naturais, de normalidade), dá-se o nome de CPAP (Continuous Positive Airway Pressure). Trata-se, pois, de aplicação de apoio respiratório, artificial, com fluxo contínuo do gás ao mesmo tempo que o paciente respira espontaneamente.
  2. Este conceito de maior expansão alveolar no fim da expiração, superior à verificada fisiologicamente no fim de cada expiração, sobrepõe-se ao de PEEP (Positive End Expiratory Pressure-pressão positiva), aplicável a pacientes que, não respirando espontaneamente, têm aplicado dispositivo/aparelho que promove simultaneamente pressão positiva intermitente (PIP ou PPI).
  3. À pressão de distensão contínua que se obtém quando é utilizda simultaneamente PIP (modalidade mista), dá-se o nome de PEEP. (por ex.,  diz-se: – o doente X, com respiração espontânea está em CPAP de 5 cm H2O; e – relativamente ao doente Y, ventilado simultaneamente com pressão positiva intermitente (por ex. PIP de 30 cm H2O) e com a mesma pressão de distensão contínua, diz-se: está com PIP de 30 cmH2O e PEEP de 5 cm H2O (e não, PIP de… e CPAP de…).

Na impossibilidade de dispor de ventilador com diversas funcionalidades ou de aparelhagem sofisticada exclusivamente para pressão positiva contínua (CPAP), pode utilizar-se um dispositivo simples em que a pressão positiva é gerada criando uma resistência ao fluxo gasoso.  

O esquema básico que integra a Figura 9  pretende elucidar sobre os componentes de tal dispositivo aplicado à via aérea do RN com respiração espontânea.

Importa então considerar determinados aspectos do funcionamento, excluindo pormenores técnicos sobre calibres das tubagens e pressões obtidas em função dos fluxos de gás.  As setas indicam o trajecto do gás (inalado ou exalado); um sistema valvular permite que o gás inalado e exalado circule repectivamente em tubagens diferentes. (ver caixa)

    1. Fonte de gás com misturador de O2+Ar com sistema de aquecimento e humidificação; fluxo contínuo e débito de 5-10 L/ minuto;
    2. Monitor de FiO2 (Oxímetro;)
    3. Ramo inspiratório da tubagem em conexão com a via aérea implicando sistema valvular intercalado (abertura da válvula na inspiração e encerramento na exalação), evitando fluxo retrógrado (portanto, sem interferência com a fase da expiração espontânea);
    4. Ligação do ramo inspiratório à via aérea (a montante), utilizando quer prongas nasais, quer máscara, quer tubo endotraqueal (TET); na figura 9 está representada a modalidade de máscara;
    5. Extremidade distal da tubagem veiculando o gás exalado (ramo expiratório, a jusante da via aérea), com três derivações:
      • uma derivação (A) termina em tubo que mergulha em copo ou frasco em plano inferior (em contacto com o ar ambiente); o comprimento do tubo mergulhado na água, entre a extremidade distal do mesmo e o nível da água, dá o valor em centímetros da pressão gerada que se deseja (positiva, de distensão contínua). Daí, a designação de ”pressão em cm de H2O”. Habitualmente usa-se pressão de 5 cm de H2O;
      • uma derivação (B) em ligação a monitor de pressão do gás  na tubagem;
      • uma derivação (C) em ligação a balão de tipo anestésico (ovóide) como reservatório do gás exalado; para o bem funcionamento do sistema tal balão deve estar insuflado;  
    6. No polo distal do balão de reserva existe um sistema regulador de saída do gás exalado segundo diversas modalidades; uma delas é precisamente (também) através de outro tubo mergulhado num recipiente com água, o qual produzirá “bolhas” com a saída do gás.  

FIGURA 7. Esquema de administração de oxigenoterapia com FiO2 variável (alto ou baixo débito/fluxo) por cânulas nasais (prongas). (A, B, C, D, E, F)
A) Misturador Ar+O2; B) Sistema de aquecimento/leitura digital da temperatura e humidificação do gás; C) Tubagem, acompanhada por fios exteriores ligados a sensores e com aplicação de duas cânulas nasais em V ou em T; D) Sensor de oxímetro de pulso aplicado no pulso direito (pré-ductal); E) Oxímetro de pulso com indicação digital de saturação em O2 /SpO2 ; F) Formato variável das prongas nasais (em V ou em T).

FIGURA 8. RN submetido a oxigenoterapia com aplicação de pronga nasal em dois T. É visível sonda gástrica de cor verde para evitar distensão gasosa referida adiante, a propósito do sistema CPAP.

FIGURA 9. ESQUEMA BÁSICO DO SISTEMA DE PRESSÂO POSITIVA CONTÍNUA NA VIA AÉREA
(1)- Misturador O2+ar, regulável; (2)- Sistema de aquecimento e humidificação do gás; (3)-Paciente respirando espontaneamente, com pronga nasal aplicada; esta deriva da tubagem – ramo inspiratório (A); no paciente, as setas nos dois sentidos representam inspiração/expiração; (B)- Ramo expiratório da tubagem, veiculando gás exalado pelo paciente, ligada a tubo mergulhado em (4)- Recipiente com água: a exalação provoca “bolhas” em número e intensidade proporcional ao valor do débito do gás inalado; (5)- Tubo derivando do ramo expiratório submerso noutro recipiente com água; o comprimento em cm da parte submersa corresponde ao valor da pressão positiva que é gerada no fim da expiração “em cm de H2O”.

FIGURA 10. Oxigenoterapia em campânula.

A Figura 9 representa em esquema os componentes básicos do sistema de CPAP referido (chamado sistema subaquático ou “de bolhas”), excluindo referência a sistemas valvulares e a calibres dos vários tubos).

A distensão gástrica pode ser um efeito secundário da CPAP nasal; contudo, esta técnica não contraindica a alimentação por via entérica. Para prevenir tal efeito deve aplicar-se sonda orogástrica nos RN submetidos a CPAP nasal.

Outras modalidades (clássicas)

Como alternativa às cânulas nasais e prongas nasais, alguns centros utilizam diversas modalidades de “máscaras” faciais obrigando ao cumprimento das regras quanto a débitos a utilizar em função das dimensões e das diversas marcas do mercado.

Por fim, e por razões históricas, importa citar modalidades menos utililizadas actualmente (não totalmente obsoletas), podendo servir como recurso (consultar anterior edição desta obra):

Campânula
Trata-se de campânula transparente de perspex /acrílico fechada, cúbica ou cilíndrica, com uma abertura semicircular correspondente ao pescoço do RN (ficando a cabeça dentro da mesma) e um orifício de comunicação com a fonte de oxigénio; a campânula pode ser usada quer em berço, quer dentro da própria incubadora.
Esta modalidade permitindo, através da grande abertura em torno do pescoço do RN, a saída do CO2 expirado pelo RN (evitando a acumulação do mesmo dentro da campânula) está indicada em situações necessitando de FiO2 > 25%.
Haverá, pois,  que monitorizar a FiO2 dentro da campânula com oxímetro colocado a meia distância entre o nariz e boca e a SpO2 com oxímetro de pulso (sensor aplicado, de preferência sobre o pulso direito /pré-ductal,  ou em alternativa sobre o  dedo grande do pé/pós-ductal ). Salienta-se que, de acordo com a situação clínica, poderá haver há indicação para avaliar os valores pré e pós-ductais implicando a aplicação de dois oxímetros (ver capítulo sobre “hipertensão pulmonar persistente”). Figura 10

Incubadora
Nos casos em que o RN necessite de FiO2 < 25% poderá administrar-se oxigénio conectando a fonte de O2 directamente ao interior do habitáculo da incubadora; nestas circunstâncias poderá compreender-se que a FiO2 monitorizada com oxímetro tal como se referiu para a campânula- pode diminuir sempre que se abre a “janela” da incubadora, o que constitui uma limitação pelas oscilações que provoca na mesma FiO2.

Monitorização em UCIN

Recorda-se, a propósito, que as UCIN são unidades assistenciais com equipamento sofisticado integrando equipas fixas de enfermeiros e de pediatras-neonatologistas com formação especializada em intensivismo neonatal, e agregando a si outros especialistas que dominam certas técnicas, como cirurgiões neonatais, gastrenterologistas, cardiologistas, pneumo-broncologistas, etc. O conceito de assistência de tipo intensivo implica a disponibilidade de equipas próprias em permanência, 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano.

Para a vigilância e terapia intensivas torna-se necessário proceder a técnicas invasivas como cateterismo arterial e venoso. Pelas condições indispensáveis de ambiente em assépsia rigorosa é possível a realização de intervenções cirúrgicas em áreas reservadas e isoladas da UCIN, como laqueação do canal arterial no RN pré-termo e correcção cirúrgica de hérnia diafragmática de Bochdalek.

Do equipamento sofisticado fazem parte, nomeadamente, incubadoras “abertas” e fechadas (clássicas) com mecanismo de regulação de temperatura automática (servocontrolada), monitores electrónicos e ventiladores, aparelhos de fototerapia, etc..

De facto, os problemas respiratórios neonatais tipificam perfeitamente o paradigma do internamento em UCIN, designadamente pelas repercussões multissistémicas da disfunção respiratória. Salienta-se – pelo que foi dito – que a necessidade de ventilação mecânica não constitui a única indicação de internamento na mesma.

Assim, é oportuno discriminar os critérios clássicos utilizados para transferência de RN para UCIN ou Unidade de Cuidados Especiais (com ou sem problemas respiratórios):

  • RN pré-termo de peso inferior a 1.500 gramas;
  • A verificação de necessidade de assistência ventilatória em função dos dados colhidos pelo exame clínico, dos resultados da determinação de pH e gases no sangue (gasometria);
  • Problemas hemodinâmicos tais como choque de etiologia diversa (designadamente infecciosa), hipertensão arterial, hipotensão e hipoperfusão, defeitos cardíacos e insuficiência cardíaca, etc.;
  • Problemas hematológicos (diátese hemorrágica grave, CID, etc.);
  • Problemas neurológicos com repercussão multissistémica (status epilepticus, doenças neuromusculares, etc.);
  • Problemas metabólicos, alterações do equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base;
  • Infecções sistémicas;
  • Alterações da termo-regulação;
  • Patologia dita cirúrgica major implicando vigilância pré- e pós-operatória.

Nesta perspectiva, são descritas sucintamente as modalidades mais correntes de monitorização do RN realizada em UCIN.

Monitorização não invasiva

  • O tópico sobre “admissão na UCIN” da alínea sobre “cuidados ao RN pré-termo” tipifica de modo sucinto os diversos tipos de aparelhos para monitorização básica: de frequência cardíaca e respiratória (implicando aplicação de eléctrodos sobre a pele, com possibilidade de obtenção de traçados de registo digital), de temperatura cutânea e de ambiente, de pressão arterial por método doppler tipo Dinamap e de oximetria de ambiente (para determinação da FiO2).
  • Para além do oxímetro de pulso já referido e utilizado também em UCIN, cabe referir ainda os monitores para determinação da pressão transcutânea de O2 e de CO2. Com o aparecimento do oxímetro de pulso, o monitor transcutâneo de oxigénio (Ptc O2) – com eléctrodo aplicado sobre a pele, produzindo determinada temperatura indispensável para vasodilatação da pele, passou a ser menos utilizado.
  • A monitorização da Ptc CO2 é extremamente importante na prática clínica uma vez que permite determinar de modo contínuo tal parâmetro, com grande aproximação ao valor da pressão arterial de CO2 (PaCO2).
    Existem, no entanto, algumas limitações relacionadas com o funcionamento dos dois últimos monitores: 1) necessidade de recalibração diária; 2) necessidade de recolocação em diferentes zonas da pele após cada 4 a 6 horas (ou de 2 em 2 horas nos RN mais imaturos) face à irritação da pele (eritema ou queimadura superficial causada pela temperatura exigida para a eficácia do funcionamento do eléctrodo; 3) resultados difíceis de interpretar em situações clínicas acompanhadas de má perfusão cutânea, em que a sua utilização é pouco eficaz.
  • A monitorização do CO2 expirado por aplicação do respetivo sensor junto à conexão do TET (capnografia) é um meio prático e fiável de avaliação da evolução do CO2 permitindo a leitura da curva de registo da mesma uma deteção precoce de alterações tendentes à retenção ou à depuração exagerada de CO2 em doentes sob suporte ventilatório mecânico convencional.
  • A avaliação ecocardiográfica é muito importante pelos achados obtidos, nomeadamente em termos de status cardíaco (por ex. grau de preenchimento das cavidades cardíacas), de resistências pulmonares e periféricas, e de shunt intrapulmonar.

Monitorização invasiva

  • A gasometria arterial (determinação do pH e gases no sangue arterial) constitui a avaliação mais padronizada e aceite do status respiratório. Requer punção arterial (por ex. da artéria radial ou temporal direitas, pré-ductais) ou a manutenção de uma linha arterial contínua.
    Na prática corrente, estando o RN internado em UCIN, no período neonatal precoce obtém-se sangue arterial da artéria umbilical uma vez que em praticamente todos os RN com SDR é colocado um cateter arterial umbilical, viabilizando uma linha de monitorização arterial contínua, permitindo monitorização dos referidos parâmetros. Em geral procede-se a colheitas de sangue arterial periodicamente em função da clínica com seringa aplicada a sistema de torneira com três ou mais vias segundo técnica que ultrapassa os objectivos do livro; outra alternativa é a determinação contínua com monitor electrónico que incorpora sensor em contacto com o sangue arterial, o que implica o emprego de cateteres especiais.
  • A pressão arterial por método directo (hoje menos vulgarizada dado o desenvolvimento de métodos não invasivos) também pode ser realizada através do cateter arterial especial com equipamento ligado a monitor-transdutor.
  • A gasometria venosa não tem valor quanto à determinação da pressão de O2, sem qualquer correlação com a PaO2. O pH é ligeiramente mais baixo e a pressão de CO2 (venosa, não arterial) é ligeiramente mais elevada.
  • A gasometria capilar obtida através de colheita de sangue capilar (arterializado) – em geral obtido por punção na região calcaneana – proporciona informação útil; as limitações são semelhantes às da punção venosa.
  • A pressão venosa central (PVC) pode ser monitorizada pelo cateter venoso umbilical com extremidade atingindo a aurícula direita. No RN valores da ordem de 4-8 cm H2O, são geralmente aceites como normais. No entanto, actualmente alguns dados indirectos relativamente à pré-carga e pós-carga podem ser obtidos de modo não invasivo através da ecografia com doppler.

Nota importante: tal como foi referido a propósito dos exames iniciais, na UCIN o RN com SDR necessita de avaliação seriada, devendo os exames a realizar – os já citados e outros, implicando colheitas de sangue – ser programados com vista a reduzir ao mínimo as expoliações e o número de punções, dados os riscos inerentes.

Indicações da ventilação mecânica*

Habitualmente, nos pacientes que não estão em respiração espontânea, são estabelecidos dois tipos de critérios (clínicos e biológicos) para início de ventilação mecânica implicando, em princípio, entubação traqueal e internamento em UCIN:

Clínicos

  • Índice de Silverman >7 sem melhoria na sequência de período anterior de assistência respiratória, designadamente na modalidade de pressão de distensão contínua por via nasal aplicada a RN em respiração espontânea (CPAP nasal/ nCPAP, isto é, sistema de fluxo contínuo de mistura de ar/O2, gerando pressão positiva no fim da expiração, e garantindo menor esvaziamento e maior distensão alveolares do que em situação normal);
  • Apneia recorrente: dois ou mais episódios/hora com necessidade de ventilação manual para reversão e/ou ausência de resposta ao tratamento com xantinas;
  • Doenças do foro neurológico e neuromuscular, congénitas ou adquiridas, implicando ausência de movimentos respiratórios ou movimentos respiratórios irregulares ou de fraca amplitude;
  • Doenças sistémicas diversas, idem;
  • RN submetidos a tratamento com fármacos interferindo no automatismo e dinâmica respiratórios.

*As noções básicas de assistência respiratória por métodos invasivos são abordadas em capítulo próprio adiante.

Resultados da determinação de pH e gases no sangue (gasometria)

  • PaO2 <50 mm Hg (6,7 kPa) ou SpO2 <88% com FiO2 >60% (se ≤32 semanas de gestação) [ou com FiO2 >80%(se >32 semanas)]
  • PaCO2 >60 mmHg (8,0 kPa): associada a pH <7,20 se idade gestacional >32 semanas;
  • PaCO2 >50 mmHg (6,7 kPa) associada a pH <7,25 se idade gestacional ≤32 semanas;
  • Acidose metabólica grave (pH <7,20) na ausência de resposta a alcalinizantes (bicarbonato de sódio, por ex.) e/ou a expansores de volume.

Nota importante:
Correspondência entre as medidas de pressão kPa (capa pascal) e mmHg: valor de KPa x 7,5 corresponde a valor em mmHg

No RN pré-termo, após ventilação não invasiva, não existem critérios universalmente aceites para ventilação mecânica; contudo, segundo a comprovação científica actual, é amplamente aceite a necessidade de suporte ventilatório invasivo se, após se ter tentado rendibilizar o suporte não invasivo, persistirem as seguintes condições:

  • Dificuldade respiratória importante (tiragem, gemido expiratório, polipneia);
  • Hipercapnia (Ph <7.22 com PCO2 ≥65 mmHg);
  • Apneia recorrente (>2/hora) nas 6 horas prévias;
  • Apneia major ou bradicardia necessitando de ressuscitação empregando ventilação com pressão positiva.

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Definição e importância do problema

A síndroma de dificuldade respiratória (SDR) do RN pré-termo ou SDR do tipo I (anteriormente designada doença da membrana hialina/DMH), constitui um problema respiratório típico da imaturidade pulmonar resultante da deficiência em surfactante pulmonar (SP) endógeno.

O termo “surfactante” corresponde à designação funcional de um material heterogéneo e complexo de natureza lipoproteica, relativamente insolúvel, com grande plasticidade (distendendo-se em grau variável) cuja propriedade principal consiste em diminuir a tensão superficial na interface ar-líquido da porção respiratória do pulmão.

Constituindo a causa mais frequente de dificuldade respiratória no RN pré-termo, a sua gravidade (com repercussão na mortalidade) é inversamente proporcional à idade de gestação.

Globalmente, a DMH ocorre em cerca de 0,5 a 1% dos nados-vivos: em cerca de 60-80% dos RN pré-termo com <28 semanas, em cerca de 15-30% dos pré-termo com idades gestacionais compreendidas entre 32 e 36 semanas, raramente em RN de termo.

O Quadro 1 integra os factores clássicos que aumentam ou diminuem o risco de DMH.

QUADRO 1 – Factores de Risco de DMH.

Risco aumentado

Prematuridade, sexo masculino, gemelaridade/ segundo gémeo, hipóxia e acidose, corioamnionite, cesariana electiva, diabetes materna, hidropisia fetal, etc..

Risco diminuído

Hipóxia intrauterina crónica, ruptura prolongada de membranas ovulares, hipertensão materna, restrição do crescimento intrauterino (RCIU), administração de corticóides pré-natais, administração de tocolíticos, hormonas tiroideias, etc..

Etiopatogénese

Na génese do problema respiratório em análise importa realçar três factores relacionados com a imaturidade:

  1. Deficiência do surfactante pulmonar (SP) (da secreção, e/ou da inactivação ao nível do alvéolo pulmonar) conduzindo, como foi referido, a menor distensibilidade ou compliance alveolar/pulmonar – a causa primária.
    Com efeito, possuindo este composto fosfolipídico-proteico um efeito regulador tensioactivo (diminuição da tensão superficial dos alvéolos e bronquíolos respiratórios durante a expiração), a sua presença no alvéolo (aumentando a compliance pulmonar e a relação V/P) evita o seu colapso durante a expiração e a sobredistensão durante a inspiração. Assim, garante a manutenção da capacidade residual funcional (CRF) e facilita as trocas gasosas em cada ciclo respiratório.
    Por outro lado, importa relevar outra acção do SP: durante a inspiração, ao promover o recrutamento alveolar uniforme, reduz o gradiente de pressões entre o interstício e o alvéolo, diminuindo assim a probabilidade de formação de edema pulmonar.
    A deficiente síntese ou libertação de surfactante associada à incapacidade de se criar uma capacidade residual adequada, e a particularidade de a parede torácica ser mais complacente, levam a atelectasia (atelectrauma), resultando em alvéolos perfundidos, mas não ventilados, o que conduz a hipóxia. (ver adiante Metabolismo do surfactante pulmonar)
    A diminuição da compliance pulmonar, a redução do volume corrente, o aumento do espaço morto fisiológico, o aumento do trabalho respiratório, assim como a insuficiente ventilação alveolar conduzem a hipercápnia. A combinação de hipóxia, hipercápnia e acidose produz vasoconstrição arterial incrementando o shunt direita-esquerda através do foramen ovale, ductus arteriosus e no interior do próprio pulmão.
    Verifica-se secundariamente redução do fluxo sanguíneo pulmonar com lesão isquémica, quer das células que produzem surfactante (pneumócitos de tipo II) e dos pneumócitos de tipo I, quer das células do leito vascular, o que favorece a saída de material proteico intravascular para o espaço alveolar. (Figura 1)
    O colapso alveolar em áreas disseminadas do parênquima, a formação de depósitos hialinos e eosinófilos de fibrina agregando células alveolares necrosadas forrando os ductos alveolares e os bronquíolos terminais (daí o nome de “membranas hialinas”, conceito anatomopatológico, sendo que as mesmas são raramente observadas antes das 6-8 horas de vida extrauterina) e o edema intersticial contribuem para agravar a diminuição da compliance ou distensibilidade do pulmão, de tal modo que será necessária pressão mais elevada que a verificada em condições normais para expandir os alvéolos e vias terminais. (Figura 2)
    A Figura 3 ilustra a consequência do défice ou disfunção do surfactante pulmonar, com alteração do formato da curva volume/ pressão (incapacidade distensão alveolar com o aumento da pressão intralveolar, e incapacidade de manutenção do volume residual).
  2. Hipodesenvolvimento estrutural do pulmão
    Reportando-nos às fases do desenvolvimento pulmonar embrionário e fetal, cabe referir que no RN pré-termo viável foi já atingido o estádio canalicular ou sacular. Nestes estádios as vias aéreas distais são de estrutura tubular, têm paredes espessas e a distância entre o leito capilar e o interstício é superior à que se verifica no termo da gestação, o que constitui factor limitativo quanto às trocas gasosas.
    Por outro lado, sendo a área membranocapilar muito permeável, tal facto facilita a passagem de plasma para o interstício e espaço alveolar.

Figura 1. Patogénese da doença respiratória do RN por défice de surfactante.

FIGURA 2. Aspecto histológico post-mortem de pulmão de RN pré-termo com DMH: parede dos alvéolos forrada por camada amorfa, homogénea, eosinófila (membranas hialinas). (URN-HDE)

FIGURA 3. Curva volume/ pressão no RN com SDR por DMH. (Défice de surfactante e incapacidade de manutenção do volume residual).

  1. Maior distensibilidade/compliance da parede torácica do RN pré-termo
    Reiteram-se aqui as particularidades fisiológicas no RN pré-termo traduzidas essencialmente por maior tendência para a distorção da caixa torácica durante a respiração, o que contribui para aumentar o trabalho respiratório.
    Nos RN afectados por DMH, a parte inferior da parede torácica é puxada para dentro ao mesmo tempo que o diafragma desce; consequentemente a pressão intratorácica torna-se negativa o que conduz à formação de atelectasia. A parede torácica altamente complacente do RN pré-termo, por outro lado, oferece menos resistência (em comparação com o que acontece no RN não imaturo) à tendência para o colapso, com incapacidade para a manutenção de ar residual no fim da expiração.
    Outro aspecto particularmente relevante no RN pré-termo tem a ver com as características das fibras musculares do diafragma (teor diminuído em fibras do tipo I, menos resistentes à fadiga). Por outro lado, a hipotonia muscular em geral, própria do pré-termo, e em especial dos músculos intercostais, acentua-se nos períodos de sono REM (rapid eye movements), períodos que têm maior duração no pré-termo relativamente ao RN de termo.

Metabolismo do surfactante pulmonar

Para que as propriedades tensioactivas do SP sejam mantidas de forma constante na superfície alveolar existem mecanismos de regulação do seu metabolismo. Tal metabolismo engloba diversos estádios: síntese, armazenamento e secreção pelos pneumócitos do tipo II, eliminação e reciclagem ou recuperação. (Figura 4)

FIGURA 4. Metabolismo do surfactante pulmonar. Semivida ~12-18 horas. (CMV<> corpo multivesículas)

O surfactante extraído do pulmão (SP) tem uma composição semelhante em diversas espécies, incluindo a humana: fosfolípidos – cerca de 84%, lípidos neutros – cerca de 8%, e proteínas – cerca de 8%. Dos fosfolípidos, cerca de 65% corresponde a compostos de fosfatidilcolina saturada ou dipalmitoilfosfatidilcolina (DPPC), e 15% a fosfatidilglicerol (FG), a fosfatidilinositol (FI) e a fosfatidiletanolamina.

Os referidos lípidos estão associados a quatro proteínas específicas (apoproteínas) designadas como SP-A, SP-B, SP-C e SP-D. As SP-A e SP-D são hidrofílicas, ao passo que SP-B e SP-C são proteínas hidrofóbicas, sem afinidade para moléculas lipídicas; tais proteínas são fundamentais no metabolismo do surfactante.

De referir que o SP evidencia propriedades imunológicas antibacterianas e anti-inflamatórias, possivelmente relacionadas com as apoproteínas SP-A e SP-D.

O surfactante pulmonar (SP) é sintetizado a partir da 20ª – 22ª semana de gestação em células específicas – no retículo endoplásmico de células alveolares diferenciadas, os pneumócitos do tipo II – (SP intracelular) que, por sua vez, libertam aquele (exocitose) para o espaço alveolar – (SP extracelular). Apesar da sua concentração tecidual pulmonar, somente é detectado no líquido amniótico entre as 28 e 32 semanas.

A síntese do surfactante depende em parte do pH normal, da temperatura e da perfusão sanguínea. A asfixia, a hipoxémia e a isquémia pulmonar, particularmente se associadas a hipovolémia, hipotensão e estresse pelo frio, podem suprimir a síntese de surfactante. Por outro lado, o epitélio revestindo a via respiratória pode também ser lesado e sofrer necrose por elevadas concentrações do oxigénio e pelo trauma da ventilação artificial (efeitos do volume insuflado e da pressão gerada); estes eventos contribuem também para a lesão e hipoprodução de surfactante.

Até às 35 semanas, na biossíntese do SP tem papel primordial a enzima metil-transferase (transformação de fosfatidil-etanolamina em palmitil-miristil – lecitina); este surfactante é mais vulnerável a noxas. Após as 35 semanas tem papel primordial a enzima fosfocolina-transferase, a qual promove a transformação do diglicérido-fosfocolina em dipalmitoil-lecitina (SP de “melhor qualidade”), pois é mais resistente às noxas.

O aumento quantitativo do SP, com o desenrolar da gestação, é acompanhado de modificação na composição dos fosfolípidos e das apoproteínas; com efeito, no que respeita aos primeiros, inicialmente predomina FI, enquanto por volta da 35ª semana predomina FG; quanto às apoproteínas, verifica-se aumento de SP-A pela 35ª semana. Nas situações de DMH é menor o teor em FG e SP-A.

Progredindo a gestação, a monocamada fosfolipídica sofre catabolismo transformando-se em vesículas que sofrem endocitose (captação pelo pneumócito II) reorganizando-se de novo em corpos multivesiculares que irão ser submetidos a catabolismo nos lisossomas, formando-se ácidos gordos livres; uma parte destes é perdida, enquanto outra é reutilizada a partir do retículo endoplásmico, repetindo-se o ciclo. O coeficiente de reutilização ou reciclagem da monocamada fosfolipídica é cerca de 95%.

O SP de localização extracelular, em termos morfológicos, apresenta-se em 4 formas: corpos lamelares (estrutura semelhante a fios enrolados), mielina tubular, grandes vesículas precursoras da camada monomolecular e pequenas vesículas; as vesículas organizam-se em corpos multivesiculares (CMV). Os corpos lamelares, cujas lamelas uma vez no espaço extracelular se reorientam, dão origem à mielina tubular (estrutura semelhante a fios entrelaçados em malha), monocamada fosfolipídica rica em DPPC; ora é esta a forma estrutural de SP verdadeiramente responsável pela diminuição da tensão superficial na superfície alveolar.

Embora raras, determinadas alterações genéticas podem contribuir para síndroma de dificuldade respiratória por disfunção do surfactante pulmonar. Trata-se de alterações dos genes das proteínas B e C (SP-B e SP-C) e do gene duma proteína transportadora do surfactante através da membrana (transportador designado por ABCA3) que originam formas letais familiares de dificuldade respiratória fora do contexto de imaturidade.

Outras causas familiares raras de disfunção do surfactante incluem principalmente a displasia acinar, a displasia alveolar capilar, a linfangiectasia pulmonar e a proteinose alveolar (deficiência congénita da SP-B).

Manifestações clínicas e radiológicas

Os primeiros sinais de dificuldade respiratória são sempre precoces, muitas vezes não detectados; em percentagem significativa dos casos existe associação com um certo número de factores predisponentes; asfixia perinatal, sofrimento fetal, nascimento por cesariana, anestesia, hemorragias maternas e/ou “shock” no período pré-parto, diabetes materna, etc..

A dificuldade respiratória surge muito precocemente, sempre antes da 4ª hora de vida. Por vezes, a SDR surge imediatamente após o nascimento; se a SDR surgir após a 8ª hora de vida, poderá, em princípio, excluir-se a doença da membrana hialina.

Salienta-se que nos casos de prematuridade extrema (RN de peso <1000 gramas) as manifestações são menos exuberantes, por vezes traduzidas pelo aparecimento precoce de episódios de apneia e de cianose.

Um dos componentes da SDR, precoce e típico, é o gemido expiratório que testemunha esforço do RN no sentido de encerramento da glote e numa tentativa de impedimento de saída de ar dos alvéolos. O gemido tem também um significado prognóstico: a sua diminuição ao cabo de algumas horas de evolução, tal como verificação de diurese, poderão traduzir uma melhoria.

Uma vez iniciado o quadro, assiste-se a um agravamento progressivo: taquipneia crescente (que pode durar vários dias), retracções supra-esternal e intercostal, retracção esternal inferior originando o chamado “tórax em funil”, também de intensidade crescente, adejo nasal, e cianose cada vez mais difícil de melhorar numa atmosfera com O2.

A auscultação pulmonar evidencia uma diminuição do murmúrio vesicular e, por vezes, fervores finos, possivelmente causados pelo descolamento ou abertura alveolar, e não pela existência de líquido alveolar. A auscultação cardíaca pode evidenciar bradicárdia nas situações acompanhadas de hipoxémia grave.

Frequentemente existem os seguintes sinais acompanhantes:

  • hipotonia, hipoactividade motora espontânea e reflexa, relacionadas com a gravidade da hipoxémia e acidémia e/ou lesões hemorrágicas do SNC associadas e secundárias àquelas.

A hipotonia extrema, hipotermia e hipotensão são consideradas sinais de mau prognóstico.

Quanto aos sinais radiológicos, a imagem típica é constituída por um retículo-granitado difuso, bilateral (zonas de atelectasia alveolares) a que se sobrepõe a imagem do desenho brônquico hiper-arejado (aerobroncograma). Classicamente, descrevem-se 4 estádios de gravidade:

  1. reticulogranitado fino e disperso;
  2. I + aerobroncograma ultrapassando a silhueta cardíaca;
  3. II + desaparecimento do contorno da silhueta cardíaca;
  4. III + desaparecimento dos limites do diafragma (imagem radiográfica chamada “pulmão branco”). (Figura 5)

O quadro radiológico é sobreponível ao que surge nos casos precoces de pneumonia por Streptococcus do grupo B.

Exames laboratoriais

A PaO2 é baixa (valor normal = 98-100 mmHg), sendo de mau prognóstico as situações em que é inferior a 45 mmHg. O pH é inferior a 7,35 em geral (normal ~7,35-7,45).

Quanto à PCO2, de início pode ser normal ou baixa (fase da taquipneia ou luta fisiológica contra a hipóxia); (valores normais compreendidos entre 33,5 e 41,1 mmHg). Depois das primeiras horas, os valores tendem a elevar-se, atingindo valores superiores a 65 mmHg nas formas mais graves, numa fase de exaustão.

O ionograma plasmático pode evidenciar valores elevados de potassémia, sintomáticos de lesão celular grave por hipoxémia.

FIGURA 5. Imagem radiográfica de DMH (graus IV-III) – “Pulmão branco”. Aerobroncograma e hipoventilação global. (UCIN-HDE)

Evolução e complicações

Descrevem-se 3 períodos na evolução natural da doença:

  1. Agravamento progressivo em 24 a 36 horas;
  2. Manutenção da gravidade máxima entre as 24 e 48 horas;
  3. Melhoria pelo 3º – 4º dia, traduzindo tendência para reversibilidade da doença (o que é facilitado por terapêutica bem conduzida).

Tal melhoria traduz-se por diurese espontânea, melhoria da oxigenação e diminuição das necessidades de O2.

Além da hipoxémia e acidose existe a possibilidade de complicações: pneumotórax, sobreinfecção, hemorragia (pulmonar, do SNC, das supra-renais), ligadas ou não a coagulação intravascular disseminada.

Outra complicação é constituída pela doença pulmonar crónica.

Diagnóstico diferencial

Tendo em conta a evolução natural da DMH (fundamentalmente, SDR iniciada nas primeiras quatro horas de vida, com agravamento nas 24-36 horas subsequentes), o diagnóstico diferencial pode fazer-se com outros quadros respiratórios de início precoce tais como:

  1. Pneumonia por Streptococcus beta hemolítico do grupo B (surgindo em RN pré-termo e de termo), em que a infecção origina compromisso dos pneumócitos II e défice e/ou alteração do surfactante traduzida, designadamente, por quadro radiológico semelhante;
  2. Défice congénito total ou parcial da apoproteína SP-B (proteinose alveolar); taquipneia transitória (capítulo seguinte), salientando-se que a designação de SDR de tipo I dada à DMH, e de SDR de tipo II dada à taquipneia transitória surgiu por se admitir, até há algumas décadas que determinados quadros respiratórios de início precoce eram sempre explicados por défice de surfactante; para se estabelecer a destrinça, numa situação considerou-se tipo I, e na outra, tipo II);
  3. Cardiopatias congénitas;
  4. Anomalias congénitas do sistema respiratório inferior como por ex. hipoplasia pulmonar;
  5. Síndromas acompanhadas de hipertensão pulmonar persistente, etc. (ver atrás Etiopatogénese).

Para além da radiografia do tórax, a ecocardiografia pode ser útil como avaliação inicial para excluir quadros de hipertensão pulmonar, disfunção miocárdica ou canal arterial permeável com repercussão hemodinâmica.

Prevenção

Na sua essência, a prevenção da DMH baseia-se na prevenção da prematuridade o que implica, entre outras medidas, uma vigilância pré-natal adequada incluindo, claro está, a detecção sistemática de factores de risco.

Uma vez que está demonstrado o papel eficaz dos corticóides administrados à grávida em risco de parto prematuro no que respeita, designadamente à estimulação da maturidade pulmonar fetal, existe consenso quanto à aplicação de um conjunto de normas a seguir sintetizadas:

  1. À grávida em situação de risco de parto prematuro, a ACOG (American College of Obstetricians) recomenda a administração de corticóides entre as 24 e 36+6 semanas de gestação, com parto previsível dentro de 1 semana, sendo que se deverá ponderar a hipótese de eventuais contraindicações da respectiva administração;
  2. Tal actuação preventiva não é incompatível com a administração de tocolíticos à grávida com o objectivo de prevenir o parto prematuro;
  3. O corticóide indicado é a betametasona por via IM em duas doses de 12 mg com intervalo de 24 horas;
  4. Reforça-se a indicação de corticóide nos casos de ruptura prematura de membranas em idade gestacional inferior a 32 semanas na ausência de sinais de corioamnionite; tal actuação diminui o risco associado de hemorragia intraperiventricular;
  5. Há que atender ao possível risco de efeitos adversos sobre o crescimento e neurodesenvolvimento da criança resultantes de eventuais ciclos de tratamento ao longo da gravidez.

Tratamento

Algumas normas gerais quanto a cuidados, assim como aspectos essenciais da oxigenoterapia, assistência respiratória com CPAP nasal e ventiloterapia foram abordadas no capítulo anterior.

Relativamente à entidade clínica DMH, cabe mencionar algumas especificidades quanto a cuidados gerais e à terapêutica substitutiva com surfactante. Aliás, o RN pré-termo com tal patologia constitui um bom modelo no que respeita à administração de cuidados ao RN pré-termo em UCIN ou em unidade de cuidados especiais.

Cuidados gerais

  1. Estabilização na sala de partos
    RN colocado em ambiente de termoneutralidade, sob fonte de calor ou em incubadora ou dentro de saco de polietileno, para evitar a hipotermia e o consumo de oxigénio (~34-35ºC); a hipertermia também deve ser evitada, sendo objectivo manter temperatura cutânea abdominal entre 36ºC e 37ºC; a fim de melhorar a distribuição de oxigénio aos tecidos, se possível, atrasar a laqueação do cordão ~30-45 segundos, com o RN em nível inferior ao da placenta no sentido de promover transfusão de sangue placentar.
  2. Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base
    Nas primeiras 48 horas o suprimento hídrico deve ser da ordem de 50-70 mL/kg/dia e, depois, até 100-150 mL/kg/dia em função do balanço hídrico que deve ser rigoroso (registo das perdas insensíveis, da diurese e doutras perdas) com a finalidade de garantir diurese >1 mL/kg/hora, pressão arterial média ~30-50 mmHg, natrémia entre 135 e 145 mEq/L e hematócrito ~35-40%. A eventual acidose respiratória regride com ventiloterapia correcta; se surgir acidose metabólica haverá que ter precaução com a administração de alcalinizante (bicarbonato de sódio).
  3. Equilíbrio hemodinâmico
    Na DMH existindo elevada probabilidade de choque (hipotensão, oligoanúria, taquicárdia e acidose metabólica, mesmo sem diminuição da Pa O2) haverá, por vezes a indicação de administrar:
    • expansores da volémia: soro fisiológico na dose de 10 mL/kg em 20-30 minutos;
    • inotrópicos em perfusão contínua (dopamina na dose de 2-8 mcg/kg/minuto, ou dobutamina: 5-15 mcg/kg/minuto).
  4. Suporte nutricional
    Na fase inicial, até estabilização hemodinâmica, está contraindicada a alimentação por via entérica, havendo que providenciar suprimento energético para as necessidades básicas: em regra, perfusão de glucose IV na dose de 4-6 mg/kg/minuto acompanhada de vigilância da glicémia e glicosúria para reajustamentos; após estabilização hemodinâmica inicia-se a nutrição parentérica e a alimentação entérica mínima (não nutritiva) por sonda gástrica, idealmente com leite materno, com o objectivo de estimular a maturação das células do tubo digestivo.
  5. Tratamento da infecção
    As infecções perinatais constituem uma das causas de prematuridade, ou seja, podendo um parto pré-termo espontâneo constituir um epifenómeno de infecção. Assim, haverá que proceder à respectiva avaliação e actuar, entre outras medidas, com antibioticoterapia após colheitas de sangue (para hemograma, determinação da PCR, hemoculturas, etc.).

Particularidades da ventiloterapia

1. Convencional

Como particularidades da ventiloterapia (convencional, designadamente utilizando os ventiladores SIMV/ realizando ventilação mecânica intermitente sincronizada) na DMH cabe referir:

    • Utilizar sempre a menor PIP (pressão positiva inspiratória ou pressão positiva intermitente, segundo a gíria habitual);
    • Manter pH entre 7,20 e 7,35 e Pa CO2 entre 45 e 65 mmHg, (evitando valores inferiores a 40 mmHg, aceitando a chamada “hipercápnia permissiva” – acidose respiratória – na fase aguda da doença tendo como fundamento dados da medicina baseada na evidência: a hipocápnia nos primeiros dias de vida comporta alto risco de displasia broncopulmonar;
    • A ventilação de alta frequência/HFV – designadamente nas modalidades oscilatória (HFOV) ou em jacto (HFJV) poderá melhorar a oxigenação e facilitar a eliminação de CO2 nos casos em que existe escassa resposta à ventilação convencional;
    • Limitar a duração de FiO2 >60% e SpO2 entre 91% e 95%;
    • Não retardar o início do “desmame” da ventiloterapia. (consultar adiante o capítulo sobre ventiloterapia)
2. CPAP nasal (nCPAP) ou estratégia minimamente invasiva

Pressupondo a necessidade de garantir os objectivos referidos em (I.) quanto a parâmetros bioquímicos e biofísicas, actualmente aconselha-se a utilização precoce, já na sala de partos, de nCPAP, o que garante melhor adaptação à vida extrauterina, estabilização hemodinâmica e redução da necessidade de ventilação mecânica. Surge assim o conceito de assistência respiratória minimamente invasiva.
Fazendo parte desta estratégia, realça-se que o surfactante, a administrar sempre que indicado, pode ser administrado através da cânula nasal/ sistema nCPAP – com pressão entre 5 e 10 cm H2O-, para além do método clássico através de tubo endotraqueal/TET através da cânula nasal. (ver adiante)

Administração de surfactante exógeno

Tipos

Na actualidade, os tipos de surfactante utilizados podem ser divididos em dois grandes grupos: os produtos contendo componentes do surfactante endógeno de pulmão animal, e os preparados sintéticos ou recombinantes.

Como exemplos de surfactantes naturais mais utilizados em Portugal citam-se: o Curosurf® (fracção fosfolipídica de pulmão porcino de cuja composição fazem parte: DPPC e fosfolípidos, e SP-B e SP-C) e o Survanta® (fracção fosfolipídica de pulmão bovino cuja composição inclui: DPPC e fosfolípidos, tripalmitina, acido palmítico, SP-B e SP-C).

Como exemplos de surfactantes sintéticos ou recombinantes sem apoproteínas citam-se: o ALEC® (Artificial Lung Expanding Compound) e o Exosurf® (palmitato de colfosceril).

De acordo com os estudos meta-analíticos frequentemente actualizados no âmbito da Cochrane Library verifica-se melhoria mais acentuada e mais precoce, assim como menor morbilidade e menor mortalidade, com a utilização dos surfactantes naturais como medida complementar da assistência ventilatória.

Posologia

No caso do Survanta® a dose de administração de fosfolípidos é 100 mg/kg/dose ou 4 ml/kg/dose. A repetição das doses, se necessário, deve ser de 6 – 6 horas, no máximo de 4 doses. Em situações graves de quadro radiológico de pulmão branco bilateral, é admissível a sua repetição ao fim de 4 horas.

No caso do Curosurf® a dose de administração de fosfolípidos é 100-200 mg/kg/dose ou 1,25 a 2,5 ml/kg/dose. A primeira dose de Curosurf® deve ser 200 m/kg, sendo que poderá proceder-se a repetição da administração com mais 2 doses de 100 mg/kg cada, com 6-12 horas de intervalo.

Em situações clínicas muito graves pode ser feita a administração com um intervalo mais curto (4-6 horas). Em circunstâncias especiais, de acordo com o quadro clínico-radiológico, poderá eventualmente ser necessário administrar mais 2 doses de 100 mg/kg cada, tendo em consideração que não se deverá ultrapassar a dose de 400 mg/kg.

Técnica de administração

Compreendendo-se que a administração do SP (por TET ou por cânula nasal-nCPAP) deverá ser feita em UCIN ou unidade de cuidados especiais com equipa treinada e apoio de monitorização, são referidos aspectos genéricos.

Os vários tipos de surfactante são administrados em bolus lento:

  • Em circuito fechado através de um adaptador e sonda própria ligada a uma peça em Y colocada na extremidade proximal do tubo endotraqueal (TET);
  • Ou em circuito aberto em 4 ou 5 bolus contínuos, através de um cateter colocado dentro do tubo endotraqueal;
  • Ou em cânula nasal – modalidade nCPAP.

Mudanças na posição do corpo durante a administração das doses, podem contribuir para uma distribuição mais homogénea do surfactante.

Em situações graves, em doentes especialmente predispostos a situações de ar ectópico (por ex. pneumotórax), o surfactante pode ser administrado através dum sistema de infusão contínua lenta, durante 30 minutos a uma hora.

Estratégias clássicas de administração

A administração de surfactante pode ser:

  • Profiláctica e precoce (no bloco de partos, imediatamente ao nascimento), por ex. nos RN de idade gestacional <28 semanas (que necessitam de entubação traqueal/TET ou que tenham aplicada nCPAP; ou
  • De recuperação ou resgate, tardia, quando se verificarem critérios clínico-radiológicos de DMH ou quando se verificar agravamento da doença, designadamente considerando o défice de oxigenação objectivado pelo índice de oxigenação.

Salienta-se que nos RN pré-termo em risco de SDR, a nCPAP profiláctica aplicada no pós-parto imediato constitui a estratégia de eleição.

Efeitos colaterais da aplicação de surfactante

São descritos os seguintes:

  • Hemorragia pulmonar e infecções pulmonares secundárias;
  • Hiperinsuflação; este efeito pode ocorrer em RN com situações menos graves em que a administração do surfactante leva a melhoria rápida da compliance e do volume corrente, condicionando em certos casos, um estado de hiperinsuflação, o que poderá levar, especificamente, a enfisema intersticial e/ou pneumotórax;
  • Outras complicações como aquelas relacionadas com a abertura do canal arterial, enterocolite necrosante ou hemorragia intraperiventricular não têm sido influenciadas pela terapêutica com surfactante;
  • Obstrução das vias aéreas (“inundação” com surfactante); este efeito ser explicado pelo eventual volume excessivo do preparado de SP e pela viscosidade de alguns preparados; a este propósito salienta-se a eventual necessidade de ajustamento dos parâmetros de ventilação transitoriamente, até se ter comprovado distribuição homogénea daquele nas vias aéreas.
Variantes de actuação

Reconhecendo os benefícios da terapêutica substitutiva com surfactante, para além do efeito potencial protector da nCPAP profiláctica, nalguns centros são aplicadas as seguintes variantes:

  • Método INSURE (intubate surfactant e extubate)
    Entubação para adminitração de surfactante, profiláctica e precoce ou de recuperação ou resgate, seguida de extubação, seguindo-se de imediato (dentro de minutos ou <1 hora) a aplicação de nCPAP desde que exista quadro de estabilidade;
  • Método MIST (minimally invasive surfactant therapy)
    Entubação com TET, instilando surfactante na traqueia, em RN com respiração espontânea e com nCPAP previamente aplicada;
  • Método LISA (less invasive surfactant therapy)
    Aplicação de sonda fina de modo a não obstruir a traqueia (habitualmente itilizada para alimentação oro ou nasogástrica), instilando surfactante na traqueia, em RN com respiração espontânea ou em nCPAP. Como a sonda (fina) não obstrui totalmente a traqueia, deixando espaço em torno, esta variante pode efectivamente aplicar-se em RN com respiração espontânea ou em nCPAP.

Com estas estratégias têm-se verificado benefícios, tais como redução da duração de nCPAP, permitindo em geral o desmame da referida nCPAP mais precocemente.

Como nota final importa sintetizar que a ventiloterapia e a administração de surfactente estão indicadas nos casos em que não se consegue SpO2 >90% com FiO2 entre 40% e 70% e recebendo nCPAP.

Prognóstico

Os progressos realizados ao longo dos anos nos países com recursos no âmbito dos cuidados pré-natais, a corticoterapia pré-natal, a aplicação da filosofia do transporte in utero, a assistência intra-parto, os cuidados de terapia intensiva a cargo de equipas experientes (designadamente, a terapêutica de substituição pós-natal com surfactante e as estratégias de ventilação aperfeiçoadas) conduziram a diminuição significativa da mortalidade (<10%).

Embora cerca de 85%-90% dos sobreviventes com DMH e submetidos a ventilação mecânica não evidenciem sequelas quanto a função respiratória e neurodesenvolvimento, o prognóstico é globalmente mais favorável nos RN de peso >1.500 gramas.

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Definição e importância do problema

A SDR designada por taquipneia transitória (TT) é um problema respiratório benigno e autolimitado do RN de termo ou pré-termo, que surge imediatamente ao parto por atraso na reabsorção do líquido pulmonar fetal; tal problema, que corresponde a anomalia da adaptação respiratória fetal à vida extrauterina, na gíria é também designado por “pulmão húmido” (noção que traduz a existência de edema pulmonar) ou SDR do tipo II (para o distinguir da DMH ou SDR do tipo I, sendo que antes da sua descrição por Avery em 1966, situações como a que se analisa neste capítulo eram consideradas formas ligeiras de DMH).

De acordo com vários estudos epidemiológicos a TT, que explica cerca de 30-40% de todos os casos de SDR no RN, tem sido descrita com uma incidência variando entre 3-6/1.000 em RN de termo, e em >10/1.000 no RN pré-termo.

Etiopatogénese

Tomando como base o capítulo sobre “adaptação fetal à vida extrauterina”, onde se descreve o mecanismo de reabsorção do líquido pulmonar fetal, importará aqui enumerar alguns factores que comprometem tal processo e que, por consequência, predispõem a TT:

  1. Dificuldade de reabsorção do líquido pulmonar fetal (por ex., policitémia/ hiperviscosidade, laqueação tardia do cordão, hipoproteinémia, asfixia perinatal, depressão neonatal por fármacos administrados à mãe durante o parto, etc.);
  2. Volume aumentado do líquido pulmonar fetal e alvéolos preenchidos com o mesmo quando o feto assume a condição extrauterina e se iniciam os primeiros movimentos respiratórios (por ex. em situações de cesariana electiva (sem se ter iniciado o trabalho de parto), de fluidoterapia intraparto condicionando hiper-hidratação e hiponatrémia maternas).

A propósito do processo alterado de reabsorção do líquido pulmonar fetal, há a salientar o papel da compressão do tórax fetal na sua passagem pelo canal de parto, contribuindo para a expulsão daquele pela boca. Este fenómeno, inexistente nos casos de cesariana electiva atrás mencionada, é limitado, pois por esta via apenas se elimina cerca de 10-15% do mesmo.

Ao nível celular epitelial foram descritos os seguintes mecanismos relacionados com a eliminação (depuração) do líquido pulmonar fetal:

  1. Em situação de normalidade, tal depuração ocorre por actividade aumentada dos canais de sódio (ENaC) e de sódio-potássio, através da adenosina trifosfatase (Na+, K+, -ATPase), o que determina reabsorção activa do sódio e, consequentemente, eliminação do líquido pulmonar;
  2. A situação de TT resulta da actividade ineficaz ou diminuída de ENaC e Na+, K+, -ATPase, o que torna mais lenta a eliminação do líquido pulmonar e diminui a compliance pulmonar, comprometendo as trocas gasosas alveolares;
  3. A estes mecanismos acrescenta-se o papel dos péptidos natriuréticos (BNP e NT-proBNP) na regulação do volume extracelular (Glossário Geral).

Consequentemente à existência de líquido pulmonar fetal, preenchendo os alvéolos, e do edema intersticial no pós-parto imediato, verifica-se:

  1. Alteração da ventilação-perfusão enquanto os alvéolos estiverem preenchidos pelo referido líquido;
  2. Compromisso da mecânica ventilatória do RN no pós-parto imediato, o que se explica, sobretudo, por resistência aumentada das vias aéreas devida à compressão extrínseca pelo edema intersticial;
  3. Compromisso ligeiro do surfactante pulmonar (e consequente diminuição da compliance pulmonar), o qual poderá ser transitoriamente inactivado pelo mesmo líquido alveolar; compreende-se que a magnitude deste mecanismo seja inversamente proporcional à idade gestacional.

Existe uma forma de TT atípica, de maior duração, relacionada com edema pulmonar pós-natal por reentrada de fluido na via respiratória a partir da circulação pulmonar. Este quadro ocorre já após a alta e exige a exclusão de outras causas de disfunção respiratória.

Manifestações clínicas

Na sua forma típica, a TT surge em RN de termo (mais frequentemente) ou pré-termo próximo do termo. Esta forma de SDR traduz-se essencialmente por taquipneia muito acentuada (por vezes atingindo FR de 100-120/minuto), sendo o gemido e a retracção costal pouco comuns; no entanto, em situações de prematuridade concomitante, como se pode depreender, os sinais de TT poderão sobrepor-se aos de DMH (problemas associados).

O tórax evidencia certo grau de hiperinsuflação que, provocando abaixamento do diafragma, poderá criar condições temporárias para que o fígado e o baço passem a ser palpáveis.

A auscultação poderá evidenciar fervores crepitantes finos generalizados (e não apenas nas bases), tal como se verifica em casos de edema pulmonar por insuficiência cardíaca.

Como critério muito sugestivo de TT pode citar-se: a não necessidade de incrementar a FiO2 entre as 12 e 24 horas de vida para manter a SpO2 dentro dos limites aceitáveis (90-95%).

As formas graves (raras), que correspondem à chamada TT “maligna”, acompanham-se de sinais de falência miocárdica e de hipertensão pulmonar associada a shunt direita – esquerda, entre outros.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial, por vezes difícil, faz-se essencialmente com as seguintes situações: síndroma de taquipneia pós-asfixia, doença metabólica, síndromas de hiperviscosidade/policitémia, anomalias cardiovasculares acompanhadas de débito pulmonar aumentado, quilotórax congénito, sépsis precoce com pneumonia por Streptococcus do grupo B, etc.).

Em função dos antecedentes perinatais e do estado geral do RN com SDR manifestando-se no pós-parto imediato, poderá estar indicada a realização de exames complementares, designadamente nas formas de evolução mais prolongada e de expressão clínica e funcional mais grave.

Certas formas clínicas compatíveis com TT, iniciadas depois do pós-parto imediato, relacionadas predominantemente com casos de prematuridade tardia, poderão estar associadas a hipertensão pulmonar requerendo, por vezes, tratamento mais agressivo com ECMO.

Exames complementares

Na maior parte dos casos a anamnese perinatal e o estudo evolutivo da imagem radiográfica do tórax permitem o diagnóstico de TT após exclusão de outras causas de SDR; ou seja, o diagnóstico definitivo de TT é inevitavelmente retrospectivo.

Alguns sinais radiográficos do tórax testemunham a evolução habitualmente benigna deste quadro:

  1. Primeira radiografia em incidência ântero-posterior (pós-parto)
    • diminuição da transparência parenquimatosa pela existência de edema intersticial e alveolar, e opacidades discretas ao nível do ângulo cárdio-frénico direito e região supra-hilar esquerda, correspondentes a regiões em que o processo de drenagem de líquido é mais moroso;
    • opacidades lineares ou arciformes hilífugas pela existência de edema nos espaços intersticiais perivasculares e derrame pleural discreto;
    • opacidades lineares correspondentes às cisuras ou “cisurite” (vias de drenagem secundárias);
    • hiperinsuflação pulmonar de grau variável;
    • apagamento discreto das cúpulas diafragmáticas;
    • cardiomegália discreta, por vezes; (Figuras 1 A e B)
  2. Segunda radiografia após 24-48 horas de evolução
    • não visualização das opacidades, o que corresponde a regressão do quadro anterior;
    • imagem de “arejamento” franco dos campos pulmonares. (Figura 2)

A gasometria evidencia em geral pH normal ou elevado, e défice de base normal. O estudo ecocardiográfico poderá evidenciar, nas formas clássicas ou ligeiras de TT, sinais de disfunção ventricular esquerda nas primeiras 24 horas.

De acordo com dados da literatura, o valor do péptido NT-proBNP está sempre elevado nos casos de TT; cerca de 24 horas após início do quadro, valores acima de 6576 pg/mL são preditivos de evolução mais prolongada e de eventual necessidade de ventilção mecânica (sensibilidade de 85% e especificidade de 64%).

Nalguns centros perinatais, em casos especiais, utilizam-se β 2-agonistas (salbutamol inalado) cujo efeito se traduz no aumento da expressão e activação de ENaC e Na, K-ATPase que facilitam a eliminação do líquido pulmonar fetal.

Prevenção

Salientam-se algumas medidas preventivas que podem deduzir-se da etiopatogénese atrás descrita:

  • redução do número de cesarianas electivas e prevenção da prematuridade tardia;
  • precaução na administração de fluidos à parturiente (por ex. como veículo de ocitócicos e outros fármacos), os quais deverão incorporar sódio a partir de determinado volume de administração como forma de reduzir ou evitar a transferência excessiva de água para o feto;
  • prevenção da asfixia perinatal.

FIGURA 1. Representação esquemática e quadro radiológico de taquipneia transitória no pós-parto imediato (fase inicial com opacidades ao nível do ângulo cárdio-frénico direito e 1/3 superior do campo pulmonar esquerdo. (URN-HDE)

FIGURA 2. Padrão radiográfico de taquipneia transitória (RN correspondente à Figura 1): desaparecimento das opacidades após 24 horas. (UCIN-HDE)

Tratamento

Na TT essencialmente aplicam-se as medidas gerais de suporte, já descritas em contexto de disfunção respiratória.

Como particularidades, cabe referir:

  • garantir suprimento hídrico ~70-80 mL/kg/dia e de glucose ~4-6 mg/kg/minuto;
  • oxigenoterapia (em geral com FiO2 ente 40 e 60%) ou qbp para manter SpO2 entre 90 e 95%, Pa O2 entre 45-70 mmHg, Pa CO2 entre 45-60 mmHg, e pH entre 7,25 e 7,40;
  • em função da gravidade do quadro poderá estar indicada, em raras situações, a ventilação invasiva;
  • tratando-se dum diagnóstico de exclusão, alguns casos de SDR precoce mais tarde confirmados como TT poderão ter sido submetidos a antibioticoterapia segundo critérios descritos adiante, na Parte sobre Infecção do Feto e Recém-nascido.

Prognóstico

A mortalidade é baixa, descrevendo-se nalgumas séries taxas ~0,8% em RN de termo e ~7% em RN pré-termo.

Quanto a morbilidade, nalguns estudos a médio e longo prazo foi verificada maior incidência de episódios de sibilância recorrente no contexto familiar de doença atópica.

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Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

A síndroma de aspiração meconial (SAM) é um problema respiratório secundário à invasão das vias aéreas distais (bronquíolos terminais e alvéolos) por líquido amniótico com mecónio, de que resulta hipoventilação alveolar com hipóxia e acidose proporcional ao número de alvéolos obliterados.

A aspiração de líquido amniótico sem mecónio, por vezes acompanhada de sangue, ou contendo germes microbianos, pode surgir, quer nas extracções por cesariana, quer nos partos por via baixa e ainda nas situações de asfixia perinatal, em que se verifica respiração do tipo gasping. Refere-se, a propósito, a associação frequente entre líquido amniótico tinto de mecónio, listeriose e outras infecções congénitas.*

Em cerca de 5-12% de todos os nascimentos verifica-se líquido amniótico meconial, que se pode associar a depressão neonatal. No entanto, a presença de mecónio na traqueia – que se verifica apenas em metade daquele contingente – não implica necessariamente o aparecimento de disfunção respiratória; com efeito, só em cerca de 1/3 dos RN com mecónio na traqueia surge SDR.

*Existe a possibilidade de aspiração para a via aérea de conteúdo gástrico contendo secreções ácidas ou leite em qualquer momento do período neonatal ou mais tarde; este quadro é habitualmente designado “pneumonia de aspiração”.

Na prática, a SAM surge em cerca de 5% dos RN com líquido amniótico tinto de mecónio, o que corresponde a incidência média de 2/1.000 nados-vivos. Aproximadamente 30% destes RN necessitam de apoio ventilatório, e em 3-5% o desfecho é fatal.

De salientar que a SAM constitui um problema respiratório típico no RN de termo ou quase de termo por razões apontadas adiante. É rara antes das 37 semanas de gestação e frequente após as 42 semanas.

Comprovou-se maior associação de SAM a mães fumadoras, diabetes mellitus materna, pré-eclâmpsia/eclâmpsia, oligoâmnio, restrição de crescimento fetal com disfunção placentar e pós-maturidade.

A importância da SAM deriva fundamentalmente da mortalidade significativa, sobretudo:

  • Por hipertensão pulmonar persistente (HPP) surgindo em cerca de 2 a 30%, verificando-se as taxas mais elevadas nos países em desenvolvimento sem meios de terapia intensiva); e
  • Pela morbilidade, relacionada principalmente com sequelas neurológicas e pulmonares.

Etiopatogénese

O mecónio, lesivo para os pulmões, é uma substância viscosa complexa, estéril, composta essencialmente de líquido amniótico deglutido, colesterol, ácidos e sais biliares, mucopolissacáridos, enzimas pancreáticas intestinais, vernix caseosa, lanugo e restos de células escamosas.

A palavra “mecónio”, que vem do tempo de Aristóteles, e deriva do grego “mekoniun, significando “extracto de papoila ou ópio”; efectivamente, segundo o entendimento dos médicos da antiguidade, a associação entre depressão neonatal e mecónio era comparada ao efeito do ópio sobre a respiração do RN.

Comparativamente ao tipo de mecónio translúcido e fluido, o mecónio espesso tipo “puré de ervilhas” está mais frequentemente associado a complicações, designadamente por facilitar o crescimento bacteriano e a obstrução acentuada da via respiratória.

A eliminação de mecónio in utero é um acontecimento raro antes do termo da gestação (37 semanas); no entanto, tal eliminação é progressivamente mais provável depois desta idade, o que está em relação com o teor mais elevado, a partir de então, da motilina, hormona que promove o peristaltismo intestinal; ou seja, a maturidade intestinal e o nível plasmático de motilina constituem factores predisponentes de eliminação de mecónio.

Como factor desencadeante tem papel crucial a hipoxémia intrauterina que, gerando um estímulo vagal, promove o peristaltismo e o relaxamento do esfíncter anal.

Como foi referido antes, o mecónio pode ter acesso à via aérea/ser aspirado, ainda in utero, sendo que a hipoxémia intra-parto poderá constituir estímulo do centro respiratório originando gasping intraparto e antes da saída da cabeça.

Tradicionalmente a explicação fisiopatológica da SAM assenta em três pilares: obstrução mecânica da via aérea, inactivação do surfactante e hipertensão pulmonar arterial.

No entanto, nas últimas décadas, estudos científicos apontaram para o possível papel da activação do sistema imune como denominador comum na SAM. O mecónio, um potente activador de mediadores inflamatórios (citocinas, complemento, prostaglandinas, radicais livres de O2), reconhecido como “agente estranho” pelo sistema imune (complemento e toll-like receptors), desencadeia reacção inflamatória sistémica (ver adiante).

Assim, para além do processo obstrutivo das vias aéreas que se verifica, a etiopatogénese da SAM é abordada actualmente duma forma muito mais alargada; este facto tem implicações diagnósticas e terapêuticas.

O processo obstrutivo das vias aéreas por mecónio pode ser total ou parcial. Tratando-se de processo obstrutivo total nas vias aéreas de grande calibre, o mesmo poderá ser fatal se não revertido:

  • Se o processo se verificar nas zonas de pequeno calibre, poderão surgir zonas de atelectasia;
  • Se o processo obstrutivo for parcial, poderá gerar-se um mecanismo valvular facilitando a entrada do ar e dificultando a sua saída, o que comporta risco de ruptura da via aérea.

Verificando-se, em condições fisiológicas, redução do calibre das vias aéreas durante a expiração, o obstáculo intraluminal contribui para redução mais acentuada do referido calibre; por outro lado, a acumulação progressiva de ar pelo referido mecanismo valvular poderá levar a hiperinsuflação pulmonar e a situações diversas de ar ectópico como enfisema intersticial, pneumotórax e/ou pneumomediastino.

Outra consequência da presença de mecónio nas vias aéreas é o compromisso da ventilação-perfusão levando a hipóxia, hipercápnia e acidose.

Salienta-se que, no contexto de SAM, e considerando os antecedentes de hipóxia fetal, crónica ou subaguda, haverá que contar com o efeito da mesma hipóxia sobre a musculatura da parede arterial pulmonar (artérias intracinares) levando a hiperplasia, quer em espessura, quer em comprimento. Assim, será compreensível o surgimento de possível hipertensão pulmonar (arterial), agravando os efeitos atrás descritos.

Pormenorizando a já referida repercussão do mecónio aspirado no sistema imune, importa reter as seguintes noções:

  1. Depressão da função bactericida dos neutrófilos determinando susceptibilidade a infecções;
  2. Resposta inflamatória alveolar e parenquimatosa na qual intervêm macrófagos, neutrófilos, mediadores tais como citocinas (FNT-α, IL-1 β, e IL-8) e eicosanóides (tromboxano B2, leucotrienos B4 e D4, e 6-cetoprostaglandina F1-α, etc.);
  3. Outro efeito do processo inflamatório é a ruptura da barreira alvéolo-capilar com passagem de proteínas do soro para as vias aéreas;
  4. Efeitos vasculares (alteração da vasorreactividade, vasoconstrição das artérias pulmonares, shunt direito – esquerdo, etc.) em que intervêm mediadores vasoactivos (tais como endotelina-1, prostaglandina PGE2, tromboxano A2);
  5. Efeitos metabólicos traduzidos por disfunção e/ou inactivação do surfactante, sobressaindo a alteração e o défice das proteínas SP-A e SP-B, sendo que tais efeitos resultam essencialmente da acção lesiva dos sais biliares do mecónio sobre os pneumócitos do tipo II.

Manifestações clínicas

A SAM na sua forma mais típica corresponde a uma forma de SDR evidente no pós-parto imediato com as seguintes particularidades:

  • RN impregnado de mecónio, por vezes com sinais de dismaturidade ou pós-maturidade (pele seca, unhas grandes também com mecónio, restrição de crescimento fetal, etc.), com depressão do sensório, que obriga a manobras de reanimação, e esboçando movimentos respiratórios de amplitude e ritmo irregulares e ineficazes (gasping);
  • Evolução com gravidade crescente (taquipneia, cianose progressiva, com ulterior aparecimento de gemido, retracção costal e adejo nasal).

Podem ser notórios o aumento do diâmetro ântero-posterior do tórax por hiperinsuflação pulmonar e a auscultação de roncos e de fervores crepitantes e subcrepitantes dispersos.

Os sinais clínicos que poderão levantar a suspeita de hipertensão pulmonar persistente secundária são: cianose generalizada e intensa, hipoxémia refractária às medidas de oxigenoterapia/assistência respiratória, e labilidade dos parâmetros de oxigenação (por exemplo, diminuição acentuada da SpO2) após manuseamento do RN, por vezes atingindo 50-55%).

É frequente, neste tipo de SDR, a coexistência de:

  • Sinais neurológicos concomitantes (tremores, convulsões, hiporreflexia, alteração do tono muscular);
  • Sinais cardiocirculatórios: sopros transitórios (por shunt direita-esquerda em relação com hipertensão pulmonar, etc.), cardiomegália (por espoliação de reservas de glicogénio do miocárdio secundariamente à hipoxémia mantida);
  • Hipoglicémia (por esgotamento das reservas de glicogénio: glicólise anaeróbia inicial e ulterior falência, também por hipoxémia mantida).

Exames complementares

Nos casos de SAM estão indicados os seguintes exames complementares (para além doutros a ponderar em função de cada situação específica):

  1. Gasometria – revelando sinais de hipoxémia, hipercápnia e acidose (de início, respiratória por retenção de CO2 e ulteriormente mista devida à produção de ácido láctico por glicólise anaeróbia face à falência do metabolismo aeróbio por hipoxémia);  
  2. Hemograma – revelando, em geral, leucocitose com neutrofilia com aparecimento de bastonetes e outras formas mais jovens da série branca face ao estresse da hipoxémia; e trombocitopénia por sequestração e consumo de plaquetas no território pulmonar;
  3. Radiografia ântero-posterior do tórax – permitindo evidenciar alguns ou todos os seguintes achados:
    • opacidades nodulares bilaterais de limites mal definidos, de densidade variável e confluentes, separadas por pequenas zonas de “hiperarejamento” (enfisema) ou de parênquima de aspecto normal, que, no conjunto, se assemelham a imagem em “favo de mel”;
    • imagens de enfisema e de atelectasia (Figuras 1 e 2);
    • cardiomegália;
    • abaixamento das cúpulas diafragmáticas compatível com distensão enfisematosa;
    • sinais de pneumotórax e/ou de pneumomediastino.
  4. Análise de urina – como particularidade deste tipo de SDR, cabe referir um método espectrofotométrico que pode identificar o tipo de pigmentos biliares presentes no mecónio (absorção a 405 nm) absorvidos ao nível do epitélio pulmonar e transportados pelo plasma até ao glomérulo renal;
  5. Ecocardiografia doppler – este exame é fundamental para avaliar a contractilidade cardíaca; poderão ser evidenciados sinais sugestivos de shunt direito-esquerdo em contexto de HPP; poderão eventualmente também ser detectados sinais de doença cardíaca estrutural associada , tais como síndroma de disfunção do ventrículo esquerdo, estenose aórtica e interrupção do arco aórtico;
  6. Electrocardiograma (ECG) – nas situações de asfixia intra-parto, o ECG pode evidenciar alterações do segmento ST sugerindo isquémia subendocárdica.

Tratamento

Medidas gerais

Pressupõe-se que as medidas gerais a seguir descritas são posteriores à actuação prioritária no bloco de partos no contexto de RN com líquido amniótico com mecónio (ver capítulo sobre reanimação do RN no bloco de partos).

Assim, procede-se à monitorização cardiorrespiratória e hemodinâmica reiterando-se a necessidade de vigilância em unidades de cuidados especiais ou intensivos.

É fundamental a estabilização hemodinâmica, a manutenção do equilíbrio hidroelectrolítico e acido – base e os suprimentos energético e hídrico adequados.

FIGURA 1 e 2. Síndroma de aspiração meconial: padrão radiográfico do tórax com opacidades nodulares irregulares alternando com áreas de enfisema e de parênquima de aspecto normal. (URN-HDE)

Medidas específicas (a ponderar caso a caso)

  • Ventilação mecânica: alta frequência preferencialmente, ou convencional;
  • Terapêutica substitutiva com surfactante, sobretudo nas SAM graves;
  • Antibioticoterapia a aplicar em função do contexto clínico de cada caso;
  • Óxido nítrico inalado (NOi) com acção relaxante específica sobre a musculatura vascular pulmonar – como estratégia de diminuição da pressão da artéria pulmonar e de melhoria da oxigenação arterial; a respectiva abordagem ultrapassa os objectivos do livro);
  • ECMO (oxigenação por membrana extracorporal – em geral utilizando-se circuito de derivação veno-arterial) e indicada nos casos refractários às medidas anteriores e sempre que o IO seja igual ou superior a 40; a sua descrição ultrapassa os objectivos do livro.

No campo da investigação estão a decorrer estudos sobre:

  • Terapêuticas para combater o processo inflamatório;
  • Potenciais inibidores do sistema de complemento e dos chamados toll like receptors; e
  • Anticorpos monoclonais específicos.

Prevenção

Os aspectos fundamentais da prevenção da SAM dizem respeito a:

  • Vigilância pré-natal rigorosa:
    • detecção de factores de risco (doenças maternas e fetais que possam conduzir a hipóxia fetal) e encaminhamento da grávida atempadamente para centro especializado, com unidade de cuidados especiais ou intensivos neonatais;
  • Actuação correcta intraparto:
    • a propósito da reanimação do RN, recorda-se que foi referido nas situações de “líquido amniótico com mecónio” com hipotonia, bradicárdia e diminuição do esforço respiratório: não está indicado o procedimento da rotina de entubação traqueal para aspiração por se ter demonstrado a sua ineficácia quanto a prevenção de SAM, associada a efeitos adversos major.

Prognóstico

Como complemento dos dados descritos atrás a propósito da importância do problema da SAM, importa dar ênfase a certos aspectos considerados relevantes quanto ao prognóstico:

  • Risco de problemas neurológicos futuros, designadamente convulsões recorrentes;
  • Prevalência de paralisia cerebral da ordem de 9%, havendo antecedentes concomitantes de asfixia perinatal grave;
  • Disfunção pulmonar;
  • Hiperreactividade brônquica.

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Definição e importância do problema

A designação de síndroma de ar ectópico intratorácico (SAEIT) engloba um conjunto de situações clínicas nas quais se verifica a existência de ar fora da via respiratória (em zonas vizinhas ou circundantes da mesma), em geral como resultado de solução de continuidade do epitélio respiratório.

Dependendo da localização do ar fora da via respiratória (interstício do parênquima pulmonar, entre os dois folhetos da pleura, entre os dois folhetos do pericárdio, e/ou no mediastino), surgem as designações respectivamente de enfisema intersticial pulmonar, pneumotórax, pneumopericárdio, pneumomediastino. O pneumotórax (que pode surgir secundariamente a pneumomediastino) e o enfisema pulmonar intersticial explicam cerca de metade dos casos de SAEIT.

Pela continuidade anatómica do tecido intersticial pulmonar/torácico com o interstício das baínhas peribroncovasculares, ao longo dos vasos do pescoço ou dos grandes vasos que atravessam o diafragma, poderão surgir secundariamente situações caracterizadas por “ar ectópico” extra-torácico: tecido celular subcutâneo (enfisema subcutâneo), cavidade peritoneal (pneumoperitoneu), no interstício do escroto (pneumoscroto) (síndromas de ar ectópico extratorácico – SAEET), ou mesmo na circulação sistémica por ruptura de alvéolos na proximidade dos pequenos vasos pulmonares (embolia gasosa) que pode ter localização intra ou extra-torácica (síndroma de ar ectópico intra e extra-torácico).

Em pneumologia neonatal o aparecimento de SAEIT constitui factor de morbilidade e de mortalidade, sobretudo no RN pré-termo. Com efeito, as SAEIT desenvolvem-se em cerca de 1-2% dos RN, habitualmente como complicação da ventilação mecânica em pulmões imaturos e frágeis, afectando principalmente RN pré-termo, com uma incidência inversamente proporcional ao peso de nascimento e idade gestacional.

A frequência de SAEIT tem diminuído ao longo do tempo, o que é explicável pelos progressos realizados em cuidados perinatais, cada vez menos invasivos; salienta-se que aquela depende da existência de patologia respiratória de base: 50 vezes superior se tal se verificar.

Neste capítulo procede-se à abordagem das formas mais representativas de SAEIT, dando especial ênfase ao pneumotórax e ao enfisema pulmonar intersticial.

Esta patologia constitui um factor importante de morbilidade (hemorragia intraperiventricular e displasia broncopulmonar) e de mortalidade (20-30%) nesta população, pelo que a sua prevenção através do uso de corticóides pré-natais, surfactante pulmonar precoce e de estratégias de ventilação protectoras do pulmão, desde o nascimento, como a ventilação não invasiva precoce, a ventilação sincronizada, com volume controlado, volumes e pressões mais baixos, tempos inspiratórios mais curtos e frequências mais altas, é essencial, principalmente no RN pré-termo com patologia pulmonar.

1. PNEUMOTÓRAX

Aspectos epidemiológicos

Em cerca de 1% dos RN de termo, saudáveis, pode surgir pneumotórax, em geral assintomático; as frequências de tal patologia, mais elevadas no período neonatal do que em qualquer outro período da vida, traduzem a magnitude do problema:

  • Corresponde a cerca de 0,1- 0,25% da totalidade dos problemas respiratórios neonatais de acordo com estudos epidemiológicos;
  • O pneumotórax espontâneo é cerca de 10 vezes mais frequente no RN em relação a outras idades;
  • Surge em cerca de 5-10% dos casos de DMH, frequência que aumenta nos casos submetidos a ventilação mecânica;
  • Em 10% dos casos, o pneumotórax é bilateral;
  • Nas situações de síndroma de aspiração meconial, o pneumotórax pode surgir em 20 a 50% dos casos.

Etiopatogénese

As particularidades anatomofisiológicas do pulmão do RN constituem factores de vulnerabilidade, facilitando o aparecimento do ar entre os dois folhetos pleurais. Destacam-se os seguintes factores:

  • Elevadas pressões inspiratórias utilizadas no pós-parto imediato;
  • Imaturidade estrutural do parênquima pulmonar, mais notória no RN pré-termo, traduzida essencialmente por menor elasticidade e menor distensibilidade, sobretudo antes das 30-32 semanas (o que se explica pelo défice de elastina e de surfactante, respectivamente); o défice quantitativo ou qualitativo de surfactante obriga ao emprego de pressões inspiratórias mais elevadas ao proceder-se a ventilação artificial por problema respiratório prévio, o que aumenta a probabilidade de ruptura nas vias aéreas;
  • Menor número de comunicações ou “canais” interalveolares (poros de Kohn) e entre bronquíolos mais distais (canais de Lambert), tanto mais notório quanto menor a idade gestacional, salientando-se que tais “derivações” ou “curto-circuitos fisiológicos” permitem distribuição mais homogénea, em volume e pressão, de ar nas vias terminais; inversamente, o défice de tais estruturas faz com que, com maior probabilidade, possa haver zonas hiper e hipodistendidas, com maior risco, quer de pneumotórax espontâneo, quer de volutrauma, atelectrauma e barotrauma nos casos de ventilação artificial;
  • Maior susceptibilidade às infecções (que poderão ter origem pré-natal): como um dos fenómenos comuns às infecções, cabe salientar o papel dos neutrófilos recrutados e sequestrados na área do processo infeccioso que, através da produção de elastase, originam alteração e ruptura da elastina com as consequências atrás descritas;
  • Nos casos de obstrução parcial ou total, por sangue, mecónio ou líquido amniótico, em certas áreas dos brônquios e bronquíolos, poderá verificar-se distribuição heterogénea do ar inspirado (zonas hiperventiladas e hiperdistendidas e zonas hipoventiladas); nos casos de obstrução parcial poderá gerar-se mecanismo valvular determinando acumulação progressiva de ar em certas áreas e ruptura alveolar consequente, mesmo sem manobras de reanimação (pneumotórax espontâneo); torna-se claro que as manobras de reanimação condicionando a génese de pressões inspiratórias elevadas aumentam a probabilidade de ruptura alveolar (Figura 1);
  • O pneumotórax também poderá surgir como consequência de manobras intempestivas: perfuração das estruturas com sonda de aspiração no âmbito dos cuidados ao RN com SDR ou utilização de tempo inspiratório longo com baixa frequência em RN ventilados mecanicamente.

Como resultado da ruptura alveolar ou dos bronquíolos, o ar difunde-se através do espaço broncovascular atingindo a cavidade pleural após formação de pequenas “bolhas de distensão gasosa” por “descolamento” localizado do folheto visceral da pleura; tais bolhas, rompendo-se depois, levam à acumulação de ar entre os folhetos parietal e visceral da pleura.

A acumulação ectópica de ar na cavidade pleural conduz a:

  • alteração da ventilação-perfusão por compressão das vias aéreas, levando a hipoxémia e hipercápnia;
  • compressão dos vasos sanguíneos intersticiais, susceptível de originar quadro de hipertensão pulmonar e curto-circuito extrapulmonar, o que agrava a hipoxémia;
  • aumento progressivo da pressão intratorácica levando a diminuição do retorno venoso e do débito cardíaco com hipotensão arterial e isquémia em territórios como o rim e encéfalo; de salientar que as variações da pressão arterial no contexto de quadro de dificuldade respiratória e manuseamento do RN, por vezes inadvertidamente intempestivo, podem provocar oscilações do débito cerebral, do que poderá resultar hemorragia intraperiventricular, sobretudo no pré-termo.

FIGURA 1. Mecanismo do pneumotórax do RN: obstrução total → hipoventilação; obstrução parcial → mecanismo valvular levando a acumulação progressiva de ar; ruptura alveolar.

Manifestações clínicas

O pneumotórax espontâneo poderá ser assintomático, constituindo um achado radiológico inesperado, ou traduzir-se por SDR ligeira.

Nos casos de pneumotórax sob tensão pode manifestar-se de modo agudo, com deterioração do estado geral, e agravamento do quadro de dificuldade respiratória inicial já instalado: cianose, agitação traduzindo hipoxémia grave, bradicárdia e choque; tal agravamento é muito sugestivo da patologia em análise se o RN estiver submetido a ventilação mecânica.

Tratando-se de pneumotórax unilateral, verifica-se hipersonoridade à percussão no lado afectado e desvio do choque da ponta, mais fácil de se notar à esquerda; de salientar que a semiologia auscultatória nem sempre fornece dados concludentes, uma vez que há possibilidade de transmissão do murmúrio vesicular do lado são, o que pode ser explicado pelas dimensões exíguas da caixa torácica do RN.

Um sinal indirecto é constituído pelo aparecimento abrupto de abdómen tenso e distendido (associado a hepato e esplenomegália) por empurramento do diafragma pela pressão do ar ectópico supradiafragmático.

Exames complementares

O exame complementar de eleição é a radiografia do tórax.

A imagem típica do pneumotórax corresponde a uma área de hipertransparência em que não se visualiza sinal de parênquima ou de vasos pulmonares na face lateral e/ou medial do hemitórax, uni ou bilateralmente, com desvio da silhueta cardíaca. (Figura 2)

Segundo o American College of Chest Physicians o pneumotórax classifica-se em: – pequeno (ocupando <20% do espaço pulmonar na radiografia); – moderado (20-40%) e; – grande (>40%).

Nos casos de acumulação abundante de ar sob forte tensão (hipertensivo, ou seja, correspondente a situação em que o volume do ar ectópico aumenta progressivamente) pode observar-se colapso do pulmão homolateral e desvio mediastínico para o lado oposto, assim como rectificação ou inversão da curvatura da linha diafragmática. (Figura 3)

Tratando-se de pneumotórax de pequenas dimensões, a sua detecção poderá ser difícil tendo em conta que o referido exame é realizado classicamente no berço ou incubadora com o RN em decúbito dorsal. Assim, para confirmação, o exame deverá ser feito com o RN em decúbito lateral ou, em alternativa, em decúbito dorsal com a ampola de raios X colocada lateralmente (raios horizontais); em tais circunstâncias, poderá visualizar-se eventual transparência retrosternal, não notada na posição convencional (Figura 4). No pneumotórax de localização medial deverá fazer-se o diagnóstico diferencial com o pneumomediastino.

A técnica de transiluminação consiste em aplicar luz proveniente de lâmpada halogénia ou de fonte emissora de fibra óptica, cuja extremidade é circular e plana para se ajustar à pele, em contacto e perpendicularmente a esta. Com tal técnica obtém-se um halo luminoso na superfície torácica em torno da fonte luminosa: havendo conteúdo líquido ou gasoso sob a zona explorada (neste caso, parede do tórax), verifica-se maior dispersão da luz, formando-se um halo maior.

Este método não invasivo tem a vantagem de permitir tirar conclusões de modo rápido, mas implica experiência por parte do observador e ambiente semelhante a “câmara escura”, no decurso da execução do procedimento.

Tratando-se de pneumotórax de pequenas dimensões, a sua detecção poderá ser difícil tendo em conta que o referido exame é realizado classicamente no berço ou incubadora com o RN em decúbito dorsal. Assim, para confirmação, o exame deverá ser feito com o RN em decúbito lateral ou, em alternativa, em decúbito dorsal com a ampola de raios X colocada lateralmente (raios horizontais); em tais circunstâncias, poderá visualizar-se eventual transparência retrosternal, não notada na posição convencional (Figura 4). No pneumotórax de localização medial deverá fazer-se o diagnóstico diferencial com o pneumomediastino.

A técnica de transiluminação consiste em aplicar luz proveniente de lâmpada halogénia ou de fonte emissora de fibra óptica, cuja extremidade é circular e plana para se ajustar à pele, em contacto e perpendicularmente a esta. Com tal técnica obtém-se um halo luminoso na superfície torácica em torno da fonte luminosa: havendo conteúdo líquido ou gasoso sob a zona explorada (neste caso, parede do tórax), verifica-se maior dispersão da luz, formando-se um halo maior.

Este método não invasivo tem a vantagem de permitir tirar conclusões de modo rápido, mas implica experiência por parte do observador e ambiente semelhante a “câmara escura”, no decurso da execução do procedimento.

Tratamento

Se o RN não estiver submetido a ventilação mecânica e os sinais de dificuldade respiratória forem ligeiros, a administração de oxigenoterapia com FiO2 a 95% (monitorizando simultaneamente a SpO2) é, em geral, suficiente como estratégia que promove a reabsorção do ar no sentido cavidade pleural → capilares.

FIGURA 2. Imagem radiográfica de pneumotórax esquerdo com desvio da silhueta cardíaca para a direita. (URN-HDE)

FIGURA 3. Pneumotórax sob tensão à direita; inversão da curva diafragmática respectiva. (NIHDE)

FIGURA 4. A – Pneumotórax de pequena dimensão mais visível à direita (incidência póstero-anterior); B – Sinal de ar ectópico retrosternal (incidência de perfil em decúbito dorsal a que corresponde incidência ântero-posterior sem alterações aparentes) noutro RN. (URN-HDE)

Com efeito, uma vez que a pressão do ar no espaço do pneumotórax é da ordem de 760 mmHg (correspondente à pressão atmosférica), e a pressão de oxigénio no sangue dos capilares pulmonares “em contacto” é mais baixa, criam-se condições para um fluxo de gás no sentido da zona de maior pressão para a zona de menor pressão, ou seja, no sentido pleura à capilar, viabilizando a diminuição progressiva do volume de ar pleural. Como precaução, com a oxigenação que se promove, a SpO2 não deve ultrapassar 93%.

Como medida emergente a realizar por especialista experiente, e em condições de assépsia, poderá utilizar-se uma cânula de calibre 19-21 G, aplicada a seringa de 20 mL com soro fisiológico intercalando torneira de 3 vias; a punção é feita no 4º espaço intercostal, na linha axilar anterior, aspirando-se o ar em repetidas operações (borbulhando no soro), com a precaução, de fechar a torneira ao retirar a seringa para extracção do ar aspirado.

O tratamento mais eficaz do pneumotórax sob tensão é a drenagem pleural ligada a um sistema de drenagem subaquática garantindo uma pressão negativa de aspiração entre [– 10 ]e [– 20 ] cm H2O (1-2 kPa). (Figura 5)

Prevenção

Para além das medidas de prevenção da infecção pré e pós-natal, susceptível de fragilizar o parênquima pulmonar, o emprego de manobras pouco agressivas na estabilização/reanimação do RN ao nascer, o uso precoce de surfactante pulmonar, de ventilação não invasiva (CPAP nasal) mais precoce, ventilação invasiva menos agressiva, com tolerância de hipoxemia e hipercápnia permissivas, e durante menos tempo, o uso de modos ventilatórios protectores (ventilação sincronizada, com volume controlado, pressões e tempos inspiratórios mais baixos e frequências respiratórias mais altas), são estratégias que ajudam a diminuir a incidência de pneumotórax.

FIGURA 5. Localização dos drenos pleurais e ligação ao frasco com tubo introduzido abaixo do nível da água; o comprimento em cm deste tubo submerso na água corresponde à pressão negativa em cm de H2O. Outro tubo do frasco está acima do nível da água e aberto para atmosfera.

Prognóstico

O prognóstico em termos de morbilidade e de mortalidade depende fundamentalmente da doença de base, dos efeitos sistémicos do ar ectópico e da idade gestacional. De salientar que nos RN com prematuridade extrema (idade gestacional <28 semanas) a frequência de HIPV é cerca de 80-90% se surgir hipotensão durante o episódio de pneumotórax; por outro lado, tal frequência reduz-se para 10% se não surgir hipotensão.

2. ENFISEMA PULMONAR INTERSTICIAL

Definição

O enfisema pulmonar intersticial (EPI) é a presença de ar no interstício ou tecido perivascular do pulmão, como consequência da ruptura de alvéolos ou de bronquíolos.

Aspectos epidemiológicos

O EPI tem sido identificado em cerca de 10% das necrópsias de RN de termo e em cerca de 25% das de RN muito pré-termo (28-31 semanas) ou pré-termo extremo (22-27 semanas). Salienta-se que este problema clínico tem sido observado quase exclusivamente em RN ventilados e com antecedentes perinatais de corioamnionite.

Etiopatogénese

Após ruptura alveolar, o ar difunde-se para o interstício formando pequenas colecções quísticas com diâmetro variando entre 0,1 e 1 cm, localizadas nos septos interlobulares e estendendo-se do hilo para a periferia do pulmão; tais alterações podem ser localizadas ou difusas. Surgem mais frequentemente no contexto de RN com DMH ventilados e, menos frequentemente, em casos de síndromas de aspiração e de sépsis.

Como consequência das alterações descritas que comprimem o parênquima, verifica-se também diminuição da distensibilidade (compliance) pulmonar e do débito pulmonar.

O EPI está associado a elevação da elastase dos leucócitos nos aspirados traqueais, o que poderá sugerir o papel da infecção intrauterina na génese da doença.

Manifestações clínicas

Ao contrário do que acontece em certas formas de pneumotórax, o EPI manifesta-se de modo gradual: na sua forma mais típica, e no decurso da ventilação mecânica, agravamento do quadro clínico, o que leva à necessidade de intensificar o suporte ventilatório por alteração da ventilação-perfusão e hipoxémia. A semiologia clínica permite detectar, em geral, diminuição da amplitude dos movimentos torácicos, hiperinsuflação e diminuição da intensidade dos sons cardíacos.

Exames complementares e diagnóstico diferencial

A radiografia do tórax, exame complementar fundamental para o diagnóstico, evidencia sinais de pequenas colecções aéreas ou radiolucências de forma quística (tipo “esponjoso”, grosseiras) ou linear, de dimensões variadas. As lesões podem ser localizadas (sobretudo na periferia ou regiões médias), ou difusas, uni ou bilateralmente, não se ramificando.

Nas formas lineares, o diagnóstico diferencial faz-se com o chamado “broncograma aéreo”, típico da DMH; neste último, as lesões lineares hipertransparentes ramificam-se, predominam nas regiões hilares (não na periferia) e nos lobos inferiores. (Figura 6)

Prevenção e tratamento

A prevenção passa essencialmente pela adopção duma estratégia de suporte ventilatório mínimo para garantir oxigenação adequada.

Os princípios básicos do tratamento, que têm como objectivo fundamental reduzir o barotrauma, dizem respeito, sobretudo a:

  • Diminuição da PEEP, do tempo inspiratório – cerca de 0,3 segundos (utilizando ventilação convencional);
  • Estratégia de baixo volume (utilizando ventilação de alta frequência).

FIGURA 6. Sinais de enfisema intersticial pulmonar associados a pneumotórax. São notórias pequenas áreas quísticas intraparenquimatosas no campo pulmonar esquerdo. (URN-HDE)

Prognóstico

Chama-se a atenção para a mortalidade elevada nas formas de EPI de início nas primeiras 24-48 horas. A forma difusa de EPI está mais frequentemente associada a doença pulmonar crónica (ver adiante, capítulo sobre Displasia broncopulmonar).

3. PNEUMOMEDIASTINO

A presença de ar ectópico no mediastino é quase sempre precedida de enfisema pulmonar intersticial. A etiopatogénese é semelhante à descrita a propósito do pneumotórax e EPI.

Exceptuando nos casos de pneumotórax associado, o RN com quadro de pneumomediastino está habitualmente assintomático ou exibe sinais de dificuldade respiratória ligeira. Pode verificar-se aumento do diâmetro ântero-posterior do tórax, hipersonoridade do tórax à percussão e diminuição dos sons cardíacos.

Nos casos graves podem observar-se sinais de baixo débito cardíaco por repercussão hemodinâmica (compressão do coração e pulmões).

A radiografia do tórax em incidência póstero-anterior evidencia zona de hipertransparência na área mediastínica impedindo a visualização do pedículo vascular (Figura 7); contornando a silhueta cardíaca, exceptuando no contorno inferior; nalguns casos é possível observar-se imagem do timo “como que levantado ou subido” dando a imagem em “sinal da vela”. Através de ecografia é possível fazer a destrinça entre pneumomediastino e pneumotórax de localização medial.

FIGURA 7. Imagem radiográfica de pneumomediastino: incidência póstero-anterior com sinais de acumulação de ar no mediastino impedindo a visualização de pedículo vascular cardíaco e compressão centrífuga do parênquima pulmonar bilateralmente. (URN-HDE)

FIGURA 8. Imagem radiográfica de pneumopericárdio associado a pneumomediastino. (NIHDE)

FIGURA 9. Imagem radiográfica de pneumopericárdio. (NIHDE)

A atitude a tomar deverá ser expectante, com vigilância rigorosa dos sinais vitais e grau de oxigenação, tendo em conta que a recuperação é espontânea na maioria dos casos.

4. PNEUMOPERICÁRDIO

Relativamente ao pneumopericárdio, caracterizado pela presença de ar no saco pericárdico, admite-se que o gás, sob alta pressão, possa penetrar na cavidade pericárdica ao nível da zona de rebatimento ou de transição do pericárdio visceral para o pericárdio parietal.

As manifestações clínicas, variáveis, dependem da rapidez com que se acumula o gás, sendo de notar que o primeiro sinal poderá ser hipotensão. Assim descrevem-se:

  • Formas oligossintomáticas (correspondendo a acumulação lenta sem aumento significativo da pressão intrapericárdica); e
  • Formas de início súbito com palidez, taquicárdia, hipotensão e choque, com ulterior bradicárdia e diminuição da amplitude do pulso; estas manifestações explicam-se por tamponamento com acumulação mais brusca e abundante de gás, sendo que a pressão intrapericárdica se aproxima da pressão venosa central, o que tem repercussão sobre a ejecção ventricular.

A radiografia do tórax evidencia área de hipertransparência envolvendo toda a silhueta cardíaca, inclusivamente no seu contorno inferior (supradiafragmático). Recorda-se que na imagem do pneumomediastino tal bordo é preservado. (Figuras 8 e 9)

A atitude nos casos de pneumopericárdio assintomático é “expectante armada”. O tratamento efectivo do pneumopericárdio sintomático com sinais de tamponamento cardíaco consiste na punção pericárdica ou drenagem com agulha e seringa ao nível da zona infraxifoideia, com inclinação da agulha para cima e para trás, em condições de assépsia com o apoio ecográfico e em UCIN. Trata-se, pois, dum procedimento que exige experiência.

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Definição e importância do problema

A hemorragia pulmonar, constituindo uma forma de SDR secundária (acompanhando situações clínicas de etiologia diversa), é caracterizada fundamentalmente pela saída de sangue ou fluido hemático de origem pulmonar pelo tubo endotraqueal (TET), boca ou fossas nasais, em situações consideradas críticas, obrigando a ventilação mecânica e/ou a ressuscitação.

Trata-se dum problema clínico raro, mas grave, comportando risco elevado de mortalidade e morbilidade, designadamente no RN pré-termo. No grupo de RN de muito baixo peso (RNMBP), a sua prevalência varia entre 3-32%.

A incidência em autópsias de RN nas primeiras 2 semanas de vida varia entre 1 a 12/1.000 em contexto de prematuridade extrema e PDA.

Etiopatogénese

Embora a etiopatogénese não esteja completamente esclarecida, são considerados determinados factores predisponentes ou de risco, sintetizados nos quadros 1 e 2: asfixia perinatal grave, hipotermia, ventilação mecânica, diátese hemorrágica, sobrecarga de fluidos, hipervolémia, infecção sistémica grave, cardiopatias com curto-circuito esquerda – direita, PDA hemodinamicamente significativa, aspiração de conteúdo gástrico, doença hemorrágica do RN, doenças hereditárias do metabolismo, terapêutica substitutiva com surfactante pulmonar exógeno (nesta última circunstância em cerca de 1 a 5% dos casos), etc..

Admite-se que a formação de edema pulmonar hemorrágico se deve a hipoxémia e acidose determinando insuficiência ventricular esquerda.

Neste contexto, a elevação da pressão na aurícula esquerda leva sequencialmente a elevação da pressão capilar pulmonar, conduzindo por sua vez a edema e ruptura de capilares alveolares em todo o território pulmonar; tal mecanismo é, efectivamente, diverso do verificado no adulto em que, no contexto de insuficiência ventricular esquerda, o excesso de fluido/ edema se localiza apenas nas bases pulmonares.

De referir que alguns dos factores de risco atrás descritos podem estar associados a determinados mecanismos favorecendo o edema hemorrágico: por ex. lesão e fragilidade do tecido pulmonar, desequilíbrio de pressões ao nível capilar pulmonar, défice de factores de coagulação, hipoproteinémia, alteração do surfactante, etc..

No grupo de recém-nascidos pré-termo admite-se o papel de certo grau de edema intersticial e alveolar secundário à elevação do fluxo sanguíneo pulmonar, situação que por sua vez resulta de um desvio esquerda-direita hemodinamicamente significativo através de canal arterial patente. (Quadros 1 e 2)

QUADRO 1 – Mecanismos fisiopatológicos subjacentes à hemorragia pulmonar.

Aumento da pressão venosa pulmonar
Canal arterial patente
Cardiopatia congénita
Lesão endotelial
Infecção
Défice de surfactante
Asfixia
Toxicidade de O2
Redução da drenagem linfática
Ventilação mecânica
Pressão venosa central elevada
Fibrose pulmonar
Coagulopatia

QUADRO 2 – Principais factores de risco de hemorragia pulmonar neonatal.

1In utero (ex: restrição de crescimento fetal), intraparto (ex: encefalopatia hipóxico-isquémica), pós-parto (ex: síndroma de aspiração meconial, entubação difícil).

Persistência de canal arterial
Prematuridade
Restrição de crescimento intra-uterino
Peso de nascimento < 1500g
Administração de surfactante
Ausência de corticoterapia pré-natal em RN prematuro
Reanimação imediata com VPP
Ventilação mecânica

DMH precoce e grave
Sépsis
Asfixia1
Hipotermia
Coagulopatia
Trombocitopenia (< 100.000/ul)
Policitémia
Doença hereditária do metabolismo

Manifestações clínicas, laboratoriais e imagiológicas

Dum modo geral, os sinais clínicos (saída de líquido hemático pela boca, fossas nasais e TET) coincidem com agravamento da situação clínica de base e/ou manobras de reanimação; pode surgir bradicárdia, hipotensão e choque.

As alterações laboratoriais mais frequentes são: agravamento de hipóxia e hipercapnia, acidose mista; anemia aguda com redução do hematócrito ≥10%; plaquetas normais ou ↓/ ou ↑; tempos de coagulação, fibrinogénio, D-Dímeros normais ou/↑.

A imagem radiográfica do tórax é variável, sendo que nas formas graves pode haver opacidades dispersas, ou opacidade difusa bilateral (semelhante à imagem do chamado ”pulmão branco”), relacionável com situações de base, tais como de insuficiência ventricular esquerda, choque e compromisso estrutural e funcional do surfactante.

O ecocardiograma com doppler pode evidenciar sinais de canal arterial persistente. É necessário excluir defeitos do ciclo da ureia pelo doseamento de amónia sérica (sobretudo em recém-nascidos de termo).

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial pode fazer-se com certo número de situações:

  • Traumatismo local por entubação ou sucção/aspiração (vestígios de sangue vivo/ digerido nas secreções respiratórias, ausência de deterioração clínica súbita, sem necessidade de terapêutica dirigida);
  • Sangue materno aspirado na reanimação;
  • Sépsis, coagulopatia, cardiopatia, corpo estranho;
  • Manifestação inicial de doença hereditária do metabolismo, designadamente defeitos do ciclo da ureia, o que implicará dosear a amoniémia se houver forte suspeita clínica.

Tratamento e prognóstico

O tratamento em regime de UCIN inclui fundamentalmente: correcção da doença de base, aspiração das vias aéreas, administração de adrenalina por via traqueal para constrição dos vasos pulmonares, reposição das perdas de sangue, ventilação mecânica com PEEP elevada e, havendo recursos técnicos, HFV.

Nalguns centros, na fase pós-hemorragia, com o fundamento de que a presença intra-alveolar de sangue e proteínas afecta a compliance pulmonar, é administrado surfactante. Tal atitude é controversa, pois há estudos demonstrando que a hemorragia pulmonar pode ser desencadeada pela administração de surfactante.

O prognóstico, dependendo da etiologia, dum modo geral, é mau. Com efeito, no pré-termo, a mortalidade oscila entre 30 e 60%, e em mais de metade dos sobreviventes pode surgir doença pulmonar crónica. Entre os RN de termo com hemorragia pulmonar, a mortalidade relaciona-se sobretudo com a patologia de base.

O risco de surgimento de displasia broncopulmonar ronda os 60%. A sobrevida com disfunção neurossensorial é cerca de duas vezes superior em lactentes com antecedentes de hemorragia pulmonar grave.

Outra patologia sequelar inclui elevada incidência de leucomalácia periventricular, paralisia cerebral, défice cognitivo e epilepsia.

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Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

A chamada síndroma de hipertensão pulmonar persistente (HPP/HTP) (*) do RN é uma situação clínica de dificuldade respiratória caracterizada por aumento da resistência vascular pulmonar e diminuição da perfusão pulmonar levando a hipóxia grave e PaCO2 normal ou elevado.

Importa salientar que a diminuição do débito sanguíneo pulmonar se associa a  curto-circuito direita – esquerda pelo foramen ovale e/ou ductus arteriosus (canal arterial) por aumento relativo da pressão na artéria pulmonar em relação à sistémica.

O facto de este quadro fisiopatológico ter afinidade com a circulação fetal, ao mesmo era dado anteriormente o nome de “persistência da circulação fetal” (impropriamente, pois excluia a circulação placentária).

(*) São utilizadas indiferentemente, com igual significado, neste livro, as siglas HTP ou HPP (hipertensão pulmonar ou hipertensão pulmonar persistente).

A síndroma de aspiração meconial  é a causa mais frequente de HPP, a qual ocorre em cerca de 40-75% dos casos da forma mais grave daquela.

Outras situações associadas a HPP (factores predisponentes) incluem doenças pulmonares parenquimatosas, pneumonia, sépsis, deficiência de surfactante, hipoglicémia, policitémia, terapias maternas in utero com AINE levando a constrição do ductus arteriosus, idem no terceiro trimestre com inibidores selectivos de recaptação da serotonina, hipolasia pulmonar por hérnia diafragmática, perda de líquido amniótico, oligo-hidrâmnio ou derrame pleural.

Os casos de HPP não associados a doença pulmonar parenquimatosa são designados idiopáticos. 

A incidência de HPP no RN é calculada em cerca de 2 a 6 /1.000 nados-vivos, correspondendo a cerca de 0,5 a 1% dos internamentos em UCIN. Apesar dos progressos da perinatologia nas últimas décadas, constitui ainda um problema clínico muito importante em RN de termo e pré-termo, pela mortalidade (~ 20%) e morbilidade, designadamente em termos de sequelas neurológicas importantes (10 a 20 %).

ETIOPATOGÉNESE

Mecanismos de regulação do tono vascular pulmonar

Embora a etiopatogénese da HPP não esteja completamente esclarecida, torna-se fundamental rever alguns mecanismos que regulam o tono vascular pulmonar fetal e pós-natal, alguns dos quais são baseados em estudos experimentais.

Durante a vida fetal a resistência vascular pulmonar (RVP) está aumentada, o que tem como consequência o leito pulmonar receber apenas cerca de 8 a 10% do débito cardíaco. A  maioria do sangue oxigenado na placenta que atinge o ventrículo direito é veiculada   para a aorta, directamente através do canal arterial, e indirectamente através do foramen ovale.

O tono vascular pulmonar durante a gestação parece ser determinado por um balanço entre diversos factores: baixa pressão de oxigénio no sangue, incremento da produção de vasoconstritores como endotelina-1 (ET-1), serotonina (5HT), leucotrienos, tromboxano, factor activador das plaquetas (PAF), hiperreactividade da musculatura lisa da parede vascular arterial (tono miogénico aumentado) e baixa produção de substâncias vasodilatadoras (prostaciclina-PG I2, de menor relevância, e óxido nítrico-NO, de maior relevância).

Recorda-se que o NO (chamado precisamente endothelium derived relaxing factor ou factor de relaxação endotelial) é produzido no endotélio vascular através da conversão de L-arginina em L-citrulina pela enzima sintetase do NO. Uma vez produzido, o NO difunde-se facilmente pelas células de músculo liso causando vasodilatação por estimular a guanilato-ciclase solúvel, aumentando a produção de cGMP (guanosinamonofosfato cíclica).

Os mecanismos responsáveis pela manutenção da RVP aumentada (predomínio dos factores que determinam oligoémia pulmonar) durante a vida fetal não estão completamente esclarecidos; admite-se que, para além da maior produção de factores vasoconstritores, e de menor produção de factores vasodilatadores, tenham papel importante factores mecânicos como a compressão vascular pelo líquido pulmonar fetal.

Não obstante o aumento do território vascular pulmonar ao longo da gestação, relacionável com o crescimento pulmonar fetal, a RVP aumenta com a idade gestacional, estando no seu máximo antes do nascimento, com pressões  na circulação pulmonar  in utero equiparáveis às da circulação sistémica.

Alguns minutos após o nascimento, em condições de normalidade e na ausência de alterações estruturais dos vasos arteriais pulmonares, a pressão da artéria pulmonar diminui rápida e drasticamente, o que se explica pelo aumento da produção de vasodilatadores tais como NO e PG I2 – passando a predominar sobre os vasoconstritores – como resposta a estímulos diversos: distensão rítmica dos pulmões em relação com os movimentos respiratórios, aumento da pressão sanguínea de O2, e estresse do estiramento. Procede-se então à transição para a circulação pulmonar normal com rápido aumento do fluxo sanguíneo pulmonar (aumento de 8 a 10 vezes), queda da RVP, e remoção de fluido pulmonar.

Poderá assim compreender-se que qualquer perturbação na sequência de eventos que conduzem normalmente à diminuição da RVP na transição para a vida extrauterina, poderá criar condições de manutenção de RVP aumentada após o nascimento, e um padrão circulatório arterial pulmonar semelhante ao verificado no feto.

Exemplos de perturbações da circulação pulmonar na transição fetal-neonatal

Citam-se os seguintes:

1 – Desregulação de efeitos vasodilatadores  ou vasoconstrictores por défice de produção de vasodilatadores (por exemplo por situação genética responsável pela menor produção de NO) ou por maior produção de vasoconstritores como a ET-1 ou substâncias vasoactivas produzidas por germes microbianos como Streptococcus agalactiae;

2  – Remodelação vascular pulmonar com manutenção da hiperreactividade da musculatura lisa  arterial pulmonar:

    • por excesso de músculo liso, sobretudo nas artérias de médio calibre (quer em espessura, quer em extensão) como resultado de hipoxémia crónica intra-uterina); e/ou
    • por excesso de músculo liso com idêntica localização como resultado do aumento de débito pulmonar fetal secundário ao encerramento do canal arterial no feto por efeito de anti-inflamatórios não esteróides administrados à grávida;

3 – Diminuição do leito vascular pulmonar no contexto de anomalia congénita (por ex. hipoplasia vascular pulmonar interferindo com a vasculogénese e angiogénese, em situações como a hérnia diafragmática, etc.).

Noções básicas sobre desenvolvimento da vasculatura pulmonar

Dado que a vasculatura pulmonar se desenvolve paralelamente à via aérea, a hipoplasia do leito vascular pulmonar acompanha a hipoplasia pulmonar.

A propósito da muscularização, normal ou excessiva dos ramos arteriais pulmonares, importa recordar sucintamente as seguintes noções:

  1. no que respeita ao desenvolvimento muscular da parede arterial em extensão, ou seja, ao longo do vaso (em paralelo à via respiratória), em condição de normalidade , a muscularização atinge, no RN, apenas a região pré-acinar (até ao bronquíolo terminal-BT); em situação de HPP o desenvolvimento muscular atinge zonas mais distais (em paralelo ao bronquíolo respiratório-BR e ducto alveolar-DA estendendo-se até ao alvéolo) (Figura 1);
  2. no que respeita ao desenvolvimento muscular da parede arterial em espessura – e comparando vasos com idêntico diâmetro externo – a muscularização excessiva traduz-se em menor calibre e, portanto, em maior espessura da parede (Figura 2);

FIGURA 1. Desenvolvimento muscular da parede arterial em extensão.

FIGURA 2. Desenvolvimento muscular da parede arterial em espessura.

Considerando a lei de Poiseuille – a resistência à passagem de fluido (neste caso, sangue) num canal (neste caso, vaso arterial pulmonar) é directamente proporcional à viscosidade do sangue e ao comprimento dos vasos, e inversamente proporcional ao número de vasos e à 4ª potência do raio dos mesmos. A fórmula seguinte é elucidativaà R= 8nL /pi r4 ;  a mesma permite compreender melhor uma classificação etiopatogénica (Quadro 1).

QUADRO 1 – Hipertensão pulmonar persistente no RN. Classificação etiopatogénica.

1. Vasoconstrição pulmonar
Asfixia perinatal, síndroma de aspiração meconial, pneumonia, alterações metabólicas, obstrução das vias respiratórias superiores, hipoventilação, alterações do SNC, etc..
2. Policitémia/Hiperviscosidade
3. Hipertrofia da musculatura lisa arterial pulmonar
Hipoxémia crónica intrauterina, insuficiência placentar, encerramento do canal arterial in utero (salicilatos, indometacina, ibuprofeno), cardiopatia congénita, hipertensão sistémica fetal.
4. Leito vascular pulmonar diminuído
Hipoplasia pulmonar, hérnia diafragmática de Bochdalek, microtrombos pulmonares, quistos pulmonares, estenose da artéria pulmonar, displasia alveolocapilar, etc..

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E EXAMES COMPLEMENTARES

Como regra prática importante, importa referir que, independentemente da história pré-natal, a HPP deve ser suspeitada nos casos de RN de termo com cianose

Tendo em conta a diversidade da patologia de base, as manifestações clínicas podem contudo ser  muito variadas, traduzindo um quadro de hipoxémia grave e refractária com FiO2 de 100%. Os respectivos sinais podem ser muito precoces, por vezes já no pós-parto imediato, e em geral nas primeiras 12 horas de vida.

Nos casos relacionados com policitémia, hipoglicémia, ou asfixia perinatal verifica-se cianose grave associada a taquipneia; contudo, inicialmente os sinais de dificuldade respiratória podem ser muito discretos.

Nos casos relacionados com síndroma de aspiração meconial, pneumonia por Streptococcus do grupo B, hérnia de Bochdalek, ou hipoplasia pulmonar, a SDR é mais exuberante , podendo verificar-se quadro de choque e disfunção multiorgânica.

A sequência de eventos: isquémia do miocárdioà disfunção dos músculos papilares à regurgitação tricúspide e mitral à disfunção biventricular à choque cardiogénico à hipóxia-isquémia tecidual conduz a agravamento da hipoperfusão pulmonar.

Perante quadro clínico sugestivo de HPP, importa discriminar um conjunto de exames complementares com vista a obter o diagnóstico definitivo. Os referidos exames, indicados em situação de hipoxémia grave e refractária, têm como objectivo essencial avaliar a função do miocárdio, demonstrar sinais de curto-circuito direita – esquerda pelo ductus arteriosus e/ou foramen ovale, e excluir doença cardíaca estrutural.

Critérios de diagnóstico de HPP

I. Ecocardiografia em tempo real com Doppler

Este exame, proritário, é fundamental para o diagnóstico definitivo de HPP, permitindo  evidenciar sinais de :

  • pressão elevada na artéria pulmonar (superior a 75% da pressão arterial sistémica);
  • septo auricular procidente/abaulado para a aurícula esquerda;
  • sinais de insuficiência tricúspide;
  • dilatação do ventrículo direito com desvio do septo;
  • aumento da relação entre fase de pré-ejecção ventricular direita/e fase de ejecção ventricular direita;
  • a magnitude da HPP e do curto-circuito direito-esquerdo pelo ductus arteriosus e/ou foramen ovale (*); e, também,
  • avaliar a contractilidade cardíaca;
  • excluir doenças cardíacas estruturais, sobretudo as que dependem do curto-circuito direito-esquerdo como por ex. interrupção do arco aórtico, estenose aórtica, síndroma de disfunção do ventrículo esquerdo.

 

(*) O shunt intracardíaco através do foramen ovale patente não determina gradientes quanto a PaO2 e SpO2.

Independentemente de ser ou não possível  utilizar o eco Doppler, está sempre indicada em concomitância a gasometria sanguínea e a avaliação contínua da SpO2

II. pH e gases no sangue (incluindo Pa O2 pré e pós-ductal), e avaliação contínua da SpO2 pré e pós-ductal.

Os critérios classicamente utilizados para o diagnóstico de HPP são variáveis, considerando-se as seguintes circunstâncias (com elevada probabilidade de HPP):

→ se RN ventilado na modalidade IMV com FiO2 de 100%):

    • cianose central ou
    • PaO2 pós-ductal < 100 mmHg  ou
    • SpO2 pós-ductal < 90%.

→ se RN com labilidade dos níveis de oxigenação arterial [considerando-se na prática, 2 ou mais episódios de diminuição SpO2 ( < 85%) no período de 12 horas obrigando a intensificação do suporte ventilatório].

→ se RN com  diferença de oxigenação arterial entre territórios pré e pós-ductais, considerando como diferença significativa  o gradiente de PaO2 e SpO2 respectivamente pré- ductal (mão direita) e pós –ductal (qualquer dos pés):

    • Gradiente de PaO2 > 20 mmHg ou
    • Gradiente de SpO2 > 5% (para valores de saturação entre 70 e 95%).

De notar que a Pa CO2 é relativamente normal, associando-se acidose marcada traduzindo frca perfusão tecidual.

Para avaliação da gravidade utiliza-se o IO (índice de oxigenação) avaliado de modo seriado:

IO = Pressão média na via aérea x FiO2/Pa O2(mmHg)

 Se IO > 40 em 3 de 5 gasometrias determinadas com intervalos de 30 minutos, o risco de mortalidade é cerca de 80%.

Outros exames
  • Radiografia do tórax
    O padrão depende da doença de base; havendo quadro de HPP grave, verifica-se pobreza da trama pulmonar na periferia, com “amputação” dos vasos, contrastando com dilatação do tronco pulmonar e nos ramos pulmonares principais.
    Nos casos de HPP idiopática, o padrão é de campos pulmonares “claros”, hiperarejados, subvascularizados e com silhueta cardíaca aumentada.
  • Exames laboratoriais
    Para avaliação global e esclarecimento etiológico, em função de cada caso, poderá haver necessidade de determinados exames laboratoriais como hemograma completo, glicémia, calcémia, magnesiémia, etc..
    A determinação do péptido BNP no plasma (consultar Glossário Geral)  merece ser destacada, podendo este marcador, segundo alguns autores,  ser considerado como forma de rastreio para proceder a eco-doppler. Com efeito, valores superiores a 2500 pg/mL estão associados a estresse ventricular direito  e a sinais ecográficos de sobrecarga ventricular, compatíveis com HPP, embora não exclusivos desta última.

TRATAMENTO

Os objectivos gerais dos procedimentos terapêuticos da HPP, a realizar em UCIN, são: tratar a doença de base, melhorar o estado hemodinâmico, corrigir os factores de vasoconstrição arterial pulmonar e melhorar a oxigenação.

Importa referir que todos os cuidados gerais deverão obedecer ao princípio do manuseamento mínimo, tendo em conta a labilidade extrema da situação.

Eis as grandes linhas do tratamento:

  • Oxigenoterapia
  • Ventilação mecânica convencional; estratégia:  sem hiperventilação nem alcalinização; normocarbia ou hipercarbia permissiva, evitando a hipoxemia;
  • Ventilação com alta frequência (VAF) –em certas unidades é utilizada perante falência da ventilação convencional em situações de IO > 20, e acidose respiratória persistente (PaCO2> 60 mmHg e pH < 7,20). Nalguns centros utilizam-se em simultâneo VAF+NOi, obtendo melhores resultados. Não parece estar provado que esta modalidade aplicada de início seja superior à ventilação convencional como estratégia de 1ª linha;
  • Sedantes (midazolam na dose de 1-5 mcg/kg/hora IV).
  • Curarizantes em crianças ventiladas (por ex. pancurónio ou vecurónio) controversos, devendo ser reservados para os casos em que não pode ser usada apenas a sedação.
  • Inotrópicos: elevação da pressão arterial sistémica para manter volume de sangue circulante adequado, enchimento das câmaras cardíacas (sob controlo ecográfico), débito cardíaco adequado e diminuição do curto-circuito direita-esquerda. Este desiderato pode atingir-se com:
    • expansores de volume (por ex. soro fisiológico-10 a 20 mL/kg em 30 minutos).
    • aminas vasopressoras (por ex. dopamina ou dobutamina).
  • Vasodilatadores pulmonares:
    • NOi em ventilação (óxido nítrico inalado com dose inicial de 20 ppm durante 1 hora – vasodilatação selectiva), reduzindo a necessidade de ECMO, excepto nos casos de hérnia diafragmática congénita, e obrigando a monitorização de NO2 produzido.
      Indicações específicas para NOi:
      • HPP/HPT confirmada por eco-Doppler e, pelo menos um de dois critérios
        → IO> 25 em gasometria pós-ductal
        → PaO2 < 100 mmHg com FiO2 de 100%
        ou IO> 40 com ou sem evidência ecográfica de HPP/HTP
    • Sildenafil (inibidor da fosfodiesterase tipo 5- Viagra®) quando NOi não está disponível e em situações seleccionadas; reduzindo a degradação do GMPc, poderá melhorar a oxigenação e reduzir a mortalidade, melhorando o débito cardíaco e a função respiratória;
      De acordo com  estudos recentes, o seu emprego numa fase em que se verifique processo maturativo da retina, erxiste risco de agravamento da retinopatia da prematuridade.
  • Prostaglandina E1 (Prostin®: 0,05-0,1 mcg/kg/minuto IV contínuo) nos casos de ausência de resposta ao NOi;
  • ECMO (Oxigenação por circulação extracorporal com membrana), menos utilizada desde a era do NOi; contudo está indicada na ausência de resposta a esta última técnica, sendo que, como se disse, o NOi reduz a necessidade de ECMO.
  • Outros procedimentos a ponderar, caso a caso:
    • Cateterismo central (artéria umbilical e veia umbilical, designadamente) para mais fácil monitorização de pH e gases, colheitas de sangue para exames laboratoriais, fluidoterapia para expansão de volume vascular, etc., na perspectiva de gerir manuseamento mínimo.
    • Analgésicos derivados dos opióides (fentanil na dose de 1-2 mcg/kg/hora IV contínuo em RN submetidos a ventilação mecânica; ou morfina na dose de 10 mcg/kg/hora IV após dose inicial de impregnação, 1 hora antes, de 100 mcg/kg IV).
    • Correcção de alterações metabólicas.
    • Tratamento de infecções (antibioticoterapia e outras medidas).
    • Tratamento substitutivo com surfactante exógeno.
    • Correcção do hematócrito (objectivo: obter valor ~40%) evitando hiperviscosidade ou anemia.

SEGUIMENTO E PROGNÓSTICO

Após a alta hospitalar as crianças devem ser encaminhadas para centro de desenvolvimento (no pressuposto de apoio multidisciplinar) com o objectivo de se proceder a avaliação periódica, designadamente de tipo neurossensorial, pelo menos até aos seis anos. A avaliação auditiva deverá ser realizada o mais precocemente possível.

A sobrevivência varia com a doença subjacente. Dum modo geral, o prognóstico a longo prazo relaciona-se com a verificação (ou não) de encefalopatia hipóxico-isquémica associada, e com o resultado da terapêutica vasodilatadora pulmonar (bom ou mau). Por outro lado, de acordo com estatísticas recentes, a HPP surge em cerca de 40% dos casos mais graves de displasia broncopulmonar. A proporção de sequelas do neurodesenvolvimento é estimada entre 10 a 20% nos sobreviventes de HPP.

Apesar dos progressos da terapia intensiva, a mortalidade dos RN com HPP continua elevada, nomeadamente nos casos acompanhados de anomalias estruturais dos vasos pulmonares. Excluindo esta situação, a recuperação funcional pulmonar é boa, sem doença residual.

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Introdução

Revisitando algumas noções tratadas anteriormente em “Problemas Respiratórios no RN – Generalidades ”, o presente capítulo aborda predominantemente conceitos fundamentais sobre ventilação mecânica invasiva, os quais poderão ser de utilidade, não para neonatologistas ou intensivistas, mas para estudantes em áreas da saúde infantil, médicos de família, pediatras gerais e outros profissionais de saúde.

Numa inspiração normal, o sistema respiratório gera pressão negativa intratorácica, o que favorece a entrada de ar na via respiratória.

Numa inspiração controlada ou assistida por ventilador – com “insuflação” da mistura gasosa – é gerada uma pressão inspiratória. A pressão máxima atingida é denominada pressão inspiratória positiva (PIP) ou pressão de “pico”. A mistura gasosa (ou o ar) introduzida nos pulmões é mantida na via aérea durante a pausa inspiratória, o que permite a difusão da mistura gasosa ao nível dos alvéolos pulmonares. A pressão da via aérea durante esta pausa é designada “pressão de planalto ou “plateau”; o valor da mesma depende da PIP e da compliance do pulmão.

Durante uma expiração normal, o pulmão é “esvaziado” de forma passiva, o que depende da retracção elástica do mesmo. No final da expiração, o volume persistente na via aérea traduz-se numa pressão expiratória final positiva (PEEP ou positive end expiratory pressure), que evita o colapso ou atelectasia alveolar. (ver figura 3 do capítulo inicialmente mencionado)

Definições

Por ventilação mecânica no sentido lato entende-se uma técnica de respiração artificial na qual se obtém um movimento de gás (classicamente oxigénio e ar atmosférico, em proporções reguladas; e, mais raramente, em situações especiais, óxido nítrico/NO, hélio, etc.,) bidireccional (entre ambiente atmosférico e via respiratória/ pulmões), utilizando equipamento externo em conexão com a via respiratória do paciente, desde o clássico balão ou o balão autoinsuflável ao mais sofisticado aparelho chamado ventilador equipado com mecanismos de automatismo e com software.

Tradicionalmente, são consideradas duas modalidades de ventilação: ventilação invasiva e ventilação não invasiva.

Em ambas as modalidades, a ventilação artificial consegue-se com a aplicação de pressão positiva na via aérea; a diferença está na forma de administração de tal pressão:

  • Na ventilação invasiva utiliza-se um tubo oro ou nasotraqueal ou uma cânula de traqueostomia;
  • Na ventilação não invasiva, utiliza-se uma máscara ou cânulas nasais (prongas) em conexão com o dispositivo de ventilação ou ventilador.

Nos RN com respiração espontânea pode administrar-se suplemento de O2 empregando um sistema de fluxo contínuo (que pode ser variável) da mistura de ar e oxigénio, gerando pressão positiva contínua, o que permite manter certo grau de distensão alveolar no fim de cada expiração. Isto é, com tal técnica, consegue-se que o alvéolo fique mais distendido do que em situação fisiológica através da criação de pressão de distensão contínua. É a chamada pressão positiva contínua (pressão de distensão contínua) ou CPAP (continuous positive airway pressure); a mesma é medida em cm de H2O.

A técnica de pressão positiva contínua (CPAP) promove uma melhoria da PaO2 explicada pelo que se designa recrutamento alveolar e optimização do volume pulmonar, permitindo mais eficaz ventilação-perfusão. Esta técnica pode ser aplicada ao paciente através de máscara, prongas ou sonda nasal dupla (mais frequentemente), ou ainda tubo endotraqueal (TET nasofaríngeo ou TET traqueal).

As indicações principais da CPAP são diversas: SDR da prematuridade (doença da membrana hialina ligeira a moderada), apneia da prematuridade, fase pós-extubação na sequência de ventilação mecânica. Igualmente, disfunção respiratória e, no pós-parto imediato, como manobra de recrutamento alveolar precoce contribuindo para o estabelecimento da capacidade residual funcional pulmonar do RN.

A CPAP com TET constitui, em geral, uma forma de avaliar a capacidade de tolerância do RN à CPAP nasal (nCPAP), desde que haja indicação de extubação. Contudo, deve ter-se em conta que tal avaliação deve ser efectuada durante escassos minutos apenas, dada a eventualidade de o TET poder aumentar a resistência da via aérea, conduzindo eventualmente a episódios de apneia ou atelectasia. (ver adiante)

As pressões de distensão contínua/ CPAP podem variar entre 3 e 8 cm H2O, consoante a situação clínica e a gravidade da mesma. Contudo, são mais utilizados valores ~4 cm H2O. Empregando tal técnica haverá que dar especial atenção à eventual melhoria da compliance ou distensibilidade da via aérea coincidindo com a melhoria da situação clínica; tal poderá originar hiperinsuflação-enfisema e pneumotórax (manifestada por excessiva retenção de CO2 e aumento da PaCO2 num RN em melhoria); por isso, com a melhoria da oxigenação deve reduzir-se progressivamente a pressão de distensão contínua.

Para além da modalidade clássica de fluxo contínuo utilizada nos ventiladores convencionais (bubble CPAP), e de fluxo variável, actualmente existem aparelhos que permitem utilizar o chamado modo bilevel de CPAP; ou seja, permitem obter em alternância, por períodos a programar automaticamente, dois valores, ou “dois níveis” de pressão de distensão contínua. Dependendo da evolução clínica, quer os tempos, quer as pressões, poderão ser modificados com o manuseamento do aparelho.

Os estudos realizados com esta última variante na aplicação de CPAP demonstraram evolução mais favorável do problema respiratório, com recrutamento alveolar mais eficiente, necessidade de menor duração na aplicação da técnica, sem aumento de efeitos adversos.

Indicações gerais da ventilação mecânica invasiva

A decisão de iniciar ventilação mecânica baseia-se na gravidade do problema respiratório de acordo com os critérios antes definidos. Na prática clínica, em geral, as situações que requerem tal procedimento correspondem a duas situações de SDR:

  • RN inicialmente com respiração espontânea submetidos previamente a assistência respiratória na modalidade de pressão positiva contínua (CPAP) com progressivo agravamento; ou
  • RN em que surge, progressiva ou subitamente, um quadro de insuficiência respiratória aguda, incluindo situações de apneia; e também do foro cirúrgico com indicação operatória.

Os grandes objectivos da técnica em análise – idealmente de duração tão curta quanto possível – são providenciar um volume pulmonar adequado com vista à normalização da ventilação-perfusão e da saturação da Hb em oxigénio (SpO2), evitando a hiperinsuflação e a atelectasia.

Como se torna fácil compreender, importa garantir um conjunto de condições técnicas, logísticas e de recursos humanos (equipas de pediatras-neonatologistas e de enfermeiros especializados, entre outros profissionais) que somente podem ser concretizadas numa unidade de cuidados intensivos neonatais, ou pediátricos e neonatais (unidade polivalente).

Uma vez que poderão surgir efeitos secundários ou complicações importantes, a decisão de se proceder à entubação para iniciar a ventilação mecânica deve ser ponderada, equacionando riscos e benefícios.

Com efeito, apesar de a ventilação invasiva por vezes representar a única terapêutica da insuficiência respiratória aguda com efeito salvador imediato e a curto prazo, importa ter em consideração a possibiliade de complicações e sequelas, nomeadamente do foro respiratório e neurológico.

Tipos de ventiladores e modos ventilatórios

Para se compreender o funcionamento dos modernos e sofisticados ventiladores utilizados na actualidade, será útil explanar alguns princípios gerais relacionados com a evolução da tecnologia da ventilação artificial e revisitar certas noções básicas de fisiologia respiratória, muitas das quais explanadas no capítulo introdutório sobre “Problemas Respiratórios do RN”.

Os ventiladores clássicos podem ser classificados em dois grandes grupos: ventiladores de volume e ventiladores de pressão (positiva ou negativa). Considerando o modo de administração do fluxo gasoso (aquecido e humidificado), cuja concentração em oxigénio pode variar entre 21 e 100% através de misturadores que fazem parte do próprio equipamento, existem duas modalidades: ventiladores de fluxo contínuo e ventiladores de fluxo intermitente.

Nos ventiladores de volume, um determinado e constante volume de gás previamente calculado é administrado ao doente durante cada ciclo inspiratório/ de insuflação.

Inicialmente, na década de 1980, eram pouco utilizados no RN, pois não tinham sistemas eficazes na monitorização do volume corrente gerado pelo ventilador.

Actualmente, com o desenvolvimento de vários sistemas de monitorização contínua baseados em sensores de fluxo, a aplicação de ventiladores de volume já pode ser efectivada com segurança em RN; para além da monitorização precisa do volume corrente, é também possível monitorizar outros parâmetros.

Geralmente, os ventiladores iniciam a fase inspiratória dos respectivos ciclos ventilatórios em intervalos de tempo determinados. Nos ventiladores volumétricos a inspiração termina quando o volume de gás pré-determinado tiver sido administrado ao doente. Como exemplos de ventiladores com estas características citam-se os históricos Bourns LS 104 e 105®.

Nos ventiladores de pressão positiva, considerados classicamente os ventiladores de eleição para RN, o volume de gás administrado ao RN durante a fase inspiratória somente cessa quando a pressão de insuflação pulmonar (pressão inspiratória ou “pico” de pressão) atinge o nível previamente determinado.

Ou seja, neste tipo de ventiladores a quantidade de gás que entra no pulmão do RN a cada inspiração dependerá principalmente da referida pressão inspiratória e da compliance (recordar a relação variação de V/ variação de P).

Para determinada compliance pulmonar, quanto maior a pressão inspiratória, maior o volume de gás administrado durante a fase inspiratória. O inverso também é verdadeiro: para determinada pressão inspiratória, o volume de gás administrado durante a fase inspiratória será tanto maior quanto maior a compliance pulmonar.

Os ventiladores de pressão negativa (em que o RN era colocado dentro de estrutura ou suporte, com sistema de vácuo estanque aplicado em torno do tórax, expandindo-o) são hoje considerados obsoletos, interessando apenas mencioná-los para enquadramento mais compreensivo.

Nos ventiladores de fluxo intermitente o gás somente é administrado durante a fase inspiratória do ciclo respiratório. Este tipo de ventiladores caiu em desuso pela seguinte razão: se um RN respirasse de modo não síncrono com o ventilador (por ex. início da inspiração espontânea durante a fase expiratória do ventilador) o mesmo passaria a respirar num sistema fechado, ou respiraria gás contido no chamado espaço morto (TET e tubagem do ventilador).

Nos ventiladores de fluxo contínuo o gás é administrado ao RN, quer na fase inspiratória, quer na fase expiratória do ciclo respiratório. Deste modo, pode compreender-se que com tais ventiladores é possível a ventilação artificial com frequências respiratórias baixas, sendo que o RN mantém concomitantemente a respiração espontânea intercalada por ciclos artificiais do ventilador, ao mesmo tempo que se verifica o fluxo contínuo de gás através do circuito do ventilador; é, assim, possível a chamada ventilação intermitente obrigatória (IMV – intermittent mandatory ventilation).

Apesar de os ventiladores de fluxo contínuo terem permitido a introdução da IMV e, por isso, terem contribuído para um avanço na assistência ventilatória do RN, não resolveram o problema da respiração assíncrona RN-ventilador: há, com efeito, a possibilidade de, por ex., o ventilador iniciar a fase inspiratória no momento em que o doente expira.

Do assincronismo poderão, com efeito, resultar efeitos secundários importantes tais como diminuição da eficiência das trocas gasosas, retenção de mistura gasosa intra-alveolar, variabilidade da pressão arterial e da velocidade do fluxo sanguíneo cerebral podendo conduzir a hemorragia intraperiventricular, etc..

Nalguns ventiladores de pressão, a inspiração termina quando a pressão inspiratória pré-determinada é atingida. Estes ventiladores são ciclados por pressão (por ex. o velho Baby Bird®). Com este tipo de ventiladores não é possível obter uma “onda quadrada ou em plateau”), dificultando que, com determinado “pico” de pressão, se promova uma ventilação alveolar eficaz, nomeadamente nos casos de compliance pulmonar diminuída (por ex. por défice de surfactante).

Outro modo de interromper a fase inspiratória de um ventilador é por tempo; ou seja, o ventilador mantém a pressão inspiratória por período de tempo pré-determinado (criando desta forma o plateau inspiratório), no fim do qual se inicia a expiração.

Os ventiladores com estas características são designados por ventiladores de pressão positiva não sincronizada (“ciclados por tempo e de pressão limitada): permitem regular o número de ciclos ventilatórios por minuto, os tempos inspiratório e expiratório, assim como limitar a pressão inspiratória (“pico” de pressão), em relação com o débito do gás e o volume de cada ciclo ventilatório.

Recorda-se que débitos do gás mais elevados (4 a 10 L/minuto) conduzem a pressões inspiratórias mais elevadas (“picos” mais elevados) e a ondas inspiratórias “quadradas” ou em plateau, em que o aumento de pressão é mais rápido; débitos mais baixos (0,5-4 L/minuto produzem ondas inspiratórias “em rampa” ou sinusoidais em que o aumento de pressão é mais lento – semelhante à respiração normal. Como exemplos de ventiladores com estas características são citadas as seguintes marcas: Bear Cub/Bourns® e Sechrist®.

Entretanto, as tecnologias permitiram desenvolver ventiladores de fluxo contínuo permitindo que, ao mesmo tempo, o doente respire espontaneamente e desencadeie, com o esforço inspiratório, uma pressão de insuflação pulmonar (pressão inspiratória) que será sempre síncrona com o referido esforço inspiratório.

Este tipo de ventilação à demanda” ou “disparada” pelo doente (termo corrente em inglês – patient triggered ventilation ou intermittent demand ventilation) é hoje exequível com os chamados ventiladores na modalidade de ventilação sincronizada. Como exemplos deste tipo de ventiladores são citadas as seguintes marcas: Bear Cub 750 VS®, VIP Bird®, Babylog 8000 Plus® e SLE HV 2000®.

Actualmente, aplicando as novas tecnologias, as quais permitem obter melhores resultados, é possível utilizar um método de ventilação sincronizada com melhor interacção entre o doente e o ventilador utilizando a actividade eléctrica do diafragma medida por sensor (sonda) colocado no esófago. É o método NAVA (neurally adjusted ventilatory assist).

Princípios gerais da ventilação mecânica convencional invasiva

Para melhor compreensão dos referidos princípios, importa salientar que, na prática clínica e quanto à etiopatogénese, três grandes grupos de problemas respiratórios neonatais podem ser considerados:

  • SDR em que predomina a diminuição da compliance pulmonar (por ex. SDR da prematuridade por défice de surfactante, pneumonia, edema pulmonar, atelectasia, hipoplasia pulmonar, etc.);
  • SDR em que predomina a resistência aumentada da via respiratória (por ex. síndroma de inalação amniótico-meconial, doença pulmonar crónica, edema intersticial, etc.);
  • SDR em que predomina a disfunção da musculatura respiratória, do mecanismo de regulação respiratória, ou doença obstrutiva relacionável com anomalias congénitas das vias respiratórias superiores (por ex. miastenia grave, doença neurológica grave, atrésia dos coanos, síndroma de Pierre Robin, efeito de fármacos depressores do SNC, apneia, encefalopatia hipóxico-isquémica, etc.).

1. Parâmetros utilizados na ventilação com pressão positiva (não sincronizada ou convencional)

Pressupondo que a doença respiratória evolui (trata-se de um processo dinâmico), e está indicada a ventilação mecânica, assim como o manejo duma “máquina” chamada ventilador, torna-se fundamental um conhecimento básico da funcionalidade deste e dos parâmetros utilizados para reverter a situação.

Salienta-se, a propósito, que os parâmetros de regulação a utilizar na ventilação artifcal, em qualquer modalidade desta, requerem experiência do operador, o conhecimento da patologia de base e sua gravidade, assim como a idade gestacional do paciente.

  • Frequência (ciclos/minuto)
    Pode variar entre 40 e 60 ciclos/minuto; a frequência deve ser ajustada para Vc (volume corrente) e ventilação – minuto adequados. Deve ser dada atenção especial ao utilizar FR >75 ciclos/minuto uma vez que o tempo para a expiração poderá tornar-se demasiado curto, o que poderá originar situações de retenção de ar e desvio deste para zonas exteriores à via aérea (ar ectópico). Para prevenir tal, deve diminuir-se o Ti (tempo inspiratório) e a relação i:e (relação inspiração:expiração) para aumentar o Te (tempo expiratório). (ver adiante alínea Monitorização de parâmetros…)
  • Tempo inspiratório (Ti)
    Em geral o Ti utilizado na prática varia entre 0,37 a 0,40 segundos, a não ser que surjam determinadas condicionantes que obriguem à sua alteração.
  • Pressão inspiratória (ou pico inspiratório máximo-PIP em cm/H2O)
    A expansibilidade da caixa torácica e grande parte do volume corrente produzido dependem da PIP. A escolha inicial do PIP depende da idade gestacional, do tipo de patologia e gravidade da mesma, da expansibilidade da caixa torácica, e da experiência e sensibilidade do operador. A PIP pode variar entre valores tão baixos como 16-18 cm H2O e valores tão altos como 28-32-34-38 cm H2O, dependendo dos factores atrás apontados.
  • PEEP ou Pressão positiva no fim da expiração (cm/H2O)*
    A PEEP (positive end expiratory pressure) é a pressão de distensão ou abertura permanente das vias aéreas no fim da expiração impedindo o colapso alveolar. Este fenómeno permite o que se designa por “recrutamento alveolar” rendibilizando o funcionamento de mais alvéolos (alvéolos mais ventilados e mais distendidos), permitindo ventilação-perfusão mais eficaz. Os valores de PEEP utilizados consoante as situações clínicas devem oscilar entre 3 e 6 cm H2O.

*Pressupondo, como foi referido em capítulo anterior, que os ventiladores modernos dispõem a funcionalidade de fluxo contínuo, o que não acontecia nos de 1ª geração. A modalidade CPAP exclusiva foi abordada anteriormente.

 

  • FiO2 ou fracção de oxigénio no ar ou mistura gasosa inspirada (avaliada em %: de 21 a 100, ou em décimas: de 0,21 a 1,0). Ar<> 21%.
    Em regra, inicia-se a ventilação utilizando FiO2 de 40% aplicando a regra de bom senso de começar com parâmetros “baixos”; no entanto há que ter em conta a gravidade clínica e o tipo de patologia, sendo objectivo manter a saturação da Hb em O2 (SpO2) entre 89 e 93%.
  • Pressão média da via aérea ou Paw ou MAP (cm/H2O)
    Os principais parâmetros que influenciam a Paw são: Ti, relação I : E, PIP, PEEP e formato da onda inspiratória. Como é evidente, o seu valor depende da gravidade da situação clínica.
  • Relação tempo inspiratório/ tempo expiratório (I : E ou Ti : Te)
    A relação I : E depende da FR e do Ti . A relação I : E fisiológica é 1 : 2. Como regra pode referir-se que todas as relações I : E são boas ou aceitáveis, com excepção da relação I : E de 1 : 1, ou das chamadas relações I : E invertidas (exemplo I : E de 1:0.8).
    Com efeito, relações invertidas ou relações de 1 : 1 aumentam a possibilidade de ruptura alveolar e de situações de “ar ectópico”: para certo Ti pré-determinado o aumento da frequência para além de determinados valores limita o tempo expiratório levando a acumulação progressiva de gás (ar+O2).

2. Escolha dos parâmetros iniciais na ventilação com pressão positiva (não sincronizada ou convencional)

São analisados a seguir os diversos parâmetros com base nas particularidades referidas.

  • Débito (fluxo) da mistura gasosa
    Em regra utiliza-se débito de 6 a 8 L/minuto.
  • PEEP (cm/H2O)
    A PEEP deve ser ajustada entre 3-6 cm de H2O.
    Nas situações obstrutivas a utilização da PEEP deve ser criteriosa pela possibilidade de diminuição do retorno venoso, o que implica vigilância rigorosa do estado hemodinâmico. O valor deverá ser quanto baste para diminuir as retracções costais, sendo que tal critério obriga a muita prática e experiência.
  • Frequência (ciclos/minuto)
    A frequência utilizada no início da ventilação poderá oscilar entre 20 e 60 ciclos por minuto.
  • Ti (Tempo inspiratório)
    Utiliza-se em geral Ti entre 0,36 e 0,4 segundos.
    Salienta-se que: o ajustamento do Ti deverá obedecer à constante de tempo do sistema respiratório a qual se encontra elevada nas situações obstrutivas; e que quanto mais graves os sinais de compromisso parenquimatoso, mais curto deverá ser o Ti.

A constante de tempo (Kt) é a medida do tempo necessário para a pressão nas vias aéreas alveolares e proximais se equilibrarem. Os valores normais oscilam entre 0,08 e 1,1 segundos (s); média ~0,24 segundos (s). Ao cabo de 3 constantes de tempo, cerca de 95% do Vc entrou (durante a inspiração) ou saiu (durante a expiração) dos alvéolos.

  • PIP (cm/H20)
    A PIP/pressão inspiratória ideal deve ser a mínima necessária para manter adequada ventilação alveolar; a referida pressão deverá ser sempre verificada previamente através da oclusão manual da peça de conexão tubo do ventilador-TET, antes da conexão com este último, já aplicado no doente.

Na prática, a PIP deve ser a suficiente para promover elevação do tórax em cerca de 0,5 cm (o que exige muita prática e experiência), ou para obter volume corrente entre 4 e 6 mL/kg.
Para promover a elevação da PaO2, os parâmetros a aumentar são a FiO2, a PIP e a PEEP. Para promover diminuição da PaCO2, os parâmetros a aumentar são a FR e a PIP; para aumentar a Pa CO2, haverá que diminuir a FR e a PIP.

3. Parâmetros utilizados na ventilação sincronizada (Patient – triggered ventilation)

Na ventilação sincronizada são utilizados os parâmetros mencionados a propósito da ventilação com pressão positiva não sincronizada. Neste tipo de ventiladores existe um mecanismo automático de “disparo/ com gatilho” (trigger) ou de início de ventilação automática se surgir apneia; se tal surgir, o ventilador passará, então, a controlar a totalidade dos ciclos respiratórios. Assim, há que contar com mais os seguintes parâmetros a programar:

  • Trigger
    O nível de “trigger” (“disparo, gatilho”) deve ser pré-determinado, caso a caso, segundo uma escala de sensibilidade e dependendo da patologia e da imaturidade do RN; inicialmente escolhe-se o nível mais baixo, que corresponde a maior sensibilidade para o “disparo” e início da ventilação controlada. O nível poderá ser ou não aumentado em função da resposta do RN.
  • Volume garantido (VG)
    Nesta modalidade, através de um sensor de fluxo expiratório, o ventilador utiliza a mínima pressão necessária para atingir o volume estabelecido.
    Na prática pré-determina-se ou marca-se no ventilador o volume corrente que se deseja, geralmente 4-6 mL/Kg. O sistema automático de volume garantido – ou do volume que se deseja, pré-determinado que começa a operar ao carregar-se na respectiva tecla – permite que o mesmo se mantenha independentemente da evolução da compliance à medida que a situação melhora, ou esta aumente; ou seja, considerando a variação V/variação P que define a compliance, em caso de melhoria desta (em função da evolução favorável da patologia pulmonar), é o próprio ventilador que ajusta progressivamente a pressão necessária (neste caso, diminuindo a pressão inspiratória/PIP necessária durante os ciclos respiratórios). Com esta estratégia previne-se, em certa medida, o trauma resultante de volume gasoso excessivo/ hiperinsuflação ou volutrauma.
Nota importante sobre o conceito de VOLUME GARANTIDO: Trata-se, pois, de um modo de ventilação híbrido, que associa um volume que se deseja (volume-alvo) às vantagens de um ventilador de pressão.
Pormenorizando um pouco mais:
    • o sensor de fluxo à entrada do TET mede o volume corrente expirado;
    • o ventilador permite comparar o volume corrente expirado com o volume que se deseja (ou volume-alvo marcado);
    • automaticamente o pico de pressão inspiratória/PIP nos ciclos seguintes é regulado até se atingir o limite máximo de PIP pré-definido;
    • também automaticamente a PIP aumenta ou diminui de modo a manter um volume corrente próximo do volume-alvo marcado.

Resumidamente apontam-se as seguintes vantagens da ventilação com volume garantido: menor risco de volutrauma e de atelectrauma, assim como de oscilações bruscas da PaCO2 e do fluxo sanguíneo cerebral.
O volume corrente inicial variará em função da idade gestacional, do peso e da patologia de base. Podem ser estabelecidos os valores médios de 4-6 mL/kg/ciclo.

 

4. Avaliação da ventiloterapia

Os objectivos essenciais da ventiloterapia são obter:

  • pH >7,2 nas primeiras 6 horas de vida e >7,25 após as 6 horas de vida;
  • Pa CO2 entre 40 e 60 mmHg;
  • Pa O2 entre 50 e 70 mmHg ou SpO2 entre 89 e 93%.

Após entubação traqueal e início da ventilação, torna-se crucial verificar a posição do TET através da radiografia do tórax póstero-anterior feita in situ (em posição correcta, a extremidade deve projectar-se entre a 1ª e 3ª vértebras torácicas); a radiografia inicial e as seguintes, a efectuar de acordo com a evolução, servirão para determinar o grau de compromisso parenquimatoso e eventuais complicações como, por ex. sinais de ar ectópico ou outras complicações.

Outra avaliação seriada essencial diz respeito à monitorização em UCIN (invasiva e não invasiva) já abordada.

Sob o ponto de vista hemodinâmico há que monitorizar, entre outros parâmetros, os pulsos e ondas de pulso, a perfusão periférica, a frequência cardíaca, a pressão arterial e o débito urinário.

5. Cuidados com o tubo endotraqueal

Para além da radiografia do tórax anteriormente mencionada a fim de verificar a localização correcta, há que:

  • Fixar o TET de modo seguro e correcto evitando aglomerado de adesivos;
  • Manter o pescoço do RN ligeiramente estendido;
  • Não aspirar o TET muito frequentemente pela possibilidade de o manuseamento excessivo provocar flutuações da pressão arterial e do débito sanguíneo cerebral.

6. “Desmame” da ventilação mecânica convencional

À medida que se verificam sinais de melhoria da doença e da função pulmonares (ver atrás avaliação/ monitorização contínua), o suporte mecânico ventilatório deve ser progressivamente aliviado com vista à sua retirada, idealmente no mais curto intervalo de tempo.

Os parâmetros básicos para iniciar o desmame ventilatório são fundamentalmente três:

  • Baixas necessidades de oxigénio (FiO2 ≤30%);
  • Melhoria da compliance (isto é, possibilidade de baixar a pressão inspiratória/PIP nas vias aéreas mantendo o mesmo volume corrente e oxigenação – ver atrás: volume garantido); e
  • Boa oxigenação contínua (SpO2 ≥90-92%).

Outros parâmetros a considerar são:

  • Hemodinâmicos (normalidade da pressão arterial, frequência cardíaca e sinais perfusão periférica adequada, etc.);
  • Metabólicos (glicémia e ionograma sérico normais);
  • Hematológicos (hematócrito igual ou superior a 35-40%, como garantia da capacidade de transporte de oxigénio pela Hb após termo da suplementação daquele);
  • Neurológicos (normalidade do automatismo respiratório com garantia de respiração espontânea, rítmica e regular).

Estratégia:

  1. O parâmetro PIP (aquele que potencialmente é mais agressivo para o doente) deve ser o primeiro a ser progressivamente “aliviado”: deve diminuir-se progressiva e lentamente (em regra 2-3 cm H2O de cada vez) até se atingir valor de PIP <20 H2O. A PEEP deve ser seguidamente diminuída até <4 cm H2O;
  2. Ao atingir-se a PIP e a PEEP referidas, mantendo o mesmo volume corrente, com garantia de expansibilidade torácica adequada, e mantendo a mesma FiO2 ≤30%, é a frequência respiratória (FR) o parâmetro seguinte a ser aliviado de modo a atingir-se o valor de ciclos <20/minuto; ao mesmo tempo que se avalia a tolerância do RN, mantém-se o mesmo volume corrente, a mesma PIP (já anteriormente aliviada) e a mesma FiO2 (FiO2 ≤30%). Caso não se verifique tolerância do RN, deve manter-se a FR no menor nível possível, tentando diminuição mais tarde;
  3. Ao atingir-se FR de 10-15 ciclos/minuto, com PIP <20 cm H2O baixo (dependendo da idade gestacional e da maturidade do RN), com FiO2 ≤30%) é possível proceder à extubação do RN;
  4. Para garantir o sucesso da extubação está indicada a administração de:
    • corticóide nos casos de RN submetidos a ventilação mecânica por período superior a 7 dias (por ex. dexametasona, na dose de 0,1 mg/kg cerca de 4 horas antes da extubação, com repetição de mais duas doses de 0,1 mg/kg com oito horas de intervalo); trata-se, pois, de tratamento de curta duração tendo em conta os efeitos sobre o neurodesenvolvimento e crescimento;
    • metilxantina (por ex. citrato de cafeína por ser estimulante do centro respiratório, com início 24 horas antes da extubação: dose de impregnação (oral ou IV) 20-40 mg/kg, seguindo-se dose de manutenção diária a iniciar 24 horas depois da dose de impregnação: 4-6 mg/kg (oral ou IV);
  5. Antes da extubação o RN deverá ficar submetido a pausa alimentar; na hipótese de o doente não estar em jejum, deverá proceder-se à aspiração do conteúdo gástrico antes da extubação. É igualmente recomendável a aspiração das vias respiratórias superiores e, eventualmente, do TET.
  6. Após extubação o RN passará para o regime de CPAP nasal (nCPAP) ou oxigenoterapia nas modalidades atrás descritas (que poderá ser utilizando fluxo contínuo), sendo o suplemento de O2 regulado em função da SpO2, mantendo-se o objectivo inicial de valores entre 89 e 93%. Salienta-se a necessidade de pausa alimentar nas duas horas subsequentes à extubação.
  7. Em circunstâncias especiais poderá estar indicada fisioterapia respiratória, reservada para os RN com excesso de secreções nas vias aéreas ou com atelectasia recorrente verificada antes da extubação.
  •  

Nota: Tendo em consideração os objectivos fundamentais do livro (sendo um tratado elementar), opta-se por não abordar, quer aspectos práticos do manejo de ventiladores de alta frequência, quer os relacionados com os de última geração.

Monitorização de parâmetros no RN submetido a ventilação mecânica

No RN submetido a ventilação mecânica é possível, com os modernos ventiladores proceder à monitorização de parâmetros, alguns dos quais referidos ao abordar as particularidades da fisiologia da respiração no RN.

Para além da FiO2 que pode ser determinada, quer com oxímetros convencionais quando o RN está submetido a oxigenoterapia em campânula ou em incubadora, quer em oxímetros instalados em ventiladores, cabe referir outros parâmetros:

  • A pressão média da via aérea (Paw ou MAP- siglas de pressure airway ou mean airway pressure) é a média das pressões nas vias aéreas proximais durante todo o ciclo respiratório. Os parâmetros de ventilação tal como a frequência (F ou nº de ciclos/minuto), o tempo inspiratório em segundos (Ti), a relação tempo inspiratório (Ti)/tempo expiratório (Te), o pico inspiratório máximo ou pressão inspiratória em cm H2O (PIP) e a pressão positiva no final da expiração em cm H2O (PEEP ou positive end expiratory pressure que corresponde à pressão residual no fim da expiração ao promover-se pressão de distensão contínua) podem considerar-se os determinantes da MAP.
    Na prática, a pressão média pode ser representada pela área da figura geométrica formada pela onda inspiratória de pressão; daí resulta que ondas inspiratórias “quadradas” ou em plateau geram uma pressão média maior que as ondas sinusoidais (em rampa), triangulares.

Nota: Como foi referido no capíulo sobre “Problemas Respiratórios – Generalidades”, a sigla CPAP conceptualmente significa o mesmo que PEEP: emprega-se o termo CPAP quando o RN, estando em respiração espontânea, está ligado a aparelho de fluxo contínuo que gera a referida pressão; e PEEP, quando o RN está submetido simultaneamente a ventilação com pressão positiva intermitente.

Através da fórmula seguinte pode determinar-se a Paw:

Paw ou MAP =(F) (Ti)(PIP) + [60 –(F) (Ti) x PEEP]
___________________________________
60

 

  • Em certos casos pode determinar-se a pressão transpulmonar: a medida da diferença entre a pressão nas vias aéreas e a pressão no esófago determinada através de um cateter esofágico.
  • O volume corrente (Vc) é definido como o volume de ar/mistura gasosa inspirado em cada ciclo respiratório ajustado ao peso corporal em ml/Kg. Há actualmente aparelhos para monitorização contínua do volume corrente . O Vc normal varia de 5 a 7 mL/Kg para a maioria dos RN.
    Em ventilação mecânica (artificial), segundo vários autores deve ser utilizado um volume corrente mais baixo: 4 a 6 mL/Kg.
  • O parâmetro ventilação/minuto (V) obtém-se multiplicando a frequência respiratória (F) pelo volume corrente (Vc); é expresso em mL/Kg/ minuto ou L/Kg/ minuto; isto é: Vc x F = V (mL /Kg/ minuto ou L/Kg/ minuto).
    Exemplo: sendo F = 40 ciclos/ minuto , Vc = 6,5 mL/Kg, o volume minuto será 260 ml/Kg/ minuto ou 0,26 L/Kg/ minuto.
    Os valores considerados normais no RN do V estão compreendidos entre 240-360 mL/Kg/ minuto ou 0,24-0,36 L/Kg/minuto. Monitorizando o Vc e a V simultaneamente com a Paw (MAP), podem ser efectuados ajustamentos adequados da PIP, PEEP e do tempo inspiratório (Ti).
  • Valores de distensibilidade ou elasticidade alveolar ou compliance <1 mL/cm H2O/kg são compatíveis com doença pulmonar intersticial ou alveolar tal como a doença da membrana hialina. A compliance alveolar de 1-2 mL/cm H2O/kg significa recuperação, tal como sucede depois de administração de surfactante (ver adiante).
    No RN os valores médios da compliance são 3,70 mL/cm H2O, variando entre 2,0 e 14 mL/cm H2O.
    A chamada compliance dinâmica é calculada dividindo o volume corrente (Vc) pelo gradiente de pressão (grad P entre o início e o fim da inspiração).
    Os valores médios da compliance dinâmica são 1,72 mL/cm H2O/kg, variando entre 0,9 e 3,7 cm H2O/kg.
  • Valores de resistência pulmonar ao fluxo de gases >100 cm H2O/L/ segundo são sugestivos de doença das vias aéreas com restrição ao fluxo de ar tal como sucede com a displasia broncopulmonar (ver adiante).
  • As curvas de pressão – volume (P-V) e de fluxo – volume (F-V) permitem objectivamente analisar a dinâmica respiratória, ciclo a ciclo ventilatório. As curvas F-V providenciam informação no que diz respeito à resistência das vias aéreas, especialmente à restrição do fluxo expiratório; as curvas P-V reflectem, sobretudo, as variações da compliance dinâmica do pulmão.
  • A constante de tempo (Kt) foi definida anteriormente.

Para evitar retenção de ar intra-alveolar durante a ventilação mecânica, a medida do tempo expiratório deve ser >3 vezes a Kt (0,36-0,45 segundos).

Índices de avaliação do problema respiratório

No âmbito da assistência respiratória podem ser utilizados certos índices de gravidade que permitem avaliar o quadro clínico e igualmente o prognóstico:

  1. Relação PaO2/FiO2;
  2. Índice de oxigenação (IO) incorporando a FiO2, a pressão média nas vias aéreas (Paw ou MAP ou PMA), e a PaO2; utiliza-se a seguinte fórmula para o respectivo cálculo:
    IO = [FiO2 (21-100%) x Paw ou MAP ou PMA]: PaO2 (mmHg)
    ou simplesmente: IO = (PMA x FiO2/PaO2);
    [PMA: pressão média na via aérea; PaO2: pressão parcial arterial de O2 pós-ductal];
    Os valores de IO compreendidos entre 30-35 são indicativos de problema respiratório grave. Se o IO aumentar progressivamente durante um período de 6 horas para cerca de 35-40, existe insuficiência respiratória muito grave comportando risco de mortalidade elevada, a qual pode exceder 80%.
  3. Diferença alvéolo-arterial de oxigénio (A-a DO2), ou diferença entre a pressão parcial de oxigénio no gás alveolar (PAO2) e a pressão parcial de oxigénio no sangue arterial (PaO2). Isto é: A-a DO2= PAO2 – PaO2.
    Tal valor traduz igualmente a relação ventilação-perfusão, a qual se pode calcular pela seguinte fórmula:
    [(FiO2 entre 0.21-1)(Pr atm -47) – PaCO2 (em mmHg) /R ] – PaO2(em mmHg).
NB-Pr atm = pressão atmosférica de 760 mmHg; 47= valor da pressão do vapor de água; admite-se que o valor da pressão alveolar de CO2(PACO2) é sobreponível ao valor da pressão arterial de CO2(PaCO2); R= quociente respiratório de 0,8 sendo que alguns autores não consideram este parâmetro na fórmula.
Valores >250 mmHg indicam insuficiência respiratória e necessidade de assistência respiratória que poderá ser iniciada com CPAP nasal.
Regra prática: – “a regra dos 50” poderá estabelecer uma relação com o resultado da aplicação da fórmula; assim se: PaO2 ~50 mmHg, PaCO2 ~50 mmHg, FIO2 >50%, pressão atmosférica ~760 mmHg e humidade relativa ~50%, muito provavelmente a A-aDO2 será >250 mmHg.

Fármacos de apoio à ventiloterapia convencional

Os fármacos utilizados como apoio à ventilação mecânica convencional (e, por consequência, a manusear por equipa de intensivismo com experiência) relativamente aos quais se faz uma abordagem sucinta, podem ser sistematizados como se segue:

  1. Com acção directa na mecânica ventilatória (analgésicos, sedativos, relaxantes musculares e estimulantes respiratórios);
  2. De suporte circulatório;
  3. Corticosteróides;
  4. Diuréticos.  

Os analgésicos mais utilizados são os opióides, de que são exemplo a morfina, o fentanil e o alfentanil.

Quanto à morfina, utiliza-se a dose inicial de 100 mcg/kg, seguindo-se manutenção: 10-30 mcg/kg a repetir com 1 hora de intervalo.

No que respeita ao fentanil, utiliza-se a dose inicial de 100 mcg/kg em 10 minutos, seguindo-se a manutenção na dose de 1 mcg/kg/hora.

Entre os sedativos são utilizados com mais frequência as benzodiazepinas (por ex. midazolam e diazepam).

O midazolam utiliza-se na dose inicial de 0,2 mg/kg IV, seguindo-se a manutenção em perfusão lenta: 2-6 mcg/kg/minuto. No que respeita ao diazepam: 1ª dose: 0,1-0,2 mg/kg e doses ulteriores iguais, se necessário, cada 12- 24 horas.

Os relaxantes musculares (mais utilizados na era dos ventiladores não sincronizados quando se verificava desajustamento e “luta” do RN “contra o ventilador”) reduzem as necessidades em analgésicos; são utilizados quando a combinação sedativo-analgésico é ineficaz; em geral obrigam a reajustamento dos parâmetros ventilatórios, nomeadamente aumento da FR.

Citam-se como exemplos a d-tubocurarina, o pancurónio, o vecurónio e o atracúrio. Por ser mais frequentemente usado, faz-se menção apenas da posologia do pancurónio: dose inicial: 30-40 mcg/kg; manutenção: 20 mcg/kg cada 1 ou cada 2 horas se necessário.

Os fármacos de suporte circulatório, globalmente, permitem rendibilizar as trocas gasosas nos tecidos (circulação sistémica) e nos pulmões (circulação pulmonar).

Os fármacos que actuam na circulação sistémica melhoram o débito sanguíneo tecidual por diminuição da pré-carga e da pós-carga e aumento da contractilidade do miocárdio. Como exemplos de fármacos com tal acção e mais frequentemente usados em unidades de cuidados intensivos e especiais – e sempre utilizados em perfusão contínua e de efeito dependente de dose e do local de acção – citam-se a dopamina, a dobutamina e o isoproterenol. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Fármacos com acção na circulação sistémica

FC: = frequência cardíaca
FármacoLocal de acção/ receptores Dose (mcg/kg/min)Efeito
Dopamina

de dopamina (dopaminérgico)
beta 1
alfa 1 + beta 1

0,5 – 4
4 – 10
11 – 20

vasodilatação renal
inotropismo
vasoconstrição periférica

Dobutamina

beta 1
beta 1 + beta 2

<10
>10

inotropismo
vasodilatação periférica

Isoproterenolbeta 1 + beta 20,05 – 2

inotropismo
vasodilatação periférica
>FC

Por vezes utiliza-se combinação de dopamina em baixa dose (<5 mcg/kg/min) com dobutamina (na dose de 5-10 mcg/kg/min); o objectivo é diminuir a probabilidade de vasoconstrição periférica verificada com altas doses de dopamina, tirando partido do efeito dopaminérgico desta sobre a perfusão renal, e do inotropismo com a dobutamina.

Os fármacos que actuam na circulação pulmonar têm particular utilidade em situações de vasoconstrição pulmonar conduzindo a hipertensão pulmonar. Citam-se como exemplos “históricos” a tolazolina, a nitroglicerina, e o nitroprussiato de sódio. Mais recentemente passou também a ser utilizado o sildenafil (Viagra®).

Os fármacos designados habitualmente por estimulantes respiratórios estão especialmente indicados na prevenção e tratamento da apneia da prematuridade (especialmente em RN de peso de nascimento <1.000 gramas e na fase pós-extubação de RN de muito baixo peso e na doença pulmonar crónica).

Como acções principais destacam-se: estimulação do centro respiratório, aumento da sensibilidade dos quimiorreceptores ao CO2, e aumento da intensidade das contracções diafragmáticas. Na prática clínica, os mais usados são as metilxantinas (teofilina e citrato de cafeína) e o doxapram.

Resumem-se as respectivas doses (sendo aconselhável o doseamento sérico):

    • Teofilina IV dose inicial: 5-6 mg/kg; manutenção: 1,5-2 mg/kg 8-8 horas (risco de taquicárdia, tremores, distensão abdominal);
    • Cafeína (citrato) IV dose inicial: 20 mg/kg IV; manutenção: 5-10 mg/kg cada 24 horas;
    • Doxapram IV contínuo dose: 1-3 mg/kg/hora, a regular em função da resposta clínica; como efeitos secundários há possibilidade de hipertensão arterial, tremores/ convulsões, sialorreia, etc..

No que respeita aos corticóides, cabe citar fundamentalmente a dexametasona e a hidrocortisona. Na fase pré e pós-extubação já foi referida a dexametasona a utilizar em período terapêutico curto dados os potenciais efeitos adversos sobre o neurodesenvolvimento e crescimento.

Tendo em conta tal limitação, e na perspectiva de tratamento que não seja de curta duração (por ex. casos dependentes do ventilador e doença pulmonar crónica, antecedentes de amnionite, etc.), recomenda-se actualmente a hidrocortisona, sem os efeitos adversos atribuídos à dexametasona e com igual ou superior eficácia quanto ao desmame do ventilador e à diminuição da necessidade de oxigénio suplementar. São estabelecidas as seguintes doses de hidrocortisona: 5 mg/kg/dia durante 3 semanas.

Nalguns centros utiliza-se em alternativa a betametasona inalada num período variando entre 1 e 4 semanas.

Os diuréticos, diminuindo o edema intersticial pulmonar, estão principalmente indicados em situação de canal arterial permeável e na doença pulmonar crónica.

Na prática usam-se:

  • Furosemido, na dose de 1-2 mg/kg IV; a dose pode ser repetida em função da resposta clínica tendo em atenção efeitos adversos não desprezíveis com a utilização prolongada: nefrocalcinose, alcalose hipoclorémica, hipocaliémia, hipocalcémia, etc.;
  • Clorotiazida: 20 mg/kg/dose, via oral; e espironolactona: 1 mg/kg/dose.

Complicações da ventilação mecânica

O Quadro 2 resume as complicações mais frequentes.

QUADRO 2 – Complicações da Ventilação Mecânica.

Das vias aéreas
Extubação, oclusão, edema, estenose
Pulmonares
Atelectasia, pneumotórax, pneumomediastino, enfisema, doença pulmonar crónica
Mecânicas
Desconexão, curvatura do TET, falha eléctrica no ventilador, fuga de gás
Infecciosas
Traqueíte, pneumonia, septicémia (sendo fontes de infecção possíveis: mãos, cateteres, humidificadores, pele, etc.)

Princípios gerais da ventilação de alta frequência

Apesar dos progressos realizados com a ventilação sincronizada, permitindo, cada vez mais, melhores resultados, ainda persistem problemas pendentes de vária ordem, requerendo novas investigações, citando-se, entre outros, os seguintes:

  • Monitorização do grau de distensão do ácino conduzindo ao aumento da permeabilidade alveolar e capilar;
  • A avaliação da magnitude da hipertensão pulmonar persistente associada a grande número de quadros clínicos de SDR; e
  • O estudo selectivo das prevalências de doença pulmonar crónica como sequela das estratégias utilizadas com os ventiladores existentes originando barotrauma (como efeito da pressão de gás utilizado), volutrauma (como efeito da pressão utilizada), e o atelectrauma (secundário à desigualdade do grau de distensão alveolar/de “recrutamento” alveolar em diferentes zonas do parênquima pulmonar, isto é, à distribuição heterogénea de ar alveolar, havendo zonas do parênquima com alvéolos mais, ou menos, distendidos.

Surgiu então nova geração dos chamados ventiladores de alta frequência (high frequency ventilators/HFV ou, em português, VAF), completamente diferentes dos ventiladores atrás descritos.

Como características essenciais destes aparelhos – que promovem uma mais eficaz e mais homogénea distribuição de gás (portanto, recrutamento alveolar mais fisiológica), com menor distensão alveolar – são referidas:

  1. Utilização de frequências muito elevadas, suprafisiológicas, variáveis entre 5 e 15 Hertz (designação habitual da frequência em VAF), ou seja entre 300 e 900 ciclos por minuto (1 Hertz corresponde a 60 ciclos por minuto);
  2. Utilização de volumes correntes (Vc) muito baixos, iguais ou inferiores ao espaço morto das vias aéreas (± 1 a 2 mL /kg).

Actualmente são utilizados em muitas unidades como ventilação de recurso/ resgate, ou como ventilação inicial e exclusiva, tendo em conta que tais características contribuem para reduzir o risco de “traumas” no tracto respiratório, atrás referidos.

Os ventiladores de alta frequência compreendem várias modalidades:

  1. Ventilação de alta frequência oscilatória (HFOV ou high frequency oscillatory ventilation), por sua vez, compreendendo os osciladores puros assim como aqueles que funcionam com interrupção de fluxo.
    Como exemplos são citadas as seguintes marcas:
    Hummingbird V®, o Dufour OHF1® e o Sensor Medics 3100A® (osciladores puros); e Babylog 8000 Plus® e Infant Star 950® (interruptores de fluxo).
  2. Ventilação de alta frequência com fluxo de alta velocidade ou “jacto” (HFJV ou high frequency jet ventilation).
    Como exemplo é citada a marca Bunnel Life Pulse®.

As principais indicações da ventilação da alta frequência são: resgate de RN com SDR grave e, fundamentalmente, extremamente imaturos para prevenir o dano decorrente da ventilação convencional e as situações de difícil remoção ou “lavagem” de CO2 como hipoplasia pulmonar ou síndromas de ar ectópico.

Actualmente, como é possível controlar e manter constante o volume corrente de alta frequência com a utilização do volume garantido, o ventilador de alta frequência oscilatória muda de forma automática a pressão de oscilação e mantém constante o volume corrente ajustado.

Princípios gerais da ECMO (oxigenação por membrana extracorporal)

Nesta última alínea do capítulo, importa citar apenas a designação do que se considera o escalão mais avançado e mais sofisticado da assistência respiratória invasiva, implicando equipas altamente especializadas em raros centros de referência distribuídos racionalmente em função das necessidades.

Esta modalidade está indicada em situações comportando risco de mortalidade de 60-70%, e com índice de oxigenação >40 de forma mantida com tratamento convencional.

Noções complementares em síntese:

    • Na ventilação artificial/ ventilação mecânica, a oxigenação é determinada pela fracção de oxigénio inspirado (Fi O2) e pela pressão média nas vias aéreas (MAP).
    • A pressão média das vias aéreas (MAP) é calculada de acordo com a seguinte equação:
      [MAP = K (PIP-PEEP) (Ti / Ti+Te) + PEEP] a qual indica que a MAP aumenta com o aumento da pressão de pico inspiratória (PIP), da pressão positiva no final da expiração (PEEP), da relação do tempo inspiratório com a soma do tempo inspiratório e expiratório (Ti / Ti+Te) e do fluxo (que aumenta a constante de tempo K, ou seja, a medida de tempo necessário para as pressões pulmonares proximais e distais se equilibrarem).
    • O mecanismo pelo qual o aumento da MAP melhora a oxigenação resulta do aumento dos volumes pulmonares e da melhoria da relação V/Q. No entanto, uma MAP excessiva pode comprometer a oxigenação pela hiperdistensão alveolar e shunt direita-esquerda pulmonar.
    • A interacção entre o ventilador e a criança depende essencialmente das características mecânicas do aparelho respiratório, destacando-se:
      • Gradiente de pressão – é a diferença de pressão existente entre as vias aéreas superiores e os alvéolos, necessária para que ocorra o fluxo de gases durante a inspiração e a expiração. Calcula-se através da seguinte equação: – Pressão = volume de compliance ou distensibilidade + resistência x fluxo;
      • Compliance ou distensibilidade – é a elasticidade das estruturas do aparelho respiratório (alvéolos, parênquima pulmonar, parede torácica) e calcula-se pela alteração no volume por cada alteração de unidade de pressão: Compliance ou distensibilidade = ∆ volume / ∆ pressão;
      • Resistência – é a capacidade que o sistema condutor de ar (vias aéreas, tubo endotraqueal, tecido pulmonar) possui para se opor ao fluxo gasoso. Calcula-se pela alteração na pressão por cada unidade de alteração do fluxo: Resistência = ∆ pressão / ∆

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Introdução

A displasia broncopulmonar (DBP), também conhecida por doença pulmonar crónica (DPC) da prematuridade, é uma síndroma que se desenvolve na maioria dos recém-nascidos (~60%) com prematuridade extrema (22-27 semanas) em que se verifica necessidade prolongada de suporte respiratório e oxigenoterapia suplementar; de referir que tal proporção aumenta: 100% entre 22 e 24 semanas.

Trata-se, pois, da doença pulmonar crónica mais frequente na primeira infância, multifactorial, resultando da interacção complexa entre o pulmão imaturo em desenvolvimento e a acção de múltiplos factores perinatais e pós-natais.

A epidemiologia e a fisiopatologia da displasia broncopulmonar (DBP) evoluíram muito desde a sua primeira descrição por Northway em 1967, numa época em que não eram ainda utilizados corticóides pré-natais nem surfactante exógeno, assim como assistência respiratória menos invasiva, aplicando pressão positiva contínua (CPAPcontinuous positive airway pressure).

Assim, em tal época (na era pré-surfactante), a DBP foi definida tendo como base os seguintes critérios:

  • Dependência de oxigénio em RN e lactentes com antecedentes de prematuridade e de doença da membrana hialina grave;
  • Ventilação prévia por longos períodos com concentrações elevadas de oxigénio;
  • Presença de alterações radiológicas/ pulmonares do tórax (padrão reticular grosseiro, opacidades alternando com áreas de arejamento irregular, etc.), e
  • Presença de alterações histopatológicas (de cujo padrão de “displasia” resultou o nome dado à doença).

Tal patologia é actualmente pouco frequente em crianças nascidas com peso >1.500 gramas e idade gestacional >32 semanas.

Na era pré-surfactante, as alterações histológicas mais frequentemente encontradas na via aérea eram hipertrofia da musculatura lisa, metaplasia epitelial e, no parênquima, zonas de enfisema alternando com zonas de fibrose. A este padrão fenotípico de doença é dado muitas vezes o nome de “velha ou clássica” DBP.

Na actualidade, a que corresponde a era moderna de cuidados neonatais, o padrão histológico mais frequentemente encontrado é o de doença homogénea marcada por reduzido número de alvéolos e capilares, mínimas áreas de hiperinsuflação e colapso focal, menos áreas de enfisema e fibrose, ao qual corresponde a chamada “nova” DBP, característica de RN com estádio de desenvolvimento pulmonar mais imaturo, com <1.000 gramas e <28 semanas de gestação.

Critérios de diagnóstico de DBP actuais

Antecedentes históricos

Bancalari em 1979 propôs a definição de DBP considerando como critérios: dificuldade respiratória com necessidade de oxigenoterapia aos 28 dias de vida, associada a alterações radiológicas compatíveis.

Verificou-se, entretanto, que um contingente significativo de RN, sobretudo com peso <1.000 granas e imaturidade extrema, estava dependente de oxigénio aos 28 dias de vida não se verificando antecedentes de patologia pulmonar significativa.

Em 1988 Shennan modificou os critérios propostos por Bancalari introduzindo o termo de DPC do pré-termo assim definida: dificuldade respiratória e dependência de oxigénio às 36 semanas de idade gestacional, associadas a alterações radiológicas compatíveis com a doença.

Concluindo-se que tanto a definição de Bancalari como a de Shennan não permitiam determinar a gravidade da doença pulmonar, chegou-se à definição actual, sintetizada a seguir.

Actualmente, de acordo com os peritos dos National Institutes of Health and Human Development (NICHD) e da Neonatal Research Network (NRN) dos EUA, foram estabelecidos os seguintes critérios sobre terminologia a aplicar nos casos de doença pulmonar crónica com início no período neonatal, considerando dois grupos de RN com as seguintes idades gestacionais: respectivamente, <32 semanas e ≥32 semanas:

I- RN com <32 semanas de idade gestacional: avaliação às 36 semanas de idade pós-menstrual (IPM) ou na data da alta (considerando a que ocorrer primeiro) nos casos de RN necessitando de FIO2 >21% durante, pelo menos, 28 dias:

  • DBP ligeira <> Respirando ar às 36 semanas de idade pós-menstrual ou na data da alta (considerando a que ocorrer primeiro);
  • DBP moderada <> Necessidade de FiO2 <30% às 36 semanas de IPM, ou na data da alta;
  • DBP grave <> Necessidade de FIO2 >30%, com ou sem ventilação IPPV ou CPAP às 36 semanas de IPM, ou na data da alta.

 II- RN com 32 semanas de idade gestacional: avaliação com idade >28 dias, e <56 dias de idade pós-natal ou na data da alta, idem, necessitando de Fi O2 >21% durante pelo menos 28 dias:

  • DBP ligeira <> Respirando ar pelos 56 dias de idade pós-natal ou na data da alta;
  • DBP moderada <> Necessidade de FiO2 <30% até aos 56 dias de idade pós-natal ou na data da alta;
  • DBP grave <> Necessidade de FiO2 >30% com ou sem ventilação IPPV ou CPAP aos 56 dias de idade pós-natal, ou na data da alta.

O grupo II inclui recém-nascidos pré-termo e de termo com antecedentes de patologia cardiopulmonar diversa como síndroma de aspiração meconial, pneumonia, e cardiopatias congénitas requerendo suporte ventilatório prolongado.

Depreende-se que, de acordo com a definição adoptada na actualidade, são considerados como critérios sine qua non a oxigenoterapia e a idade gestacional, sem considerar eventuais alterações radiológicas pulmonares

Aspectos epidemiológicos

De acordo com estudos epidemiológicos, nos EUA calcula-se uma incidência anual de 10.000 a 15.000 (novos casos) de DBP.

Como regra geral pode afirmar-se que a incidência de DBP é tanto mais elevada quanto menores a idade gestacional e o peso de nascimento, sendo que é pouco frequente em RN com idade gestacional >34 semanas.

Com a prática de indução da maturação pulmonar com corticóides pré-natais, as estratégias de ventilação mecânica, cada vez menos agressivas, e o desenvolvimento da terapêutica substitutiva com surfactante exógeno, a incidência da forma clássica de DBP tem diminuído consideravelmente, em paralelo com a modificação de critérios de definição ao longo do tempo, o que tem gerado, por vezes, alguma confusão na literatura científica.

Estudos epidemiológicos do grupo de Bancalari em RN imaturos (<1.000 gramas) evidenciaram, na era pré-surfactante, a proporção de cerca de 46%; e na era pós-surfactante, cerca de 39%.

Num estudo do grupo de Hack (década de 90 passada – englobando sete UCIN) foram obtidos os seguintes resultados quanto a dependência de oxigénio aos 28 dias de vida; grupo ponderal 1.001-1.500 gramas: 13%; no de 751-1.000 gramas: 42%; e no de 501-750 gramas: 9%.

Noutro estudo de Darlow & Horwood (1992), considerando a dependência de oxigénio pelas 36 semanas de idade pós-concepcional, obteve-se a frequência de 23% em RN com idade gestacional <32 semanas e peso oscilando entre 500-1.499 gramas.

Em Portugal, de acordo com os dados publicados pelo Grupo do Registo Nacional do Recém-nascido de Muito Baixo Peso (RNMBP)/ Estudo Multicêntrico 1996-2000 (5 anos), no contingente de RNMBP com <34 semanas de gestação e peso igual ou >500 gramas, sobreviventes às 36 semanas de idade pós-concepcional e dependentes de O2 nesta referida idade, a proporção média de DPC no quinquénio foi 20,8% (643/3094) especificando-se os limites: 12,5-26,3%.

Etiopatogénese

Na era pré-surfactante, a DBP (clássica ou “velha”) era considerada doença pulmonar crónica, fibroproliferativa, relacionada predominantemente com lesões provocadas por ventilação mecânica e oxigenoterapia prolongadas. Identificava-se o papel importante do colapso alveolar (atelectrauma) como consequência do défice de surfactante, juntamente com a hiperdistensão pulmonar pela ventilação artificial (volutrauma) como indutores de inflamação e lesão pulmonares. Acrescentavam-se as lesões por toxicidade do oxigénio suplementar produzindo radicais livres não susceptíveis de metabolização pela imaturidade antioxidante do pulmão. Como foi referido antes, a lesão pulmonar produzida evidenciava sobretudo hipertrofia do músculo liso e áreas de fibrose alternando com áreas enfisematosas.

Na era actual, em que o limite de viabilidade diminuiu consideravelmente (DBP nova), considera-se que a etiopatogénese da DBP é predominantemente multifactorial como foi referido antes, salientando-se que a lesão pulmonar é acompanhada de inflamação.

Entre os múltiplos factores perinatais e neonatais, considerados factores de risco, sobressaem infecção, hiperóxia, volutrauma, barotrauma e atelectrauma, os quais contribuem para o desenvolvimento da DBP através de mecanismo de lesão inflamatória pulmonar e apoptose celular. Segundo alguns investigadores, trata-se dum processo de regulação aberrante da inflamação pulmonar.

Tais factores, originando anomalias no processo de renovação da matriz extracelular e da remodelação estrutural, contribuem por sua vez para deposição desordenada da elastina, fibrose da parede sacular e alteração no desenvolvimento da formação dos alvéolos, o que corresponde a patologia fibroproliferativa.

Tendo em consideração que pelas 24 semanas de gestação é atingida a fase canalicular do desenvolvimento, a qual progride até ser atingida a fase sacular pelas 30 semanas, na nova DBP, quanto à característica das lesões, verifica-se, fundamentalmente: ruptura e interrupção do desenvolvimento das estruturas em geral, reparação tecidual anómala e alvéolos incompletamente desenvolvidos com septação insuficiente ou inexistentes, o que compromete a funcionalidade da barreira alveolocapilar.

Existem, pois, características estruturais que tornam o pulmão imaturo mais susceptível à lesão aguda provocada pela intervenção terapêutica, designadamente ventilatória.

Na DBP, considerada globalmente, importa uma referência aos seguintes factos biológicos:

  • Zonas de diferente distensibilidade ou compliance, do que resulta correspondente heterogeneidade de dimensões dos alvéolos, ou seja, a par de zonas do parênquima evidenciando colapso alveolar, existem outras hiperventiladas em grau variável;
  • Passagem de fluidos e proteínas para o espaço alveolar, o que inactiva o surfactante pulmonar, comprometendo ainda mais a compliance pulmonar;
  • O oxigénio produz radicais livres que não são metabolizados no RN de muito baixo peso imaturo, o que se explica pela imaturidade do sistema imune (ver adiante).

Notas importantes:

    • ambos os padrões patológicos de velha e nova DBP podem desenvolver-se em RN com prematuridade extrema requerendo entubação traqueal prolongada e ventilação mecânica;
    • segundo alguns autores, a nova e a velha DBP representam um continuum de gravidade da mesma doença e, possivelmente, não duas entidades distintas.

Factores de risco

Reiterando que a DBP resulta do efeito combinado duma multiplicidade de factores perinatais e pós-natais com impacte no pulmão imaturo em desenvolvimento, descrevem-se a seguir alguns dos referidos factores:

Prematuridade

A prematuridade constitui o mais importante factor de risco de DBP. Em valor numérico, são apontadas as seguintes proporções: <5% de crianças nascidas a partir das 30 semanas, em comparação com >50% com 24-25 semanas ou menos.

Importa salientar que a verificação de restrição do crescimento fetal aumenta o risco.

Quanto ao sexo, a realidade é a seguinte: para igual peso e idade gestacional, a proporção de RN pré-termo do sexo masculino é duas vezes superior à do sexo feminino.

Inflamação e infecção

A inflamação e o oxigénio, constituem factores major na etiopatogénese da DBP; ou seja, na maioria dos casos, os factores implicados na doença estão interligados.

Com efeito, a resposta inflamatória pode ser desencadeada por factores não infecciosos (a que já se aludiu atrás), e a factores infecciosos pré-natais, ou pós-natais, actuando estes últimos no pós-parto imediato.

Infecção pós-natal – A sépsis neonatal está associada a risco elevado de DBP no RN pré-termo. O risco de DBP é significativamente superior se coexistirem sépsis e canal arterial hemodinamicamente significativo.

Corioamnionite – A infecção pré-natal tem sido apontada como factor de risco de desenvolvimento de DBP. Esta hipótese baseia-se na verificação de níveis elevados de citocinas inflamatórias no sangue do cordão fetal, no líquido amniótico e ulterior desenvolvimento de DBP.

A resposta inflamatória traduz-se:

  1. Pelo afluxo ou recrutamento de neutrófilos, macrófagos, leucotrienos, factor de activação das plaquetas (PAF), IL-6, IL-8, factor de necrose tumoral (TNF), etc. às vias aéreas e tecido intersticial, sendo que tal recrutamento se verifica por acção do quimiotactismo positivo de citocinas;
  2. Lesão oxidativa;
  3. Aumento da permeabilidade da membrana alveolocapilar;
  4. Desequilíbrio entre o sistema protease e antiprotease. Em RN pré-termo com DBP demonstrou-se a e alevação sérica de quimiocinas Th2.

Recorda-se que as proteases são enzimas sintetizadas pelos neutrófilos; têm acção proteolítica e, em condições de normalidade, são inactivadas pelas antiproteases. Sendo as antiproteases degradadas ou bloqueadas pelos radicais livres de oxigénio, passam a predominar as proteases (com papel relevante a elastase) cuja concentração aumenta; desfaz-se assim o equilíbrio existente em condições normais entre protease e antiprotease. As consequências são a destruição da matriz proteica, colagénio, elastina, etc..

Em particular, a infecção por Ureaplasma urealyticum tem sido referida como causa de resposta inflamatória anormal com consequente alteração do desenvolvimento pulmonar e ulterior DBP. No entanto, são necessários mais estudos comprovando que a erradicação da colonização respiratória por Ureaplasma adquirida in utero reduz a incidência de DBP.

Ventilação mecânica

Sendo a expansibilidade torácica inversamente proporcional à idade gestacional, o risco de volutrauma é tanto maior quanto menor a idade gestacional, chamando-se a atenção para:

  • A possibilidade de pressões inspiratórias, consideradas moderadas ou não excessivas, poderem originar volumes correntes excessivos e hipocapnia;
  • A possibilidade de mais acentuado volutrauma quando alvéolos colapsados são hiperdistendidos por ventilação com pressão positiva intermitente; e menos acentuado volutrauma nos casos em que se mantém distensão contínua moderada dos alvéolos ao ser aplicada uma pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP).

Uma vez que na maioria dos RN pré-termo em que surge DBP há antecedentes de ventilação mecânica, e havendo associação frequente entre enfisema intersticial e DBP, é provável que surjam diversos tipos de lesão traumática ao nível do parênquima pulmonar em relação, quer com as alterações anatomofisiológicas das vias terminais e parenquimatosas, quer com as características do ventilador e as estratégias ventilatórias adoptadas.

Assim, poderá surgir volutrauma e barotrauma, respectivamente:

  • Volutrauma por volume corrente e pressão inspiratória elevados provocando hiperdistensão alveolar e;
  • Barotrauma (colapso alveolar) devido a insuficiente pressão positiva no final da expiração (PEEP) ou por défice de “recrutamento” alveolar.

Admite-se também o possível papel do tubo endotraqueal (TET) que, por um lado, pode lesar a mucosa e, por outro, levar a infecção relacionada com a dificuldade na drenagem de secreções.

Estudos experimentais em animais pré-termo concluíram que existe associação entre pressão inspiratória elevada, volume corrente elevado e défice de surfactante.

Demonstrou-se também que volume corrente excessivo pode lesar o pulmão e iniciar a cascata inflamatória.

Oxigénio

Admite-se que a toxicidade do O2 resulta do aumento de produção de radicais livres de oxigénio citotóxicos por défice de defesas antioxidantes ao nível das células endoteliais (dos capilares e alveolares).

Recordam-se, a propósito, os principais sistemas antioxidantes: dismutase do superóxido, peroxidase da glutationa, catalase, redutase, sintetase (enzimáticos), vitaminas C, A, e E, determinados oligoelementos como o selénio, cobre, ferro, zinco, etc. (não enzimáticos).

Acontece que a actividade dos sistemas enzimáticos antioxidantes é tanto mais deficitária quanto menor a idade gestacional, o que confere, em tal circunstância, maior vulnerabilidade das células à acção dos radicais livres de oxigénio (radical superóxido, peróxido de hidrogénio, hidroxilo, etc.), os quais, reagindo com constituintes celulares proteicos (ADN) e lipídicos (designadamente, a membrana lipídica) provocam destruição celular e lesões estruturais por alteração do mecanismo de reparação celular.

Outro efeito dos radicais livres de oxigénio é o recrutamento celular (sobretudo de leucócitos polimorfonucleares), o qual estimula a activação do ácido araquidónico, a inactivação da alfa-1-antitripsina (esta última antioxidante), e o processo inflamatório em cascata. Embora todas as células do organismo possam ser afectadas pelo efeito dos radicais livres de oxigénio face a concentrações elevadas de oxigénio, o pulmão é mais vulnerável tendo em conta, não propriamente a sensibilidade inerente ao tecido pulmonar, mas a maior superfície de exposição dos pneumócitos I e II, em contacto directo com o gás inspirado.

Canal arterial funcionante

Diversos estudos demonstraram que nos RN com doença respiratória por imaturidade pulmonar, submetidos a fluidoterapia com suprimento de volume excessivo, e não evidenciando fase diurética precoce nas primeiras 48-72 horas, a incidência de DBP é mais elevada.

Admite-se que, em tal circunstância, o suprimento excessivo de fluidos aumenta a incidência do quadro clínico decorrente de manutenção da permeabilidade do canal arterial (PDA ou persistência do ductus arteriosus) determinando:

  1. Aumento do débito sanguíneo pulmonar e do líquido intersticial (edema pulmonar) com aumento da resistência da via aérea ao fluxo de gases e estímulo da cascata inflamatória;
  2. Diminuição da compliance pulmonar, com tendência ao colapso alveolar.

Gera-se, assim, um círculo vicioso do qual resulta a necessidade de assistência ventilatória com pressão inspiratória mais elevada e a necessidade de FiO2 também mais elevada.

Contudo, com a aplicação de diferentes estratégias para prevenir ou tratar situações de canal arterial hemodinamicamente significativo, não se demonstrou haver consequente redução na incidência da DBP. Numa revisão da Cochrane (Bell & Acarregui, 2008) demonstrou-se que, embora a incidência de PDA diminua com a restrição de fluidos, a incidência de DBP não se altera. Também se provou que a utilização de diuréticos na DBP se associa a melhoria a curto-prazo na função pulmonar, e a diminuição das necessidades de oxigénio, embora sem qualquer efeito significativo na incidência da doença.

Nutrição

Os nutrientes têm papel importante no crescimento e desenvolvimento celulares, sendo de salientar que a desnutrição (carência de nutrientes) torna as células mais vulneráveis à lesão induzida pela acção dos radicais livres de oxigénio.

Sabendo-se que a transferência dos nutrientes da mãe para o feto se verifica sobretudo no terceiro trimestre, torna-se fácil compreender que a carência nutricional inerente à prematuridade predispõe a tal lesão, nomeadamente ao nível do pulmão (fundamentalmente, menor síntese de ADN). Havendo em tais RN igualmente carência em ácidos gordos polinsaturados, com acção antioxidante, compreende-se também o acréscimo de predisposição para tal tipo de lesões.

A carência em vitamina A influencia, também negativamente, o crescimento e desenvolvimento das células epiteliais, endoteliais e surfactante pulmonares. Em diversos estudos comprovou-se que o nível sérico de vitamina A está diminuído nos RN com DBP.

Predisposição genética

Com o desenvolvimento da biologia molecular, descreveu-se um estado de predisposição genética a anormal hiperreactividade brônquica, sendo que existe associação entre DBP e antecedentes familiares de asma.

Estudos com gémeos prematuros monozigóticos sugerem que em 53-79% dos casos existe uma predisposição genética para o desenvolvimento de DBP. Estudos prévios identificaram múltiplos genes com papel potencial na DBP, como por exemplo genes associados à síntese de proteínas do surfactante, à imunidade inata, a antioxidantes e a proteínas envolvidas na remodelação vascular e pulmonar.

Anomalias do desenvolvimento vascular pulmonar e pré-eclâmpsia

No contexto de DBP, é importante assinalar as anomalias da circulação pulmonar que se verificam:

  • Resistência vascular pulmonar (RVP) aumentada;
  • Vasorreactividade anormal.

Tais anomalias têm implicações na terapêutica (ver adiante). Em muitos casos, as mesmas podem ser suficientemente graves para conduzir a quadros de hipertensão pulmonar e cor pulmonale. Em estudos recentes verificou-se uma incidência de hipertensão pulmonar em cerca de 25% dos casos, atingindo 50% nas situações de DBP grave. O desenvolvimento de hipertensão pulmonar agrava significativamente o prognóstico, aumentando o risco de morte (48% de mortalidade 2 anos após o diagnóstico de hipertensão pulmonar).

Actualmente, a pré-eclâmpsia é considerada um factor de risco de DBP, verificando-se que naquela existe fenómeno de anti-angiogénese. Este fenómeno, com impacte no desenvolvimento vascular pulmonar e no desenvolvimento alveolar, é explicado pelo défice de determinados factores de crescimento. Com efeito, no sangue do cordão de RN de mães com pré-eclâmpsia desenvolvendo ulteriormente DBP, foram demonstrados valores baixos de VEGF (vascular endothelial growth factor) e de PlGF (placental growth factor), devido a neutralização por uma tirosinocinase (sFlt-1), a qual é produzida em excesso pelas vilosidades trofoblásticas em tal contexto (pré- eclâmpsia).

Manifestações clínicas e exames complementares

O desenvolvimento da terapia intensiva, incluindo a terapêutica substitutiva com surfactante pulmonar exógeno, tem permitido ao longo dos anos a sobrevivência de RN de peso cada vez mais baixo e mais imaturos.

Dum modo geral, a DBP surge em RN pré-termo submetidos a ventilação mecânica nos primeiros dias de vida; a dependência do ventilador para além de 1-2 semanas pode conduzir às hipóteses de diagnóstico de: DBP, de PDA, e de infecção.

São consideradas actualmente duas formas clínicas de DBP:

1. DBP clássica ou “velha”

Esta forma corresponde às situações mais graves, em geral anteriores à era da terapêutica com surfactante exógeno: necessidade de maiores concentrações de oxigénio, suporte ventilatório obrigando a pressões inspiratórias mais elevadas durante a primeira semana de vida, e elevada probabilidade de síndromas de ar ectópico e insuficiência respiratória crónica.

Estas características acompanham-se fundamentalmente de inflamação das vias aéreas com metaplasia do epitélio respiratório, hipoplasia alveolar, fibrose da parede sacular, obliteração bronquiolar, e muscularização excessiva das vias aéreas e ramos arteriais pulmonares. (Figura 1)

Ocorre um quadro de SDR mantida com taquipneia, retracções, episódios de cianose, e crises de agitação/ irritabilidade por hipoxémia; existe igualmente aumento muito marcado do trabalho respiratório.

Há sinais de insuficiência ventricular direita e cor pulmonale secundários a hipertensão pulmonar: edema pulmonar, cardiomegália, hepatomegália.

FIGURA 1. Corte histológico do pulmão: caso de óbito com DBP. Sinais de metaplasia do epitélio respiratório; grau discreto de fibrose. (UCIN-HDE)

São frequentes atelectasia recorrente, infecções pulmonares intercorrentes, e broncomalácia com consequente sibilância.

Um dos problemas associados é a dificuldade na alimentação por via oral, o que frequentemente tem repercussões negativas no crescimento.

2. DBP ”nova”

O paradigma desta forma é constituído pelas situações de imaturidade extrema (peso de nascimento <1.000 gramas) com SDR ligeira, e necessidade de suporte ventilatório tendo em conta o surgimento de episódios frequentes de apneia; nestes casos são utilizadas menores concentrações de oxigénio e mais baixas pressões inspiratórias, a dependência de oxigénio é ligeira, e o compromisso da função pulmonar menos acentuado.

Em geral, os problemas associados que determinam manutenção da disfunção respiratória relacionam-se sobretudo com infecções associadas aos cuidados prestados e a alterações hemodinâmicas em relação com a manutenção da permeabilidade do canal arterial.

Tendo em conta que esta forma surge predominantemente em RN com idades gestacionais entre 23 e 28 semanas, o quadro anatomopatológico traduzindo sinais de “agressão” em estádio de desenvolvimento muito mais precoce, é diverso do verificado na outra forma: na nova DBP verifica-se défice de desenvolvimento das vias aéreas devido a imaturidade – défice de alvéolos/ hipoplasia alveolar, sáculos dilatados, e anarquia no desenvolvimento dos capilares. Nesta forma, ao contrário do que acontece na primeira, as lesões de metaplasia e de hiperplasia epiteliais e fibrose são mínimas.

Verifica-se em geral um quadro de SDR ligeira, com possível agravamento por infecção intercorrente ou persistência do canal arterial; em comparação com a “forma clássica”, existe menor dependência do oxigénio, e sinais mais discretos de aumento do trabalho respiratório.

No que respeita ao padrão radiológico torácico descrito inicialmente por Northway, o Quadro 1 resume determinados sinais em diversos estádios, reflectindo a evolução das lesões.

QUADRO 1 – DBP: Classificação Radiológica de Northway.

Estádio I
Sobreponível ao quadro de DMH com “granitado” bilateral e broncograma aéreo (1º-3º dia de vida). 
Estádio II
Opacificação dos campos pulmonares (4º-10º dia de vida). 
Estádio III
Pequenas áreas quísticas alterando com zonas de densidade variável (10º-20º dia de vida).
Estádio IV
Densidades lineares grosseiras, sobretudo nos vértices, alternando com zonas de hipertransparência e de hipotransparência, com distribuição irregular (a partir do 30º dia).

O padrão radiológico (não específico da doença, persistente e afectando ambos os campos pulmonares; nem tão pouco critério sine qua non– ver atrás) pode também ser classificado em ligeiro, moderado e grave:

  1. DBP ligeira – opacidades reticulares de distribuição homogénea traduzindo compromisso intersticial com ou sem sinais de enfisema;
  2. DBP moderada – opacidades reticulares (ou linhas de opacificação) hilífugas associadas a sinais de enfisema;
  3. DBP grave – opacidades mais densas, difusas e heterogéneas traduzindo zonas de fibrose ou de atelectasia; concomitância de zonas de enfisema e de atelectasia; possível cardiomegália correspondente a situação de cor pulmonale. (Figura 2)

Em muitos centros, a TAC torácica utiliza-se muito frequentemente pelo facto de permitir, com grande sensibilidade, a identificação de lesões focais tais como enfisema lobar adquirido e atelectasias localizadas. Se for utilizada com angiografia associada a ecocardiografia e, em geral, a outros exames correntes no âmbito da cardiologia de intervenção, permitirá igualmente identificar situações de hipertensão pulmonar.

No que respeita aos achados do estudo da função pulmonar (que se podem deduzir das alterações descritas a propósito da etiopatogénese), salienta-se:

  • Capacidade residual funcional diminuída;
  • Compliance (ou distensibilidade) diminuída;
  • Resistência aumentada das vias aéreas;
  • Aumento do trabalho respiratório;
  • Hipercapnia secundária à hipoventilação alveolar que, por sua vez, resulta da alteração na relação ventilação-perfusão e do aumento do espaço morto.

FIGURA 2. A, B e C – Imagens radiográficas de DBP tipificando os estádios II, III e IV de Northway: opacificações, pequenas áreas quísticas dispersas, densidades lineares grosseiras e áreas de hipo e hipertransparência. (NIHDE)

Prevenção e tratamento

Aspectos gerais

As estratégias que têm como objectivo prevenir a DBP (prevenção primária) devem incidir sobre a eliminação ou redução de determinados factores etiopatogénicos (com especial ênfase para prematuridade, restrição de crescimento fetal, hipertensão arterial materna, ventilação mecânica, toxicidade do oxigénio, infecção, canal arterial patente e predisposição genética), os quais contribuem para a lesão pulmonar.

Tendo em conta que a imaturidade pulmonar constitui o principal factor predisponente da doença em causa, a prevenção da DBP deve ter o seu início no período pré-natal, passando pela vigilância adequada pré-concepcional e da grávida, a fim de se detectar e tratar possíveis factores de risco para parto pré-termo. Assim, grávidas de risco devem ser enviadas atempadamente a centros de referência e, em caso de ameaça de parto pré-termo, transferidas para hospitais de nível III.

Estando iminente o parto pré-termo, a administração de corticóides pré-natais contribui de modo relevante para a diminuição, quer da incidência e gravidade do problema respiratório do pré-termo (DMH), quer da probabilidade da subsequente evolução para DBP.

O Quadro 2 resume as principais estratégias de prevenção, quer as actualmente exequíveis, quer as que são ainda objecto de investigação.

A propósito da prevenção e tratamento das infecções pré- e pós-natais, cabe referir que cerca de 30 a 40% dos partos pré-termo são provocados por infecção materna. Ainda no âmbito da prevenção primária, importa igualmente considerar o potencial papel de certos fármacos de acordo com estudos realizados, na maioria não conclusivos; a este propósito citam-se a azitromicina e outros macrólidos (activos contra Ureaplasma).

QUADRO 2 – Estratégias para a prevenção da DBP.

Actualmente exequíveis

    • Prevenção do parto pré-termo
    • Administração de corticóides pré-natais
    • CPAP não invasivo no pós-parto imediato
    • Redução ao mínimo das diversas formas de trauma e da duração da ventilação
    • Administração de surfactante exógeno
    • Redução ao mínimo da toxicidade do oxigénio
    • Administração de corticóides pós-natais
    • Prevenção e tratamento agressivo das infecções pré- e pós-natais
    • Evicção da fluidoterapia excessiva
    • Encerramento do canal arterial
    • Intervenção nutricional

Em investigação

    • Administração exógena de enzimas antioxidantes (por ex. SOD)
    • Indução do sistema citocrómio P450
    • Terapia génica
    • Manipulação genética
    • Células estaminais angiogénicas
    • Inibidores das citocinas pró-inflamatórias (pentoxifilina, inibidores de NLRP3, etc.)

Ventilação mecânica

Quanto às estratégias de assistência respiratória preventiva, os estudos realizados têm advogado globalmente:

  • A vantagem de se utilizar precocemente, desde a sala de partos, CPAP nasal (nCPAP) em RNMBP, evitando a entubação traqueal e a ventilação mecânica; e
  • Quando indicado, a utilização de surfactante exógeno o mais precoce possível, idealmente nas 2 primeiras horas de vida.

Tornando-se indispensável a ventilação mecânica, recomenda-se:

  • Utilizar volumes correntes baixos a fim de minorar a lesão pulmonar mecânica, tendo como alvo Pa CO2 entre 55 e 65 mmHg, desde que o pH se mantenha em níveis normais (7,3-7,4). No entanto, a ventilação mecânica prolongada no RNMBP provoca distensão das vias aéreas e aumento da relação espaço morto/ volume corrente, o que obriga muitas vezes à utilização de volumes correntes mais elevados para uma ventilação eficaz;
  • Usar pressões no final da expiração (PEEP) entre 5 e 7 cmH2O a fim de minorar o risco de atelectasia e de edema pulmonar;
  • Evitar, tanto a hipoxémia como a exposição a excesso de oxigénio, recorrendo à SpO2 alvo, em função dos valores obtidos pela oximetria de pulso e da idade pós-menstrual. (ver adiante)

Oxigenoterapia

Os objectivos da utilização de oxigénio suplementar são:

  1. Assegurar uma adequada oxigenação tecidual;
  2. Evitar a hipóxia alveolar, a qual aumenta a resistência vascular pulmonar com potencial evolução para cor pulmonale;
  3. Evitar a hipoxémia, que conduz a aumento da resistência das vias aéreas.

De salientar, contudo, que elevações da FiO2, ainda que escassas, podem ter um impacte negativo na evolução clínica, designadamente quanto ao risco de retinopatia da prematuridade ou de exacerbação da inflamação e do edema pulmonares.

A utilização de oxigenoterapia na criança prematura com DBP constitui, pois, um desafio, tendo em conta a necessidade, por um lado, de evitar a hipoxémia e, por outro, de evitar a exposição a concentrações excessivas de oxigénio.

Com base em provas científicas, recomenda-se uma saturação-alvo em oxigénio entre 90 e 95% no RN pré-termo (ou 95-96% nos casos com hipertensão pulmonar).

Quando a criança atinge a idade de termo e adquire maturidade vascular retiniana (documentada por observação oftalmológica) recomenda-se suplementação com oxigénio de forma a manter valores de SpO2 iguais ou superiores a 95%.

Cafeína

O tratamento com citrato de cafeína tem sido associado a menor incidência de DBP às 36 semanas de idade corrigida, o que possivelmente decorre da menor exposição à ventilação com pressão positiva. Por outro lado, a sua utilização na prematuridade extrema tem sido associada a diminuição de paralisia cerebral e de défice cognitivo aos 18 meses de idade corrigida. No entanto, este benefício não foi comprovado em estudos de seguimento na idade pré-escolar.

Antioxidantes

É importante chamar a atenção para o papel de vitamina A e do selénio na diferenciação e manutenção da integridade das células epiteliais do sistema respiratório. Alguns estudos demonstraram que doses elevadas de vitamina A em RN de peso <1.000 gramas determinaram diminuição da mortalidade por DBP e das necessidades de oxigénio ao mês de idade, a par de uma tendência para redução do número de casos de DBP.

Diuréticos

Ainda que a terapêutica diurética melhore a curto prazo a mecânica pulmonar, é pouco evidente o seu benefício a longo prazo na evolução da DBP.

Duas classes de diuréticos podem ser utilizadas na criança com DBP:

  1. Tiazidas – actuando no tubo distal renal (ex: hidroclorotiazida, espironolactona);
  2. Diuréticos de ansa – actuando no ramo ascendente da asa de Henle (ex: furosemido).
    De referir, a propósito, que tais fármacos, estimulando a síntese de prostaglandinas, exercem efeito vasodilatador pulmonar e sistémico e estimulam a secreção de surfactante pulmonar.

Como complicações da utilização destes fármacos, citam-se:

  • Perda urinária de sódio, potássio e cloro, podendo levar a hiponatrémia, hipocalémia e, eventualmente, a alcalose hipoclorémica;
  • O furosemido aumenta a excreção de cálcio, muitas vezes levando à nefrocalcinose e nefrolitíase; igualmente, é potencialmente ototóxico, sobretudo se a administração endovenosa for rápida.

Apesar da falta de prova científica de reais benefícios a longo prazo, pode recorrer-se à terapêutica diurética em crianças dependentes da ventilação mecânica ou que necessitam de PEEP apesar de uma restrição hídrica modesta (140-150 mL/kg/dia). Em tal contexto, são utilizadas habitualmente as tiazidas (hidroclorotiazida na dose de 3-4 mg/kg/dia, em duas doses por via oral, associada ou não a espironolactona).

O furosemido utiliza-se habitualmente em dose única (1 mg/kg/dose por via endovenosa, ou 2 mg/kg por via oral) para tratar as exacerbações atribuíveis a edema pulmonar, podendo eventualmente prolongar-se o tratamento até 3 dias; muitas vezes é administrado na sequência de transfusões de hemoderivados.

Notas importantes:

    • o uso crónico de furosemido deve evitar-se, pelo risco de nefrocalcinose e ototoxicidade;
    • os electrólitos séricos devem ser monitorizados 1 a 2 dias após o início da terapêutica com diuréticos e, a partir daí, semanalmente; em função dos resultados analíticos, poderá haver necessidade de suplemento de cloreto de potássio (2-4 mEq/kg/dia);
    • a terapêutica com diuréticos prolonga-se habitualmente até a criança não necessitar de PEEP contínua;
    • a suspensão deve fazer-se de forma gradual, com redução da dose em 3-4 dias, ou não ajustando a dose ao eventual ganho ponderal.
Corticóides

Para além da acção anti-inflamatória suprimindo a produção de mediadores inflamatórios, os corticóides estimulam a síntese de surfactante pulmonar e de enzimas antioxidantes, melhorando a função pulmonar nas crianças com DBP em evolução ou já estabelecida.

Apesar da melhoria da mecânica pulmonar e da redução do suporte ventilatório, a preocupação com as sequelas neurológicas a longo prazo levou a que a Academia Americana de Pediatria e a Sociedade Pediátrica Canadiana tivessem recomendado o uso restrito de corticoterapia sistémica no RN pré-termo.

Assim, o uso de corticóides sistémicos no tratamento de DBP, não recomendado por rotina, deve ser reservado às situações de crianças com DBP grave, dependentes de suporte ventilatório e de oxigénio máximos (necessidades de MAP >8 cm H2O e de FiO2 >40%) ponderando, neste contexto, o balanço entre riscos e benefícios. Nesta perspectiva, a decisão de tratamento com corticóides sistémicos deverá ser tomada caso a caso, e após esclarecimento e concordância dos pais.

São, pois, necessários mais estudos que permitam determinar qual o corticóide mais adequado (bem como a respectiva dose, via e data de administração), que permita reduzir o risco de DBP sem aumentar o risco de sequelas a nível do neurodesenvolvimento em RN pré-termo ventilados.

A propósito de corticóides, algumas notas importantes:

    • resultados de estudos de coorte demonstraram que a hidrocortisona poderá comportar menor risco de sequelas neurológicas relativamente à dexametasona, sem provas reais de benefício de um em relação ao outro;
    • existem escassas provas científicas de eficácia e segurança com a utilização de corticóides inalados (betametasona, budesonido).

Broncodilatadores

A administração de broncodilatadores inalados reduz a resistência das vias aéreas e aumenta a compliance pulmonar.

Tendo em conta os efeitos colaterais cardiovasculares, tais como hipertensão, taquicárdia e arritmia, as suas indicações deverão ser individualizadas, o seu uso não é recomendado por rotina em crianças com DBP.

Podem ser utilizados: beta-2 adrenérgico (como por ex. salbutamol), anticolinérgico derivado da atropina (por ex. o brometo de ipratrópio), metilxantina (por ex. aminofilina, cafeína, etc.).

Salientam-se:

  • Salbutamol (nebulização): 0,1-0,5 mg/kg/dose em 3 mL de soro fisiológico 4 a 6 vezes por dia; podem ser utilizadas outras vias: oral, IV contínua, aerossol;
  • Brometo de ipratrópio (nebulização): 125-250 mcg por dose em 3 mL de soro fisiológico 3 a 4 vezes por dia.

Actualmente, as novas estratégias ventilatórias menos agressivas e o uso de surfactante precoce reduzem o risco de lesão das vias aéreas, resultando em menor número de episódios de hiperreactividade brônquica nas crianças com DBP, durante o internamento.

Notas importantes:

    • nalgumas crianças com DBP grave dependentes do ventilador, podem ocorrer episódios agudos de broncospasmo com resposta clínica aos broncodilatadores, evidenciada pela melhoria das trocas gasosas; em tal circunstância, está indicado o tratamento por períodos curtos, com monitorização dos efeitos desejados e adversos;
    • a aplicação de aerossóis com broncodilatadores poderá não ser eficaz nas primeiras semanas de vida pela ausência de efeito relaxante da musculatura lisa da via respiratória;
    • o uso de broncodilatadores pode agravar a estabilidade das vias aéreas na criança com broncomalácia.

Óxido nítrico

Não está provado efeito benéfico do óxido nítrico na DBP. A sua utilização está apenas recomendada nos casos de insuficiência respiratória com hipoxémia associada a hipertensão pulmonar (HPP/HTP) no RN de termo e pré-termo limiar. Recorda-se que a HPP tem sido descrita em cerca de 40% das formas mais graves de DBP.

Nutrição

Torna-se fundamental propiciar nutrição adequada (suprimento energético entre 120-180 kcal/kg/dia) com vista a garantir o processo de reparação pulmonar, assim como ganho de peso entre 20-30 gramas/dia por volta da idade pós-concepcional de 40 semanas. Haverá que ter em conta a necessidade de balanço hidroelectrolítico rigoroso, sendo muitas vezes necessário restringir o suprimento em fluidos para cerca de 140-150 ml/kg/dia.

Para incrementar o suprimento energético, podem ser administrados suplementos sob a forma de polímeros da glucose e de triglicéridos de cadeia média. Em casos seleccionados, poderá ser necessário proceder a gastrostomia.

Outras terapias

A terapia celular constitui um novo paradigma da medicina.

No pulmão em desenvolvimento, vários tipos de células, tais como as células estaminais mesenquimatosas, as células progenitoras do endotélio (designadamente as células estaminais angiogénicas) e as células epiteliais amnióticas, encerram em si a potencialidade de produzir factores de proteção e reparação de lesão pulmonar. Estas células seriam ideais, não só para o tratamento de uma doença multifactorial como a DBP, como de outras complicações da prematuridade extrema.

Experimentações em animais revelaram resultados promissores, e ensaios de Fase I com células estaminais mesenquimatosas estão já em curso. No entanto, o conhecimento do mecanismo de acção deste tipo de terapêutica, ainda limitado, e a heterogeneidade das populações celulares, dificultam a previsão quanto à sua eficácia.

Outra área de investigação no âmbito da prevenção da inflamação pulmonar envolve o estudo de compostos não esteróides, citando-se a inibição de citocinas pró-inflamatórias utilizando, entre outras, fármacos/ moléculas tais como pentoxifilina e o inibidor NLRP3, este último, fazendo parte do sistema imune.

Plano da alta hospitalar

A alta para o domicílio duma criança com DBP, que deve ser planeada por uma equipa multidisciplinar, é dirigida pelo neonatologista, associando pneumologista pediátrico, enfermeiro, nutricionista, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, audiologista e assistente social.

Os pais devem ser envolvidos precocemente neste processo, de forma a se familiarizarem, não só com os cuidados básicos, mas também com os aspectos tecnológicos, por vezes necessários em domicílio (oxigenoterapia, monitorização, etc). Antes da alta, e entre outras competências, os mesmos devem ser treinados em técnica de reanimação cardiorrespiratória.

Do ponto de vista clínico, considera-se genericamente que a criança está apta para a alta hospitalar nas seguintes circunstâncias:

    • estabilidade térmica, autonomia alimentar e aumento ponderal consistente;
    • ausência de alterações terapêuticas na última semana de internamento;
    • SpO2 estável durante o sono, na última semana;
    • FiO2 necessária <30%;
    • ausência de sinais de hipertensão pulmonar, e PaO2 >55 mmHg;
    • ausência de apneias na última semana.


Por outro lado, os pais ou os prestadores de cuidados devem sentir-se confiantes nos cuidados ao bebé, e ter procedido à preparação do ambiente em casa para o receber.

O seguimento em ambulatório da criança com DBP é pluridisciplinar e deve ter em atenção os seguintes aspectos:

  • Vigilância da função respiratória, especialmente nas crianças submetidas a oxigenoterapia ou ventilação domiciliárias;
  • Prevenção das infecções respiratórias, a qual passa pelas medidas gerais preventivas, a mais importante das quais é a lavagem correcta e frequente das mãos dos pais e outros cuidadores; há que evitar contacto com poluentes ambientais, especialmente tabaco, desaconselhando-se a frequência da escola durante os primeiros 2 anos de vida;
  • Imunizações – para além do cumprimento do programa nacional de vacinação:
    • a prevenção com vacina antigripe está indicada se a criança tiver idade superior a 6 meses (idade pós-natal), anualmente, no Outono: entre os 6-35 meses à 0,25 mL/ mês, duas doses; após 36 meses à 0,5 mL em dose única; a família e contactos deverão ser também vacinados;
    • a prevenção da infecção por vírus sincicial respiratório (VSR) está indicada, nas crianças com DBP com idade pós-natal inferior a 24 meses, nos casos de as mesmas terem necessitado de tratamento relacionado com a doença, pelo menos durante uma semana, nos seis meses antecedentes; utiliza-se o anticorpo monoclonal-palivizumab (Synagis®) 15 mg/kg/mês a partir do início da “época do VSR”, e durante a referida época (de Outubro a Março, no nosso clima), no máximo de 5 doses em cada época. Nalguns centros são utilizadas variantes deste plano;
  • Crescimento, com especial atenção aos aspectos nutritivos e suplementos vitamínicos e marciais;
  • Neurodesenvolvimento, com avaliações quantificadas e referenciação atempada às equipas de intervenção precoce.

Prognóstico

O prognóstico depende dos vários tipos de complicações surgidas e, designadamente, do grau de disfunção cardiorrespiratória. A mortalidade (entre 30 e 40%) ocorre predominantemente no primeiro ano de vida, em geral como consequência de insuficiência cardiorrespiratória, sépsis, infecção respiratória ou morte súbita.

Quanto à função pulmonar, a curto prazo, a evolução pode considerar-se favorável, inclusivamente nos casos de crianças que têm alta com necessidade de oxigenoterapia continuada. A redução progressiva do suplemento de O2 até à respiração em ar ambiente (FiO2) é geralmente possível antes do 1º ano; a progressão ponderal – um dos problemas face às dificuldades alimentares – é proporcional à melhoria da função pulmonar.

A melhoria da função pulmonar verificada ao longo do tempo pode explicar-se pelo processo de crescimento e desenvolvimento da via respiratória, que continua na 2ª e 3ª infância. No entanto, as re-hospitalizações são frequentes no 1º ano de vida (salientando-se que cerca de 25-30% são devidas a infecções respiratórias acompanhadas de sibilância recorrente).

Estudos a longo prazo demonstraram que em crianças com idade superior a 10 anos, adolescentes e adultos se verifica elevada prevalência de hiperreactividade brônquica.

Relativamente à repercussão sobre a função pulmonar na idade adulta em indivíduos com antecedentes de DBP e muito baixo peso de nascimento, identificou-se um quadro com sinais de obstrução ao fluxo de ar, ineficiência das trocas gasosas e heterogeneidade ventilatória.

No que respeita ao prognóstico do foro neurológico, os doentes com DBP evidenciam maior incidência de sequelas em comparação com as crianças sem a doença. Tais sequelas traduzem-se fundamentalmente por paralisia cerebral, défice cognitivo, dificuldades de aprendizagem, défice de atenção e problemas de comportamento.

Existe, por outro lado, risco aumentado de retinopatia da prematuridade e de alterações da audição.

No que respeita a complicações do foro cardiovascular, de grande relevância no prognóstico, citam-se: cor pulmonale, hipertensão pulmonar, hipertensão sistémica, hipertrofia ventricular esquerda e desenvolvimento de vasos colaterais aorto-pulmonares que podem originar insuficiência cardíaca.

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Desenvolvimento e valores de Hb no RN e lactente

No período neonatal e meses seguintes ocorrem variações significativas fisiológicas da massa eritrocitária (ver capítulo sobre “síndromas hematológicas” – Parte XVIII). Por consequência, a definição e avaliação da síndroma anémica neste período da vida deverá ter em conta o processo normal do desenvolvimento, o qual pode ser tipificado por um conjunto de eventos a seguir discriminados.

Após o nascimento, a saturação da Hb em O2 (SpO2) atinge 95%, passando a eritropoietina a ser indetectável. No fim da primeira semana, quantitativamente, a eritropoiese corresponde a cerca de 1/10 relativamente à que se processava no feto. O número de reticulócitos é baixo e o valor de Hb diminui. Apesar da descida dos níveis de Hb, a relação Hb A/Hb F aumenta.

Os níveis de 2,3-DPG (2,3-difosfoglicerato) aumentam durante a gestação, atingindo no termo desta os do adulto; após diminuição transitória na primeira semana de vida extrauterina, os níveis sobem novamente.

A interacção funcional entre Hb A (que vai progressivamente substituindo a Hb F) e 2,3-DPG diminui a afinidade do O2 para a Hb, o que se traduz numa facilidade crescente de libertação (e aumento de disponibilidade) de O2 para os tecidos. Reportando-nos à curva de dissociação de Hb-O2, verifica-se desvio progressivo da curva para a direita entre a data de nascimento e os 4-6 meses de vida. A progressiva diminuição de afinidade da Hb para o oxigénio ao longo dos meses permite definir o conceito de P-50, ou seja, a pressão parcial de O2 necessária para saturar 50% da Hb.

No lactente nascido de termo, ao longo dos referidos 4-6 meses de vida, a P-50 vai aumentando em concomitância com a diminuição progressiva da afinidade Hb-O2, atingindo-se então os valores de P-50 do adulto (~27 mmHg).

No RN pré-termo, com maior concentração de Hb F e níveis mais baixos de 2,3-DPG, a diminuição progressiva da afinidade para o O2 após o nascimento não se correlaciona com o declínio da Hb F.

Nota importante: A Hb aumenta com a idade gestacional: o valor no RN de termo (sangue do cordão) é ~16,8 g/dL (13,7-20,1). No RN pré-termo MBP este valor é 1-2 g/dL inferior ao do RN de termo. De salientar que pode haver diferença de valores em função do local de colheita do sangue: no sangue capilar e no primeiro dia de vida o valor de Hb normal pode oscilar entre 15,4 e 18,6 g/dL em recém-nascidos de termo; no sangue venoso o valor de Hb é inferior (~<3,6 g/dL), podendo a diferença reduzir-se aquecendo previamente o local de punção capilar (geralmente região calcaneana).

A concentração de Hb, decrescendo desde o nascimento, atinge o nadir cerca das 8-12 semanas no RN de termo (11-12 g/dL), e cerca das 6 semanas no RN pré-termo (7-10 g/dL).

A chamada anemia da prematuridade correspondendo, de facto, a uma situação clínica de “exagero” da anemia fisiológica normal (com determinadas especificidades) é abordada sucintamente na alínea sobre Definições e antes da classificação geral das anemias neonatais.

Definições

A anemia constitui uma alteração hematológica em que se verifica valor baixo de massa eritrocitária; na prática clínica, é admitido que a concentração de Hb reflecte a massa eritrocitária circulante.

Define-se anemia como um valor de Hb ou hematócrito inferior a 2 desvios-padrão do valor médio para a idade e sexo. Na prática, na primeira semana de vida podem ser utilizadas as seguintes definições:

  • Anemia: valores de Hb inferiores a 13 g/dL e de hematócrito (Hct) inferior a 40%;
  • Microcitose: volume globular médio (VGM) inferior a 95 fL;
  • Hipocromia: concentração de hemoglobina globular média (CHGM) <32% ou <32 g/dL;
  • Macrocitose: VGM >118 fL.

Recorda-se que os eritrócitos do RN têm maior diâmetro (104-118 fL) que noutras idades; existe, pois, macrocitose (fisiológica ou normal para este período específico). (Quadro 1)

QUADRO 1 – Valores hematológicos (média) no RN de termo.

Abreviaturas: D – dia de vida; Htc – hematócrito; VGM – volume globular médio; HGM – hemoglobina globular média; CHGM – concentração de hemoglobina globular média.
 Sangue do cordãoD1D3D7D14
Htc (%)5358555452
Eritrócitos (106/mL) 5,25,85,65,25,1
Hemoglobina (g/dL) 16,818,417,817,016,8
VGM (fl) 108108999896
HGM (pg) 3435333332
CHGM (% ou g/dL) 31,732,533,033,033,0

A percentagem de reticulócitos no recém-nascido de termo varia entre 3-7% ao nascer, 1-3% em D4, sendo <1% em D7. No pré-termo, estes valores são mais elevados (6-7%) e permanecem elevados durante mais tempo.

A anemia da prematuridade ocorre em RN pré-termo de baixo peso, estando associada a valores de Hb <7-10 g/dL. As suas manifestações clínicas incluem: palidez progressiva, escassa progressão ponderal, hipoactividade, taquipneia/ apneia/ aumento da necessidade de suporte ventilatório, taquicárdia/ aumento da frequência cardíaca basal, e dificuldade alimentar.

A etiopatogénese inclui vários factores associados, destacando-se: perdas sanguíneas repetidas por flebotomia, vida média eritrocitária encurtada, crescimento rápido com expansão concomitante da volémia, o que constitui factor de diluição dos elementos figurados (neste caso eritrócitos) contabilizados, e deplecção das reservas de ferro ao duplicar o peso, o que acontece em idade pós-natal mais precoce do que no RN de termo.

Para além destes factores, destacam-se ainda: inadequado suprimento de proteínas, ferro e vitamina E, níveis baixos de eritropoietina por produção inadequada (resposta eritropoiética hepática menos sensível à anemia e hipóxia tecidual, recordando-se que a produção renal de eritropoietina somente se verifica a partir da idade pós-menstrual de 42-43 semanas), níveis baixos de factores reguladores da produção de eritropoietina tais como interleucina-3, de factor de crescimento dos granulócitos, etc..

Etiopatogénese e manifestações clínicas

A anemia neonatal pode ser explicada pelos seguintes mecanismos:

  1. Perda sanguínea;
  2. Destruição eritrocitária aumentada;
  3. Produção eritrocitária diminuída.

Os mesmos são especificados a seguir.

1. Anemia por perda sanguínea

Hemorragia fetal ou placentar
  • A perda de sangue fetal pode ocorrer na sequência de amniocentese, cordocentese traumática, ou rotura do cordão.
  • A passagem de eritrócitos fetais para a circulação materna, ou transfusão feto-materna, ocorre em 75-95% das gestações, na maioria dos casos com passagem de volume de sangue inferior a 1 mL, sem complicações associadas. No entanto, em cerca de 0,3% das gestações, esta transfusão feto-materna é superior a 30 ml e responsável por anemia significativa. Quer se trate de transfusões espontâneas, quer secundárias a amniocentese, a pesquisa de células fetais no sangue materno (prova de Betke-Kleihauer, citometria de fluxo ou cromatografia líquida de alta eficiência – HPLC) é fundamental para o diagnóstico destas situações.
  • As transfusões feto-fetais, nos gémeos monozigóticos/ monocoriónicos resultantes de anastomoses vasculares a nível placentar, resultam em anemia no dador e policitemia no receptor. Deve admitir-se este diagnóstico quando a diferença de Hb nos dois gémeos for superior a 2,5-5 g/dL. Geralmente verifica-se oligoâmnios no dador e poli-hidrâmnios no receptor.
  • As hemorragias de causa placentar ocorrem nas situações de placenta prévia, abruptio placentae, descolamento placentar e insersões velamentosas do cordão.
Hemorragias pós-parto
  • As hemorragias internas (intracranianas, subdurais, hematoma do fígado, baço, retroperitoneal, cefalo-hematoma gigante) podem ser assintomáticas nas primeiras horas de vida e são geralmente associadas a parto traumático.
  • As hemorragias do cordão são geralmente secundárias a lesões, anomalias congénitas ou diátese hemorrágica.
  • As hemorragias de causa iatrogénica, secundárias a flebotomias frequentes para estudos analíticos, têm particular relevância e frequência elevada no RN pré-termo submetido a terapia intensiva, podendo a espoliação efectuada atingir 5 a 10% da volémia.

2. Anemia por destruição eritrocitária aumentada

Anemia hemolítica imune

A passagem transplacentar de anticorpos maternos contra antigénios existentes nos glóbulos vermelhos fetais constitui a causa mais frequente de hemólise neonatal.

  1. Anemia aloimune (isoimunização Rh, AB0 e grupos minor). O espectro clínico varia da anemia ligeira com hiperbilirrubinémia, a anemia grave com hidropisia fetal. A profilaxia materna com imunoglobulina anti-D contribuiu para a diminuição drástica da isoimunização Rh.
    A isoimunização AB0 é, por isso, hoje em dia mais frequente cursando geralmente com quadros ligeiros, isto é, hiperbilirrubinémia moderada e anemia ligeira a moderada, sendo rara a hepatoesplenomegália.
    A isoimunização por incompatibilidade dos grupos minor (Cc, Ee, Kell, Duffy, Kidd, MNSs) é rara.
  1. Anemia autoimune. Trata-se de forma rara, secundária a doenças autoimunes maternas, como o lúpus eritematoso sistémico. A hemólise é secundária à passagem transplacentar de anticorpos maternos, com manifestações menos graves que as aloimunes.
    A normalização dos valores eritrocitários ocorre, em geral, até às 2-3 semanas de vida.
  1. Anemia hemolítica induzida por drogas. É rara no recém-nascido apesar de os eritrócitos do recém-nascido serem particularmente sensíveis aos efeitos tóxicos das drogas oxidantes. As penicilinas, as cefalosporinas e a alfa-metildopa, podem estar implicadas neste processo.
Anemia hemolítica não imune
  1. Infecção. Todos os agentes microbianos do grupo TORCHS, em particular o CMV e o Coxsackie B, assim como microrganismos bacterianos, com destaque para a Escherichia coli, podem ser causa de hemólise. Em qualquer circunstância, palidez associada a mau estado geral, perfusão tecidual diminuída e acidose, obrigam a admitir a hipótese de sépsis. Geralmente coexiste trombocitopénia, hepatosplenomegália e aumento da bilirrubina directa e indirecta.
  2. Defeitos da membrana eritrocitária. No período neonatal a mais frequente é a esferocitose hereditária, uma condição em que a fragilidade osmótica do eritrócito está aumentada. Cursa com anemia hemolítica de grau variável, esferócitos no esfregaço do sangue periférico e hiperbilirrubinémia, existindo frequentemente história familiar (transmissão autossómica dominante). Contudo, uma história familiar negativa não exclui o diagnóstico, pois as mutações de novo são frequentes. Estudos familiares confirmam o diagnóstico, embora só em 70% dos casos sejam positivos.
    A eliptocitose hereditária, autossómica dominante, é muito mais rara. Manifesta-se com hiperbilirrubinémia, anemia e eritrócitos deformados e fragmentados em circulação.

3. Défices enzimáticos

O mais frequente é o défice da glucose 6 fosfato desidrogenase (G-6PD). É uma doença genética recessiva ligada ao cromossoma X. Esta enzima intervém no processo enzimático que protege o eritrócito da oxidação. O diagnóstico deve suspeitar-se no recém-nascido com hiperbilirrubinémia inexplicável, teste de Coombs directo negativo, corpos de Heinz e picnócitos no esfregaço sanguíneo. O estudo familiar e a determinação da actividade enzimática 2-3 meses após o episódio de hemólise confirmam o diagnóstico. A hemólise por défice da piruvato-quinase é mais rara, mas pode ser responsável por anemia hemolítica grave na 1ª semana de vida.

4. Hemoglobinopatias

Ao nascer cerca de 80% da hemoglobina em circulação corresponde a Hb F, constituída por duas cadeias alfa e duas cadeias gama (α2 g2). O desvio da síntese para a Hb A tipo adulto (α2 b2) tem início às 32 semanas de idade gestacional e irá prolongar-se pelos primeiros 2-3 meses de vida. As hemoglobinopatias secundárias a alterações nas cadeias b, (drepanocitose e btalassémias), são silenciosas no período neonatal em que predomina a Hb F.

Nas αtalassémias o feto não consegue produzir Hb F por défice na síntese das cadeias α. Uma das consequências pode ser a formação de Hb Bart que, impedindo a libertação de O2 para os tecidos (desvio da curva de dissociação da HbO2 para a esquerda), leva a hidropisia com morte fetal na grande maioria dos casos.

Anemias por produção eritrocitária diminuída

São secundárias a hipoplasia ou aplasia medular de causa congénita, infecciosa (Parvovírus B19), ou a défices nutricionais (vitamina E). Caracterizam-se por diminuição de reticulócitos e ausência de icterícia.

Anemia congénita hipoplásica de Blackfan-Diamond

Trata-se duma situação rara, estando somente atingida a série vermelha. A série branca é normal, assim como as plaquetas. O grau de anemia é variável e em 1/3 das situações verifica-se a existência de anomalias associadas (microcefalia, fenda palatina, prega da nuca, má inserção dos polegares e anomalias renais). Em cerca de 15 a 20% dos casos há antecedentes familiares.

Disgenésia reticular e leucemia congénita

São situações extremamente raras.

Infecção fetal por Parvovírus B19

Esta infecção pode ser assintomática. É responsável por cerca de 18% dos casos de hidropisia fetal de causa não imune. O vírus liga-se ao antigénio P do glóbulo vermelho, com redução significativa da produção de eritrócitos fetais, do que pode resultar anemia grave e/ou morte fetal.

Aspectos semiológicos e diagnóstico diferencial

Em complemento da alínea anterior, importa salientar alguns aspectos da semiologia clínica e laboratorial que poderão ser úteis na perspectiva do diagnóstico diferencial. (Figura 1)

Os dados obtidos pela história familiar (anemia, colelitíase, esplenectomia, icterícia), e história obstétrica (hemorragia vaginal, placenta prévia, abruptio placentae, vasa previa, tipo de parto, parto traumático, rotura do cordão, parto múltiplo), associados ao exame clínico cuidadoso, são imprescindíveis para o diagnóstico etiológico.

Os valores hematológicos devem ser avaliados em função do peso, idade gestacional, idade pós-natal e local da colheita sanguínea, reiterando-se que os mesmos são mais elevados no sangue capilar em relação ao venoso ou arterial; por outro lado, a concentração da Hb imediatamente após uma perda aguda pode ser normal devido à vasoconstrição compensatória; ou seja, a comprovação da descida dos valores em caso de hemorragia só se torna aparente várias horas depois, após a reexpansão plasmática.

Uma anemia grave verificada no pós-parto imediato ou nas primeiras 24 horas de vida, até prova em contrário, deve ser considerada secundária a espoliação sanguínea ou a isoimunização grave.

O diagnóstico de perda aguda de sangue deve ser equacionado imediatamente no recém-nascido pálido, em choque hipovolémico, com má perfusão, taquipneia, pulsos fracos e hipotensão, o que obriga a urgente e rápida reposição da volémia.

Na perda crónica, o único sinal é a palidez da pele e mucosas; através dos exames laboratoriais são comprovados parâmetros de anemia normocrómica normocítica ligeira com valores de Hb entre 9-12 g/dL ou anemia microcítica hipocrómica com valores de Hb entre 5-7 g/dL. Uma das formas de perda crónica é a transfusão feto-placentar crónica ou feto-fetal.

Importa salientar que os valores que definem “microcitose no RN” são diferentes dos considerados para a criança maior, tendo em conta a “macrocitose fisiológica” do RN.

FIGURA 1. Diagnóstico etiológico da anemia neonatal.

Para diagnóstico da transfusão feto-materna pode utilizar-se a prova de Betke-Kleihauer, baseada no princípio de que a Hb fetal é álcool e ácido resistente – a hemoglobina A é desnaturada e os eritrócitos fetais destacam-se no esfregaço de sangue materno, podendo ser contabilizados; patologia materna associada a um aumento dos níveis de Hb F pode dar resultados falsos positivos. Mais recentemente alguns laboratórios utilizam para este fim a citometria de fluxo.

Com efeito, os anticorpos monoclonais para a Hb fetal permitem quantificar a transfusão feto-materna e até distinguir os eritrócitos fetais de eritrócitos maternos com níveis aumentados de Hb F. A cromatografia líquida de alta precisão (HPLC) é também utilizada por alguns laboratórios com o mesmo propósito.

Após as primeiras 24 horas de vida as principais causas são as hemorragias internas e a hemólise.

Nas primeiras semanas de vida podem estar implicadas as hemoglobinopatias, as aplasias e a chamada anemia fisiológica ou da prematuridade.

Exames complementares e diagnóstico etiológico

A avaliação inicial de uma anemia inclui essencialmente a realização dos seguintes exames:

  • Hemograma completo
  • Reticulócitos
  • Esfregaço sangue periférico (corpos Heinz, eliptócitos, picnócitos)
  • Prova de Coombs directa
  • Bilirrubinémia conjugada e não conjugada
  • Grupo sanguíneo do recém-nascido e da mãe

Como segunda prioridade estão indicados os seguintes exames:

  • Estudo serológico no âmbito do grupo TORCHS
  • Hemocultura
  • Ferritina
  • Doseamento da G6PD e da piruvato-cinase
  • Pesquisa de hemoglobina fetal no sangue materno – prova de Betke–Kleihauer, citometria de fluxo ou HPLC
  • Estudos imunológicos e da coagulação
  • Mielograma

O fluxograma incluído na Figura 1 contribui para o apuramento do diagnóstico etiológico.

Prevenção e tratamento

A prevenção e o tratamento da anemia neonatal são determinados pela etiopatogénese subjacente, salientando-se que se aplicam neste grupo etário, com algumas especificidades, as normas de actuação referidas a propósito das síndromas anémicas noutros grupos etários.

Neste capítulo é dada ênfase a medidas gerais a aplicar nas situações de prevenção e/ou tratamento da anemia da prematuridade, particularmente nos RN de muito baixo peso:

  1. Laqueação tardia do cordão umbilical (>30 segundos) em posição inferior à placenta (ou não, segundo alguns autores) ou, em alternativa, expressão manual do cordão). São excepções a esta regra: casos de isoimunização ou de necessidade de reanimação;
  2. Redução da espoliação sanguínea (limitação, planificação e uso de micrométodos nas colheitas para estudos analíticos);
  3. Normas estritas de transfusão de sangue (Quadro 2);
  4. Administração de ferro
    • Início profiláctico de ferro elementar, a partir da terceira semana de vida, na dose de 2-3 mg/kg/dia até 1 ano de idade;
    • Administração simultânea de vitamina E (presente no suplementos vitamínicos actualmente recomendados para os RN pré-termo);
    • Ferro elementar na dose de 4-6 mg/kg/dia nos RN pré-termo com anemia ferropénica, até 30 dias após a data de normalização do hematócrito e hemoglobina;
    • Vigilância clínica e laboratorial criteriosas, com contagem de eritrócitos, reticulócitos e determinação da ferritina.
  5. Vigilância clínica e laboratorial após a alta e durante 2-3 meses nas situações de anemia hemolítica imune
    • Como nota final refere-se que a administração de eritropoietina não está recomendada. Os estudos científicos demonstram que a sua utilização, apesar de poder reduzir o número de transfusões, não leva a uma redução no número de dadores a que o RN é exposto. Por outro lado, tal procedimento associa-se a maior risco de retinopatia da prematuridade.

QUADRO 2 – Critérios transfusionais.

Adaptado de Ohls R. Red blood cell transfusions in the newborn. Uptodate. https://wolterskluver.com  (2013)
Anemia da Prematuridade. In Consenso Clínico 2013, Secção de Neonatologia da SPP . CE <> Concentrado Eritrocitário

Hemorragia aguda >20%
Hemorragia aguda >10% com diminuição de distribuição de O2 aos tecidos – acidose persistente após ressuscitação de volume
Necessidade imediata de aumento de distribuição de O2 aos tecidos, não conseguida com aumento do suporte respiratório
Relação:
Hb(em g/dL) /Htc (em %)
Ventilação Mecânica (VM)/ Parâmetros váriosCE
10/30VM moderada/ significativa
Convencional: MAP >8 cmH2O e FiO2>0.4
VAF: MAP >14 cmH2O e FiO2>0.4
10-20 mL/kg
2-4 h
8/25VM mínima
Convencional: MAP ≤8 cmH2O e FiO2≤0.4
VAF: MAP ≤14 cmH2O e FiO2≤0.4
7/20O2 suplementar na ausência de VM em presença de 1 ou mais dos seguintes parâmetros:
FC ≥180/min ou FR ≥60 bpm ≥24h
Duplicação das necessidades de O2 nas 48h anteriores
Lactato sérico ≥2.5 mEq/L ou acidose metabólica aguda (pH <7.20)
Aumento ponderal <10 g/kg/dia nos 4 dias anteriores, sob ≥120 kcal/kg/dia
Cirurgia em 72h

6/18

 

Assintomático
Nº absoluto de reticulócitos <100.000/ uL (<2%)

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Definição e importância do problema

Define-se policitémia no recém-nascido (RN) como a verificação de hematócrito (Ht) ou concentração de hemoglobina (Hb) superior a 2 desvio-padrão para a idade gestacional e idade pós-natal. No RN de termo considera-se policitémia se se verificar hematócrito venoso >65% ou Hb >22 g/dL.

Trata-se dum problema clínico cuja incidência, conforme diversas séries, variando entre 0,4% e 5%, é mais elevada em recém-nascidos de risco (com restrição de crescimento intrauterino, pós-termo, antecedentes de diabetes materna na gravidez/RN de mães diabéticas, tabagismo materno, e de hipoxémia crónica intrauterina) e naqueles com antecedentes de gravidez em locais de grande altitude (superior a 1.000 metros). A incidência é menor em situações de prematuridade, sobretudo com <34 semanas.

As principais implicações clínicas da policitémia decorrem da hiperviscosidade sanguínea comprometendo o débito sanguíneo e oxigenação tecidual, e predispondo à estase e formação de trombos ao nível da microcirculação em diversos territórios.

Estes eventos têm particular relevância ao nível do córtex cerebral, suprarrenais e rins.

Etiopatogénese

A policitémia neonatal, de etiopatogénese multifactorial, integra fundamentalmente dois grupos, a que correspondem outros tantos mecanismos:

  • Policitémia activa, na dependência da eritropoiese intrauterina, por acção da eritropoietina fetal em resposta a hipóxia fetal e/ou a insuficiência placentar (por ex. em situações de restrição de crescimento fetal, hipertensão arterial, diabetes materna, tabagismo, etc.);
  • Policitémia passiva, secundária a transfusão sanguínea para o feto (feto-fetal ou materno-fetal), asfixia perinatal ou laqueação do cordão umbilical superior a 30 segundos; no RN de termo, a causa mais frequente é a laqueação tardia do cordão.

Situações como trissomias 13, 18 e 21, hipotiroidismo, tireotoxicose, hiperplasia congénita da suprarrenal, síndroma de Becwith-Wiedemann, também podem cursar com policitémia neonatal.

Nota importante

A questão relacionada com o tempo pós-parto em que se deve proceder à clampagem/ laqueação do cordão é controversa, variando conforme diversos autores, o conceito de “tardia”. Classicamente tem-se considerado norma corrente proceder à laqueação 30 segundos após o parto completo. De acordo com as normas de orientação veiculadas pelo ILCOR (International Liaison Committee on Resuscitation) e a American Heart Association (AHA), datadas de 2015, nos RN com boa adaptação à vida extrauterina, não necessitando de reanimação, a laqueação não deverá realizar-se antes de 1 minuto/ 60 segundos. Os respectivos peritos realçam que: 1) a laqueação antes da primeira respiração pode originar bradicárdia coincidindo com diminuição do débito cardíaco; 2) nos RN pré-termo com boa adaptação à vida extrauterina com tal procedimento (laqueação não antes de 1 minuto) evidenciam maior estabilidade hemodinâmica, têm menor necessidade de inotrópicos e ficam mais enriquecidos em reservas de ferro. (ver atrás capítulo sobre reanimação do RN)

A policitémia acompanha-se frequentemente de hiperviscosidade sanguínea: verifica-se uma correlação linear entre tais parâmetros para valores entre 42 e 65%, e exponencial para valores superiores a 65%. Contudo, os dois termos não são sinónimos. Hiperviscosidade é definida como viscosidade sanguínea superior a 12 cP (centipoise), medida a uma velocidade de corte de 11,5/seg.

A policitémia depende:

  • Do número de eritrócitos (em relação, por ex. com eritropoiese activa);
  • Da diminuição do volume plasmático (por ex. em relação com desidratação); ou,
  • De ambos os factores (por ex. situações de restrição do crescimento fetal).

O hematócrito depende:

  • Do local da colheita de sangue (o hematócrito colhido em sangue capilar pode ser até 15% superior ao obtido através de colheitas em sangue venoso), sendo que não se verifica discrepância significativa entre os valores do hematócrito obtidos no sangue venoso central e no sangue arterial;
  • Da técnica utilizada [o valor determinado por analisador automático (método de Coulter, que calcula o hematócrito a partir da concentração de hemoglobina e volume globular médio) é inferior ao encontrado por microcentrifugação];
  • Da idade pós-natal do recém-nascido o hematócrito tem um “pico” às 2 horas de vida (valores normais até 71%) e desce gradualmente a partir das 6 horas de vida, estabilizando pelas 12 a 24 horas. Estas variações estão relacionadas com a transudação de fluidos do espaço intravascular.

A viscosidade sanguínea (aplicando ao sangue a definição de Poiseuille: relação entre as forças de atrito das partículas circulantes e a velocidade do fluxo sanguíneo num vaso) depende não só, do hematócrito, volume eritrocitário, diâmetro do vaso sanguíneo, deformabilidade dos eritrócitos (quanto maior volume e menor deformabilidade, maior viscosidade), número e volume leucocitários, mas igualmente dos lípidos e proteínas no plasma (especialmente fibrinogénio), das plaquetas, e de factores endoteliais. Recorda-se, a propósito, que os eritrócitos do RN (com macrocitose fisiológica, própria da idade) são menos deformáveis, o que predispõe a estase na microcirculação.

Na prática clínica utiliza-se o valor do hematócrito como representativo da viscosidade sanguínea, uma vez que o aparelho para determinar a viscosidade sanguínea (viscosímetro) não existe na maioria das unidades de recém-nascidos. A hiperviscosidade sanguínea poderá condicionar deficientes perfusão microcirculatória e oxigenação em diversos órgãos e sistemas.

No sistema cardiopulmonar verifica-se diminuição do débito cardíaco resultante da diminuição do volume de ejecção e da frequência cardíaca; com valores de hematócrito superiores a 70% verifica-se que a pressão da artéria pulmonar iguala a pressão sistémica. A ocorrência de cianose e taquicárdia foi reportada em menos de 15% dos estudos.

Sinais respiratórios, incluindo taquipneia (relacionados com aumento da resistência vascular pulmonar e diminuição do fluxo sanguíneo pulmonar), ocorrem em menos de 5% dos RN com policitémia.

No sistema gastrintestinal a sintomatologia mais comum inclui dificuldade alimentar e vómitos. A redução do fluxo sanguíneo tem sido associada a um maior risco de enterocolite necrosante; contudo, a exsanguinotransfusão parcial parece ser o factor de risco mais importante (sobretudo se realizada através de cateter venoso umbilical), e não a policitémia só por si.

A circulação entero-hepática dos ácidos biliares e a função exócrina pancreática também podem ser afectadas durante os primeiros dias de vida.

No sistema renal comprova-se diminuição da taxa de filtração glomerular, do débito urinário e da excreção urinária do sódio, o que parece estar rela­cionado com diminuição do fluxo plasmático renal, traduzindo provavelmente, uma resposta fisiológica do rim no sentido de retenção de água e sódio.

No sistema nervoso central demonstrou-se diminuição do fluxo sanguíneo cerebral com aumento da resistência vascular, o que compromete a libertação do oxigénio aos tecidos irrigados. Esta relação de causa-efeito não está, no entanto, demonstrada, admitindo-se que possa estar relacionada, mais com o factor etiológico da policitémia do que com a policitémia propriamente dita. Para além disso, estudos recentes demonstraram que esta diminuição do fluxo sanguíneo cerebral associada à policitémia é uma resposta fisiológica não condicionando isquémia cerebral.

Como consequência do maior consumo de glucose pelo eritrócito, a hipoglicémia poderá ocorrer em proporção variável, até 40% dos casos.

Nos RN de mãe diabética, com policitémia/ hiperviscosidade, concomitantemente com a formação de microtrombos, tem sido comprovada diminuição dos factores antagonistas da coagulação e diminuição do cálcio no sangue (hipocalcémia) por maior consumo em relação com o referido processo da coagulação.

A trombocitopénia associada a policitémia tem sido explicada pela diminuição de produção relacionada com hipóxia tecidual, associada a aumento de consumo e destruição.

Por outro lado, como resultado do incremento da destruição eritrocitária, é frequente surgir hiperbilirrubinémia.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos, a policitémia é assintomática. As manifestações clínicas (em geral nas primeiras 12 horas de vida, inespecíficas e por vezes subtis) dependem do grau de hiperviscosidade e das consequências da diminuição da perfusão tecidual em vários sistemas como SNC, renal e cardiorrespiratório. Muitas vezes, as referidas manifestações são secundárias a alterações metabólicas acompanhantes tais como hipoglicémia e hipocalcémia.

Pela anamnese perinatal poderão ser identificadas situações de base como as que são descritas no Quadro 1.

QUADRO 1 – Factores etiológicos de policitémia.

Policitémia activaPolicitémia passiva
Hipóxia fetal crónica
Restrição do crescimento fetal
Pré-eclâmpsia
Anomalias cromossómicas (trissomia 13, 18 e 21)
Diabetes materna
Síndroma de Beckwith-Wiedemann
Laqueação tardia do cordão
Transfusão feto-fetal
Transfusão materno-fetal

Na sua forma típica, o RN está pletórico ou com eritrocianose, sendo mais frequentes: letargia, irritabilidade, tremores, taquipneia e dificuldade alimentar. Os sinais mais frequentes são hiperbilirrubinémia (1/3 dos casos), cianose/ apneia (<10%), dificuldade/ intolerância alimentar (17%) e hipoglicémia (12-40%).

No Quadro 2 estão sintetizadas as manifestações clínicas mais típicas, em relação com a repercussão da hiperviscosidade em diversos territórios.

QUADRO 2 – Manifestações clínicas da hiperviscosidade.

Sistema Nervoso Central
Letargia, irritabilidade, tremores, hipotonia, convulsões, alterações da sucção, trombose do seio venoso (muito rara) e sequelas neurológicas tardias.

Cardiorrespiratórias
Taquipneia, taquicárdia, cardiomegália, congestão vascular pulmonar, derrame pleural, apneia.

Renais
Diminuição da taxa de filtração glomerular, diminuição do débito urinário, diminuição da excreção urinária, proteinúria, hematúria por lesão tubular.

Metabólicas
Hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesiémia, hiperbilirrubinémia.

Hematológicas
Trombocitopénia, diminuição de factores antagonistas da coagulação, provavelmente secundária à asfixia.

Gastrintestinais
Intolerância alimentar, enterocolite necrosante.

Exames complementares

Uma vez que o viscosímetro somente está disponível em raros centros, o diagnóstico baseia-se na determinação do hematócrito em sangue venoso. Este parâmetro deverá ser realizado em RN com sinais sugestivos e/ou com factores predisponentes de policitémia e valor de hematócrito capilar >65% (se possível, determinado por microcentrifugação):

  • RN leves para a idade gestacional;
  • RN grandes para a idade gestacional;
  • Gémeos monocoriónicos;
  • RN de mães diabéticas;
  • RN com história de restrição do crescimento fetal;
  • RN com quadro sugestivo de policitémia/ hiperviscosidade (clínica inespecífica).

Antes de se considerar o diagnóstico de policitémia, deverá ser excluída desidratação, com eventual correcção e posterior reavaliação do hematócrito.

Em função do contexto clínico (anamnese, factores de risco, sinais clínicos, etc.) poderão estar indicados outros exames complementares:

  • Sanguíneos (tais como contagem de plaquetas, pH e gases no sangue, glucose, cálcio, ionograma, bilirrubina total e directa);
  • Urinários (densidade e sedimento);
  • Imagiológicos (radiografia do tórax e ecografia transfontanelar se existirem alterações cardiorrespiratórias e neurológicas, respectivamente).

Tratamento

Em todos os recém-nascidos com policitémia, o clínico deverá estar alertado para possíveis sinais cardiovasculares e neurológicos, assim como monitorizar eventuais complicações associadas, como a hipoglicémia e hiperbilirrubinémia.

A abordagem da policitémia depende da presença de sinais clínicos e/ou do valor absoluto do hematócrito. (Consultar algoritmo)

Figura 1- Actuação nos casos de suspeita de policitemia

Recém-nascidos sintomáticos

O tratamento definitivo da policitémia consiste na exsanguinotransfusão parcial (ETP) isovolumétrica, com remoção de parte da volémia e substituição por fluidos, de modo a diminuir o hematócrito para valores de cerca de 55%, sem causar hipovolémia.

O volume de sangue a retirar é geralmente 15 a 20 mL/kg, podendo ser calculado através da fórmula:

Volume de troca (mL) =
Volémia x (Ht observado – Ht desejado) / Ht observado [Ht <> Hematócrito]

 Volémia: 80-90 mL/kg em recém-nascidos de termo e 90-100 mL/kg em recém-nascidos prematuros.

A ETP pode ser realizada através de um acesso vascular periférico (no qual o sangue é retirado por uma linha arterial periférica e substituído por fluidos administrados em veia periférica) ou central (o sangue é retirado através da veia umbilical e substituído por fluidos através de uma veia periférica ou da veia umbilical).

O sangue retirado poderá ser substituído (de forma contínua ou em trocas parcelares de 10-15 mL/kg) por cristalóides, geralmente soro fisiológico.

Recém-nascidos assintomáticos

A abordagem dos recém-nascidos assintomáticos depende do valor de hematócrito.

Em recém-nascidos assintomáticos, com valor de hematócrito >75%, a abordagem é sobreponível à dos recém-nascidos sintomáticos.

Em recém-nascidos assintomáticos, com valor de hematócrito entre 70 e 75%, a abordagem inicial é conservadora, com aumento do suprimento de fluidos, geralmente 20 mL/kg adicionais relativamente às necessidades hídricas diárias habituais; podem ser administrados por via entérica ou parentérica.

É fundamental a vigilância clínica e monitorização dos sinais clínicos de policitémia, com reavaliações seriadas do hematócrito.

Em recém-nascidos assintomáticos, com valor de hematócrito entre 65 e 70%, deve providenciar-se uma vigilância clínica rigorosa, traduzida essencialmente em monitorização dos sinais clínicos de policitémia, com avaliações seriadas do hematócrito.

Prognóstico e complicações

Nos recém-nascidos policitémicos e assintomáticos, o prognóstico é bom.

Nos recém-nascidos sintomáticos, a ETP corrige as alterações fisiopatológicas associadas à síndroma de hiperviscosidade, promovendo a melhoria do fluxo sanguíneo cerebral, da perfusão capilar e da função cardíaca. No entanto, existe escassez de provas científicas quanto à verdadeira eficácia de tal procedimento no que respeita à melhoria do prognóstico a longo prazo, designadamente à diminuição de sequelas neurológicas (anomalias motoras e epilepsia). Contudo, a evolução e morbilidade associadas dependem também dos factores predisponentes da policitémia, como por exemplo a hipóxia fetal. Com efeito, esta possibilidade pode explicar o escasso efeito a longo prazo da ETP nalguns casos de policitémia sintomática.

Após a alta hospitalar, os lactentes com antecedentes de policitémia sintomática e/ou submetidos a ETP deverão ser avaliados periodicamente em regime ambulatório.

O Quadro 3 sintetiza algumas complicações e sequelas da síndroma policitémia/ hiperviscosidade, sendo que por vezes é difícil distinguir entre sintomatologia do quadro propriamente dito e complicações.

QUADRO 3 – Complicações e sequelas descritas na síndroma policitémia/ hiperviscosidade.

    • Sequelas neurológicas
    • Insuficiência cardíaca congestiva
    • Enfarte testicular
    • Priapismo
    • Retinopatia
    • Enterocolite necrosante
    • Íleo paralítico
    • Insuficiência renal aguda
    • Trombose da veia renal

Prevenção

As medidas preventivas de ordem geral implicam uma correcta vigilância pré-natal, detectando e corrigindo os factores de risco de hipoxémia e de crescimento fetais, quer em termos de restrição, quer em termos de hipercrescimento (macrossomia).

No âmbito dos procedimentos durante o parto, chama-se a atenção, de acordo com o que antes foi referido, para o tempo de laqueação do cordão umbilical e para a importância do plano em que o recém-nascido é colocado no pós-parto imediato (superior ao do períneo materno, com menor probabilidade de transfusão placento-fetal, ou inferior, com maior probabilidade de transfusão).

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Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

A trombocitopénia, problema frequente no RN, em particular no pré-termo, define-se como a situação clínica em que se verifica número de plaquetas inferior a 150.000/mm3; de referir que valores entre 100.000 e 150.000/mm3 são frequentes no RN aparentemente saudável, pelo que em tais circunstâncias se torna indispensável excluir falsa doença avaliando com rigor a evolução numérica de tais células sanguíneas.

Na maioria dos casos trata-se de situações clínicas de gravidade ligeira a moderada, com regressão espontânea e sem sequelas.

A forma clínica designada por trombocitopénia grave acompanha-se de valor inferior a 50.000/mm3; as manifestações hemorrágicas significativas estão habitualmente associadas apenas a valores inferiores a 20.000-30.000/mm3.

De acordo com vários estudos, a trombocitopénia está presente em cerca de 0,12% a 0,70% dos RN; nos internados em unidades de cuidados intensivos neonatais (UCIN), esta proporção oscila entre 20% e 50%; a trombocitopénia grave é observada em cerca de 8% dos RN pré-termo assistidos em UCIN.

Etiopatogénese e semiologia laboratorial

As plaquetas são pequenos elementos figurados do sangue circulante, com um diâmetro 14 vezes inferior ao do glóbulo vermelho. O seu número aumenta de forma linear com a evolução da gestação, pelo que é habitual verificar-se nos RN pré-termo um valor numérico de plaquetas ligeiramente inferior ao observado no RN de termo.

Embora existam vários reguladores da produção de tais células, tais como as interleucinas 3, 11 e 16, o factor que estimula de forma mais significativa esta produção, é a trombopoietina, glicoproteína que se liga ao receptor c-mpl expresso nos megacariócitos e nos seus precursores.

As alterações plaquetárias no período neonatal podem integrar os seguintes grupos:

  • Qualitativas congénitas;
  • Qualitativas adquiridas;
  • Quantitativas:
    • por aumento da destruição (trombocitopénias imunes e por aumento do consumo como na CIVD);
    • por défice de produção (trombocitopénias de causa genética, associada a doenças infiltrativas ou a insuficiência placentar); ou
    • por sequestração no baço aumentado de volume ou outro órgão (hiperesplenismo, síndroma de Kasabach-Merrit).

A relação entre a etiopatogénese e semiologia laboratorial pode ser tipificada por um conjunto de fenómenos biológicos com implicações práticas nas manifestações clínicas:

  • Plaquetas revestidas por IgG, embora possam constituir um indicador de destruição plaquetária, são frequentemente encontradas em RN sem sinais de doença aparente;
  • Níveis elevados de trombopoietina, o mais importante regulador da produção de plaquetas, podem ser um indicador de destruição aumentada;
  • Nas chamadas “plaquetas reticuladas” correspondendo a plaquetas jovens, existe conteúdo elevado de ácido ribonucleico; em situações de maior destruição, o número destas plaquetas e de megacariócitos medulares está aumentado no sangue periférico; o inverso é possível em casos de diminuição da produção;
  • O volume plaquetário médio (VPM), mais elevado nas plaquetas mais jovens, traduz em princípio um aumento de produção, secundário a destruição aumentada; no entanto, a sua maior utilidade, a par do exame morfológico das plaquetas, verifica-se no âmbito do diagnóstico de situações hereditárias (macrotrombocitopénias);
  • A glicocalicina, fragmento proteolítico solúvel da subunidade a da glicoproteína Ib, é um componente, quer dos megacariócitos normais e maduros, quer das plaquetas; níveis elevados da referida glicocalicina verificam-se em situações de maior consumo de plaquetas, enquanto níveis reduzidos se associam a situações com diminuição da respectiva produção;
  • Estudo medular: em casos especiais poderá ser elucidativo para avaliação da celularidade medular e da morfologia dos megacariócitos quando a trombocitopénia é prolongada e grave, e de causa desconhecida; em situações com aumento da destruição plaquetária, a medula evidencia número normal ou aumentado de megacariócitos; pelo contrário, em situações em que está afectada a produção, o número de megacariócitos está reduzido.

Ocasionalmente podem ser observados dados mais específicos: inclusões víricas sugerem infecção por CMV ou Parvovirus; megacariócitos picnóticos, sem citoplasma, são sugestivos de infecção por VIH; invasão medular ou diminuição das células mielóides e eritróides sugerem aplasia.

Notas importantes:

Sendo muito difícil a realização de estudos da cinética plaquetária no recém-nascido, certos dados relacionados com a necessidade e frequência de transfusões permitem uma avaliação indirecta do mecanismo da trombocitopénia:

    • trombocitopénia grave com boa resposta à transfusão feita semanalmente relaciona-se provavelmente com menor produção (por exemplo, trombocitopénia amegacariocítica congénita);
    • trombocitopénia com necessidade frequente de transfusões é muito sugestiva de aumento do consumo.

Classificação

Em cerca de 50% das situações acompanhadas de alterações quantitativas das plaquetas no RN (trombocitopénia relacionável com os mecanismos anteriormente referidos: aumento de destruição, diminuição de produção – o mecanismo mais frequente – ou sequestração), não é possível estabelecer o diagnóstico etiológico.

Nos restantes casos, no entanto, através de anamnese perinatal e de exame físico rigorosos, é possível identificar determinado factor etiológico, o qual poderá ser incluído num ou mais dos seguintes grupos: 1 – imunológico; 2 – infeccioso; 3 – genético; 4 – drogas; 5 – coagulação intravascular disseminada; 6 – insuficiência placentar; 7 – miscelânea.

Para além do mecanismo patológico em causa, as trombocitopénias podem também ser classificadas em função:

  • Das dimensões das plaquetas (grandes, normais ou pequenas);
  • Do modo de aquisição (congénitas ou adquiridas); ou
  • Da data do aparecimento (precoce se antes das 72 horas de vida ou tardia se depois das 72 horas). 

Perante determinado contexto clínico e o resultado analítico evidenciando valor diminuído de plaquetas, torna-se necessário, muitas vezes, excluir as chamadas “pseudotrombocitopénias” causadas pela agregação das plaquetas em colheitas feitas em tubos com EDTA; uma nova colheita em tubo citratado ou uma observação em lâmina, permitirá, na maioria dos casos, comprovar o diagnóstico de “trombocitopénia verdadeira”.

Na perspectiva de se obter o diagnóstico etiológico torna-se fundamental uma anamnese rigorosa, designadamente inquirindo sobre determinados pontos:

Dados relativos à mãe/grávida

  • Doença autoimune – PTI, LED? Existe história de esplenectomia? Na gravidez anterior, o RN teve trombocitopénia? As plaquetas maternas são normais ou evidenciam número diminuído? A que medicações foi submetida? Existe história de hipertensão ou de diabetes gestacional? Existe risco infeccioso?

Dados relativos ao RN

  • Verifica-se bom estado geral? O RN evidencia sinais de doença ou anomalias congénitas, designadamente esqueléticas? Há antecedentes de asfixia? Há história de bradiarritmia sugestiva de LED? Existe restrição de crescimento fetal? A trombocitopénia tem início precoce (<72 horas de vida) ou tardio (depois deste período)?
    A trombocitopénia é ligeira/moderada (50-150.000/mm3) ou grave?
    A abordagem inicial do recém-nascido com trombocitopénia nesta perspectiva permite, em muitos casos, apontar para um dos grupos etiológicos apontados e, a partir daqui, avançar para os exames complementares específicos; o objectivo último é proceder ao tratamento adequado para prevenir a hemorragia grave com risco de vida.
    De acordo com a etiopatogénese e a cronologia das manifestações clínicas – que, em cerca de 75% dos casos surgem até às 72 horas de vida – é estabelecida a classificação. (Quadro 1)
    O fluxograma que integra a Figura 1 diz respeito a uma abordagem do RN com trombocitopénia precoce, orientando para as hipóteses de diagnóstico.

QUADRO 1 – Causas de trombocitopénia fetal e neonatal.

Abreviaturas:
TORCH – toxoplasmose, outras infecções congénitas (hepatite B, sífilis, herpes zóster), rubéola, citomegalovírus, herpes simplex
VIH – vírus da imunodeficiência humana
* → Causas mais frequentes
(#) → por diminuição de produção
(“) → por sequestração
→ As situações não assinaladas com os símbolos (#) ou (“) correspondem a mecanismo de destruição aumentada
Em muitos casos coexistem mecanismos combinados (por ex. sépsis, asfixia, RCIU, pré-eclâmpsia, enterocolite, etc.)

Fetal e neonatal precoce (72h)

    • Insuficiência placentar*
      Pré-eclâmpsia
      Diabetes mellitus
      Restrição do crescimento fetal
    • Asfixia perinatal*
    • Policitémia
    • Imunológica
      Trombocitopénia neonatal aloimune*
      Trombocitopénia neonatal autoimune
      Lúpus neonatal
      Anemia hemolítica do recém-nascido (factor Rh)
      Drogas (vancomicina, valproato, etc.)
    • Infecção*
      Congénita (grupo TORCH, VIH)
      Perinatal (Streptococcus B, E. coli, Listeria monocytogenes)
      Coagulação intravascular disseminada*
    • Trombose (aórtica, renal)
    • Congénita/Hereditária
      Aneuploidia (Trissomias 13, 18, 21; Triploidia)*(#)
      Trombocitopénia amegacariocítica congénita(#)
      Trombocitopénia com ausência de rádio (síndroma TAR)(#)
      Anemia de Fanconi(#)
      Leucemia congénita(#)
    • Imunodeficiência
      Síndroma de Wiskott Aldrich
      Linfo-histiocitose hemofagocítica
    • Síndroma de Kasabach-Merrit/Hemangioendoteliomas
      Metabólica (Acidémia propiónica/Metilmalónica)(#)
    • Outras (raras)

Neonatal tardia (>72h)

    • Sépsis bacteriana tardia*
    • Enterocolite necrosante*
    • Infecção congénita
    • Insuficiência medular congénita/hereditária
    • Coagulação intravascular disseminada
    • Outras (hipertensão pulmonar persistente(“), fototerapia, erros inatos do metabolismo, défice nutricional(#)- ferro, folato, vitamina B12-
    • Hiperesplenismo (“)

FIGURA 1. Abordagem do RN com trombocitopénia precoce.

Formas clínicas

Seguidamente são descritas algumas formas clínicas de trombocitopénia neonatal.

Trombocitopénia aloimune

De mecanismo análogo ao da doença hemolítica por incompatibilidade Rh, a trombocitopénia aloimune é causada pela passagem transplacentar de anticorpos maternos contra antigénios existentes herdados do pai (na raça caucasiana: HPA-1a e HPA-5b positivos) destruindo as plaquetas fetais no decurso do segundo trimestre da gestação; o título de anticorpos antiplaquetários maternos não é preditivo da gravidade da trombocitopénia.

De referir que os antigénios plaquetários humanos HPA-1a e HPA-5b estão presentes em 98% da população sendo baixa a proporção de mulheres HPA-1a e HPA-5b-negativas. Em asiáticos, a causa mais frequente de trombocitopénia aloimune, tem a ver com o sistema HPA-4.

Ao contrário do que sucede na aloimunização Rh, em 40-50% dos casos ocorre na 1ª gravidez. O risco de recorrência em gravidez subsequente é elevado, dependendo do genótipo do pai: se homozigoto (HPA-1a/1a), o risco é de 100%; se heterozigoto (HPA-1a/1b), o risco é de 50%.

Esta situação tem uma prevalência oscilando entre 1/2.000 e 1/ 5.000, devendo ser considerada em todos os RN que evidenciem trombocitopénia inexplicada grave (<30.000/mm3) ou hemorragia intracraniana e cuja mãe, não tendo história de púrpura trombocitopénica idiopática, apresente valores normais de plaquetas.

Naturalmente, as manifestações clínicas no RN dependem da gravidade da trombocitopénia, desde uma trombocitopénia assintomática até formas graves causadoras de hemorragia intracraniana, a qual surge em 7 a 20% dos casos, frequentemente in utero.

O diagnóstico é habitualmente pós-natal, a menos que exista uma história prévia de aloimunização plaquetária na grávida ou numa irmã, seja detectada hemorragia fetal intracraniana ou seja feito rastreio pré-natal (habitualmente desaconselhado quando não existe uma possibilidade significativa).

Quando o diagnóstico é efectuado no decurso da gestação, o elevado risco de hemorragia fetal in utero justifica iniciar terapêutica com imunoglobulina intravenosa (IGIV) associada ou não a corticoterapia, com redução do risco de hemorragia intracraniana para menos de 3% dos casos.

A ecografia obstétrica a partir das 20 semanas de gestação permite monitorizar a existência de hemorragia intracraniana no feto, sendo as contagens plaquetárias e as transfusões intrauterinas de plaquetas efectuadas em último recurso.

A data do parto deve ter em conta a existência ou não de hemorragia intracraniana fetal em gravidez anterior e a maturação pulmonar do recém-nascido, sendo habitualmente programado a partir das 36-37 semanas; a cesariana é o método preferido, a menos que exista um valor plaquetário fetal superior a 100.000/mm3

O diagnóstico no RN depende da demonstração de anticorpos maternos dirigidos contra as plaquetas do respectivo pai e da existência de antigénios plaquetários incompatíveis entre a mãe (HPA-1a negativa) e o pai (HPA-1a positivo); o recém-nascido evidenciará provavelmente o tipo plaquetário do pai, não sendo habitualmente possível colher uma quantidade de sangue suficiente para investigação adequada. A resolução ocorre com a completa destruição dos anticorpos maternos, alguns meses após o nascimento.

Por último, salienta-se ainda a importância do aconselhamento pré-natal nestes casais, uma vez que a gravidade da incompatibilidade tem tendência crescente, necessitando de rigorosa vigilância hematológica e ecográfica a partir das 20 semanas gestacionais.

Trombocitopénia autoimune

Grávidas com púrpura trombocitopénica idiopática, lúpus eritematoso sistémico ou que necessitaram de terapêutica farmacológica (heparina), produzem autoanticorpos plaquetários com a capacidade de transpor a placenta e provocar destruição das plaquetas fetais em cerca de 10% dos casos. O valor numérico das plaquetas do RN (relacionado com a gravidade da doença materna) diminui entre as 48 e as 96 horas após o nascimento, pelo que deverão ser realizadas determinações diárias durante a primeira semana de vida.

Posteriormente, é esperado um aumento espontâneo progressivo, com normalização do número das plaquetas até às 3 semanas de vida; por vezes tal normalização pode requerer mais tempo (meses), enquanto não se completar o catabolismo completo dos anticorpos.

Contrariamente à trombocitopénia aloimune, as manifestações clínicas são em geral ténues, com risco de hemorragia intracraniana muito mais baixo, inferior a 1%. Factores preditivos de maior gravidade são valores plaquetários maternos inferiores a 50.000/mm3 e a ocorrência de trombocitopénia num filho anterior.

Trombocitopénia associada a infecção

Em RN evidenciando sinais de doença e trombocitopénia precoce ou tardia, há que admitir como causa subjacente mais provável a infecciosa. Efectivamente, cerca de 80% das infecções sistémicas comprovadas evoluem com trombocitopénia.

O principal mecanismo responsável é a maior destruição secundária, quer por lesão do endotélio com adesão e agregação plaquetária, quer por diminuição da produção relacionada com lesão dos megacariócitos medulares.

Em relação às sépsis bacterianas, na data do diagnóstico, pelo menos 25% dos RN evidenciam trombocitopénia, podendo persistir durante alguns dias. As infecções víricas (incluindo por Coxsackie B, Echovírus 11, Parvovírus B19, VIH) e por germes do grupo TORCHS podem igualmente ser causadores de trombocitopénia.

Trombocitopénia congénita e hereditária

Na grande maioria dos casos, o mecanismo responsável pela trombocitopénia reside na diminuição da produção de plaquetas. Como exemplos citam-se a trombocitopénia amegacariocítica congénita (em geral associada a anomalias congénitas e a anomalias de forma e de dimensão das plaquetas), a síndroma TAR (trombocitopénia associada a aplasia do rádio) (Figuras 2 e 3), anemia de Fanconi, associada a trissomias 13, 18 ou 21, acidémia metilmalónica, etc..

Nas situações congénitas, o diagnóstico diferencial faz-se com outras síndromas congénitas cursando com diátese hemorrágica e alteração qualitativa das plaquetas, tais como:

  • Síndroma de Bernard Soulier, transmitida de modo autossómico recessivo e caracterizada por défice de adesão plaquetária, e por plaquetas com volume aumentado;
  • Trombastenia de Glanzmann, situação igualmente autossómica recessiva em que se verifica défice de adesão plaquetária;
  • Síndroma de Wiskott-Aldrich, que corresponde a quadro hereditário ligado ao cromossoma X, associada a imunodeficiência, eczema e trombocitopénia moderada, com diminuição do volume e de adesão plaquetários.

Trombocitopénia induzida por drogas

Algumas drogas administradas durante a gravidez, como a azatioprina, o quinino, a cocaína, o ácido acetilsalicílico, a hidralazina ou tiazidas, são susceptíveis de causar trombocitopénia não só na grávida, como também no feto e RN, através de mecanismo imunológico.

Alguns medicamentos utilizados em recém-nascidos, como a indometacina, a vancomicina ou a heparina, podem igualmente ser responsáveis por trombocitopénia neonatal. (Quadro 1)

Insuficiência placentar

Situações de hipertensão induzida pela gravidez, restrição do crescimento fetal, diabetes gestacional ou hipóxia, são frequentes na grávida, constituindo uma causa comum de trombocitopénia no RN, em particular no pré-termo; o mecanismo em causa relaciona-se com défice de produção (diminuição da megacariocitopoiese).

A trombocitopénia, em geral ligeira ou moderada, e detectada no pós-parto, atinge valor mínimo entre o 2º e o 4º dia, e normaliza entre o 7º e 10º dia de vida. Não é habitualmente necessário qualquer tratamento.

FIGURA 2. RN com síndroma TAR associada a RCIU e trissomia 18. (URN-HDE)

FIGURA 3. Aspecto radiográfico do caso da Figura 1: ausência do rádio esquerdo sendo notório sinal de cardiomegália relacionável com cardiopatia. (URN-HDE)

Idiopática

Tal como foi referido antes, em mais de metade dos casos, mesmo após investigação adequada, não se encontra uma causa evidente para a trombocitopénia. Habitualmente, o número de plaquetas é superior a 50.000/mm3, podendo a normalização ocorrer somente após várias semanas.

Tratamento

O tratamento da trombocitopénia é determinado pela etiologia subjacente; na maior parte dos casos, resolve-se espontaneamente ao fim de 1-2 semanas, sem necessidade de intervenção e sem sequelas; por vezes, a transfusão de plaquetas feita em situações de hemorragia activa, ou profilacticamente, em trombocitopénias graves, constitui o único tratamento possível. 

O uso de factores de crescimento, nos quais se depositou inicialmente grande expectativa, tem algumas limitações que comprometem a sua utilização:

  • Relativamente à interleucina 11 recombinante, tais limitações relacionam-se com surgimento de retenção hídrica e arritmia;
  • Quanto à trombopoietina recombinante tem-se verificado o aparecimento de anticorpos neutralizantes e prolongado tempo de latência quanto ao efeito (cerca de 6 a 10 dias).

As indicações gerais de transfusão de plaquetas (concentrado plaquetário) em função do respectivo número verificado no sangue periférico não são totalmente consensuais em diversos centros mundiais.

Nesta perspectiva, sugere-se ao leitor a consulta do capítulo sobre trombocitopénias fora do período neonatal. Como regra geral, o RN é transfundido na base de 10-15 mL/kg de concentrado plaquetário CMV negativo, em 30 a 60 minutos; as plaquetas obtidas a partir de pool de dadores ou preferencialmente, de dador único, devem ser AB0 compatíveis e, sendo desleucocitadas, reduz-se o risco de transmissão de CMV a níveis semelhantes aos obtidos com o uso de sangue seronegativo; a utilização de concentrado unitário de plaquetas (CUP), obtido por aférese, embora mais caro e difícil de obter, tem a vantagem de ser proveniente de um único dador e ser seguro em relação ao CMV. 

Na trombocitopénia aloimune, em situação de emergência, deve ser utilizado um concentrado plaquetário desleucocitado de modo a corrigir rapidamente o número de plaquetas, sabendo-se que a sobrevivência de plaquetas incompatíveis é curta; idealmente, em futuras transfusões ou, mesmo de início, quando o diagnóstico de aloimunização é conhecido, devem quando possível, ser utilizadas plaquetas maternas que são concentradas de modo a reduzir a quantidade de anticorpos existentes no soro, e que não serão destruídas pelos aloanticorpos; a lavagem no sentido de remover mais anticorpos, pode ser lesiva das plaquetas. Alternativamente, se existir um painel de dadores fenotipados, podem ser utilizadas plaquetas de dador HPA-1a e HPA 5b negativos.

A imunoglobulina intravenosa, em associação com transfusão plaquetária, ou como terapêutica única em trombocitopénias graves sem hemorragia, é usada na dose de 0,5-1 g/kg/dia durante 3 a 5 dias, ou até subida das plaquetas acima de 50.000/mm3.

Nas grávidas com antecedentes de filho anterior com trombocitopénia aloimune e hemorragia intracraniana, deve iniciar-se tratamento com imunoglobulina semanal, associada ou não a corticoterapia, a partir das 12 semanas de gestação; a necessidade de manter este tratamento pode ser confirmada a partir da tipagem plaquetária do feto, obtida por amniocentese a partir das 15 semanas de gestação.

Em centros especializados, quando o feto é HPA-1a positivo, a contagem das plaquetas fetais a partir de cordocentese e a monitorização ecográfica seriada permitem avaliar se a terapêutica está a ser eficaz; e, caso tal não aconteça, está indicada a realização de transfusões intrauterinas repetidas de plaquetas compatíveis.

Na trombocitopénia autoimune recomenda-se a administração de imunoglobulina intravenosa (IGIV: 1 g/kg/dia em dois dias consecutivos ou 0,5 g/kg/dia durante quatro dias), podendo associar-se prednisolona (3 mg/kg/dia durante 3 a 7 dias) na ausência de resposta à IGIV. A transfusão de plaquetas irradiadas na trombocitopénia auto-imune pode considerar-se ineficaz, pois as mesmas são prontamente destruídas independentemente do dador; no entanto, em situações extremas ou perante a verificação de valor de plaquetas inferior a 30.000/mm3, a referida transfusão poderá ser ponderada em associação à IGIV e prednisolona.

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Definição e importância do problema

Este problema clínico, fazendo parte dum grupo de afecções que têm em comum um quadro de diátese por carência de vitamina K, surge em crianças não submetidas a profilaxia com vitamina K no pós-parto imediato.

Considerando globalmente todas as formas clínicas (adiante discriminadas), estima-se uma incidência global de 0,1 a 1,8/100 RN, em confronto com cerca de 0,07-0,25/100.000 RN nos casos de administração profiláctica de vitamina K1.

Etiopatogénese

A vitamina K, indetectável no sangue do cordão, constitui um substrato essencial para a síntese de proteínas coagulantes nas quais se incluem os factores II, VII, IX, X, e anticoagulantes (proteína C e proteína S).

Por sua vez, o défice dos factores II, VII, IX e X conduz a défice de protrombina.

Em circunstâncias fisiológicas verifica-se habitualmente uma diminuição moderada dos factores II, VII, IX e X entre as 48-72 horas de vida (no RN pré-termo entre as 48 horas e os 7 dias de vida), com normalização dos respectivos níveis entre os 7 e 10 dias de vida (no RN pré-termo, mais tarde).

Este défice transitório de factores dependentes da vitamina K deve-se provavelmente ao défice de vitamina K livre na grávida/mãe, e à ausência de microbioma bacteriano intestinal do RN que sintetiza a referida vitamina (designadamente Lactobacillus); como consequência, poderá surgir hemorragia espontânea, mais ou menos prolongada.

Sendo o leite materno deficitário em vitamina K (1-9 mcg/L), tal predisposição é mais acentuada em RN alimentados com leite humano. Em comparação, as fórmulas contêm 53-66 mcg/L).

Os estados de carência materna de vitamina K no RN podem também ser provocados por fármacos administrados à mãe (por ex. fenobarbital, fenitoína) interferindo no metabolismo daquela. De salientar, por outro lado, que situações que ultrapassam o período neonatal (no lactente) acompanhadas de má-absorção intestinal, hepatite, atrésia das vias biliares ou de supressão da microbiota intestinal por antibioticoterapia oral prolongada, podem originar situações de carência acentuada de vitamina K com manifestações hemorrágicas mais tardias, caso não se verifique compensação através do regime nutricional.

Manifestações clínicas

São descritas três formas de apresentação da doença hemorrágica por carência de vitamina K no RN e lactente, designadas respectivamente precoce, clássica e tardia:

  1. Precoce (em geral nas primeiras 24 horas de vida), aguda e rara, quase exclusivamente observada em filhos de pacientes medicadas com fármacos que inibem a vitamina K, nomeadamente anticonvulsantes (carbamazepina, fenitoína, fenobarbital, primidona, metsuximida), tuberculostáticos (rifampicina, isoniazida), alguns antibióticos (cefalosporinas) e antagonistas da vitamina K; poderão surgir hematemese, melena, hemorragia intrabdominal, hemorragia intracraniana e céfalo-hematoma exuberante;
  2. Clássica (em geral entre o 2º e 7º dias de vida), caracterizada por um ou mais dos seguintes sinais: epistaxe, hematemese, melena, hemorragia umbilical, hemorragia vaginal, equimoses, hematúria e, raramente, hemorragia intracraniana. Tratando-se de situação hoje rara face à atitude profiláctica sistemática, os casos descritos têm sido associados a alimentação com leite materno exclusivo na ausência de profilaxia;
  3. Tardia (em geral entre as 2 e 12 semanas de vida), com incidência ~2 a 10/100.000 nados vivos, ocorrendo sobretudo nas seguintes circunstâncias:
    • aleitamento materno exclusivo sem antecedentes de profilaxia com vitamina K ao nascer;
    • antecedentes de má absorção intestinal (fibrose quística, diarreia crónica, doença celíaca), atrésia das vias biliares, hepatite, défice de alfa 1-antitripsina, etc.. Com manifestações sobreponíveis à forma clássica, a probabilidade de hemorragia intracraniana é, no entanto, maior.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da doença hemorrágica do RN por défice de vitamina K faz-se fundamentalmente com a coagulação intravascular disseminada e o défice congénito de um ou mais factores de coagulação (que não os dependentes da vitamina K).

Chama-se a atenção para o facto de somente cerca de 5 a 30% dos casos de défice de factores VIII e IX se manifestarem no período neonatal.

Nos casos de hemorragia gastrintestinal poderá admitir-se a hipótese de síndroma de sangue materno deglutido, eventualmente presente no estômago ou nas fezes, (por exemplo explicável por fissuras mamárias) utilizando-se a prova de Apt; esta prova baseia-se na detecção de sangue do RN (em que predomina a Hb fetal que é álcali-resistente); quando negativa, significa que o sangue é de origem materna, ou deglutido, ou aspirado durante o parto ou na amamentação.

No RN pré-termo, a verificação de equimoses poderá ser explicável por fragilidade capilar, e não por défice de vitamina K ou por défice de factores de coagulação.

Exames complementares

Como resultado da avaliação laboratorial, registam-se os dados essenciais:

  • TP (tempo de protrombina) aumentado
  • aPTT (tempo parcial de tromboplastina activada) aumentado

A vitamina K facilita a carboxilação pós-transcrição dos factores II, VII, IX e X; na ausência de carboxilação, surgem no plasma factores de coagulação denominados PIVKA (protein induced in vitamin K absence).

Estes, virtualmente não funcionais no processo de coagulação, constituem um marcador com elevada sensibilidade para detecção da carência de vitamina K.

O tempo de hemorragia, o número de plaquetas circulantes, o nível dos factores V, VIII, de fibrinogénio, a fragilidade capilar e a retracção do coágulo evidenciam valores normais no recém-nascido de termo.

Prevenção

Considerando as diversas formas clínicas anteriormente descritas, são diversos esquemas preventivos:

No RN

1 – Como rotina, no RN de termo, cita-se a administração sistemática no pós-parto de vitamina K1 na dose de 1 mg por via intramuscular (IM) ou subcutânea (SC); dose de 0,5 mg se RN de peso <1.500 g.
Nos casos em que é recusada pelos pais a administração de vitamina K por via IM, pode utilizar-se com segurança, por via oral, o preparado que se utiliza por via IM ou SC, mas na dose de 2 mg, com o seguinte esquema: ao nascer e aos 7 dias, e ao 1 mês de idade se RN alimentado ao peito.
Salienta-se:

  • que tal esquema de rotina poderá não ser tão efectivo em todas as formas clínicas de doença hemorrágica do RN; e
  • que a vitamina K por via oral é menos efectiva na prevenção da forma tardia.

Nota importante: não foi comprovada a possível associação entre cancro na idade pediátrica e administração de vitamina K por via intramuscular admitida há anos por alguns autores; a absorção por via SC é semelhante à absorção por via IM.

 

  1. Vitamina K1 :1 mg por via IM (uma dose semanal) nos RN submetidos a nutrição parentérica total; ou preparado comercial contendo vitamina K1.
  2. Vitamina K1 :1 mg por via IM (uma dose mensal) nos casos de RN e lactentes com antecedentes de restrição do crescimento fetal, ou com estados de desnutrição de diversas etiologias, alimentados exclusivamente com leite humano e submetidos a antibioticoterapia de largo espectro.
  3. Vitamina K1 :1 mg por via IM (uma dose mensal) em situações de doença crónica com risco elevado de diátese hemorrágica por défice de viatmina K: fibrose quística, hepatite neonatal, défice de alfa 1-antitripsina, doença celíaca, diarreia crónica, etc..

Na grávida (submetida a tratamento com anticonvulsantes)

  • Administração no terceiro trimestre de vitamina K1: 5 mg/dia por via oral e/ou de 10 mg IM quatro horas antes do parto, seguida de profilaxia no RN.

Na lactante (submetida a tratamento com anticonvulsantes)

  • Administração de vitamina K1: 5 mg/dia por via oral enquanto durar a amamentação.

Tratamento

Nos casos de doença estabelecida, procede-se do seguinte modo:

  • Vitamina K1 na dose de 2 a 10 mg (20 mg nos casos de hemorragia intracraniana ou formas graves) por via SC; dever-se-á evitar a administração por via IM (pelo risco de formação de hematomas); igualmente poderá ser utilizada a via IV na dose entre 1-5 mg, com precaução pelo risco de reacção anafiláctica e de morte súbita;
  • Plasma fresco congelado para reposição dos factores de coagulação deficitários: 10-20 mL/kg;
  • Outros procedimentos incluem (em casos de hemorragia gástrica) lavagem gástrica com soro fisiológico à temperatura ambiente até obtenção de aspirado gástrico claro.

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Definição e importância do problema

A icterícia, síndroma resultante da impregnação da pele e mucosas pelo pigmento bilirrubina quando o mesmo ultrapassa determinado valor sérico (>7 mg/dL no RN versus >2 mg/dL no adulto), constitui uma das manifestações clínicas mais frequentes no período neonatal (entre 25 e 50% dos RN de termo e percentagem superior no pré-termo).

Em cerca de 6% dos RN de termo são atingidos valores de bilirrubinémia >13 mg/dL e, em cerca de 3%, >15 mg/dL.

Não existe uma definição universalmente aceite sobre o que se considera “valor normal de bilirrubinémia no RN”. Em termos práticos considera-se habitualmente hiperbilirrubinémia do RN toda e qualquer situação clínica associada a bilirrubinémia total superior a 13 mg/dL no RN de termo, e superior a 10 mg/dL no RN pré-termo; torna-se óbvio que este critério se pode considerar arbitrário uma vez que valores inferiores àqueles limites nas primeiras 24 horas de vida, e em determinadas circunstâncias, poderão constituir já risco importante para o SNC (ver adiante).

De acordo com o nomograma de Bhutani, a hiperbilirrubinémia neonatal é definida, acima das 35 semanas de gestação, por valores superiores ao percentil 95 para a idade em horas (>8 mg/dL às 24 horas, >13,1 mg/dL às 48 horas, >15,8 mg/dL às 72 horas).

Na grande maioria dos casos, a icterícia relacionada com elevação da fracção não conjugada da bilirrubina (ou indirecta, retomando a nomenclatura antiga relacionada com a reacção de Van den Bergh) tem uma evolução benigna, sendo considerada classicamente como icterícia fisiológica, isto é manifestação própria e expectável no RN.

Todavia, num pequeno número de casos, poderão surgir níveis elevados de bilirrubinémia não conjugada comportando risco de toxicidade para o SNC e de encefalopatia de grau variável (com lesões ligeiras, moderadas ou graves); o substrato anátomo-patológico de tal encefalopatia corresponde fundamentalmente a impregnação do pigmento nos núcleos da base. A forma mais grave, hoje rara, é constituída pelo chamado kernicterus que pode ter evolução fatal.

Em síntese, a hiperbilirrubinémia e a sua expressão clínica, a icterícia, constituem a manifestação clínica mais frequente no período neonatal.

Neste capítulo é dada ênfase às situações associadas a hiperbilirrubinémia não conjugada.

Etiopatogénese

Para a compreensão dos diversos quadros clínicos da icterícia neonatal e das medidas profiláctico-terapêuticas a instituir, designadamente no âmbito das hiperbilirrubinémias à custa da fracção não conjugada da bilirrubina (com riscos potenciais em função do valor, idade gestacional, idade pós-natal e contexto clínico), será útil abordar as etapas fundamentais do metabolismo da bilirrubina, a sua toxicidade e os principais factores predisponentes da síndroma ictérica.

Metabolismo da bilirrubina

Síntese

A bilirrubina é o produto final do catabolismo dos pigmentos contendo heme (Figura 1). A maior parte da sua produção (80-85%) tem lugar ao nível do SRE (especialmente fígado, baço, medula óssea e tecidos com macrófagos) por degradação oxidativa da Hb que provém dos eritrócitos envelhecidos; mediante a intervenção da enzima heme-oxigenase e do pigmento celular citocrómio P450, formam-se quantidades equimolares de CO e de biliverdina. A biliverdina-redutase ao nível dos microssomas dos macrófagos promove a hidrogenação da biliverdina IX-a, que se transforma em bilirrubina indirecta, livre, não conjugada, lipossolúvel.

Uma pequena parcela da produção da bilirrubina (15-20%) tem origem em moléculas proteicas com heme (mioglobina, peroxidase, triptofano-pirrolase, catalase, citocrómios, citocrómio-oxidase, etc.) e na chamada eritropoiese ineficaz. Nesta fase do metabolismo da bilirrubina (síntese) o mecanismo principal da hiperbilirrubinémia é uma hiper-hemólise. Sabendo que 1 g de hemoglobina catabolizada origina 34 mg (600 µmol) de bilirrubina, pode deduzir-se que a descida de 1 g de Hb/dL/dia é responsável pela quadruplicação da produção diária de bilirrubina, a qual pode atingir 28 mg/kg/dia.

FIGURA 1. Metabolismo da bilirrubina. A designação formal da molécula de bilirrubina nativa é: 4Z, 15Z-bilirrubina IX-a ou α.

A bilirrubina assim sintetizada (chamada bilirrubina IX-a, indirecta, livre, não conjugada) é lipossolúvel, ultrafiltrável, com grande poder de difusão extravascular, difusível em todos os tecidos e tóxica para as células, sobretudo as dos núcleos basais do encéfalo; cerca de metade da bilirrubina sintetizada, pela sua lipossolubilidade, deposita-se rapidamente nos tecidos onde se forma, e igual quantidade atinge a circulação. A produção aumentada de bilirrubina pode ser determinada pela taxa de excreção de CO (ver adiante).

Transporte sérico

Parte da bilirrubina que deixa o SRE é transportada em ligação principalmente à albumina (complexo bilirrubina-albumina) e, acessoriamente, em ligação a ácidos gordos plasmáticos e a certas lipoproteínas eritrocitárias e globulinas. O complexo albumina-globulina é hidrossolúvel, não ultrafiltrável, ou seja, de menor difusão extravascular, não penetrando no espaço intracelular, nomeadamente nas células nervosas.

A união bilirrubina-albumina é possível em 2 centros de ligação: ao primeiro liga-se uma molécula de bilirrubina intensamente, sendo dificilmente deslocável; ao segundo ligam-se duas, mas a afinidade é menor. Portanto, cada molécula de albumina é capaz de transportar, pelo menos, três moléculas de bilirrubina.

Outra parte da bilirrubina encontra-se livre do plasma. Segundo a lei da acção de massa, aplicando a fórmula:

[Bilirrubina] x [Albumina] / [Bilirrubina-Albumina] = K

a quantidade de bilirrubina livre varia inversamente à concentração de albumina disponível para se lhe ligar. (Figura 2)

FIGURA 2. Transporte, captação e conjugação da Bilirrubina.

A capacidade de fixação bilirrubina-albumina é susceptível de ser diminuída por certos factores (traduzindo competição com a bilirrubina na sua ligação à albumina):

  • diminuição do pH;
  • diminuição da concentração de albumina na circulação, por ex. no RN pré-termo;
  • fenómenos competitivos desempenhados por substâncias biológicas (por ex. AGNE ou ácidos gordos não esterificados, alfa-globulinas, lipoproteínas, etc.);
  • fenómenos competitivos desempenhados por certos fármacos, por ex. drogas aniónicas, sulfamidas, antibióticos (moxalactam, ácido fusídico, infusão rápida de ampicilina); e
  • fenómenos competitivos desempenhados por meios de contraste imagiológico (ácido ipanóico, e outros), ácido acetilsalicílico, etc.).

Em suma, os referidos factores diminuem a probabilidade de ligação da bilirrubina à albumina, passando aquela a circular livre no plasma, e em quantidade tanto maior quanto maior a taxa de ocupação dos centros de ligação da albumina por outras “substâncias concorrentes”, menor a quantidade de albumina e o pH.

Por outro lado, quanto maior o teor de bilirrubina livre, não ligada à albumina, maior a probabilidade de passagem daquela para o espaço intracelular (e, designadamente, células nervosas).

Este risco pode ser quantificado do seguinte modo (considerando as relações molares bilirrubina/albumina a um pH de 7,40):

  • 1 grama de albumina fixa, no máximo, 17 mg de bilirrubina (29 µmoles);
  • albuminémia normal <> 35 g/L (ou 3,5 g/dL) <> (510 µmoles).

Ora, a saturação (ou capacidade máxima de fixação de bilirrubina pela albumina) atinge-se quando o valor da bilirrubina em µmoles atingir 510 µmoles (ver acima), ou seja, quando atingir cerca de 29 mg/dL (ou 290 mg/L<> 510 µmoles), ou relação molar de 1/1.

Se o valor de albuminémia for inferior a 35 g/L (por ex. no RN pré-termo), tal saturação (e risco consequente de passagem de bilirrubina para a célula nervosa) atinge-se com valores inferiores de bilirrubina.

Em conclusão, o risco de neurotoxicidade deve ter em conta, não só o valor da bilirrubinémia indirecta ou não conjugada, mas também o teor de albumina no sangue (verificando-se risco se relação molar ≥1/1).

Captação da bilirrubina pelo hepatócito e conjugação

Não obstante a ligação estreita bilirrubina-albumina, a bilirrubina não conjugada é separada da albumina ao nível dos sinusóides com a comparticipação de receptores de membrana da bilirrubina à superfície dos hepatócitos, sendo depois captada pelo hepatócito. (Figura 2)

A transferência da bilirrubina do líquido extracelular para o citosol hepático parece ser influenciada pelos respectivos gradientes de concentração através da membrana celular e pelo teor em proteínas disponíveis no referido citosol, chamadas proteínas captadoras de aniões: Y e Z. São precisamente as proteínas Y e Z (esta última em menor grau) que transportam a bilirrubina até ao retículo endoplásmico onde tem lugar a glucurono-conjugação, principalmente com o ácido glucurónico (uridina-di-phosfato-glucurónico-ácido ou UDPGA), realizada sob a dependência duma enzima dos microssomas, a UDPG-T (uridina-di-phosfato-glucurónico-transferase).

A UDPGA provém da uridina-di-phosfato-glucose (UDPG) através dum processo de desidrogenação dependente da enzima UDPG-desidrogenase. A função da UDPG-desidrogenase depende dum suprimento contínuo de glucose e/ou de reservas de glicogénio; isto é, a glucose actua como fonte de ácido glucurónico, sendo, portanto, fundamental para a função normal do sistema de conjugação da bilirrubina.

De salientar que a bilirrubina também se pode conjugar, acessoriamente, com a xilose, glucose, outros glúcidos, e possivelmente, com sulfatos e aminoácidos.

No RN de termo e, sobretudo, no RN pré-termo reúnem-se um certo número de circunstâncias susceptíveis de dificultar directa ou indirectamente a conjugação: défice enzimático transitório, tendência para a hipoglicémia associada a deficientes reservas de glucose e/ou imaturidade enzimática, défice de proteína Y, etc.. A maturação ou intensificação da actividade da UDPG-T depende da presença da hormona tiroideia e dum substrato – a bilirrubina – que, na vida fetal, é eliminada através da placenta. Por outro lado, a referida actividade pode ser induzida pelo fenobarbital ou outros fármacos (ver adiante icterícia fisiológica).

Polimorfismos e mutações nos genes das enzimas de conjugação podem explicar situações caracterizadas por não conjugação da bilirrubina, originando hiperbilirrubinémia não conjugada (indirecta) a que se fará referência adiante.

No feto não existe glucurono-conjugação, sendo que toda a bilirrubina formada passa livremente a barreira placentária e é metabolizada no fígado da mãe.

Excreção da bilirrubina

Somente após a conjugação se torna possível a excreção (de modo activo com a participação de sistema de transporte dependente de energia – bombas MRPR2 e MDR3-) pelo hepatócito nos canalículos biliares e tubo digestivo: a bilirrubina conjugada, chegando ao intestino veiculada pela bílis, é ulteriormente reduzida e degradada pelas bactérias saprófitas do tubo digestivo em urobilinogénio e estercobilinogénio. (Figura 3)

Acontece, no entanto, que no período pós-parto imediato não existem bactérias no tubo digestivo; o microbioma, com efeito, só surge após se iniciar a alimentação; ou seja, o urobilinogénio e estercobilinogénio (precursores de urobilina e estercobilina, respectivamente) somente se formam se for iniciada a alimentação per os. Uma pequena fracção de urobilinogénio é excretada na urina. A oxidação de urobilina e estercobilina contribui para a cor das fezes e urina.

Existe também outra particularidade da fisiologia do intestino do feto e RN: é a existência da beta-glucuronidase no lume e epitélio cuja função consiste em catalizar a desconjugação da bilirrubina (função que está aumentada na ausência de microbiota), dando origem a ácido glucurónico e a bilirrubina não conjugada. Esta última é reabsorvida para a circulação, contribuindo para aumentar significativamente a taxa sérica de bilirrubina não conjugada ou indirecta (recirculação êntero-hepática).

FIGURA 3. Excreção da Bilirrubina (Consultar Glossário geral: Microbiota).

Pode concluir-se que a bílis contém elevada concentração de bilirrubina que, no adulto, é sobretudo bilirrubina IXa*, pigmento que não poderá ser excretado sem conjugação. Contudo, no RN, para além da bilirrubina IXa, formam-se outros isómeros hidrossolúveis que podem ser excretados directamente (pela bílis e urina), isto é, sem necessidade de conjugação. Por outro lado, esta particularidade permite tirar partido do efeito fotoquímico da luz com comprimento de onda entre 420 e 480 nm, a qual promove a transformação de bilirrubina IXa em isómeros hidrossolúveis (por ex. Z-lumirrubina) excretados pela bílis e urina, o que pode constituir estratégia para reduzir o nível sérico de risco da hiperbilirrubinémia em determinadas situações, rendibilizando a eliminação do pigmento. (ver adiante)

*Bilirrubina IX-a ou IX-α (sinónimos). De acordo com a configuração dos arranjos espaciais dos átomos são descritas 2 configurações da molécula: Z ou cis e E ou trans.

Toxicidade da bilirrubina

Ao abordar a problemática da neurotoxicidade da bilirrubina é importante uma referência sucinta ao conceito fisiológico clássico da chamada barreira hemato-encefálica que se opõe à passagem de macromoléculas e compostos polares; tal barreira corresponde a um substrato estrutural constituído pelas células endoteliais dos capilares cerebrais e pelas junções intercelulares que restringem a difusão intercelular e o movimento de solutos.

Ora, a fracção de bilirrubina livre, não ligada à albumina e não conjugada, atravessa mais facilmente tal barreira, o que determina maior risco de toxicidade da célula do SNC. Os factores críticos que comprometem o funcionamento de tal barreira são a imaturidade, o nível de bilirrubina livre não conjugada (condicionada por exemplo, pela hipoalbuminémia, como foi atrás referido) e a velocidade de subida da concentração sanguínea da mesma.

Outros factores podem tornar tal barreira mais permeável, quer no RN de termo, quer no pré-termo, tais como: acidose metabólica ou respiratória graves, hipoxémia persistente e infecção sistémica; estes últimos factores podem explicar situações de kernicterus ou encefalopatia bilirrubínica em RN de termo ou quase de termo. Em suma, todos estes factores contribuem para aumentar a toxicidade da bilirrubina.

Factores predisponentes de icterícia neonatal

A elevada frequência com que surge icterícia no RN e, de modo especial, no RN pré-termo relativamente a outros grupos etários, é explicável por um conjunto de factores (predisponentes), os quais podem ter papel importante, mesmo em situações consideradas não patológicas:

Factores predisponentes

    • poliglobúlia fisiológica associada a tempo de vida média eritrocitária ~70 dias facilitando a hemólise, o que corresponde a maior oferta de massa eritrocitária ao fígado para metabolisar, o que poderá dificultar a excreção de bilirrubina formada;
    • défice transitório das enzimas da glucuronoconjugação, mais acentuado em condições de prematuridade; a actividade da UDPGT em recém-nascidos de termo, aos 7 dias de vida, é aproximadamente 1% da observada no adulto, só atingindo estes níveis depois dos 3 meses.
    • défice em proteína Y;
    • actividade aumentada da beta-glucuronidase;
    • no pré-termo acrescentam-se:
      • hipoalbuminémia;
      • hipoglicémia;
      • acidose metabólica.

Classificação etiopatogénica

Em função das alterações verificadas nos diversos passos do metabolismo da bilirrubina e dos principais mecanismos responsáveis pela elevação da bilirrubina são deduzidos os três grandes grupos de síndroma ictérica:

  • Multifactorial;
  • Não hemolítica, englobando situações, quer acompanhadas de elevação da bilirrubina não conjugada, quer acompanhadas de elevação da bilirribina conjugada (directa);
  • Hemolítica, englobando situações acompanhadas de elevação da bilirrubina não conjugada (indirecta).

O Quadro 1 sistematiza os grandes grupos etiopatogénicos de hiperbilirrubinémia não conjugada.

QUADRO 1 – Hiperbilirrubinémia não conjugada (indirecta) (Icterícia hemolítica e não hemolítica).

Multifactorial

    • Icterícia fisiológica ou do desenvolvimento

Causa não hemolítica

    • Icterícia por síntese aumentada de bilirrubina
    • Icterícia por defeito de captação e/ou de conjugação da bilirrubina
    • Icterícia por circulação êntero-hepática aumentada
    • Icterícia associada à amamentação
    • Icterícia secundária ao leite materno

Causa hemolítica

    • Icterícia por iso-imunização materno-fetal (doença hemolítica perinatal)
    • Icterícia por enzimopatias eritrocitárias
    • Icterícia por membranopatias eritrocitárias
    • Icterícia por hemoglobinopatias
    • Icterícia por causas diversas (vitamina K3, fármacos, infecções, etc.)

Factores de risco

Na prática clínica é importante identificar, logo desde o nascimento, em RN de termo e pré-termo, os principais factores de risco elevado de hiperbilirrubinémia indirecta:

  • Predisposição genética para hiperbilirrubinémia neonatal (frequente em determinadas etnias asiáticas);
  • Antecedentes familiares de afecção hemolítica;
  • Diabetes materna;
  • Prematuridade (risco mais elevado se idade gestacional entre 35 e 38 semanas);
  • Irmão anterior com síndroma ictérica necessitando de intervenção;
  • Sexo masculino;
  • Macrossomia fetal (>4.000 gramas) associada a diabetes materna;
  • Incompatibilidade de grupos sanguíneos mãe-filho com prova de Coombs directa positiva no RN (ver adiante);
  • Icterícia neonatal surgida nas primeiras 24 horas de vida (precoce) apontando para causa hemolítica (em geral, doença hemolítica por incompatibilidade sanguínea mãe-filho);
  • Exame físico evidenciando sufusões, equimoses ou hematomas;
  • Hipogalactia associada a perda ponderal significativa, etc..

Notas Importantes:

    • A lista anterior de factores de risco foi deduzida de estudos epidemiológicos realizados em diversos centros perinatais; como foi atrás referido, em regra os RN pré-termo e os portadores de icterícia de causa hemolítica têm maior risco de encefalopatia bilirrubínica.
    • Hábitos maternos de fumo do tabaco, assim como consumo de álcool e de drogas como a heroína, diminuem o risco de hiperbilirrubinémia.
    • A bilirrubina tem propriedades antioxidantes.

Semiologia e exames complementares

Perante um RN ictérico, a anamnese perinatal e o exame físico do RN poderão determinar, em certos casos, a realização dum conjunto de exames complementares para esclarecimento etiológico, salientando-se que o aparecimento de icterícia nas primeiras 24 horas de vida pós-natal (situação, até prova em contrário, patológica) obrigará sempre a investigação laboratorial, cuja sequência é ditada pelo contexto clínico. (ver adiante)

Nas alíneas seguintes são discriminados os principais exames complementares a realizar:

  • Alíneas 1. e 2. em situações de icterícia de aparecimento precoce (< 24 horas de vida), sugerindo, até prova em contrário, factor etiológico de hemólise;
  • Alínea 3. em situações de icterícia de aparecimento não precoce, sugerindo factor etiológico de obstrução do fluxo normal da bílis (colestase), sendo que pode haver situações mistas (associadas a hemólise).
  1. Os exames laboratoriais de primeira linha, prioritários e essenciais são:
    • Grupo sanguíneo (Rh/antigénios D, d; AB0) na mãe; idem no RN (sangue do cordão ou sangue periférico) se mãe Rh negativo e/ou 0; pressupõe-se, claro, que o grupo sanguíneo da mãe deverá já ser conhecido tendo em conta a vigilância pré-natal;
    • Provas de Coombs (pesquisa de anticorpos maternos anti-D) (prova directa no RN e indirecta na mãe) se mãe Rh negativo (dd ou Du) e RN Rh positivo (DD ou Dd)**;
    • Pesquisa de anticorpos anti-A e anti-B no sangue do cordão ou no sangue periférico (RN) tratando-se de mãe do grupo 0 e de RN do grupo A ou B;
    • Hemoglobina e hematócrito no RN;
    • Doseamento de bilirrubina total, fracções conjugada e não conjugada;
    • Estudo morfológico do sangue periférico no RN [a detecção de esferócitos no sangue do RN poderá ser (no período neonatal) sinal indirecto de iso-imunização AB0 e não de esferocitose hereditária];
    • Contagem de reticulócitos no RN.

** Notas Importantes

→ A prova de Coombs (ou prova da antiglobulina) directa permite pesquisar anticorpos (imunoglobulinas) fixados sobre os eritrócitos do doente. Compreende esquematicamente os seguintes passos: 1) Junção de eritrócitos do doente, com anticorpos fixados sobre os eritrócitos, ao soro de Coombs (obtido por injecção no coelho de gama-globulina humana permitindo obter anticorpos anti-imunoglobulina humana- ou anticorpos anti-anticorpos do doente fixados sobre os eritrócitos; 2) A ligação anticorpo anti-imunoglobulina humana aos anticorpos fixados sobre os referidos eritrócitos provoca aglutinação dos mesmos (prova não específica dos anticorpos anti-D).

→ A prova de Coombs indirecta permite pesquisar anticorpos no soro do doente (livres ou não fixados sobre os eritrócitos). Compreende os seguintes passos: 1) Junção ao soro (com anticorpos livres) de eritrócitos supostamente com antigénios correspondentes aos referidos anticorpos; 2) Se tal acontecer, os anticorpos fixam-se sobre esses eritrócitos, recobrindo-os; 3) Procedimento, a partir daqui semelhante ao descrito para a prova de Coombs directa.

 

  1. Após exclusão de situações mais frequentes no nosso meio (tendo em conta que a prevalência de determinadas situações pode variar de região para região), são citados outros exames:
    • Pesquisa de anticorpos maternos para antigénios irregulares (anti-c, anti-E, anti-Kell, etc.) se mãe Rh positivo no contexto clínico sugestivo de doença hemolítica perinatal;
    • Doseamento quantitativo de G-6PD (glucose-6 fosfato desidrogenase);
    • Outros doseamentos enzimáticos em função do contexto clínico;
    • Resistência globular.

*Nota importante: em função do grau de hemólise, a icterícia poderá ser notória entre as 24 e 48 horas.

  1. Nos casos associados a bilirrubinémia conjugada >2 mg/dL (icterícia raramente presente na data do nascimento, em geral notória durante ou a partir da 1ª semana de vida) estão indicados exames tais como pesquisa de pigmentos e sais biliares na urina e fezes, pesquisa de substâncias redutoras na urina, provas de função hepática, tempo de protrombina, ALT, AST, fosfatase alcalina, serologia do grupo TORCHS, rastreio de doenças metabólicas, ecografia hepatobiliar, etc.

Hiperbilirrubinémia multifactorial

Icterícia fisiológica

Etiopatogénese

A chamada “icterícia fisiológica” constitui um quadro clínico que surge em mais de 50% dos RN aparentemente saudáveis; pode considerar-se que faz parte do desenvolvimento pós-natal normal. A sua etiopatogénese, multifactorial, diz respeito a alterações, em grau moderado e em simultâneo, de fases diversas do metabolismo da bilirrubina antes descrito:

  • Excesso de oferta de bilirrubina ao hepatócito devido à policitémia relativa; a destruição eritrocitária no sistema reticuloendotelial produz maior quantidade de bilirrubina – 6 mg/kg/dia versus 3-4 mg/kg/dia no adulto, sendo que, como foi referido antes, os eritrócitos do RN têm uma vida média mais curta (cerca de 80 dias versus 120 dias no adulto) e 1 grama de Hb produz cerca de 34 mg de bilirrubina;
  • Devido à imaturidade enzimática do fígado, verifica-se captação e conjugação diminuídas (designadamente por défice de proteína Y e de UDPG-T);
  • Microbiota intestinal deficitária ou ausente, limitando a transformação da bilirrubina conjugada em urobilinogénio;
  • Maior actividade da enzima beta-glucuronidase no intestino do RN, contribuindo para a hidrólise da bilirrubina conjugada, formando-se bilirrubina não conjugada que, sendo reabsorvida pela circulação êntero-hepática, contribui para a elevação da bilirrubina não conjugada no sangue periférico.
Manifestações clínicas

Tendo em conta que a síndroma ictérica é um processo dinâmico, face a determinado caso surgido, será mais rigoroso no momento da observação excluir icterícia fisiológica do que confirmar o diagnóstico com segurança, pois um dos critérios habitualmente utilizado é a sua duração.

Assim, uma icterícia, provavelmente, não é fisiológica se:

  • Surgir antes das 24 horas de vida;
  • Corresponder a valor de bilirrubinémia total no sangue do cordão superior a 4 mg/dL;
  • A velocidade de subida da bilirrubinémia total for superior a:
    → >0,5 mg/dL/hora
    → >5 mg/dL/dia
  • A bilirrubinémia total for >13 mg/dL no RN de termo (ou >10 mg/dL no pré-termo);
  • Tiver duração:
    → >10 dias no RN de termo (excepto se alimentado ao peito)
    → >21 dias no RN pré-termo
  • Corresponder a valor de bilirrubinémia conjugada (directa) >2 mg/dL
  • Existir anemia
  • Existir hepatosplenomegália

Inversamente, a evolução natural da icterícia fisiológica no RN de termo saudável pode ser assim descrita: início depois das 24 horas de vida, não devendo exceder 13 mg/dL na primeira semana, ritmo de incremento inferior a 5 mg/dL/dia; início da descida de valores em cerca de 1 semana no RN de termo, e em cerca de 2 semanas no RN pré-termo.

Nota: de acordo com estudos epidemiológicos concluiu-se que cerca de 50% das icterícias com valor de bilirrubinémia superior a 13 mg/dL não são fisiológicas.

 

A icterícia neonatal progride no sentido craniocaudal (cabeça-pescoço àtórax àabdómen-coxas àbraços-antebraços-pernas àmãos-pés) devido à afinidade do pigmento bilirrubínico lipossolúvel para os lípidos do SNC. De acordo com estudos empíricos de correlação, que datam da década de 60 do século passado, a cor ictérica verificada na cabeça e pescoço corresponde grosseiramente a valores séricos de bilirrubina entre 4,5 e 8 mg/dL; até ao umbigo entre 9 e 12 mg/dL; até aos joelhos entre 8 e 15 mg/dL; até à região palmoplantar >15 mg/dL. De realçar que a avaliação clínica através deste critério clínico não é suficientemente segura, implicando designadamente boa visibilidade com luz natural.

Actuação prática

No contexto de presumível quadro de icterícia fisiológica, e tratando-se de criança saudável de termo, não haverá necessidade de exames complementares laboratoriais. No entanto, hoje em dia muitas unidades dispõem de aparelhos de avaliação não invasiva da bilirrubinémia (bilirrubinómetros transcutâneos), utilizando os princípios da reflectância espectrofotométrica para determinação da taxa de bilirrubina impregnando a pele, a qual é considerada representativa da bilirrubina no sangue.

Tais aparelhos avaliam determinado índice que, de acordo com tabelas (com valores de correlação para RN pré-termo, e RN com pele pigmentada), permitem estabelecer a correspondência com a bilirrubinémia com boa correlação (coeficiente entre 0,91-0,93).

Os mesmos estão hoje vulgarizados e, diminuindo a necessidade de colheitas sanguíneas, devem ser utilizados como aparelhos para rastreio; embora confiáveis, as medições da bilirrubina transcutânea poderão subestimar valores acima de 13-14 mg/dL; nestas circunstâncias, deve confirmar-se o valor pelo método convencional de colheita de sangue.

Se o RN estiver submetido a fototerapia (que origina pigmentação cutânea), há que colocar um adesivo na zona da pele a ser testada caso se proceda a ulteriores determinações com este método, a fim de não falsear os resultados.

Nalguns centros, como rastreio, é utilizada tecnologia para determinar a carboxiemoglobina (COHb) ou o monóxido de carbono expirado (ETCO <> end-tidal carbon monoxide), sendo que, ambos corrigidos para o monóxido de carbono ambiente, constituem um índice da produção de bilirrubina in vivo. Esta tecnologia baseia-se na produção de CO em resultado do catabolismo do heme. (ver atrás Metabolismo da bilirrubina)

Embora este método não tenha evidenciado especificidade e sensibilidade mais elevadas que a bilirrubinometria transcutânea, perante situação de icterícia poderá contribuir para o diagnóstico diferencial entre hiperbilirrubinémia não conjugada e hiperbilirrubinémia conjugada (nesta última situação, não se verificando aumento de CO expirado).

Dada a possibilidade de evolução de certos casos de icterícia para valores de risco de bilirrubinémia após a alta hospitalar, mesmo em recém-nascidos de termo ou quase de termo, saudáveis e sem sinais de hemólise, Buthani nos EUA concebeu um nomograma aplicável em recém-nascidos a partir de 35 semanas de idade gestacional inclusive, em que são estratificados determinados valores de bilirrubinémia em mg/dL e respectivos percentis (P) em função da idade em horas; foram consideradas curvas evolutivas entre as 12 horas e as 144 horas, delimitando 4 zonas:

  • de baixo risco (percentil < 40);
  • risco intermédio inferior (percentil 40-75);
  • risco intermédio superior (percentil 76-95); e
  • risco elevado (percentil > 95).

Ou seja, do valor de bilirrubinémia às 48, 60, 72 ou 96 horas, dependerá a atitude a tomar. Esta estratégia tem sido recomendada pela AAP, tendo em conta a realidade actual generalizada de alta precoce da maternidade, o que implica vigilância ulterior. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Relação bilirrubinémia-idade em horas e actuação prática. 

A: Alta e nova observação clínica 48 horas depois
B: Determinação da bilirrubinémia ou bilirrubina transcutânea 48 horas depois
C: Idem 24 horas depois
D: Idem 6 a 12 horas depois + fototerapia (ver adiante)
BRB = Bilirrubinémia (mg/dL)

(Adaptado de Buthani & Johnson, 2000)

Idade
(horas)
P < 40
BRB
P 40-75
BRB
P 76-95
BRB
P > 95
BRB
48
60
72
96
Actuação
< 8,5
< 9,5
< 11,1
<12,3
A
8,5-10,7
9,5-12,5
11,1-13,3
12,3-15,1
B
10,8-13,1
12,6-15,1
13,4-15,8
15,2-17,3
C
> 13,1
> 15,1
> 15,8
> 17,3
D

Tratando-se de hiperbilirrubinémia não conjugada sem sinais de hemólise em RN pré-termo de muito baixo peso, há, pelo contrário, que ponderar a necessidade de determinação frequente de bilirrubina sérica pelo maior risco de kernicterus, havendo determinados factores predisponentes a reiterar, tais como:

  • hipoalbuminémia;
  • presença de factores susceptíveis de aumentar a taxa de bilirrubina não ligada à albumina com maior probabilidade de penetração na célula nervosa;
  • hipoxémia, e infecção (propiciando maior permeabilidade da barreira hemato-encefálica);
  • peso muito baixo (de acordo com regra empírica: considerando o peso de nascimento em gramas e o valor de bilirrubinémia em mg/dL, existe risco de kernicterus se o valor da bilirrubinémia for igual ou superior ao valor dos dois primeiros dígitos do peso; por ex. bilirrubinémia de 11 mg/dL e peso de 1.100 gramas).

Hiperbilirrubinémia não conjugada de causa não hemolítica

1. Icterícia por síntese aumentada de bilirrubina

Este grupo, englobando dum modo geral quadros benignos, é caracterizado por hiperbilirrubinémia indirecta não acompanhada de hemólise (os valores de bilirrubina ultrapassam os níveis considerados fisiológicos).

Os exemplos clássicos são:

  • Policitémia
    (RN nas seguintes circunstâncias: macrossómicos, de mães diabéticas, com restrição de crescimento fetal, com antecedentes fetais de hipoxémia crónica, de atraso de laqueação do cordão umbilical, no contexto de transfusão feto-fetal ou placento-fetal e de administração de ocitocina intra-parto em doses superiores a 20 Unidades, etc.);
  • Reabsorção de sangue extravascular
    (RN com hematomas, equimoses, petéquias, “máscara equimótica”, hemorragia intracraniana, etc.).
    Constituindo a prematuridade um factor de risco de kernicterus como foi dito antes, há sempre que atender aos respectivos factores predisponentes descritos na alínea anterior.

2. Icterícia por defeito de captação e/ou de conjugação da bilirrubina

Como exemplos de defeitos do metabolismo nesta etapa citam-se:

  • Síndroma de Crigler-Najjar
    Esta síndroma integra dois tipos:
    • tipo I, mais grave, transmitido hereditariamente de modo autossómico recessivo.
      A etiopatogénese relaciona-se com ausência total da actividade enzimática da UDPG-T (uridino-difosfo-glucuronil-transferase) por mutações no gene UGT1A1, do que resultam: hiperbilirrubinémia não conjugada podendo atingir níveis críticos nos primeiros 2-3 dias de vida (por vezes superiores a 35 mg/dL) e risco elevado de encefalopatia. As medidas correctivas englobam, entre outras, fototerapia de longa duração, exsanguinotransfusão e eventual transplantação hepática.
    • tipo II, mais benigno e resultante de défice parcial de UDPG-T, traduzido na clínica por formas mais ligeiras de hiperbilirrubinémia (não ultrapassando em geral 20 mg/dL), sendo o risco de encefalopatia muito reduzido; por vezes as primeiras manifestações ocorrem após o período neonatal ou na 2ª infância. Como tratamento sintomático utiliza-se o fenobarbital pelo seu papel de indutor enzimático.
  • Síndroma de Gilbert
    Esta síndroma, com transmissão autossómica recessiva e, mais raramente, dominante, constitui o defeito de conjugação mais frequente da bilirrubina, surgindo com uma frequência de 1/1.000 nados vivos; é caracterizada por icterícia ligeira (bilirrubinémia crónica – 3-4 mg/dL, de intensidade oscilante, sendo que os valores de bilirrubinémia aumentam significativamente se houver suprimento alimentar deficiente ou episódio infeccioso. Não existe risco de kernicterus.
    Foram descritos polimorfismos e mutações de genes determinando a expressão da enzima UDPG-T (genes UGT1A1, TATA box, CAT box, etc.) Descrevem-se formas homozigóticas e heterozigóticas, sendo hoje possível o estudo de biologia molecular. A benignidade do quadro não requer tratamento o qual, aliás, não existe.
    A combinação de um genótipo benigno de síndroma de Gilbert com outro factor que aumente a bilirrubina pode estar na base de quadros com hiperbilirrubinémia elevada (> 20 mg/dL) ou mais prolongados (por ex. aleitamento materno).
  • Síndroma de Lucey-Driscoll
    Caracteriza-se por um quadro de hiperbilirrubinémia familiar transitória, sendo que a bilirrubinémia poderá atingir níveis de risco de encefalopatia, o que obrigará a exsanguinotransfusão. A etiopatogénese não está esclarecida, admitindo-se o papel de um factor sérico inibidor da UDPG-T.
  • Outras situações
    O mecanismo de captação e/ou conjugação da bilirrubina pode ser comprometido pela acção de fármacos utilizados na grávida, parturiente ou puérpera lactante (através do leite materno) como ocitocina, novobiocina, pregnandiol, etc.. No hipotiroidismo pode igualmente verificar-se défice transitório da enzima UDPG-T.

3. Icterícia por circulação êntero-hepática aumentada

O mecónio existente no intestino pesa cerca de 200 gramas, estando incluído neste peso 175 mg de bilirrubina (50% da qual não conjugada); ou seja, quantidade de bilirrubina 5 a 10 vezes superior à produção diária num RN de termo sem patologia.

Nos casos em que existe interrupção do trânsito intestinal ou diminuição do peristaltismo levando a atraso ou interrupção da eliminação do referido mecónio, criam-se condições para que a beta-glucoronidase actue com mais efectividade sobre a bilirrubina conjugada existente no mecónio “estagnado”, promovendo a sua desconjugação, absorção e aumentando consequentemente os níveis séricos de bilirrubina não conjugada.

Como exemplos de situações clínicas explicadas por este mecanismo, citam-se:

  • Alimentação entérica tardia (jejum prolongado pós-parto);
  • Problemas obstrutivos do tracto digestivo;
    Os casos de estenose hipertrófica do piloro, estenoses ou atrésias intestinais, íleo paralítico, doença de Hirschprung, obstrução intestinal baixa, etc. tipificam quadros clínicos acompanhados de diminuição do peristaltismo intestinal
  • Sangue deglutido intra-parto.
    Aplica-se neste caso o que foi dito a propósito do mecónio estagnado (contendo bilirrubina), uma vez que 1 grama de Hb constitui substrato para a produção de 34 mg de bilirrubina.

4. Icterícia associada à amamentação

A etiopatogénese desta forma clínica relaciona-se fundamentalmente com o défice de suprimento energético por secreção láctea insuficiente, ou por razões várias que poderão determinar diminuição da frequência das mamadas ao longo do dia. Como resultado de tal suprimento insuficiente poderá verificar-se diminuição do reflexo gastrocólico, hipoperistaltismo intestinal e atraso da eliminação do mecónio; são, assim, criadas as condições já descritas a propósito da circulação êntero-hepática aumentada. Sob o ponto de vista teleológico, estudos actuais sugerem que tal mecanismo seja fisiológico e protector do organismo considerando a acção antioxidante da bilirrubina.

A evolução natural desta síndroma ictérica pode assim resumir-se: icterícia surgida após as 24 horas de vida, sem sinais de hemólise (designadamente, anemia ou hepatosplenomegália), com maior intensidade verificada pelos 7-8 dias de vida e valores máximos de bilirrubinémia indirecta, atingindo 16-17 mg/dL, acompanhada de perda exagerada de peso e, nalguns casos, de hipernatrémia (> 150 mEq/L) com sinais de desidratação.

Para obviar esta situação (que poderá levar a internamento hospitalar), torna-se necessário acompanhar cuidadosamente o estabelecimento do aleitamento materno, reavaliar os valores de bilirrubina, os riscos do recém-nascido e a quebra ponderal existente. Para além da eventual necessidade de reidratação, poderá estar indicada fototerapia.

5. Icterícia secundária ao leite materno

A etiopatogénese desta forma clínica poderá relacionar-se fundamentalmente com dois factores:

  • teor aumentado de beta-glucuronidase no leite materno, o que sucede em 20-40% das mulheres, levando a aumento da desconjugação e da circulação êntero-hepática da bilirrubina;
  • teor aumentado de lipase no leite de certas mães – lactantes do qual resulta correspondente teor mais elevado em ácidos gordos não esterificados de cadeia curta que, absorvidos no duodeno, bloqueiam o sistema de captação e transporte intra-hepatócito da bilirrubina, para além de inibirem a UDPG-T.

A evolução clínica pode ser sintetizada do seguinte modo: trata-se duma icterícia que surge, em geral, após o 3º-4º dia em cerca de 20-30% dos RN com aleitamento materno exclusivo, mais intensa entre o 10º e 15º dia de vida, prolongando-se, por vezes, até aos 2 meses. Em cerca de 2-4% dos casos são atingidos valores de bilirrubinémia da ordem de 20-25 mg/dL. Inicialmente esta situação comporta-se como “icterícia fisiológica prolongada”.

Na prática, é necessário assegurar que a hiperbilirrubinémia permanece na forma não conjugada e não atinge níveis preocupantes. Assim, nos casos de hiperbilirrubinémia muito elevada, e verificando-se a presença de factores de risco de kernicterus, o RN deverá ser submetido a fototerapia, suspendendo-se a alimentação com leite materno durante 48 horas, o que pode constituir “prova” diagnóstica; com efeito, a suspensão do aleitamento levará a diminuição significativa da bilirrubinémia. Salienta-se, contudo, que a reintrodução do leite materno poderá originar subida da bilirrubinémia, embora para níveis inferiores aos anteriores.

Se a icterícia se prolongar para além de 2-3 semanas, haverá que fazer o diagnóstico diferencial com patologia associada responsável igualmente por icterícia prolongada como por exemplo atrésia das vias biliares ou outra causa de colestase. De salientar, contudo, que nesta última condição, geralmente o estado geral está comprometido, a icterícia é “verdínica“ e há antecedentes de baixo peso de nascimento e, eventualmente, outros sinais associados); uma análise sumária de urina excluindo a presença de bilirrubinúria) e a ausência de alterações macroscópicas das fezes (acolia ou hipocolia, em geral intermitente) excluem tal quadro.

Em suma, nos RN submetidos a alimentação com leite materno são descritos dois quadros clínicos associados a icterícia que importa distinguir.

Hiperbilirrubinémia não conjugada de causa hemolítica

Em complemento das noções descritas na Parte sobre Hematologia (generalidades sobre anemias hemolíticas), nesta alínea são abordadas como protótipos as diversas formas clínicas da doença hemolítica perinatal por incompatibilidade sanguínea mãe-filho (sistemas AB0, Rh e outros).

1. Doença hemolítica perinatal por iso (ou alo)-imunização Rh/anti-D

Definição e importância do problema

A doença hemolítica perinatal por iso-imunização Rh/anti-D define-se como o processo mórbido em que surge hemólise no feto e RN como consequência da ligação de anticorpos maternos anti-D aos eritrócitos fetais com antigénios D ou com a variante Du herdados do pai e inexistentes no organismo materno.

A iso-imunização materno-fetal constitui no nosso meio a causa mais frequente de icterícia hemolítica no período neonatal; em cerca de 1/3 do total de casos ocorre em RN com grupo Rh positivo, de mães com grupo Rh negativo (incompatibilidade Rh) e, em cerca de 2/3, nos RN com grupos sanguíneos A ou B, de mães 0 (incompatibilidade AB0).

Os restantes casos de iso-imunização (~ 1-2% do total de casos) são explicados por iso-imunização atípica – subgrupos Kell, Duffy, Kidd, MNS e outros mais raros -; a eles se fará referência adiante.

Globalmente, a incidência de doença hemolítica por incompatibilidade Rh é da ordem de 0,2-0,4/1.000 gravidezes; no que respeita às formas por incompatibilidades doutros grupos tal prevenção ainda não é possível.

O risco de iso-imunização Rh (mãe Rh negativo e filho Rh positivo) é cerca de 16% em cada gravidez AB0 compatível, e cerca de 1-2% em cada gravidez AB0 incompatível. (ver adiante)

Etiopatogénese

O sistema Rh depende de três pares de alelos, sendo que cada elemento do par é herdado de cada progenitor. Entre os cerca de 48 antigénios que fazem parte do sistema Rh, em combinações muito diversas (determinados por outros tantos genes), os designados por c, C, d, D, e, E são os mais importantes quanto à capacidade de originarem a produção de anticorpos. As combinações CDe, cDE (correspondentes ao fenótipo Rh positivo/Rh (+) pela presença do antigénio D) são as mais frequentes, e a combinação cde (correspondente ao fenótipo Rh negativo/Rh (-) pela ausência do antigénio D. Nos caucasianos, a ausência de antigénio D ocorre em cerca de 15% da população, nos africanos em cerca de 7%, e nos asiáticos (Japão e China) em <1%.

Um indivíduo pode, assim, evidenciar as seguintes relações fenótipo →genótipo:

  • Rh (-)→ cde, cde;
  • Rh (+) homozigoto→ (por ex. CDe, cDE ou simplesmente DD);
  • Rh (+) heterozigoto→ (por ex. CDe, cde ou simplesmente Dd).

Conclui-se que um homem Rh (+) homozigoto casado com uma mulher Rh (-) terá sempre filhos Rh (+) Dd; um homem Rh (+) heterozigoto casado com uma mulher Rh (-) poderá ter filhos Rh (+) Dd em 50% dos casos, e Rh (-) dd em 50% dos casos.

Somente os fetos Rh (+), isto é, com o antigénio D (presente na membrana eritrocitária a partir das 4 a 7 semanas de idade gestacional), estimulando a produção por parte da mãe Rh (-) ou D (-) de anticorpos anti-D (ou seja, iso-imunização) podem ser afectados.

As mães com a variante Du raramente produzem anticorpos anti-D quando os respectivos fetos são portadores de antigénio D ou Rh (+). No entanto, mães Rh (-) poderão ser imunizadas por fetos portadores de Du.

A iso-imunização verifica-se quando há passagem transplacentar de eritrócitos fetais para a circulação materna, sendo que a hemorragia feto-materna ocorre em, pelo menos, 50% das gestações (sobretudo no 3º trimestre). Em termos quantitativos, o volume de sangue que passa para a circulação materna pode oscilar entre 1 mL e 30 mL, sobretudo se se verificar parto traumático implicando manobras e procedimentos invasivos. Ora, o grau de resposta imune materna ao antigénio D é proporcional ao volume da hemorragia/transfusão feto-materna.

Idêntico fenómeno anteriormente à gravidez, em mãe Rh (-) pode ocorrer como resultado de transfusão de sangue com antigénio D, de injecção acidental de eritrócitos D (+) pelo uso de seringas partilhadas com indivíduos toxicodependentes, e de transplantação de produtos portadores do referido antigénio D anteriormente à gravidez.

A resposta imune primária materna ao antigénio D atingindo a circulação e proveniente do feto é lenta traduzindo-se, cerca de 1 a 6 meses depois, pelo aparecimento de anticorpos IgM anti-D que, não atravessando a placenta, são inócuos; em regra, é o que se passa no decurso duma primeira gravidez.

A resposta imune secundária materna a ulterior exposição a antigénios D (correspondendo, em regra, a segunda gravidez, e a partir das 12 semanas) é mais rápida, traduzindo-se pelo aparecimento, em grande quantidade, de anticorpos anti-D predominantemente IgG que, atravessando a placenta, aderem com grande “avidez”, através da sua fracção Fc, à membrana dos eritrócitos fetais Rh (+) (isto é, com antigénio D); estes, atraindo macrófagos e monócitos, são destruídos no espaço extravascular (baço). Em suma, a probabilidade de iso-imunização vai aumentando com o número de gravidezes, pois os anticorpos anti-D formados como resposta a sucessivas estimulações antigénicas (inicialmente predominando os do tipo IgM), vão sendo, em cada vez maior número, do tipo IgG, que atravessam a placenta.

Notas Importantes:

    • Em cerca de 2% das gravidezes, o tipo de resposta imune com produção de IgG poderá verificar-se já numa primeira gravidez.
    • Em cerca de 30% dos casos poderá não se verificar o tipo de resposta com produção de anticorpos em mulheres Rh (-) com fetos Rh (+) em sucessivas gestações.

Como consequência da hemólise surge:

  1. Anemia fetal com repercussão essencialmente em dois órgãos:
    • coração, cuja função pode claudicar e levar a insuficiência cardíaca e hidropisia fetal;
    • fígado, cuja função pode igualmente claudicar, levando a diminuição da síntese da albumina, diminuição da pressão oncótica que, por sua vez, agrava a hidropisia; igualmente há elevação da síntese da eritropoietina e surgem focos de eritropoiese com aparecimento de formas jovens no sangue periférico; idênticos focos surgem igualmente no baço, rins e suprarrenais; como resultado do aparecimento de focos de eritropoiese hepática e no baço verifica-se hepatosplenomegália; outra consequência da formação de focos de eritropoiese hepática é a obstrução do fluxo sanguíneo (podendo conduzir a hipertensão portal) e do fluxo biliar (podendo conduzir a colestase que passará a ser notória na vida extrauterina); nas formas graves poderá surgir morte fetal;
  2. Hiperprodução de bilirrubina não conjugada; durante a vida intrauterina a bilirrubina em excesso é eliminada através da mãe; após o nascimento poderá originar quadro de hiperbilirrubinémia com risco de kernicterus.
Manifestações clínicas

Classicamente são descritas três formas clínicas designadas respectivamente por ligeira, moderada e grave.

Na forma ligeira, que abrange mais de metade dos casos, pode surgir anemia com valor de Hb não inferior a 12 g/dL e bilirrubinémia no sangue do cordão < 3 mg/dL; a bilirrubinémia não ultrapassa em geral 18-20 mg/dL no período neonatal precoce, sendo que o valor de Hb poderá atingir nível da ordem de 8 g/dL após a primeira semana de vida. Trata-se, pois, duma forma clínica anteriormente designada por forma anémica.

Na forma moderada verifica-se icterícia antes das 24 horas de vida (precoce) em geral com valor de hiperbilirrubinémia atingindo > 20 mg/dL entre as 36 e 48 horas de vida.

Esta forma, anteriormente designada por “forma ictérica”, se não corrigida, associa-se a alto risco de encefalopatia ou disfunção neurológica (BIND – Bilirubin-induced neurologic dysfunction), a qual surge quando a bilirrubina atravessa a barreira hemato-encefálica e se liga aos tecidos cerebrais.

A evolução da encefalopatia bilirrubínica para kernicterus, situação actualmente rara, traduzindo as sequelas da encefalopatia bilirrubínica, processa-se em três fases com as seguintes manifestações:

  • 1ª fase) hipotonia, letargia e sucção débil nos primeiros dias de vida;
  • 2ª fase) febre, irritabilidade com choro frequente, episódios de apneia, hipertonia e opistótono entre o 5º e 7º dias de vida, conduzindo à morte na grande maioria dos casos;
  • 3ª fase) encefalopatia com sinais estabelecidos: hipotonia, atraso motor, atetose, défice auditivo neurossensorial grave (com emissões oto-acústicas normais e potenciais evocados alterados), olhos em “sol poente”, disartria, etc., traduzindo evolução para quadro de kernicterus.

A forma grave de doença hemolítica perinatal é tipificada pela doença fetal, detectável antes da 34ª semana de gestação: hidropisia, anemia grave, hepatosplenomegália, diátese hemorrágica grave com trombocitopénia, hiperplasia das células β dos ilhéus de Langerhans com risco ulterior de hipoglicémia e défice de factores de coagulação. Tal forma conduz à morte na ausência de intervenção pré-natal.

Exames complementares
Na grávida

Os exames complementares a realizar na grávida e, mais tarde, no RN , devem ser fundamentados na anamnese perinatal (designadamente inquirindo sobre grupo sanguíneo da mãe e resultado de prova de Coombs indirecta, eventuais transfusões realizadas na mãe anteriormente à gravidez, evolução das gravidezes anteriores, antecedentes de filhos anteriores com doença hemolítica e respectiva evolução, administração profiláctica anterior de gama-globulina anti-D, etc.).

Assim, o mais precocemente possível, deve reconfirmar-se o grupo sanguíneo (AB0, D, Du) e proceder-se à prova de Coombs indirecta (pesquisa de anticorpos anti-D) no caso de mãe D (-);

  1. a prova de Coombs indirecta deve ser realizada mensalmente até ao dia do parto;
  2. se, entretanto, se verificar resultado positivo da pesquisa, deve proceder-se à titulação de anticorpos: a verificação de títulos >1/8 (indicando iso-imunização materna, mas não necessariamente doença fetal) estabelece indicação para:
    • amniocentese para determinação da densidade óptica/índice óptico do líquido amniótico a 450 mm por espectrofotometria em função da impregnação bilirrubínica do mesmo) e avaliação de eventual doença fetal; (o protocolo pormenorizado a cargo da equipa de medicina fetal ultrapassa o âmbito deste capítulo; como noção geral salienta-se que, de acordo com o clássico gráfico de Lilley – em ordenada a densidade óptica e em abcissa a idade gestacional – são definidas três zonas de índice óptico elevado/doença grave, intermédio/doença moderada, e baixo/doença ligeira ou ausência de doença, implicando diferentes atitudes).
    • cordocentese para colheita de sangue fetal e detecção de possível anemia (Hb < 10 g/dL), pH fetal, grupo sanguíneo fetal, e eventual transfusão fetal, etc..
    • ecografia fetal para detecção de possível ascite, edema, derrame pleural, pericárdico, hepatosplenomegália, etc.;
  3. nos casos de mães já anteriormente iso-imunizadas ou com prova de Coombs positiva por terem recebido gama-globulina anti-D (ver adiante), a verificação de títulos de anticorpos deve ser feita entre as 16 e 18 semanas, às 22 semanas e, depois, de 2-2 semanas; se, entretanto, a titulação evidenciar valores > 1/16 são levados a cabo os procedimentos referidos em 2.
No recém-nascido

Em RN de mãe Rh (-) no pós-parto imediato deve proceder-se a colheita de sangue do cordão umbilical para determinação dos seguintes parâmetros: grupo sanguíneo (AB0, D, Du), bilirrubina conjugada e não conjugada e prova de Coombs directa; em casos de diagnóstico estabelecido na gravidez, está indicado avaliar, também, Hb, hematócrito, reticulócitos, proteínas totais e fracções.

Valores de Hb < 12 g/dL e de bilirrubina > 4 mg/dL correspondem a formas graves de doença hemolítica perinatal.
Em função do contexto clínico, está indicado proceder ao doseamento seriado da Hb e da bilirrubina (de 6-6 horas) para decisão terapêutica, a abordar na alínea seguinte.

Tratamento

As bases do tratamento da doença hemolítica perinatal por iso-imunização Rh/D, como exemplo paradigmático das hiperbilirrubinémias indirectas graves, incluem fundamentalmente a fototerapia, a exsanguinotransfusão e o emprego de fármacos.

Fototerapia

1. Princípios gerais

A chamada fototerapia é uma modalidade profiláctico-terapêutica que utiliza a energia luminosa para transformar a bilirrubina nativa em isómeros hidrossolúveis através de três mecanismos:

        1. foto-oxidação da qual resultam complexos pirrólicos excretados pela urina – processo lento que contribui para uma pequena percentagem de eliminação da bilirrubina;
        2. foto-isomerização num isómero menos tóxico – Z-lumirrubina (4Z,15E), excretado na bílis sem conjugação, sendo um processo lento e reversível e por isso pouco eficaz;
        3. isomerização estrutural em lumirrubina, excretada sem conjugação pela bílis e urina, constituindo o mecanismo mais eficaz de redução da bilirrubina.

A fotodegradação da bilirrubina verifica-se com o emprego de faixa de luz com os comprimentos de onda entre 420 e 480 nm.

Na prática pode ser utilizada luz branca (fluorescente), azul e verde. No que respeita à irradiância (baixa, média ou elevada), os novos aparelhos são concebidos empregando a elevada irradiância pela sua maior eficácia (entre 12-40 uW/cm2/nm) sendo que os de baixa irradiância produzem luz com menos de 6 uW/cm2/nm. Quanto maior a dose de irradiância que atinge o RN e maior a superfície corporal abrangida, maior a eficácia da fototerapia.

Existem diversos tipos de aparelhos no mercado:

        • convencional com 6-8 lâmpadas de 20 W a uma distância recomendada de ~30 cm; podem ser utilizados em simultâneo dois aparelhos, o que duplica a irradiância;
        • luz em foco (bilispot) de irradiância elevada com 20 cm de diâmetro e colocado a uma distância ~50 cm do doente;
        • “colchão luminoso” ou “pá luminosa” de fibra óptica sobre o qual se coloca o RN;
        • outras modalidades, incluindo berços com lâmpadas convencionais colocadas por cima, por baixo e de cada lado do berço (transparente).

A utilização de fototerapia intensiva durante 24 horas, com irradiâncias significativamente maiores, reduz o valor de bilirrubina em 30-40%, valor muito superior aos 10-20% obtidos com a fototerapia convencional.

Os aparelhos de fototerapia implicam esquema de manutenção e verificação periódica da irradiância (vida média das lâmpadas variando entre 500 a 2.000 horas).

2. Indicações

O Quadro 3 resume de modo integrado as indicações da fototerapia (e da exsanguinotransfusão/ET a abordar na alínea seguinte) nos casos de doença hemolítica perinatal por iso-imunização por incompatibilidade Rh (DHPNRh) em função da bilirrubina e Hb no sangue do cordão e da idade em horas; no entanto, tais indicações deverão ser ponderadas caso a caso.

QUADRO  3 – Indicações de fototerapia e exsanguinotransfusão (ET) na DHPN Rh.

 VigilânciaFototerapiaE-T
Sangue do cordão
Hb (g/dL)
Bilirrubina (mg/dL)

> 14
< 4

12-14
4

< 12
> 4
Idade
Bilirrubina(mg/dL)
< 24 horas
24-48 horas
> 48 horas


< 7
< 10
< 12


7-9
10-14
12-18


10-14
> 14
> 18

Nota:
Investigadores na Índia concluíram que, em circunstâncias de recursos limitados, se poderá adoptar um método simples, construindo uma escala de pontuação (designado por STRIP- Stool Colour Weight as an Adjunct to Triage Infants for Phototherapy score) para decidir sobre a realização de fototerapia, em função do aspecto das fezes. Tendo em conta o metabolismo da bilirrubina e a verificação da circulação êntero-hepática da bilirrubina, os investigadores puderam comprovar que RN com fezes “menos maturas e mais verdes” necessitavam de fototerapia, versus RN com mais “maturas” que não necessitavam de fototerapia.

3. Precauções

      • Uma vez que a fototerapia implica incremento das perdas insensíveis, haverá que providenciar cálculos rigorosos do balanço hídrico. Empregando fototerapia convencional, os suprimentos hídricos devem ser incrementados na ordem de +20-25 mL/kg/dia; nos casos de RN pré-termo tal incremento poderá corresponder a + 50 ml/kg/dia em relação aos cálculos na ausência de fototerapia.
      • Os olhos devem ser protegidos com cobertura opaca (papel de carbono negro ou veludo negro) para evitar efeitos de fototoxicidade na retina.
      • O RN deverá ficar sem fralda, pois a penetração da luz não ultrapassa 2-3 mm na pele, não havendo perigo de lesão das gónadas.
      • A fototerapia deve ser suspensa caso se verifique elevação da bilirrubina conjugada (colestase) para evitar a chamada síndroma do “bebé bronzeado” que consiste na verificação de coloração castanha acinzentada da pele, plasma e urina explicável pela formação de coproporfirina e retenção de fotobilirrubina no pigmento biliar.
      • Nas UCIN e unidades neonatais em geral, estando o RN submetido a nutrição parentérica, os recipientes dos solutos a perfundir deverão ser protegidos com plástico impermeável à luz a fim de impedir alteração química de aminoácidos e vitaminas entre outros compostos.
      • Actualmente, em determinados centros internacionais, possuindo equipas treinadas em cuidados domiciliários, a fototerapia é realizada em casa, com a colaboração da família.
      • Poderá verificar-se, como efeito colateral da luz, o aparecimento de erupção cutânea maculopapular nas áreas expostas, de evolução auto-limitada cessando a exposição.
      • Poderá igualmente verificar-se aceleração do trânsito intestinal com aparecimento de diarreia.
      • Numa situação rara – porfíria eritropoiética congénita – a fototerapia está contra-indicada.
      • Está ainda pouco clara a relação entre a fototerapia intensiva e o aparecimento de nevus melanocíticos atípicos na idade escolar.
 Imunoglobulina endovenosa (IGIV)

Trata-se duma terapêutica com interesse e potencialmente eficaz se for administrada precocemente nos casos de hemólise importante (incremento de bilirrubinémia de 0,5-1 mg/dL/hora); de acordo com algumas séries estudadas, contribui para reduzir a necessidade de exsanguino-transfusão. O mecanismo de acção relaciona-se com possível bloqueio dos receptores Fc do sistema reticuloendotelial, contribuindo para diminuir a velocidade da hemólise.

Tem-se utilizado a dose de 500 mg/kg em perfusão (durante 2 horas ou 8 horas, conforme os protocolos). Poderá utilizar-se idêntica dose repetida 12 horas após a primeira.

Albumina

Nos casos de hipoalbuminémia, poderá considerar-se a administração de albumina na dose de 1 g/kg. Tendo em conta a ligação da bilirrubina à albumina (ver atrás Metabolismo da bilirrubina) e a penetração da bilirrubina livre não conjugada através da membrana da célula nervosa, se a albumina for administrada antes da fase de travessia da membrana – o que é difícil de determinar em tempo real – tal medida poderá empiricamente contribuir para reduzir tal penetração na célula nervosa e suas consequências.

Concentrado eritrocitário

Para correcção da anemia poderá estar indicada a transfusão de concentrado eritrocitário (10-15 mL/kg, a ser repetida em função do contexto clínico) muitas vezes associada a imunoterapia e a fototerapia, ou antes da exsanguinotransfusão para estabilização das condições hemodinâmicas, respiratórias e metabólicas.

Outra indicação da transfusão de concentrado eritrocitário é a verificação de anemia tardia (Hb <7,5 g/dL) entre a terceira semana e os 2 meses de idade pós-natal) nos casos de hemólise ligeira inicial submetidos apenas a fototerapia e/ou IGIV. Assim, em tais circunstâncias, o lactente deverá ser submetido a vigilância periódica do hematócrito, Hb e reticulócitos. A decisão de transfundir dependerá de eventuais sinais clínicos associados, traduzindo hipoxémia tecidual: taquipneia e taquicárdia agravadas pelo esforço (refeições), escassa progressão ponderal, palidez, etc..

 Exsanguinotransfusão (ET)
1. Objectivos

Os objectivos deste procedimento invasivo são:

  • remover parcela importante da bilirrubina não conjugada circulante e potencialmente tóxica para o SNC;
  • remover igualmente parcela importante de eritrócitos com anticorpos aderentes e predispostos a hemólise, e, consequentemente, a agravamento da anemia e da hiperbilirrubinémia;
  • substituir parte do sangue do RN com eritrócitos compatíveis com os da mãe e RN.
2. Condições técnicas essenciais

Não cabendo no âmbito deste capítulo a descrição da técnica de ET, é importante referir alguns aspectos:

  • Tempo de armazenamento máximo do sangue de 72 horas, pois o nível de potássio eleva-se com o tempo, sendo aceitável o valor até 9 mEq/L.
  • Sangue do dador com um hematócrito entre 55 e 60% (Hb > 12g/dL), previamente irradiado como meio de prevenir reacção enxerto contra hospedeiro, inactivando os linfócitos do dador.
  • Sangue aquecido a 37ºC durante duas horas.
  • Volume de troca utilizado correspondente a duas volémias, isto é ~160 mL/kg, o que permite remover cerca de 85% dos eritrócitos e cerca de 45% da bilirrubina circulante.
  • Tipo de sangue Rh negativo, Du negativo, compatível com o do RN no sistema AB0.
3. Indicações

Tendo sido referidas indicações gerais no Quadro 3 (chamando a atenção para a necessidade de ponderar a indicação de ET logo após o nascimento), cabe agora referir algumas especificidades no que respeita, designadamente, à condição peso de nascimento e verificação de eventuais factores de risco susceptíveis de aumentarem o risco de neurotoxicidade da bilirrubina.

  • Nas primeiras 36 horas de vida poderá haver necessidade de doseamento da bilirrubinémia cada 4 a 8 horas se o ritmo de incremento for igual ou superior a 0,5 mg/dL/hora, não considerando, no entanto, para tal cálculo, o valor inicial da bilirrubina no sangue do cordão.
  • Após as 36 horas está indicada ET, equacionando a relação peso de nascimento-bilirrubinémia total (BT) são estabelecidas as seguintes normas como complemento do que é estabelecido no Quadro 3:
    • <1.500 g………………..           ET se BT > 13 mg/dL
    • 1.500-2.500 g………..           ET se BT > 16 mg/dL
    • >2.500 g………………..           ET se BT > 18 mg/dL
  • A ET deverá ser sempre realizada se houver sinais sugestivos de encefalopatia bilirrubínica independentemente dos valores de bilirrubinémia.
  • Na presença de factores de risco tais como índice de Apgar < 3 aos 5 minutos, hipoglicémia, hipotermia, hipercapnia, hipoxémia (PaO2 < 40 mmHg), acidose metabólica persistente (pH <7,15), infecção sistémica com ou sem meningite, proteínas totais < 4 g/dL, albumina < 2,5 g/dL, deve ser diminuído o nível de bilirrubina indicativo para ET de – 2 mg/dL; este critério de ponderação de factores de risco aplica-se também a situações de hiperbilirrubinémia de causa não hemolítica.
  • Como precaução máxima, os RN pré-termo tardio (34-36 semanas), pela sua maior vulnerabilidade, embora eventualmente a respectiva condição somática os aproxime dos RN de termo, deverão ser assistidos segundo os critérios de pré-termo.
  • O valor de bilirrubinémia > 20 mg/dL deve ser considerado uma emergência médica pelo risco elevado de kernicterus.
    Como nota importante salienta-se que o risco de kernicterus é mais significativo até aos 5-7 dias de vida, existindo excepções a esta regra; trata-se, com efeito, do período de maior permeabilidade da barreira hemato-encefálica. Não se deverá, pois, protelar demasiadamente a eventual ET caso esteja indicada, pois, ao decidir pela sua realização, poderá ser tarde pela possibilidade de lesão já estabelecida do SNC.

Segundo alguns autores, a relação Bilirrubina (mg/dL)/Albumina (g/L) pode ajudar na decisão de realizar a ET: valores superiores a 7,2 em RN com 38 semanas ou mais, e superiores a 6,8 em RN com < 38 semanas, são favoráveis à sua realização.

4. Complicações

As complicações mais frequentemente associadas a ET são: cardíacas (arritmia, insuficiência cardíaca por sobrecarga volémica, etc.), vasculares (tromboembolismo, vasospasmo, etc.), hematológicas (hemorragias por trombocitopénia ou défice de factores de coagulação, etc.), infecções, metabólicas (hipocalcémia, hipo e hiperglicémia, acidose metabólica, etc.).

Metalporfirinas

As protoporfirinas (SnPP) e as mesoporfirinas (SnMP) são fármacos que, inibindo a heme-oxigenase, reduzem a conversão do radical heme em bilirrubina. Têm sido realizados estudos multicêntricos cujos resultados legitimam a utilização de tais fármacos no tratamento e prevenção das hiperbilirrubinémias.

Eritropoietina

A administração de eritropoietina recombinante poderá constituir um tratamento alternativo às transfusões de concentrado eritrocitário nas anemias tardias, entre a 3ª e 6ª semanas de vida, designadamente do tipo hiporregenerativo.

Estudo evolutivo e acompanhamento

Os casos de lactentes e crianças com antecedentes de DHPNRh deverão ser submetidos a vigilância periódica em centros de desenvolvimento desde a alta hospitalar, pressupondo acção coordenada pelo respectivo médico assistente. O risco de compromisso do sistema nervoso (motor, sensorial, comportamental, etc.) é mais relevante se existirem antecedentes de bilirrubinémia > 25 mg/dL, sinais neurológicos no período neonatal precoce, ET e alterações nos resultados obtidos pelo estudo potenciais evocados auditivos do tronco cerebral.

Prevenção

A prevenção da DHPNRh centra-se nos seguintes princípios:

  • proscrição absoluta de hetero-hemoterapia e respeito pelas regras de compatibilidade em transfusões;
  • prevenção das hemorragias feto-maternas, reduzindo as manobras obstétricas com probabilidade de aumentarem o volume daquelas;
  • administração de gama-globulina anti-D a mulheres com antigénio D negativo/Rh (-) evidenciando resultado negativo da prova de Coombs indirecta.

Experimentalmente demonstrou-se que 10 microgramas (mcg) de gama-globulina anti-D neutralizam 0,2 a 1 mL de sangue [depuração de eritrócitos fetais circulantes com antigénio D ou Rh (+) para o baço, órgão onde são destruídos por macrófagos através de diversos mecanismos]. No pressuposto de que em mais de 95% dos casos a hemorragia feto-materna tem volume inferior a 10 mL, as doses-padrão que são preconizadas têm probabilidade de eficácia na quase totalidade das situações.

De acordo com as recomendações da AAP e do ACOG (American College of Obstetricians and Gynecologists) tem sido utilizado o seguinte protocolo para a administração de gama-globulina anti-D por via IM na maioria dos centros perinatais:

  1. Status pós-aborto ou ruptura de gravidez ectópica:
    • até 12 semanas: 50 mcg
    • após 12 semanas: 300 mcg
  2. Status pós-biópsia das vilosidades coriónicas: 50 mcg
  3. Status pós-amniocentese ou cordocentese: 300 mcg
  4. Durante a gravidez (28-29 semanas): 300 mcg
  5. Pós-parto se o RN for Rh (+)/D positivo ou Du positivo: 300 mcg

Nas situações 1-, 2-, 3-, e 5- a administração de gama globulina anti-D deve realizar-se o mais precocemente possível, até às 72 horas subsequentes no sentido de garantia de eficácia.

Nota: Caso especial de Incompatibilidade Rh
Existe uma situação especial que teoricamente pode merecer esquema de prevenção: RN do sexo feminino Rh (-), filho de mãe Rh (+). Nesta circunstância poderá verificar-se transfusão materno-fetal de eritrócitos com antigénio D (Rh+) durante o nascimento dum RN Rh (-) a partir da respectiva mãe Rh (+). Como consequência o RN ficará sensibilizado logo após o nascimento (produzindo anticorpos anti-D). Tratando-se dum RN do sexo feminino que recebeu anticorpos anti-D (Rh), fácil se torna compreender que, atingida a idade de procriação, tal indivíduo, portador de anticorpos anti-D (Rh) poderá dar origem a produto de concepção afectado por doença hemolítica se se verificar incompatibilidade de grupo sanguíneo feto-materna.
Neste contexto, de acordo com Ramos de Almeida, admite-se como lógica a atitude de administrar gama-globulina anti-D a RN do sexo feminino Rh (-) de mães Rh (+) imediatamente ao parto. Esta estratégia, no entanto, não entrou na rotina. [Ramos de Almeida JM, Rosado L. Rh Blood group of grandmother and incidence of erythroblastosis. Arch Dis Child 1972;47:609-611].

2. Doença hemolítica neonatal por iso (ou alo – imunização AB0

Definições

A doença hemolítica neonatal por iso-imunização AB0 – hoje mais frequente que a DHPNRh como foi atrás referido face à possibilidade de prevenção efectiva desta última – define-se como o processo mórbido em que se verifica hemólise no RN na circunstância de mãe do grupo 0 e RN do grupo A ou B.

[Sobre AB0, deve pronunciar-se AB zero, e não AB Ó].

Recorda-se aqui, para melhor compreensão, algumas características genotípicas e fenotípicas dos eritrócitos e soro no sistema AB0 o qual diverge do sistema Rh (neste último existe um sistema antigénico nos eritrócitos humanos não associado a aglutininas (anticorpos naturais) no soro:

  • no sistema AB0 os caracteres A, B, e 0 são herdados como três pares alelomórficos, pelo que são possíveis os fenótipos A, B, 0 e AB. A correspondência fenótipo-genótipo é a seguinte:
    • Fenótipo A à Genótipos: AA (homozigoto) e A0 (heterozigoto)
    • Fenótipo B à Genótipos: BB (homozigoto) e B0 (heterozigoto)
    • Fenótipo 0 à Genótipo: 00 (homozigoto)
    • Fenótipo AB à Genótipo: AB (heterozigoto);
  • no sistema AB0 considera-se a existência de dois aglutinogénios/antigénios eritrocitários, respectivamente A e B, e duas aglutininas/anticorpos naturais, respectivamente B ou beta e A ou alfa; assim, por definição, não podem coexistir no mesmo indivíduo um antigénio e o correspondente aglutinogénio porque de tal resultaria a aglutinação dos próprios eritrócitos, incompatível com a vida;
  • assim, existem eritrócitos com antigénio A e, no respectivo plasma, aglutinina/anticorpo natural B ou beta; eritrócitos com antigénio B e, no respectivo plasma, aglutinina/anticorpo natural A ou alfa; eritrócitos sem antigénios e, no respectivo plasma, aglutininas/anticorpos naturais A ou alfa + B ou beta; eritrócitos com antigénios A+B e, no respectivo plasma sem anticorpos naturais ou aglutininas. O Quadro 4 elucida sobre o que foi descrito.

QUADRO 4 – Sistema AB0 e relação antigénios eritrocitários – aglutininas plasmáticas (naturais).

Grupo

Antigénios eritrocitários

Aglutininas/anticorpos naturais

A

A

anti-B ou beta

B

B

anti-A ou alfa

AB

AB

ausência

0

Ausência

anti-A (alfa) + anti-B (beta)

Etiopatogénese

Em cerca de 20% das gravidezes verifica-se situação de incompatibilidade AB0 mãe/feto (A/B), (B/A), (0/A), (0/B), (A/0), (B/0); contudo, somente ocorre doença hemolítica no recém-nascido A ou B cujas mães são do grupo 0, possuindo aglutininas B-beta e A-alfa, quer do tipo IgM, quer do tipo IgG; ora, estas últimas têm a capacidade para atravessar a placenta no caso de estimulação antigénica por passagem prévia de eritrócitos fetais B ou A, no sentido feto-mãe.

De salientar, no entanto, que tal estimulação antigénica poderá ocorrer anteriormente à passagem prévia de eritrócitos fetais (isto é, antes duma primeira gravidez a mulher poderá já ser portadora de anticorpos/aglutininas IgG anti-A ou anti-B resultantes de estímulos antigénicos com estrutura e composição química semelhante à dos antigénios eritrocitários A ou B, presentes em certos alimentos, bactérias e produtos biológicos como o toxóide tetânico).

Nos casos de incompatibilidade A/B ou B/A não existe risco de doença hemolítica porque as aglutininas anti-B e anti-A nos grupos A ou B respectivamente são predominantemente do tipo IgM (macromoléculas) sem capacidade para atravessar a placenta no caso de passagem prévia de eritrócitos fetais B ou A no sentido feto-mãe.

Centrando a atenção na situação de mãe 0 e feto/RN do grupo A ou B, gera-se um mecanismo semelhante ao descrito a propósito da DHPNRh: os anticorpos/aglutininas, atingindo os eritrócitos fetais ou do RN, aderem à sua superfície determinado processo hemolítico com consequências semelhantes – fundamentalmente anemia e hiperbilirrubinémia.

Cabe agora analisar algumas diferenças da etiopatogénese em relação à DHPNRh:

  1. grau de hemólise mais ligeiro na doença AB0 condicionando, de modo geral, quadros clínicos mais ligeiros, e;
  2. doença fetal praticamente inexistente na doença AB0, sendo por isso mais correcto falar em doença neonatal AB0 em comparação com a designação de doença perinatal Rh.

As razões da raridade da hemólise fetal (< 2% dos casos de DH AB0) prendem-se com o facto de a membrana eritrocitária fetal ser escassa em antigénios A e B, sendo que a expressão antigénica somente se desenvolve de modo significativo a partir do final da gestação e, sobretudo, a partir do termo da gravidez, continuando o seu desenvolvimento até aos 2 anos; ou seja, a característica de “grupo A ou B” não está completamente definida no período fetal, o que determina escassa ou nula probabilidade de os eritrócitos fetais serem reconhecidos como estranhos ao organismo materno.

Por outro lado, sendo gerados anticorpos anti-A ou anti-B, para além do facto de nem todos serem hemolisantes, os mesmos poderão aderir não só a antigénios A ou B na membrana eritrocitária do RN, mas também a antigénios de estrutura semelhante a antigénios A ou B distribuídos por tecidos e secreções; ou seja, surge aqui um mecanismo de competição que poupa eritrócitos A ou B, diminuindo a exposição destes ao anticorpo materno circulante, reduzindo o grau de hemólise.

Aliás, a dupla incompatibilidae mãe-filho AB0 e Rh diminui o risco e a gravidade de DHPNRh pelo facto de os eritrócitos fetais Rh (+) e do grupo A ou B, que passam para a circulação de mãe do grupo 0 Rh (-), poderem ser destruídos pelos anticorpos maternos anti-A ou anti-B antes do estímulo antigénico para a formação de anticorpos anti-D por parte da mãe. Trata-se de mecanismo semelhante ao descrito para a imunoglobulina anti-D.

Ao contrário da iso-imunização Rh, na DH AB0, a probabilidade de iso-imunização vai diminuindo com o número de gravidezes, pois os anticorpos formados como resposta a sucessivas estimulações antigénicas, inicialmente do tipo IgG, passam mais tarde a ser predominantemente do tipo IgM, macromoléculas que não atravessam a placenta.   

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas neste tipo de iso-imunização AB0 são variadas; a anemia e a icterícia podem ser ligeiras; classicamente surge icterícia precoce, embora em certas formas o quadro se assemelhe a icterícia fisiológica. Outra particularidade da icterícia é o seu modo “oscilante” sugerindo quadro de hemólise ligeira por surtos, e o prolongamento para além das duas semanas conduzindo a anemia (excepcionalmente grave), de expressão tardia (3ª-4ª semanas de vida) e acompanhada de hepatosplenomegália. Em certas formas de incompatibilidade B-0 foram descritos casos de hiperbilirrubinémia > 20 mg/dL; os casos de encefalopatia são raros.

Em função do contexto clínico e dos antecedentes familiares haverá, por vezes, que fazer o diagnóstico diferencial com outras icterícias hemolíticas como por ex. esferocitose hereditária e enzimopatias eritrocitárias.

Exames complementares

No contexto de incompatibilidade AB0 mãe-filho e icterícia precoce, a elevada probabilidade de doença hemolítica AB0 deve ser confirmada ou infirmada através da realização de determinados exames laboratoriais (hemograma com contagem de reticulócitos e pesquisa de esferócitos). De facto, a presença de esferócitos no sangue periférico (> 4/mmc) nesta idade sugere com maior probabilidade DH AB0 do que esferocitose hereditária; considera-se reticulocitose significativa (indiciando hiperplasia medular por hemólise) o valor > 4-5%, podendo por vezes ser atingidos valores entre 15-30%.

Relativamente aos aspectos relacionados com a vigilância da bilirrubinémia aplicam-se os princípios já descritos a propósito da DHPNRh. A prova de Coombs directa no RN em geral é negativa ou fracamente positiva, o que é explicado pelo facto de haver menor número de sítios antigénicos nos eritrócitos do RN.

O diagnóstico pode ser confirmado através da pesquisa de anticorpos maternos anti-A ou anti-B adsorvidos à superfície dos eritrócitos do RN (prova do eluato).

Tratamento

No caso de DH AB0 têm perfeito cabimento as medidas descritas para a DHPNRh, incluindo fototerapia, a administração de imunoglobulina polivalente, transfusão de concentrado eritrocitário e exsanguinotransfusão.

Nesta alínea é dada ênfase a indicações de fototerapia (Quadro 5) e de exsanguinotransfusão, resumidas a seguir.

QUADRO 5 – Indicações de fototerapia na DH-ABO.

Idade

Vigilância

Fototerapia

Bilirrubina(mg/dL)

< 24 horas

< 7

7-9

24-48 horas

< 10

10-14

> 48 horas

< 12

12-18

 

No que respeita à ET, e no contexto de DH-AB0, em geral não existe a necessidade de realizar esta técnica imediatamente após o nascimento, tendo em conta a baixíssima probabilidade de doença fetal e de doença neonatal precoce e grave; é, no entanto, crucial observação rigorosa seriada, sendo que o risco de kernicterus é mais significativo até aos 5 dias, período de maior permeabilidade da barreira hemato-encefálica. As indicações da ET em função da bilirrubinémia total (BT) e do peso de nascimento são assim estabelecidas:

  • <1.500 g………….ET se BT > 13 mg/dL
  • 1.500-2.500 g….ET se BT > 16 mg/dL
  • >2.500 g………….ET se BT > 18 mg/dL

Salienta-se, contudo, que a ET deverá ser sempre realizada de imediato caso se verifiquem sinais sugestivos de encefalopatia bilirrubínica independentemente dos valores de bilirrubinémia (e, idealmente, antes do surgimento dos referidos sinais, o que implica elevado índice de suspeita na avaliação clínica seriada e cuidadosa).

Na presença de factores de risco, tais como índice de Apgar < 3 aos 5 minutos, hipoglicémia, hipotermia, hipercapnia, hipoxémia (PaO2 < 40 mmHg), acidose metabólica persistente (pH< 7,15), infecção sistémica com ou sem meningite, proteínas totais < 4 g/dL, albumina < 2,5 g/dL, deve ser diminuído o nível de bilirrubina total (BT) indicativo para ET de menos 2 mg/dL do que o estabelecido para situações sem factores de risco. [Por ex. ET com BT > 11 mg/dL se factor de risco presente versus BT > 13 mg/dL na ausência de factor de risco (ver atrás)].

Este critério de ponderação de factores de risco aplica-se também a situações de hiperbilirrubinémia não hemolítica.

3. Doença hemolítica neonatal por incompatibilidade dos chamados grupos sanguíneos menores

Definição e importância do problema

Tal como foi referido antes, em cerca de 1-2% da totalidade dos casos de iso- imunização por incompatibilidade sanguínea feto-materna, poderá surgir iso-imunização em relação com determinados antigénios [c, C, e, E (no sistema Rh), Fya (no sistema Duffy), M, N, S, s (no sistema MNSs), JKa, JKb (no sistema Kidd), etc], existentes na superfície do eritrócito fetal e ausentes no eritrócito materno, designados classicamente como menores ou irregulares.

Etiopatogénese

A etiopatogénese é sobreponível à descrita para outros grupos sanguíneos. Cabe referir, no entanto, duas particularidades:

  1. no sistema Rh a DH surge mais frequentemente com antigénios E e c caso se verifique previamente sensibilização ao antigénio D;
  2. no sistema Rh também, e dentro da raridade da iso-imunização por grupos menores, a DH anti-c é a mais frequente.
Manifestações clínicas

As manifestações clínicas são semelhantes às descritas a propósito da DHPNRh; de salientar, contudo, que nestas formas pode haver doença fetal (anemia/hidropisia) e, no RN, as formas anémicas e ictérica.

Na prática clínica, e na ausência de incompatibilidade Rh e AB0, deve suspeitar-se desta de doença no pós-parto e nas seguintes circunstâncias:

  • icterícia precoce (surgida antes das 24 horas de vida) com evolução rápida para valores críticos de hiperbilirrubinémia;
  • anemia associada;
  • hepatosplenomegália;
  • prova de Coombs directa positiva, reticulocitose importante e detecção de eritroblastos no sangue periférico.
Tratamento e evolução

Os procedimentos a realizar e a possível evolução são os mesmos que foram descritos a propósito da DHPNRh. Uma vez identificado o antigénio eritrocitário que desencadeou o processo de iso-imunização, tal facto deverá ficar registado no Boletim de Saúde Infantil e Juvenil no sentido de prevenir, no futuro, eventuais transfusões de derivados sanguíneos com o referido antigénio.

Hiperbilirrubinémia conjugada

Definição e importância do problema

A hiperbilirrubinémia directa ou conjugada é devida a falência no processo de excreção para o duodeno (com consequente retenção) da bilirrubina conjugada (BC), ácidos biliares e outros compostos da bílis. Define-se quantitativamente pela verificação de nível sérico de BC > 2 mg/dL, ou de BC superior a 20% da bilirrubina total.

Esta situação classicamente está associada a hepatomegália, esplenomegália, urina escura (por bilirrubinúria conjugada) e fezes claras. Este quadro, de etiopatogénese variada, é designado pelo termo colestase.

Toda e qualquer situação de colestase, uma vez diagnosticada, deverá ser encaminhada atempadamente para centro especializado tendo em conta a necessidade de tratamento dirigido aos factores etiológicos; com efeito, a demora na actuação exequível poderá ser fatal ou originar sequelas, tais como cirrose biliar (por ex. se a intervenção cirúrgica correctiva de defeito das vias biliares não se realizar até à 4-6 semanas de vida).

Etiopatogénese

Reportando-nos ao capítulo sobre colestase (Parte XVI – Gastrenterologia/Hepatologia), em síntese, podem ser considerados os seguintes grandes grupos de colestase quanto à etiopatogénese (Quadro 6):

QUADRO 6 – Hiperbilirrubinémia conjugada (directa) (Icterícia colestática).

1. Lesão do hepatócito com ductos biliares normais

    1. Causa tóxica (nutrição parentérica no RNMBP, sépsis, necrose isquémica);
    2. Causa infecciosa [vírus, bactérias e parasitas (Toxoplasma)];
    3. Causa metabólica (doenças hereditárias do metabolismo, síndroma de Rotor, síndroma de Dubin-Johnson, cirrose idiopática, trissomia 18, etc.).
2. Oferta excessiva de bilirrubina para excretar (síndroma de bílis espessa por “entupimento”) em casos de doença hemolítica e de hemólise secundária a ECMO

3. Obstrução ao fluxo biliar (atrésia das vias biliares intra ou extra-hepáticas)

    1. Tipo extra-hepático isolado ou associado a quisto do colédoco, trissomia 13 ou 18, ou polisplenia;
    2. Tipo intra-hepático por vezes associado a sídroma de Alagille, atrésia intra-hepática com linfedema, hipoplasia
    3. ductular não sindrómica, quisto do colédoco, adenopatia, tumores, quisto pancreático, fibrose quística, etc..
4. Outras situações
Nota importante: A causa mais frequente de colestase em doentes hospitalizados em UCIN é a nutrição parentérica prolongada.

Algumas formas clínicas

Certas situações clínicas que integram o Quadro 6 fazem parte de diversos capítulos do livro. Nesta alínea, entre outras, optou-se por abordar sucintamente duas síndromas ainda não pormenorizadas e consideradas paradigmáticas no âmbito das hiperbilirrubinémias conjugadas: síndroma de Dubin Johnson e síndroma de Rotor.

Síndroma de Dubin Johnson

Trata-se duma situação autossómica recessiva causada por um defeito no transporte da BC e de outros aniões orgânicos, do hepatócito para a bílis. A mesma resulta de mutações (descritas mais de 10) num gene que codifica um anião orgânico transportador dependente de ATP (cMOAT, sinónimo de MRP2).

A síndroma pode manifestar-se na transição do período neonatal para a 1ª infância por sinais de colestase associados a náuseas, vómitos, hepatomegália e valores de BC ~2-5 mg/dL, os quais podem atingir cerca de 20 mg/dL durante intercorrências infecciosas; a situação pode regredir na adolescência, considerando-se dum modo geral a evolução benigna, sem doença crónica. ALT, AST, fosfatase alcalina e sais biliares no soro evidenciam valores normais. A excreção de ácidos biliares e o nível sérico de ácidos biliares são normais. Por colangiografia não se visualiza o tracto biliar e o padrão radiológico da vesícula biliar é anormal.

O coproporfirinogénio urinário é normal, mas a relação coproporfirinogénio I/ coproporfirinogénio III é muito elevada, o que pode ser considerado critério para o diagnóstico. A prova de excreção da bromossulftaleína revela resultado anormal (depuração prolongada).

O exame histológico do fígado, revela estrutura normal e acumulação de pigmento semelhante à melanina nos lisossomas.

Síndroma de Rotor

Esta síndroma colestática, tendo pontos comuns com a síndroma de Dubin-Johnson (SDJ), também se transmite de modo autossómico recessivo; sob o ponto de vista de manifestações clínicas, não existe elevação de BC desencadeada por intercorrências.

De base molecular ainda desconhecida, evidencia, para além do defeito da SDJ, deficiência na captação de aniões orgânicos e ausência de acumulação de pigmento no hepatócito. O padrão radiológico da vesícula biliar é normal.

Para o diagnóstico diferencial com SDJ tem importância o perfil de coproporfirina urinária (na síndroma de Rotor a coproporfirina urinária está, muito elevada, com relação normal coproporfirinogénio I/ coproporfirinogénio III).

Exames complementares e tratamento

Em complemento do que foi referido no Capítulo sobre Colestase (Parte XVI- sobre Gastrenterologia/Hepatologia – volume 1), cuja consulta se sugere, importa referir os seguintes factos, na sequência de resultados de investigações recentes, relacionadas com a colestase neonatal e a sua etiologia mais frequente – a atrésia das vias biliares:

  • recentemente descreveu-se uma doença metabólica relacionada com o défice da citrina, a qual resulta de mutações no gene SLC25A 13 que codifica o transportador mitocondrial do aspartato-glutamato, ciclo da ureia e neoglucogénese. Manifestando-se em RN e lactentes, constitui causa de colestase intra-hepática, geralmente transitória e de bom prognóstico.
  • recentemente também, em relação com as situações de atrésia das vias biliares, descreveu-se um marcador diagnóstico doseável no sangue em ng/mL, e designado por MMP-7 Matrix Metalloproteinase-7); com sensibilidade, especificidade e valor preditivo positivo elevados (> 95%) e um valor de corte de 10,37 ng/mL e mediana de 38,39 ng/mL, verificou-se igualmente que tal marcador tem interesse pela sua correlação com o desenvolvimento de fibrose hepática.

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Importância do problema

No recém-nascido (RN) a infecção reveste-se de características muito específicas tornando-a uma das patologias mais temidas neste grupo etário.

Na realidade, as infecções congénitas e as de origem materna são apanágio do RN, enquanto as adquiridas no hospital (bacterianas, fúngicas ou víricas) são muito mais frequentes no período neonatal do que em qualquer outro período da vida; além disso, podem ser rapidamente evolutivas, são potencialmente muito graves e, na generalidade, estão associadas a mortalidade elevada. (ver adiante Definições)

Por isso, a infecção é uma preocupação, não só de pediatras e neonatologistas como também de obstetras, uma vez que muitas das situações podem ser detectadas e tratadas in utero ou condicionar decisões obstétricas que de outro modo não se tomariam – designadamente prescrição de antibióticos ou decisão de retirar o feto.

O médico que trata o recém-nascido (RN) – médico de família, pediatra ou neonatologista – deve ter conhecimentos e competências que lhe permitam diagnosticar, tratar ou encaminhar um RN doente:

  • no que respeita às infecções congénitas, deve conhecer a periodicidade com que devem ser efectuados os estudos serológicos antes ou durante a gravidez, saber interpretar os resultados, estar familiarizado, quer com os sinais clínicos deste tipo de infecções, quer com o tratamento de eleição;
  • quanto às infecções perinatais deve saber reconhecer o risco infeccioso bacteriano perinatal, os sinais de infecção bacteriana neonatal, que atitudes tomar em casos de suspeita e, igualmente, deve ter noções firmes sobre controlo de infecção de origem hospitalar, outra das grandes preocupações na eventualidade de o RN se encontrar hospitalizado.

Neste capítulo são dadas noções fundamentais que permitam ao médico adquirir conhecimentos de modo a identificar, encaminhar e/ou tratar a patologia infecciosa congénita, perinatal e neonatal. Nos capítulos seguintes são abordadas as infecções congénitas mais comuns, mais pormenorizadamente a infecção bacteriana perinatal e, sucintamente, as infecções hospitalares. (A infecção por vírus da imunodeficiência humana consta de capítulo próprio na Parte XII)

Definições

Os conceitos são importantes, não só para que possamos falar a mesma linguagem, mas também porque os mesmos se relacionam em geral, quer com determinadas manifestações clínicas, quer com determinados agentes etiológicos e terapêuticas.

Infecção congénita

É a infecção adquirida in utero, por via transplacentar. A criança pode nascer assintomática, ou já com sequelas da infecção como, por exemplo, microcefalia, hidrocefalia, calcificações intracranianas, restrição de crescimento fetal/intrauterino (RCIU), lesões oculares, porque houve tempo para que tal acontecesse. Algumas infecções deste tipo, se ocorrerem nas últimas semanas de gestação, ou numa fase precoce da vida pós-natal, poderão originar manifestações ultrapassado o período neonatal (por ex. sífilis).

Para caracterizar este tipo de patologia, integrando diversas nosologias, tem sido usado o acrónimo TORCHS (toxoplasmose, outras, rubéola, vírus citomegálico humano, hepatite, sífilis).

Na última década foi identificada uma doença infecciosa emergente de carácter epidémico, disseminando-se por diversos continentes (sobretudo Américas e África), com várias modalidades de transmissão, incluindo a via materno-fetal e conduzindo a um quadro de infecção congénita.

Dado o enorme impacte em Saúde Pública a nível mundial de tal infecção, provocada por um arbovírus ARN (vírus ZICA), investigadores e epidemiologistas sugeriram a inclusão da letra Z no referido acrónimo, passando a TORCHSZ (toxoplasmose, outras, rubéola, vírus citomegálico humano, hepatite, sífilis, zica).

Infecção perinatal

É uma infecção adquirida por via ascendente, durante ou próximo ao período do trabalho de parto. O agente patogénico, habitualmente um comensal ou infectante do tracto genital materno, atinge o meio intrauterino, porque houve ruptura de membranas; contudo, as membranas nem sempre constituem uma barreira eficaz.

Nesta situação a criança:

  • poderá nascer já com doença evidente e por vezes grave, com reacção diminuída aos estímulos e depressão respiratória, condicionando adaptação difícil à vida extrauterina (traduzida, designadamente, por baixo índice de Apgar), ausência de resposta às medidas de reanimação, necessidade de cuidados intensivos e risco elevado de morte nas primeiras horas de vida, ou
  • poderá vir a manifestar a doença durante os primeiros dias de vida.

Infecção precoce

Corresponde a quadro mórbido com início dos sinais clínicos nas primeiras 72 horas de vida. Nalgumas infecções que ocorrem predominantemente na primeira semana de vida considera-se o limite de 7 dias; é o que acontece, por exemplo na infecção por Streptococcus do grupo B.

Os microrganismos que causam infecção precoce são, supostamente, sempre de origem materna. A pneumonia de origem materna é mais frequente, quase exclusiva da infecção precoce: as vias aéreas superiores ficam de imediato colonizadas na passagem do feto pelo canal do parto, sendo o pulmão facilmente atingido.

Infecção tardia

Trata-se de infecção cujos sinais clínicos surgem depois das 72 horas de vida. Pode ser provocada por microrganismos transmitidos pela mãe, adquiridos no hospital se a criança estiver hospitalizada, ou adquiridos na comunidade se a criança estiver no domicílio. Na infecção tardia causada por microrganismos de origem materna a sépsis pode complicar-se de meningite.

Infecção de origem materna

Este tipo de infecção é provocado por um microrganismo transmitido pela mãe. Frequentemente trata-se duma infecção precoce; no entanto, tal tipo de infecção pode ser tardia – a criança é colonizada pelos microrganismos maternos que invadem a circulação sanguínea mais tarde, por vezes mesmo depois do período neonatal.

Em Portugal, o agente Streptococcus do grupo B é o mais frequentemente isolado nas infecções de origem materna seguido, de longe, por E. coli ou outras enterobacteriáceas tais como Klebsiella e Proteus.

Infecção de origem hospitalar

É uma infecção adquirida após o nascimento, com microrganismos de origem hospitalar; raramente ocorre antes das 72 horas de vida. Em unidades de cuidados intensivos neonatais os agentes mais frequentemente implicados são Staphylococcus coagulase negativa, dos quais Staphylococcus epidermidis é o mais frequente.

Contudo, deve ser sempre tido em consideração que outros microrganismos – bactérias, fungos ou vírus – podem ser causa de infecção de origem hospitalar com consequências muito mais graves para o doente (maior patogenicidade, eventual multirresistência, maior mortalidade).

Infecção da comunidade

É uma infecção causada por microrganismos adquiridos na comunidade e manifestando-se em RN já no domicílio. Frequentemente o RN adquire a infecção por contágio através dum irmão a frequentar infantário ou escola, ou doutros familiares doentes.

A situação paradigmática corresponde ao caso de RN em ambulatório que é admitido com quadro de pneumonia ou de sépsis. Os agentes implicados podem ser Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae ou Neisseria meningitidis. A antibioticoterapia empírica terá que abranger todas estas hipóteses etiológicas, havendo ainda a possibilidade de alguns destes microrganismos serem multirresistentes.

No caso específico de sépsis ou meningite tardias, deve ainda ser considerada a possibilidade de a infecção estar a ser causada por bactéria de origem materna, razão pela qual determinados agentes como Streptococcus do grupo B e E. coli deverão também ser considerados como possíveis factores etiopatogénicos.

Septicémia

Septicémia é uma infecção sistémica generalizada caracterizada por determinados sinais clínicos como prostração, hipotonia, recusa ou intolerância alimentar, febre, hipotermia ou labilidade térmica, má perfusão periférica, tempo de recoloração capilar superior a 2 segundos, dificuldade respiratória e hemocultura positiva.

Os sinais clínicos são acompanhados, mais cedo ou mais tarde, por sinais laboratoriais como alterações dos reagentes da fase aguda (por exemplo positividade da PCR), leucocitose ou leucopénia, neutrofilia ou neutropénia e resultado da hemocultura positivo.

Sépsis

Definida como infecção sistémica com os mesmos sinais clínicos referidos na septicémia, sendo o resultado da hemocultura negativo. No caso de infecção de origem materna este resultado é frequentemente condicionado pela administração de antibióticos à mãe no período periparto. A terapêutica antimicrobiana deverá ser feita com base nos critérios atrás expostos para a septicémia (mesmos antibióticos e a mesma duração).

Pneumonia

Trata-se dum quadro de dificuldade respiratória acompanhado de sinais auscultatórios (fervores crepitantes, por vezes difíceis de detectar) e radiológicos (condensações heterogéneas evidentes na radiografia do tórax, mantidas por mais de 48 horas). Em RN ventilados, a pneumonia manifesta-se muitas vezes também por necessidade de intensificar os parâmetros de ventilação.

Na maior parte das pneumonias no período neonatal é difícil conhecer o agente etiológico. O diagnóstico etiológico correcto é possível se for conseguida hemocultura positiva num RN com pneumonia; contudo este achado é raro em neonatologia.

Se ocorrer o óbito, o agente isolado em peça de exame anatomopatológico post-mortem contribui para o diagnóstico etiológico de certeza.

Nas primeiras 12 horas de vida as bactérias detectadas em cultura de aspirado do tubo endotraqueal (TET) ou da orofaringe permitem o diagnóstico etiológico; no entanto, num RN admitido em cuidados intensivos, passados alguns dias, o resultado positivo do exame bacteriológico das secreções do TET poderá indicar apenas colonização, pelo que não está indicada a sua realização em tais circunstâncias.

Infecção urinária

É uma situação definida pela comprovação de bacteriúria significativa (consultar capítulo sobre Infecção Urinária) pressupondo técnica correcta de colheita de urina: no período neonatal a colheita correcta de urina para exame bacteriológico deve ser feita por punção suprapúbica; no caso de o médico não ter prática da técnica devem ser feitas duas colheitas para saco ou colheita por algaliação após desinfecção cuidadosa.

Se a infecção urinária estiver localizada ao tracto urinário inferior, pode manifestar-se apenas por recusa e intolerância alimentares, assim como por vómitos. A infecção urinária do tracto superior (pielonefrite) manifesta-se como sépsis: febre, má perfusão periférica e também recusa ou intolerância alimentares.

Se concomitantemente a hemocultura for positiva, estaremos perante um quadro de septicémia com pielonefrite, salientando-se que muitas vezes não se percebe qual foi a infecção primária – se a renal, que determinou a disseminação hematogénica, se a infecção sistémica que determinou foco de localização secundária no rim.

O tratamento é igual ao referido para a sépsis. O diagnóstico de certeza é dado pelo resultado de urocultura e pela ecografia renal.

Meningite

O quadro clínico de meningite é sobreponível ao de infecção sistémica grave. Podem existir convulsões – aliás convulsões e febre obrigam a punção lombar, assim como hemocultura positiva (excepto se se obtiver isolamento de Staphylococcus coagulase negativa).

Contudo, se o estado clínico do RN for muito instável, poderá haver a necessidade de se protelar a punção lombar (PL) e de se iniciar antibioticoterapia em doses iguais às que se utilizam em situação de meningite comprovada, valorizando criteriosamente os dados clínicos a favor de meningite.

A ecografia transfontanelar pode ajudar no diagnóstico. O exame citoquímico do LCR evidencia número de células superior a 20/mm3, teor da glicose inferior 70% a 80% em relação ao da glicémia, e proteínas com valor superior a 150 mg/dL. Estes resultados, mantendo-se alterados nos primeiros dias de antibioticoterapia, reforçam a hipótese diagnóstica inicial de meningite nos casos em que não se procedeu a exame cultural antes do início do tratamento.

Do que anteriormente foi referido, conclui-se que na infecção de origem materna a pneumonia ocorre exclusivamente na infecção precoce, enquanto a meningite ocorre predominantemente na infecção tardia. Numa criança que nasce com meningite precoce, o respectivo estado clínico é muito precário e de extrema gravidade, considerando já ter decorrido tempo suficiente para haver invasão e replicação bacterina no SNC.

Generalidades sobre diagnóstico e tratamento

As infecções congénitas levantam problemas de diagnóstico baseado nas serologias.

Durante toda a gestação verifica-se a passagem transplacentar de IgG materna, sendo que a IgM materna somente atravessa a placenta se se verificar lesão deste órgão. Entre as 10 e 20 semanas o feto tem a capacidade de produzir quer IgG, quer IgM.

Por conseguinte, a IgM presente no soro do RN significa, em princípio, produção própria ou infecção activa, enquanto a IgG pode ter proveniência, quer a partir da mãe, quer a partir do feto/RN.

Nesta perspectiva, a interpretação dos resultados serológicos quanto a IgG no RN, obriga necessariamente à comparação entre títulos obtidos na mãe e no filho RN.

Duas situações merecem referência no que respeita a IgM e IgG:

  • no que respeita à IgM deve ser tomado em consideração que IgM negativa no RN não deve levar à exclusão de infecção uma vez que a elevação daquela (IgM) é transitória, podendo já ser negativa no momento do nascimento de uma criança infectada;
  • no que respeita à IgG, uma vez que a sua positividade pode ser devida à presença de IgG de origem materna ou fetal, deve proceder-se laboratorialmente a técnicas de imunobot para identificar as populações de IgG; havendo duas populações, uma será da mãe, e outra do RN; havendo apenas uma, a mesma será certamente da mãe, situação a que poderá corresponder exclusão de infecção no RN.

Actualmente o diagnóstico das infecções congénitas está muito facilitado e é muito mais rápido pela possibilidade de utilizar técnicas de amplificação do DNA (PCR).

  1. No que respeita às infecções bacterianas, as especificidades do recém-nascido condicionam dificuldades de diagnóstico importantes. Se a situação clínica indicia gravidade, na presença dos sinais acima referidos, a primeira hipótese diagnóstica deve ser infecção, o que obriga a realização de exames complementares de diagnóstico e início de antibioticoterapia.
  2. Simultaneamente, contudo, deve ser feito diagnóstico diferencial com outras situações graves, também com risco de vida, mas com terapêutica muito diferente.
    As situações mais comuns dizem respeito às cardiopatias congénitas, nomeadamente coarctação da aorta e síndroma de coração esquerdo hipoplásico, as quais devem ser sempre detectadas quando nos deparamos com um RN com o quadro clínico simile infecção sistémica, em que a administração de prostaglandinas pode ter efeito salvador.
  1. Poderá ainda tratar-se de doença metabólica, cujo quadro clínico pode ser muito semelhante aos descritos anteriormente, com a agravante de algumas delas poderem ser acompanhadas de sépsis (por exemplo, galactosémia associada a septicémia por E. coli).
  2. No que respeita à terapêutica de situações clínicas consideradas sempre graves podem levantar-se dúvidas quanto ao esquema de antibioticoterapia a utilizar, entre outras medidas. Estes aspectos serão focados em capítulos ulteriores.
  3. Contudo, quanto a vias de administração, tipos de antibióticos e local onde a criança deve ser tratada há regras bem estabelecidas:
    • devem ser usados sempre dois antibióticos com mecanismos de acção diferentes de modo a gerar potenciação de efeitos;
    • devem ser administrados por via endovenosa e sempre em meio hospitalar. Com estes pressupostos, a par da gravidade da situação e da possibildiade de rápido agravamento, é fácil perceber que o tratamento deve ser realizado sempre em meio hospitalar.

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Particularidades das infecções do grupo TORCHSZ e implicações práticas

Existe um grupo de infecções, frequentemente assintomáticas no adulto saudável e durante a gravidez, com a particularidade de as mesmas poderem provocar doença grave no feto/RN, sendo as respectivas manifestações clínicas muito semelhantes.

Entre tais infecções incluem-se as designadas por infecções do grupo TORCHSZ (toxoplasmose, outras, rubéola, vírus citomegálico humano, herpes simplex, sífilis e zica) já mencionadas atrás. Sendo as manifestações clínicas fetais e neonatais deste tipo de infecções muito semelhantes, para a sua destrinça torna-se fundamental a interpretação correcta do estudo serológico materno realizado durante a gravidez. Num RN com sinais de doença, a correcta interpretação dos resultados dos estudos serológicos realizados durante a gravidez condiciona poupança de gastos em trabalho de laboratório de imunologia, de virologia ou de parasitologia e, sobretudo, poupança em tempo de diagnóstico.

Neste capítulo são abordados aspectos fundamentais das infecções congénitas mais comuns numa perspectiva prática, com especial ênfase para o diagnóstico e o tratamento.

No que respeita às infecções que induzem imunidade e para as quais existe possível intervenção terapêutica, cabe salientar que o momento mais oportuno para avaliar o estado imunitário da mulher (imune versus não imune) é a consulta pré-concepcional.

Em tal circunstância, há tempo para esclarecer dúvidas, protelar uma gravidez se o contexto clínico o justificar, ou até proceder à imunização da futura grávida. Para algumas doenças infecciosas o conhecimento de que a mulher já teve contacto com o agente infeccioso torna desnecessária a repetição do estudo serológico.

Outro facto muito importante diz respeito ao local onde as análises são processadas; as mesmas deverão ser idealmente realizadas num laboratório idóneo, sempre o mesmo, com a mesma técnica, de modo a viabilizar a comparação de resultados seriados designadamente no que respeita a estudos serológicos. Facto não menos importante: os resultados devem ser observados e correctamente interpretados por quem os solicita.

Caso haja suspeita de infecção congénita, uma vez nascida a criança, devem ser solicitados exames no sangue do RN e da mãe no mesmo laboratório, de modo a comparar os resultados com os obtidos anteriormente. A interpretação dos resultados por parte do patologista clínico constitui também uma ajuda de grande importância.

Nas alíneas seguintes são abordados os seguintes tópicos:

  • infecções que maiores polémicas e problemas ainda levantam na actualidade: sífilis congénita, toxoplasmose e infecção por vírus citomegálico humano;
  • infecções que actualmente têm menor impacte em Saúde Pública face aos progressos realizados no nosso País no âmbito da prevenção e da terapêutica: rubéola e hepatites A, B e C;
  • infecção por vírus Zica (ZICV), descoberto em África em 1947, com grande impacte em Saude Pública pelo seu carácter de doença emergente e epidémica, com difusão rápida nas Américas, sobretudo desde 2015.

1. SÍFILIS CONGÉNITA

Definição, etiopatogénese e aspectos epidemiológicos

A sífilis é uma doença de transmissão sexual provocada por um espiroqueta designado Treponema pallidum.

A sífilis congénita, adquirida pelo feto (muito mais frequentemente por via hematogénica transplacentar e mais raramente por contacto com lesão activa no canal do parto), evidencia relação com o estádio da doença materna.

A transmissão mãe/filho é tanto mais frequente quanto mais recente for a infecção materna. Na infecção materna precoce não tratada 70 a 100% dos fetos serão infectados. A maior parfcela de transmissão ocorre depois das 20 semanas, pelo que o tratamento da sífilis materna antes dessa idade gestacional previne a infecção fetal.

A sífilis pode causar morte fetal, nascimento de criança doente sintomática ou, se transmitida no final da gravidez, dar lugar ao nascimento de uma criança infectada mas assintomática.

Portanto, quanto mais recente a infecção materna e mais avançada a gravidez, maior o risco de infecção fetal.

Como a sífilis congénita é uma sífilis secundária adquirida por via hematogénica o agente Treponema pode atingir todos os órgãos, realçando-se o fígado, baço, pulmões, sistema nervoso central e sistema musculoesquelético, ao nível dos quais se verificam reacções inflamatórias intersticiais difusas e endarterite obliterante.

Com a descoberta da penicilina em 1943, a sífilis passou a ter tratamento específico; por isso, a partir de então, ficaram criadas as condições para a erradicação da sífilis congénita, a doença com melhor relação custo benefício no que respeita a diagnóstico e tratamento. Infelizmente, tal ainda não aconteceu, designadamente em Portugal.

O número de mulheres entre os 15 e os 44 anos de idade com sífilis aumentou de 33 em 2013 para 118 em 2016. No mesmo período, os casos de sífilis congénita variaram entre 6 e 12 casos por 100 000 nados-vivos correspondendo o valor máximo a 2014.

Com efeito, no nosso país a sífilis congénita continua a ser uma infecção que põe em risco a vida de recém-nascidos. A responsabilidade destes números é dos progenitores, dos médicos e do Sistema de Saúde. Dos primeiros, porque poderão não ter recorrido ao médico durante a gravidez por diversas razões, inclusivamente por défice de esclarecimento; dos médicos porque no caso de a gravidez ter tido acompanhamento médico, o diagnóstico deveria ter sido feito, a terapêutica prescrita e a cura da infecção materna comprovada; do Sistema de Saúde porque se a sífilis não foi diagnosticada nem tratada por falta de acompanhamento médico durante a gravidez, tal significa que o referido Sistema ainda não conseguiu fazer chegar os cuidados à população nos casos em que a população não procurou esses cuidados.

Manifestações clínicas

A sífilis congénita é uma doença com um espectro de manifestações muito amplo e formas de apresentação também variadas (exuberantes ou oligossintomáticas). Da infecção intrauterina pode resultar hidropisia fetal por anemia fetal grave, mortalidade fetal ou prematuridade. A criança pode, contudo, nascer assintomática surgindo as manifestações da doença mais tarde.

São a seguir sistematizadas as manifestações mais significativas da sífilis congénita precoce:

  • Rinite mucóide, mucopurulenta ou mucopiossanguinolenta;
  • Lesões cutaneomucosas ricas em Treponemas e, por isso, altamente contagiosas
    • sifílides maculosas (roséola sifilítica) – máculas disseminadas, arredondadas, róseas
    • pênfigo palmoplantar – bolhas de localização simétrica, de conteúdo seropurulento ulcerando e transformando-se em crostas (Figura 1)
    • condiloma plano – lesões de tipo “vegetações” achatadas perianais.
  • Lesões viscerais
    • hepatomegália – hepatite neonatal, colestase (a causa mais frequente de colestase nos países em desenvolvimento é a sífilis congénita), eritropoiese extramedular, compromisso do SRE.
    • esplenomegalia (Figura 2)
    • linfadenopatia generalizada (sendo a localização epitroclear típica).
  • Manifestações hematológicas
    • anemia hemolítica com prova de Coombs negativa (por vezes a forma de apresentação no lactente)
    • leucocitose (reacção leucemóide ou síndroma de Von Jachs Luzet)
    • trombocitopénia
    • CID nas formas graves.
  • Manifestações respiratórias
    • pneumonia intersticial (pneumonia alba).
  • Manifestações renais
    • síndroma nefrótica.
  • Manifestações ósseas
    • lesões simétricas, dolorosas ao tacto, com impotência funcional, muito frequentes; por vezes a forma de apresentação é a pseudo paralisia de Parrot com postura antiálgica do membro
    • osteocondrite metafisária, a lesão mais frequente, em geral manifestada antes dos 3 meses, por vezes associada a fractura patológica
    • sinal de Wimberger correspondente a rarefacção óssea evidente no bordo interno da extremidade proximal da tíbia (Figura 3)
    • periostite (em geral manifestada após os 3 meses).
  • Manifestações do sistema nervoso central
    • compromisso assintomático na maioria dos casos (alteração bioquímica, citológica e serológica do LCR)
    • leptomeningite aguda, compromisso meningovascular, compromisso dos pares cranianos.

Sucintamente, referem-se alguns sinais de complicações da sífilis congénita não tratada, manifestações residuais ou estigmas, hoje praticamente inexistentes no nosso meio e apenas citadas por razões históricas: reacções tardias (após 2 anos de idade) e de hipersensibilidade, correspondentes à sífilis terciária adquirida – a tríade de Hutchinson (dentes de Hutchinson, ceratite intersticial e surdez por lesão do VIII par craniano).

FIGURA 1. Lesões cutâneas características da sífilis congénita: pênfigo bolhoso / descamação plantar em RN pré-termo. Esta lesão [cutânea] é altamente contagiosa e deve ser manipulada com luvas, pelo menos durante as primeiras 24h de terapêutica com penicilina. (UCIN-HDE)

FIGURA 2. RN com sífilis congénita. São notórias hepatosplenomegália e petéquias na região inguinal direita. (UCIN-HDE)

FIGURA 3. Lesões ósseas de osteocondrite e metafisite típicas da sífilis congénita (destruição esponjosa bilateral) podendo levar a descolamento epifisário. Apesar de exuberantes e extremamente dolorosas, regridem completamente após tratamento com penicilina. (UCIN-HDE)

Exames complementares

Para o diagnóstico da sífilis congénita torna-se fundamental atender aos antecedentes da gravidez: seguimento médico, resultados dos exames não treponémicos e treponémicos e terapêutica instituída e realizada em caso de resultados reactivos/positivos. É muito importante estudar a evolução dos títulos das provas não treponémicas, sendo sabido que, em caso de sífilis no adulto, as provas treponémicas se mantêm positivas para a vida e as provas não treponémicas devem negativar em caso de cura.

As manifestações clínicas atrás mencionadas, as alterações encontradas na radiografia dos ossos longos, no hemograma, no exame citoquímico do LCR, nas provas de função hepática, no exame de urina, completam o quadro que possibilita um diagnóstico de suspeição muito forte.

A suspeição clínica é muito fortalecida pelos resultados dos exames laboratoriais não treponémicos e treponémicos – VDRL titulado comparado com o da mãe e FTAabs ou TPHA.

O diagnóstico de certeza hoje em dia baseia-se, mais na pesquisa do DNA do Treponema pallidum por PCR, do que nos antiquados e abandonados métodos de pesquisa do microrganismo em campo escuro.

Salienta-se ainda que a suspeita de qualquer infecção congénita implica a obrigatoriedade de exame oftalmológico (referido de novo adiante, enquadrado no contexto clínico laboratorial).

A seguir, são sistematizadas as análises a realizar, o significado de cada uma delas, a interpretação dos respectivos resultados e a atitude a ter na grávida com resultado de VDRL reactivo e no RN de mãe com VDRL reactivo. Recorda-se, a propósito, que a presença de Treponema no organismo induz a formação de anticorpos não treponémicos ou reagínicos (inespecíficos), e de anticorpos treponémicos ou específicos.

  • VDRL (Venereal Disease Research Laboratory) – É uma prova não treponémica. O resultado é dado como reactivo ou não reactivo, em diluições ou títulos (Ex: diluído a ¼ ou reactivo a 2 diluições, diluído a 1/8 ou reactivo a 4 diluições). Tendo a análise VDRL elevada sensibilidade é com a mesma que se procede ao rastreio. A especificidade é, no entanto, menor; ou seja, há a certeza de diagnosticar todos os casos verdadeiros, embora possam surgir resultados falsos reactivos.
    Um resultado reactivo para VDRL deve ser sempre confirmado por provas treponémicas – FTA Abs (Fluorescent Treponemal Antibody Absoption test) ou TPHA (Treponema pallidum hemaglutination Assay).

Nota importante: a conversão do resultado do VDRL, de reactivo em não reactivo, constitui prova de cura; por isso, tal análise deve ser repetida até negativar; se a prova positivar novamente, tal corresponderá a reinfecção da grávida, o que implica novo tratamento. A infecção por Treponema pallidum não gera imunidade.

 

  • FTA- Abs ou TPHA – Trata-se de provas treponémicas, confirmando o diagnóstico das provas não treponémicas. Positivam mais precocemente que as não treponémicas; possuindo elevada especificidade, embora baixa sensibilidade, não estão indicadas para rastreio.

Nota importante: Um doente com sífilis tratada mantém provas treponémicas positivas durante toda a vida; por isso, torna-se desnecessário repetir a análise para avaliar se houve cura.

Actuação prática

No período pré-concepcional e na grávida

  • Rastreio → VDRL: pré concepcional; e durante 1º, 2º e 3º trimestres da gravidez.
    Segundo a Norma 037/2011 da DGS, na gravidez de baixo risco a VDRL deve ser realizada apenas no 1º e 3º trimestres. Se existir história de múltiplos parceiros sexuais, deve realizar-se a análise também aquando da admissão na sala de partos.
  • Confirmação → Se a VDRL foi reactiva, o resultado deve ser titulado. A infecção deve ser confirmada através da realização da análise FTA Abs ou TPHA. A descida progressiva dos títulos de VDRL até à negativação são prova de cura. O parceiro sexual deve ser rastreado e tratado se infectado.

No RN de mãe com VDRL reactiva

  • Determinar VDRL com titulação no soro do RN e da mãe.
  • Se VDRL reactiva, realizar: punção lombar (se o número plaquetário for normal) para VDRL e exame citoquímico no LCR; radiografia dos ossos longos dos membros inferiores (detecção de sinais de osteocondrite e periostite, outros); provas de função renal e hepática; hemograma e proténa C reactiva (PCR); exame oftalmológico; ecografia transfontanelar.

Nota importante: não se deve recorrer à análise de FTA abs ou TPHA no LCR para esclarecimento da situação clínica.

Tratamento

Dada a possibilidade de a neurossífilis não poder ser excluída na maior parte dos recém-nascidos, a penicilina benzatínica não deve ser utilizada pelo facto de não garantir níveis treponemicidas no LCR.

Assim, estão indicados os seguintes regimes no contexto de sífilis congénita provada ou altamente provável, designadamente nas seguintes situações:

  • evidência clínica, laboratorial ou radiológica de sífilis congénita;
  • RN de mãe com VDRL reactiva, não tratada;
  • mãe tratada com outro antibiótico que não penicilina;
  • mãe com tratamento no 9º mês de gestação (situação correspondente a feto não tratado);
  • ausência de cura comprovada da infecção materna.

→ Antes dos 28 dias de vida: Penicilina G cristalina aquosa por via endovenosa; 50 000UI/kg/dose durante 10 dias; tomas de 12-12h nos primeiros 7 dias, e de 8-8h do 7º ao 10º dia de tratamento.

→ Depois dos 28 dias de vida: Penicilina G cristalina aquosa por via endovenosa: 200 000-300 000 UI/kg/dia: doses de 50 000 UI/kg/dose de 4-4h ou de 6-6h durante 10 dias.

Nota importante:
Se a terapêutica sofrer interrupção de um dia a contagem de dias deve ser recomeçada.
Se se verificar neurossífilis o tratamento deve ocorrer durante 14 dias. Caso a punção lombar tenha sido traumática ou haja dúvidas sobre a existência de neurossífilis, devem ser completados 14 dias de terapêutica.
Igualmente, havendo neurossífilis, o VDRL no LCR deve ser repetido aos 6 meses de idade. Se for positivo o tratamento deve ser repetido.
Uma criança com sífilis congénita tratada (por ex. aos 2 anos de idade) deve seguir o esquema anteriormente descrito para a criança com mais de 28 dias.
Alguns autores defendem que nestas situações a seguir aos 10 dias de penicilina cristalina deve ser dada uma injecção IM de 50 000 UI de penicilina benzatínica.
As lesões cutâneas ou das mucosas são altamente contagiosas, pelo que o RN deve ser manipulado com luvas até 24h depois do início de tratamento com penicilina.

Estudo evolutivo

A criança com sífilis congénita confirmada deve ser observada em consulta de seguimento mensalmente durante os 3 primeiros meses e, depois, de 3-3 meses até aos 12 meses.

Nos casos de neurossífilis, a punção lombar para exame do LCR deve ser repetida aos 6 meses.

Conclusões

O único modo de evitar casos de sífilis congénita é rastrear a grávida.

O rastreio é sempre realizado com provas não treponémicas – VDRL. Em Portugal, a norma da DGS para gravidezes de baixo risco preconiza que o VDRL seja realizado no 1º e 3º trimestres. Em países ou zonas de elevada incidência de sífilis o rastreio deve ser realizado uma vez por trimestre.

O VDRL deve ser sempre realizado após uma primeira diluição e titulado. A diluição previne que seja obtido um resultado falso negativo devido a fenómeno de pró-zona; a titulação permite seguir a evolução da infecção e a resposta ao tratamento.

O VDRL pode ser negativo se a infecção for muito recente. O resultado destes exames deve ser visto pelo médico ou outro profissional de saúde para isso habilitado, e correctamente interpretado.

A sífilis na grávida tem como único tratamento a penicilina. A penicilina trata a infecção materna e a fetal. Mesmo que a grávida alegue que é alérgica à penicilina deve ser este o antibiótico utilizado após dessensibilização. Outros antibióticos que não a penicilina tratam a grávida mas não tratam o feto.

A administração de penicilina pode desencadear reacção de Jarisch-Herxheimer na grávida – calafrios, febre, taquicardia, hipotensão, cefaleia, lesões cutâneas, leucocitose e taquipneia, sofrimento fetal e ameaça de parto pré-termo. Por isso há quem advogue que a penicilina deve ser administrada em meio hospitalar/Centro de Saúde e que a grávida deve estar monitorizada.

O parceiro sexual deve ser também tratado.

Em Portugal a sífilis congénita é uma infecção de notificação obrigatória.

Toda a situação deve ser transcrita para o boletim da grávida: resultados de análises, comprovativos de tratamento do casal e comprovativo de cura.

2. TOXOPLASMOSE

Definição, etiopatogénese e aspectos epidemiológicos

A toxoplasmose congénita é uma doença provocada por um protozoário, Toxoplasma gondii, parasita intracelular obrigatório. Este protozoário existe sob 3 formas: trofozoítos ou taquizoítos (forma proliferativa); quisto tecidual (bradizoíto); oocisto (produzindo trofozoítos).

A toxoplasmose é uma zoonose largamente difundida em todo o mundo, tendo como hospedeiro definitivo o gato; outros hospedeiros são ocasionais (todos os mamíferos, algumas aves e répteis, etc.).

O agente Toxoplasma transmite-se por ingestão de carne malcozida de animais parasitados contendo quistos teciduais; ingestão ou inalação de oocistos eliminados pelas fezes de gatos; mais raramente, a transmissão faz-se por transfusão de sangue ou transplantação de órgãos.

A prevenção primária é muito eficaz: ingestão de carne bem cozida, manipulação de carne crua com luvas, lavagem cuidadosa das superfícies onde foi cortada carne crua.

A lavagem cuidadosa de vegetais consumidos crus, a jardinagem com luvas e a manipulação de dejectos de gatos com luvas são medidas simples que poderão reduzir significativamente a taxa de seroconversão durante a gravidez.

É possível a transmissão ao feto em caso de primo-infecção da grávida ou de recrudescência de doença crónica da referida grávida em situações de imunodepressão.

Nota importante: raramente, num adulto saudável e imunocompetente se verifica reinfecção ou reactivação de infecção.

O risco de transmissão durante a gravidez, crescente com o tempo de gestação, pode ser contabilizado do seguinte modo: cerca de 10% dos fetos serão afectados se a mãe se infectar no primeiro trimestre, 30% se no 2º trimestre, e 50 a 60% se no final da gravidez.

Quanto à gravidade da infecção fetal, ela é tanto maior quanto mais precoce for a transmissão materno-fetal: em situações extremas poderá surgir aborto e morte fetal.

Na grávida, a toxoplasmose pode ter manifestações semelhantes a uma gripe. Em imunodeprimidos a doença pode manifestar-se com gravidade (menigoencefalite, pneumonite, miocardite, coriorretinite).

A frequência de toxoplasmose varia muito nas diversas comunidades urbanas, o que depende dos hábitos alimentares, do contacto com animais portadores e das condições climáticas (o oocisto sobrevive bem ao calor).

Nota importante:
Nas zonas em que o consumo de carne crua é muito frequente, cerca de 60% dos adultos jovens têm anticorpos anti-toxoplasma; vários estudos realizados em Portugal revelam prevalências de 26% a 31%.

No nosso país tem-se assistido a uma diminuição das taxas de seropositividade na população de mulheres grávidas, facto que pode ser atribuído a múltiplos factores, tais como: 1) o parasita é menos prevalente; 2) a população pratica melhor as normas básicas de higiene, nomeadamente no que respeita a lavagem das mãos e desinfecção de frutas e legumes; 3) existem menos animais de abate contaminados.

A taxa de seropositividade na população em geral induz preocupações diferentes: uma elevada prevalência indica grande frequência do parasita; por isso, apesar de haver baixa prevalência de indivíduos susceptíveis, incluindo mulheres em idade fértil, a possibilidade de seroconversão durante a gravidez é grande.

Uma prevalência baixa indica menor risco de infecção na população em geral mas, como a prevalência de mulheres susceptíveis é maior, o número de seroconversões durante a gravidez pode ser maior também.

Sob o ponto de vista económico, é mais rendível rastrear grávidas numa população de elevada prevalência de seropositivas – as grávidas a rastrear serão poucas e a possibilidade de diagnosticar uma seroconversão é elevada.

Sob o ponto de vista da saúde pública, como é obvio, interessará mais que a taxa de seroconversão na gravidez seja baixa.

A infecção do feto, em princípio, só ocorre se se verificar primo-infecção materna durante a gestação: a parasitémia materna origina infecção placentar (placentite) com consequente disseminação hematogénica para o feto. A passagem do parasita do sangue materno para a placenta, e desta para o feto, pode ser concomitante com a invasão da placenta ou não, podendo mediar algum tempo entre as duas ocorrências.

Salienta-se, no entanto que, em mães com imunossupressão e antecedentes de primo-infecção, pode verificar-se reactivação de infecção latente com ulterior parasitémia e risco de infecção fetal. Daí a importância da conhecer os resultados de estudos serológicos anteriores à gravidez.

Avaliação pré-concepcional

Se o estudo serológico da mulher evidenciar IgG positiva e IgM negativa não há necessidade de repetir a análise. Se se comprovar uma infecção recente poderá ser útil protelar uma eventual gestação.

Avaliação pré-natal

Se a mulher for seronegativa, deve investir-se na prevenção primária, altamente eficaz. Nesse sentido devem ser dadas indicações sobre o modo de transmissão da doença e realçar a importância de serem seguidas as medidas de prevenção primária.

Em Portugal, as normas da DGS preconizam a repetição de serologias em mulheres seronegativas, uma vez por trimestre; a manter-se a actual política de rastreio, idealmente, a serologia deveria ser repetida mensalmente com o objectivo de detecção precoce de eventual seroconversão.

Diagnóstico de infecção fetal

A infecção fetal é diagnosticada na sequência de seroconversão materna comprovada: IgM positiva com IgG ainda negativa ou, já positiva mas com avidez baixa.

Se tal acontecer, deve ser programada amniocentese para identificação do parasita no líquido amniótico por PCR (reacção em cadeia da polimerase).

Nota importante:
A PCR (reacção em cadeia da polimerase), sendo uma análise simples, sensível, específica, segura, de resposta rápida e pouco dispendiosa, constitui, actualmente, o principal meio de diagnóstico de infecção fetal.

Devem também ser programadas ecografias morfológicas seriadas para determinar o impacte da infecção no feto, nomeadamente hidrocefalia, calcificações intracranianas, hepatomegália, ascite e placentite.

O diagnóstico de infecção fetal e a comprovação ecográfica das alterações fetais daí decorrentes permitirão ao casal decidir sobre a realização de eventual abortamento medicamente assistido, de acordo com a legislação.

Manifestações clínicas e diagnóstico de infecção no RN

Na grande maioria dos casos de toxoplasmose congénita (cerca de 85%) a criança está assintomática ao nascer, podendo surgir, nos meses ou anos subsequentes, sinais isolados ou associados de modo diverso, os quais que se poderão relacionar com infecção adquirida intrauterina.

Nos casos de infecção no primeiro trimestre da gravidez, são notórios sinais neurológicos e oftalmológicos de gravidade variável, tais como, restrição de crescimento intrauterino (RCIU), microcefalia, hidrocefalia obstrutiva, calcificações intracranianas difusas, convulsões, alterações do LCR e retinocoroidite (Figura 4).

FIGURA 4. Microcefalia em criança com toxoplasmose congénita adquirida às 16 semanas de gestação. O diagnóstico e o tratamento da infecção congénita in utero podem impedir lesões graves do SNC. (UCIN-HDE)

Nos casos de infecção adquirida no segundo e terceiro trimestres poderá verificar-se, para além de retinocoroidite e de alterações do LCR, baixo peso de nascimento, RCIU, hepatosplenomegália, linfadenopatia, icterícia, hepatite, anemia hemolítica, trombocitopénia, hipoprotrombinémia, pneumonite intersticial, pancardite.

As lesões oculares primárias da retina e coroideia (presentes em 60 a 80% dos casos) podem acompanhar-se ou complicar-se de lesões secundárias tais como: iridociclite, catarata, glaucoma, estrabismo, nistagmo e descolamento da retina.

Os antecedentes epidemiológicos e obstétricos, assim como os sinais clínicos orientam para o diagnóstico, o qual deverá ser confirmado pela realização de exames complementares:

  • Exames gerais (hemograma com contagem de plaquetas e reticulócitos, análise do LCR, provas de função e citólise hepáticas, bilirrubinémia total e conjugada, etc.);
  • Exames específicos (a programar em função da forma de apresentação):
    • ecografia transfontanelar para detecção de calcificações, dilatação venticular, outras;
    • TAC para detecção de lesões parenquimatosas, etc.;
    • radiografia do tórax para detecção de sinais de pneumonite intersticial;
    • radiografia dos ossos longos para detecção de estrias longitudinais nas epífises e radioluscência óssea;
    • exame oftalmológico para detecção das lesões já descritas;
    • estudo serológico pós-natal: IgG positiva, por vezes com título superior ao da mãe, e IgM positiva confirmam o diagnóstico.
    • identificação de ADN do parasita no sangue e LCR do RN, uma análise específica, de resposta rápida;
    • inoculação no cobaio: técnica ainda utilizada mas pouco relevante na prática clínica.

Sobre algumas limitações do estudo serológico, importa reter algumas noções importantes:

Nota importante:
Nos casos assintomáticos e suspeitos, torna-se necessário proceder ao estudo serológico seriado – a repetição do estudo serológico com periodicidade mensal para detectar subida dos níveis de IgG pode confirmar o diagnóstico.
Contudo, mesmo em doentes infectados, há que atender à seguinte eventualidade: a IgM determinada ao nascer, poderá já ser negativa e as IgG poderem ter origem materna.
Assim dada a grande dificuldade em estabelecer um diagnóstico preciso com base nas serologias, poderão ser úteis as técnicas de imunoblot (Western-blot) dando informação sobre as populações de IgG – apenas uma população, supostamente de origem materna ou duas populações, uma materna outra do RN. Será assim possível ter um diagnóstico de certeza.

Tratamento

Infecção da grávida

Os autores franceses defendem que infecção fetal tratada tem muito melhor prognóstico do que a não tratada. Por isso, salienta-se a importância do rastreio da grávida, do diagnóstico da infecção na mulher e, depois, no feto.

Se se verificar seroconversão durante a gravidez, a mulher deve ser encaminhada para um centro de diagnóstico pré-natal e seguida em consulta de alto risco.

O tratamento com espiramicina trata a infecção materna e impede a disseminação do parasita para o feto, mas não trata a infecção fetal se ela já estiver estabelecida.

Assim, o tratamento na grávida é feito com espiramicina durante toda a gravidez caso não se comprove infecção fetal (3 g/dia de 12/12h). A terapêutica deve ser iniciada logo que seja feito o diagnóstico de seroconversão.

Infecção fetal

A infecção fetal deve ser tratada com pirimetamina e sulfadiazina (25 mg/dia e 4 g/dia respectivamente). Este tratamento deve ser iniciado logo que haja diagnóstico de infecção fetal e mantido até ao nascimento. A grávida deve receber também suplemento de ácido folínico.

Infecção no RN

Atendendo a que a espiramicina é um bacteriostático, no RN sintomático o tratamento deve ser iniciado com pirimetamina (1mg/kg por via oral de 2/2 dias) e sulfadiazina (100 mg/kg/dia por via oral de 12/12h) que actuam de modo sinérgico contra Toxoplasma.

O tratamento com pirimetamina deve ser interrompido se o valor plaquetário for inferior a 90 000/mm3 e a sulfadiazina interrompida se o valor dos neutrófilos for inferior a 1000/mm3.

Sendo, pois, estes medicamentos depressores medulares, a terapêutica deve ser complementada com a administração de ácido folínico (10 mg por via oral de 3/3 dias) sendo indispensável realizar um hemograma duas vezes por semana, pelo menos no início.

A comprovação de doença ocular (retinocoroidite) ou do SNC obrigará à administração de corticóides – prednisona – 1,5 mg/kg/dia por via oral de 12/12h.

Estudo evolutivo

Uma criança com suspeita de toxoplasmose congénita deve ser vigiada regularmente com estudo serológico seriado de 3-3 meses no primeiro ano de tratamento – que é o primeiro ano de vida – e com exame oftalmológico, igualmente seriado e regular, até ao início de idade adulta.

3. INFECÇÃO PELO VÍRUS CITOMEGÁLICO HUMANO (CMV)

Etiopatogénese, aspectos epidemiológicos e importância do problema

O vírus citomegálico humano (CMV), originando uma infecção conhecida por doença de inclusão citomegálica, é um vírus que pertence à família dos vírus Herpes.

A infecção por CMV é endémica, com elevada prevalência nos países em desenvolvimento e em populações com condições socioeconómicas precárias, variando entre os 45 e os 100%. Em Portugal, diversos estudos mostram taxas que se situam entre os 80% e os 90%. Estudos realizados na maternidade do Hospital de Dona Estefânia revelaram que a taxa de puérperas com IgG positiva para CMV era de 85% em 1988, 60% em 2003 e 62% em 2010.

As infecções transmitem-se de modo directo ou indirecto de pessoa a pessoa, podendo o vírus ser veiculado através da urina, secreções da orofaringe, secreções vaginais, sémen, saliva, suor, lágrimas, leite materno e sangue.

A infecção pode ser congénita, adquirida no período perinatal ou, após o nascimento, ainda no período neonatal ou já durante a fase de lactente. As principais fontes de transmissão do vírus no período perinatal são a infecção do tracto genital e o leite materno.

Actualmente, nos países desenvolvidos, a infecção neonatal adquirida por transfusão sanguínea é negligenciável. A dificuldade e raridade em encontrar dadores seronegativos foi contornada com a administração de sangue irradiado nos RN de extremo baixo peso e sangue desleucocitado a todos os RN.

A prevalência da infecção congénita nos EUA varia entre 0,5 e 2% de todos os nados-vivos, afectando cerca de 30.000 crianças por ano. Destas, 10% a 15% são sintomáticas ao nascer. Das restantes, aparentemente saudáveis, 15 a 20% terão manifestações da doença mais tarde.

São descritos dois tipos de infecção na grávida/adulto: primária (primo-infecção) ou recorrente (secundária). Neste último caso poderá tratar-se de reactivação da infecção primária com estirpe latente, ou reinfecção com nova estirpe.

A infecção por CMV confere imunidade cruzada com novas linhagens de CMV, mas esta protecção não é completa, sendo que tem sido demonstrada reinfecção com outras linhagens através de análise do ADN vírico.

Tanto a infecção materna primária (ocorrendo em 0,6 a 4% de todas as gravidezes) como a recorrente, podem resultar em infecção congénita; contudo, no feto a taxa de infecção e a gravidade das lesões após a infecção materna primária são muito maiores (cerca de 40 a 50%) do que após infecção recorrente (cerca de 1%).

Ao contrário doutras infecções como rubéola e toxoplasmose, o achado de IgG positiva para CMV não protege o feto, havendo probabilidade de infecção em 50% dos casos; todavia, verifica-se diminuição da gravidade da infecção que, na maior parte dos casos, é subclínica.

A transmissão materno-fetal do CMV pode ocorrer com igual frequência em todas as fases da gestação, salientando-se que na maioria destes casos não se verifica qualquer sintomatologia ou a sintomatolgia é ligeira, semelhante a síndroma gripal.

O RN pode ainda infectar-se através do leite materno de uma mãe IgG positiva. Na realidade durante a lactogénese existe replicação vírica na glândula mamária com excreção de vírus.

Nota importante:
Para um RN de termo que recebeu IgG maternas no final da gestação, esta ingestão de vírus através do leite materno não terá importância. O problema já é mais delicado se se tratar de um grande pré-termo que recebeu por via placentar escassez ou teor ínfimo de IgG maternas, uma vez que a maior transferência de IgG ocorre a partir das 32 semanas.
Os RN podem adquirir a infecção nos primeiros dias ou semanas de vida e correm o risco de desenvolver doença grave, nomeadamente pneumonia ou hepatite.

A excreção do vírus persiste durante anos, quer nas infecções congénitas e perinatais, quer nas pós-natais precoces e até nas infecções primárias de crianças mais velhas e adultos.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas mais típicas da infecção congénita por CMV são:

  • nas situações de infecção materna precoce: RCIU, microcefalia, calcificações intracranianas periventriculares (Figura 6);
  • nas situações de infecção materna tardia: ausência de sintomatologia ou hepatosplenomegália, pneumonia, icterícia colestática, anemia, trombocitopénia grave, sinais sugestivos de sépsis, etc..

FIGURA 5. Hepatosplenomegália com distensão abdominal, icterícia mista (com aumento da bilirrubina directa e indirecta), anemia e hiperesplenismo em RN com infecção congénita por CMV adquirida no final da gestação.

Rastreio universal da grávida

Esta questão é polémica e ainda não resolvida: alguns autores defendem com muita convicção o rastreio, enquanto outros tomam uma posição diametralmente oposta.

Os defensores da sua realização entendem que não rastrear é não reconhecer o problema, salientando que o rastreio permite um conhecimento precoce do risco de infecção, com implicações práticas nas estratégias para a prevenção primária e para o diagnóstico de infecção fetal em fase mais precoce.

Pelo contrário, os defensores do “não” argumentam, nomeadamente:

  1. Que a prevenção primária e a educação para a saúde são uma inerência dos cuidados primários de higiene, salientando, por exemplo, que a lavagem das mãos previne muitas outras doenças;
  2. Que o feto sintomático será sempre diagnosticado se a gravidez for correctamente vigiada e as ecografias correctamente executadas e interpretadas;
  3. Que o diagnóstico de certeza de infecção fetal é difícil e baseado na pesquisa de CMV no líquido amniótico obtido por amniocentese;
  4. Que o facto de a pesquisa ser negativa em determinado período, não implica que a mesma se mantenha negativa durante toda a gravidez;
  5. Que não existe tratamento específico para a infecção uma vez diagnosticada.

Em Portugal a Direcção Geral da Saúde preconiza que o rastreio seja realizado em consulta pré-concepcional.

Se a grávida for seronegativa antes da gravidez devem ser dadas indicações sobre prevenção primária que, segundo alguns autores, pode evitar até 3/4 de todas as seroconversões.

Essas medidas dizem respeito à lavagem cuidadosa das mãos após muda de fralda ou limpeza do períneo de um lactente, limpeza de lágrimas e secreções nasais, evitar dar beijos na boca de lactentes e não partilhar comida, bebidas, talheres ou pratos.

Às mulheres de maior risco – funcionárias de creches ou mães seronegativas com filho pequeno em infantário e mulheres com síndroma gripal na gravidez pode ser oferecido rastreio serológico trimestral durante a gravidez. Claro que, se forem observadas alterações fetais ecográficas sugestivas de infecção por CMV, devem ser pedidas análises e programados outros procedimentos.

Em conclusão, na ausência de vacina contra CMV, o rastreio universal das grávidas não tem indicação. Deve, sim, ser realizado rastreio pré-concepcional e feito investimento na prevenção primária.

Nota importante:
De acordo com investigação recente sobre rastreio de CMV humano (2021) em Portugal, liderada por Paulo Paixão e Cláudia Fernandes , Universidade NOVA de Lisboa, demonstrou-se a efectividade da utilização de amostras de saliva para identificação de infecção congénita estudando o DNA vírico por PCR em tempo real.

Diagnóstico pré-natal

O diagnóstico pré-natal baseia-se nos seguintes critérios:

  • detecção de anomalias na ecografia fetal;
  • detecção de seroconversão para CMV na grávida (IgG positiva “de novo” com IgM positiva) e achado de avidez baixa das IgG.

Os meios de diagnóstico de infecção fetal são os seguintes:

  1. Ecografia fetal detalhada;
  2. Pesquisa de vírus por PCR (reacção em cadeia da polimerase) no líquido amniótico obtido por amniocentese;
  3. Estudo da infecção fetal e da repercussão da mesma sobre o feto, através do sangue obtido por cordocentese (PCR, serologia, alterações hematológicas e da função hepática).

Diagnóstico neonatal

Se a infecção neonatal for sintomática – por ex. hepatite, sépsis vírica, pneumonite – ou se se verificarem já sequelas da infecção intra uterina – RCIU, microcefalia, calcificações periventriculares (Figura 6) – é fácil admitir como hipótese diagnóstica uma das infecções do grupo TORCHS. Se a mãe tiver feito as análises adequadas, restam escassas hipóteses acerca do agente etiológico.

Uma vez que a infecção congénita por CMV poderá levar a defeitos de migração neuronal, em todos os RN com lisencefalia, polimicrogiria, etc. deve proceder-se ao estudo para detecção de infecção por CMV.

Se a infecção for assintomática, habitualmente não é diagnosticada.

FIGURA 6. Aspecto ecográfico de calcificações periventriculares no contexto de infecção por CMV. (UCIN-HDE)

Actualmente existem técnicas que permitem diagnóstico mais rápido e mais preciso de infecção por CMV.

  1. Identificação do ADN vírico por técnica de PCR na urina ou saliva.
  2. Microcultura em Shell Vial a partir de urina do RN com identificação do antigénio do CMV.
  3. O estudo da serologia da mãe e do RN (não de sangue do cordão), comparado e evolutivo, assim como a avaliação da avidez das IgG maternas, podem contribuir para o diagnóstico. De salientar que no RN a IgM pode evidenciar valor falso negativo, ou falso positivo por reacção cruzada com outros vírus herpes.
  4. O estudo no sangue do RN utilizado para o rastreio de doenças metabólicas torna possível fazer o diagnóstico de infecção congénita muito para além do período neonatal.

No sentido de avaliar a repercussão da infecção por CMV nos órgãos e, designadamente, no SNC e órgãos dos sentidos, devem ser realizados os exames complementares mencionados a propósito da toxoplasmose (ver atrás).

Tratamento

Fetal

Tem havido tentativas ditas de sucesso em iniciar a terapêutica ainda in utero, quer com imunoglobulina específica, quer com antivíricos. Apesar de os primeiros resultados parecerem promissores, a terapêutica antivírica só deverá ter lugar em estudos controlados. Por outro lado, está actualmente estabelecido que a administração de imunoglobulina específica à grávida não tem indicação.

Neonatal

Após o diagnóstico de uma infecção congénita por CMV deve tentar-se estabelecer a gravidade da doença de modo a decidir se deve ou não ser iniciada terapêutica.

A administração de gamaglobulina específica hiperimune só tem interesse nos RN que adquiriram a infecção no final da gestação e que ainda evidenciam IgG negativa. Os infectados no primeiro e segundo trimestres não terão benefício com a sua administração, uma vez que já receberam IgG maternas exercendo efeito no combate à infecção.

Estudos recentes têm vindo a modificar as indicações para o uso de antivíricos nas infecções congénitas por CMV.

Em contraponto à época em que o uso de ganciclovir era muito limitado atendendo aos respectivos efeitos acessórios, provou-se posteriormente que, com os succedâneos actuais, mais inócuos e eficazes foi possível mudar a estratégia.

Nota sobre certos efeitos deletérios do ganciclovir:

    • toxicidade para as gónadas e para a medula óssea;
    • efeitos cancerígeno e eventualmente teratogénico;
    • limitações acrescidas nos doentes imunodeprimidos.

Sabia-se que, durante a terapêutica com ganciclovir, a virúria diminuia para reaparecer após interrupção do fármaco. Por isso, muitos autores intrerrogavam-se se não seria correcto manter terapêutica durante mais tempo do que as 6 semanas estipuladas de modo a controlar a virúria durante os primeiros mese de vida. Havia, no entanto, uma limitação, que era a necessidade de manter permeável um acesso venoso por período prolongado.

Depois de se comprovar que a terapêutica com valganciclovir em administração oral, na dose de 16 mg/kg/dose duas vezes por dia atingia níveis sistémicos comparáveis aos do ganciclovir endovenoso, com menores efeitos acessórios, concluiu-se que se tinha chegado à solução para o tratamento das infecções congénitas por CMV.

Concluindo, na actualidade está estipulado que:

  • Em crianças assintomáticas não se deve iniciar terapêutica. Em tais casos, uma vez identificadas, o importante é serem vigiadas sob o ponto de vista da acuidade auditiva de modo a programar intervenção precoce caso sobrevenha surdez;
  • Em crianças sintomáticas deve iniciar-se terapêutica. Em tais circunstâncias, os quadros clínicos devem ser discutidos caso a caso, ponderando os eventuais efeitos secundários (designadamente, a neutropénia, os efeitos carcinogénicos e a toxicidade das gónadas) e os benefícios potenciais (nomeadamente, sobre a audição e o neurodesenvolvimento);
  • A terapêutica deve ser feita com valganciclovir oral, 16 mg/kg/dose de 12-12h durante 6 meses.

Estudo evolutivo

As crianças sintomáticas devem ser acompanhadas nas seguintes áreas:

  • Medicina física e reabilitação para rastreio e tratamento de eventuais alterações motoras;
  • Otorrinolaringologia para estudo da audição – a surdez é evolutiva e poderá não existir ainda na data do rastreio universal neonatal;
  • Oftalmologia para rastreio e correcção de estrabismo convergente ou défice visual;
  • Ensino especial nas crianças com défices cognitivos ou de aprendizagem.

Relativamente às crianças infectadas assintomáticas, Remington chama a atenção para a eventual necessidade do mesmo número de apoios numa fase tardia, uma vez que é altamente provável que estas crianças venham a ter surdez neurossensorial e atraso do neurodesenvolvimento, ou da linguagem.

Kimberlin recomenda exames audiológicos cada 6 meses durante 3 anos e, depois, anualmente durante mais 1 a 2 anos. Qualquer desvio da normalidade deve ser rapidamente sujeito a intervenção apropriada.

4. RUBÉOLA e HEPATITES

Importância do problema

Em comparação com as infecções descritas nas alíneas anteriores (1., 2., e 3.) os problemas respeitantes às hepatites e à rubéola são bem diferentes.

A rubéola congénita é uma raridade em Portugal (2 casos nos últimos 15 anos) e as hepatites deixaram de ter importância epidemiológica por razões diferentes: ou o RN não corre risco importante (hepatite A, prevenção conhecida), ou as mulheres em idade fértil estão protegidas/vacinadas (Hepatite B) ou pouco há ainda a fazer, a não ser vigiar (hepatite C).

Quanto à hepatite C, o quadro está em vias de melhoria nítida atendendo ao surgimento de novas terapêuticas.

Em todas as situações enumeradas nesta alínea 4., a via do parto deve seguir a da indicação obstétrica e em todas é permitido o aleitamento materno.

Rubéola

No que respeita à rubéola pode afirmar-se que o problema não é preocupante uma vez que todas as mulheres em idade fértil estão vacinadas. A vacina ficou disponível para adolescentes do sexo feminino desde 1984 e passou a universal em 1987.

Num estudo realizado na maternidade do Hospital de Dona Estefânia, em 3.100 mulheres a taxa de imunidade rondava os 95%. Com esta taxa de imunidade tão elevada o vírus não circula e não provoca doença.

A situação grave pode ocorrer quando o vírus atinge um grupo populacional não imunizado. A probabilidade de provocar doença com graves sequelas é então muito grande porque se trata verdadeiramente de um vírus “selvagem”.

Tais vírus podem ser introduzidos no País por povos vindos de outras regiões onde não são seguidos os mesmos programas vacinais. Daí a necessidade de vigilância contínua.

Hepatite A

A infecção pelo vírus da hepatite A somente tem importância clínica em Perinatologia se a infecção ocorrer no periparto ou imediatamente após o parto. Na realidade, a transmissão faz-se por via fecal-oral e a maior contagiosidade ocorre nas duas semanas que precedem o início da icterícia. Por isso, muitas vezes, o maior perigo já passou quando é feito o diagnóstico de hepatite A na puérpera. Não é conhecido o estado de portador.

Alguns autores preconizam a administração de imunoglobulina inespecífica ao RN – 0,02 mL/kg por via IM – se os sintomas maternos tiverem tido início duas semanas antes ou uma semana depois do parto; mas a eficácia desta medida não está comprovada.

É fundamental que sejam cumpridas as regras básicas de higiene, nomeadamente a preocupação por parte da mãe de uma lavagem cuidadosa das mãos.

Hepatite B

Espera-se e é desejável que cada vez mais a infecção por este vírus tenha menor importância. Com efeito, muitas mulheres em idade fértil estão já vacinadas. Desde 1995 que a vacina foi incluída no PNV para todos os adolescentes e, desde 2000, todas as crianças são vacinados ao nascer.

O problema remanescente diz respeito às mães com positividade do antigénio AgHBs, sobretudo se associada a positividade do AgHBe. Em ambas as situações, é preconizada a administração de imunoglobulina específica ao RN logo após o nascimento na dose de 1 mL por via IM.

Hepatite C

A infecção por este tipo de vírus é muito mais prevalente na população em geral do que se admitia. No que respeita aos cuidados perinatais não há indicações para qualquer medida especial ou adicional. A criança deve ser dirigida para consulta de hepatologia para ser vigiada até por volta dos 18 meses de idade.

Deve, contudo, alertar-se para dois factos:

  1. As novas terapêuticas poderão gerar uma nova dinâmica no que respeita à necessidade de um diagnóstico mais precoce uma vez que se admite que as crianças infectadas também possam vir a beneficiar delas;
  2. As novas terapêuticas poderão ser utilizadas na prevenção da transmissão vertical através da respectiva administração às grávidas positivas.

5. INFECÇÃO POR VÍRUS ZICA

Epidemiologia, etiopatogénese e importância do problema

O vírus Zica (ZIKV) foi isolado de macacos pela primeira vez em 1947 na floresta Zica no Uganda. Tal agente microbiano foi considerado um patogénio humano após terem surgido os primeiros surtos epidémicos duma doença infecciosa emergente, em 2007, nas ilhas Yap, Micronésia, no Pacífico Sul.

Ulteriormente (Maio de 2015), foi relatada a sua transmissão nas Américas do Sul e Central, Caraíbas, México e, a partir de Novembro do mesmo ano, no Sueste Asiático, Brasil (sobretudo no Nordeste) e, de novo em África, Cabo Verde. Tratando-se duma doença infecciosa emergente de enorme magnitude, disseminando-se por mais de 30 países, (e estimando-se que afectou cerca de dois milhões de pessoas no Brasil), em 2016 a OMS declarou a infecção por vírus Zica uma emergência em saúde pública a nível mundial.

O ZIKV é um arbovírus ARN da família Flaviviridae, (tal como os vírus da dengue, da febre amarela, da encefalite japonesa, da febre do Nilo Ocidental e da doença chikungunya). O vírus é transmitido por artrópodos hematófagos (mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus) os quais se reproduzem em áreas com água parada e picam o ser humano, sobretudo durante o dia.

Os mosquitos podem adquirir o vírus quando picam pessoas infectadas. Após a picada do mosquito com inoculação vírica, o ZICV está presente no sangue (virémia). Viajantes infectados, regressando das zonas onde existe a doença para a zona de residência onde não existe a doença, poderão, pois, ser portadores do vírus no sangue.

Se no local de residência existirem mosquitos vectores, a transmissão de ZICV em tal contexto também é possível.

Embora o ZICV seja principalmente transmitido por mosquitos, outros modos de transmissão são possíveis: sexual, por transfusão sanguínea, por transplante de órgãos ou tecidos, e intrauterina, da mãe (infectada) para o feto, resultando em infecção congénita.

O ZICV está presente no sémen (ver adiante) e secreções vaginais após período de virémia; pode, por isso, ser transmitido por homens e mulheres para os parceiros por meio de relações sexuais, incluindo sexo vaginal e anal e, provavelmente, sexo oral.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos a infecção é assintomática ou cursa com sinais e sintomas ligeiros. Importa, contudo, salientar a sintomatologia mais frequentemente associada, em geral com a duração de 4-7 dias: febre, exantema maculopapular, prurido, artralgia, mialgia, conjuntivite não purulenta, e edema das extremidades. Raramente há necessidade de hospitalização e a taxa de mortalidade é muito baixa.

Muito raramente, poderá ocorrer como complicação por mecanismo autoimune, polineuropatia inflamatória – síndroma de Guillain-Barré – rapidamente progressiva, mas autolimitada.

De referir que a sintomatologia descrita é também comum nos casos de Dengue ou de Doença por vírus Chikungunya.

Se a infecção por ZICV surgir durante a gravidez, pelo efeito teratogénico do mesmo, poderá verificar-se uma embriofetopatia, com um espectro variável de manifestações que integram uma síndroma congénita por ZICV, cuja gravidade é tanto maior quanto mais precoce for a infecção da grávida.

Esta forma de infecção materno-fetal pode ter expressão variável no feto/recém-nascido. Para além das manifestações já descritas anteriormente (designadamente febrícula, exantema maculopapular, conjuntivite não purulenta), apontam-se hepatosplenomegália, defeitos congénitos vários incluindo como mais marcantes os que resultam de alterações do desenvolvimento do sistema nervosos central: microcefalia (aspecto clínico mais típico, tendo constituído um alerta aquando da epidemia no Brasil), atrofia do córtex cerebral, retinopatia, calcificações subcorticais, e sinais neurológicos diversos como contracturas.

Exames complementares

Perante a suspeita clínica, impõe-se a realização de exames laboratoriais para confirmação do diagnóstico, os quais incluem fundamentalmente:

  • provas serológicas (ensaio imunoenzimático ligado à enzima [ELISA] para IgM, e a prova de neutralização por redução de placas [PRNT] para anticorpos contra ZICV);
  • detecção de ARN vírico no soro por PCR-TR (PCR por transcriptase reversa); tal detecção poderá ser feita também na urina, saliva, líquido amniótico, e nos tecidos fetais.

Relativamente à prova ELISA para determinação dos níveis de anticorpos anti-ZICV, importa referir que os resultados não são específicos para ZICV, pois existe reactividade cruzada com outros flavivírus.

Segundo o CDC, define-se “caso confirmado de infecção por ZICV” através da identificação de ARN de ZIKV no plasma/soro por PCR-TR, o que somente é possível no período de tempo muito curto na sequência do período, ou em pleno período de sintomas.

O estudo analítico por PCR-TR na urina e saliva tem a vantagem de ser um método diagnóstico não invasivo, permitindo obter positividade de ARN de cerca de 93% entre 5 a 14 dias após os sintomas (portanto, probabilidade de período mais longo de positividade em comparação com o método descrito de análise no plasma ou soro).

A virémia e a virúria durante a gravidez e o período neonatal podem ter duração superior a 14 dias.

De referir que, no estado actual dos conhecimentos, se desconhece o período de tempo de permanência do vírus no organismo em caso de infecção e se da infecção resulta imunidade.

No sémen, o vírus pode manter-se por um período de 6 meses após infecção.

Prevenção e tratamento

Como medidas preventivas gerais citam-se as seguintes:

  • evitar picadas de mosquitos, limitando a exposição aos mesmos;
  • restringir as viagens a áreas endémicas, incluindo, claro, das grávidas;
  • usar vestuário protector e repelentes de insectos;
  • providenciar ambiente interior com ar condicionado;
  • evitar sexo desprotegido com parceiro, eventualmente assintomático, mas contagioso, e/ou com risco de ter infecção por ZICV;
  • criar a rotina de pesquisa sistemática de ZIKV no âmbito das normas de segurança nos bancos de sangue.

Como medidas preventivas específicas, cumpre referir que a vacina anti-ZIKV está em investigação, na sequência de estudos realizados no âmbito das vacinas para outros flavivírus.

No estado actual dos conhecimentos, está em estudo uma estratégia de imunoterapia passiva através da administração de anticorpos anti-ZIKV.

Quanto ao tratamento, perante a inexistência de fármacos anti-ZICV, são adoptadas medidas gerais de suporte.

6. INFECÇÃO POR CORONAVÍRUS 2/ COVID-19 – [SARS-CoV-2]

Procedendo-se à actualização desta obra em plena pandemia por COVID-19 e verificando-se casos de doença pelo referido vírus em grávidas e recém-nascidos, importa salientar alguns tópicos com base na literatura científica consultada sobre o que se apurou sobre a morbilidade em RN e a eventualidade de transmissão do agente mãe-filho (feto/RN):

  • Mecanismo de infecção neonatal pouco claro. Maior probabilidade de transmissão horizontal mãe-filho, admitindo-se como pouco provável (baixo risco a transmissão vertical, embora possível.
  • Na maioria dos casos o RN está assintomático. Verificando-se manifestações clínicas, as mais frequentes são dificuldade respiratória [que poderá por vezes obrigar a ventilação invasiva], vómitos, diarreia, febre, tosse e, raramente, choque.
  • Resultados negativos de testes víricos por PCR realizados para SARS-CoV-2 ao nível da placenta, cordão umbilical, líquido amniótico, secreções vaginais e amostras de leite materno. Eventualmente, positividade detectada em secreções nasofaríngeas.
  • Quanto a resultados de exames laboratoriais, estão descritos casos evidenciando leucocitose com linfopenia e trombocitopenia, além de elevação de creatina-fosfo-quinase MB/CPK MB.
  • De acordo com a maioria dos estudos não é recomendada a separação mãe-filho.
  • Admite-se que os RN poderão estar relativamente protegidos da infecção materna por transmissão passiva transplacentar de IgG com efeito semelhante ao que se obtém com transfusão de plasma de convalescente.
  • Praticáveis os cuidados gerais habituais, designadamente contacto pele com pele, aleitamento materno [recomendado pela AAP] e permissível tempo retardado de laqueação do cordão.
  • A eventual sintomatologia de doença neonatal é ligeira.
  • À mãe devem ser aplicadas as medidas preventivas habituais, como uso de máscara e lavagem correcta das mãos.

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Etiopatogénese e aspectos epidemiológicos

A infecção bacteriana perinatal é, por definição, uma infecção de origem materna, geralmente adquirida por via ascendente. Os microrganismos causadores são, por isso, os colonizadores habituais do tracto genital feminino: as enterobacteriáceas – E. coli, Proteus, Klebsiella – e Streptococcus do grupo B (SGB). Este último é, de longe, o agente mais frequente da sépsis neonatal de origem materna nos países desenvolvidos.

Em Portugal, a taxa de mulheres em idade fértil portadoras de SGB varia, de acordo com as regiões, entre 15% a 30%. Num estudo realizado em 10 unidades neonatais portuguesas, o agente SGB contribuiu em 52% para os isolamentos em hemocultura nos casos de infecções de origem materna, seguido de E. coli (17%).

Num outro estudo, também nacional, a incidência de infecção comprovada por SGB nos primeiros 7 dias de vida foi de 0,44/1000 nados vivos. De referir que a letalidade pode ser superior a 8%, e as sequelas importantes caso haja meningite.

O diagnóstico precoce e correcto de infecção bacteriana no período neonatal continua a ser um dos grandes desafios da neonatologia. Os sinais clínicos são inespecíficos e insidiosos, e um atraso no início da terapêutica implica um risco elevado de morte evitável.

Risco infeccioso e sua interpretação

Gerdes define muito bem qual o papel do neonatologista no que respeita à infecção e risco infeccioso perinatais:

  • desenvolver uma avaliação sistematizada do diagnóstico de sépsis, baseada na importância relativa dos sinais clínicos e dos factores de risco;
  • não proceder a diagnósticos negativos falsos, o que implica tratar mais RN dos que os realmente infectados;
  • evitar tratamentos desnecessários no RN com risco infeccioso, uma vez provado que não existe infecção.

A história clínica materna é de importância primordial para a identificação de situações de risco infeccioso, o qual deve ser valorizado de acordo com as circunstâncias, sempre com o objectivo de evitar o diagnóstico tardio de sépsis.

O risco infeccioso constitui, pois, um sinal de alerta e não uma doença; por conseguinte, o risco infeccioso não se trata, embora a sua ocorrência implique uma atitude de vigilância e pesquisa sistemáticas de exclusão de infecção. Implica também, frequentemente, a administração de antibióticos até prova de que não existe infecção.

Ou seja, a presença de determinados factores de risco legitima o início de terapêutica antimicrobiana considerando que, até prova em contrário, o RN está infectado.

Na prática, a dificuldade reside em determinar que condições maternas constituem realmente um risco infeccioso para o feto, que exames realizar, em que situações deve ser iniciada antibioticoterapia, e durante quanto tempo.

Gerdes calculou a frequência de sépsis, septicémia ou pneumonia de acordo com determinados parâmetros maternos do seguinte modo:

  • ruptura prematura de membranas (RPM) >18-24h de 1% a 2%;
  • mãe portadora de Streptococcus do grupo B (SGB) entre 0,5% e 2%;
  • as duas condições associadas ou a existência de uma delas juntamente com parto pré-termo espontâneo, elevam a frequência para valores entre 4% e 11%;
  • o estado de portador de SGB juntamente com a existência de febre materna têm uma frequência semelhante à RPM e corioamnionite ou RPM;
  • sofrimento fetal, depressão neonatal/índice de Apgar < 6 aos 5 minutos, entre 3% e 10%.

Ainda, segundo o mesmo autor, tomando como base o estado de portadora de SGB, a associação a febre materna multiplica o risco de infecção neonatal 4 vezes, a associação a RPM ou prematuridade, 7 vezes.

Por outro lado, a associação de três factores – estado de portadora, prematuridade e RPM – eleva o risco entre 8 a 11 vezes.

O problema que se levanta em relação à corioamnionite clínica, definida por vários autores pela existência de febre materna, taquicárdia materna ou fetal, dor ou hiperestesia uterina, líquido amniótico (LA) fétido e leucocitose materna, é interpretar estes sinais e sintomas. Cada um deles, observado num contexto de trabalho de parto, pode ser devido a muitos outros factores que nada têm a ver com infecção.

Nota Importante:
Sobre o diagnóstico de amnionite baseado na clínica, importa concretizar a interpretação de certos sinais e sintomas. Por exemplo, temperatura materna superior a 37ºC pode surgir no decurso de uma analgesia epidural ou desidratação; a taquicárdia materna pode ser devida a hipotensão, administração de fármacos ou simplesmente ansiedade, enquanto a taquicárdia fetal pode ser um sinal de sofrimento fetal por outra causa que não a infecção; do mesmo modo, a leucocitose pode surgir no decurso do parto sem que isso indique infecção.

Para além das condições atrás mencionadas existem algumas causas extrínsecas que aumentam o risco de infecção intra-amniótica. São elas a monitorização fetal interna, a existência de mais de 4 toques vaginais ou o internamento prolongado em meio hospitalar, o trabalho de parto prolongado ou procedimentos obstétricos invasivos (como amniocentese, transfusão intrauterina ou cerclage), determinando por vezes que surja uma infecção neonatal precoce causada por agente hospitalar.

Um dos campos de investigação a nível mundial diz respeito ao estudo do microbioma na grávida e no RN, e da avaliação do seu impacte, através de diversas vias, no sistema imunitário e na infecção perinatal.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da infecção sistémica do RN são muito variáveis. Sendo o RN um ser “imaturo” é lógico admitir que as manifestações possam ser escassas. Na realidade, o RN é oligossintomático, em geral exibindo aspecto de “não estar bem” em doenças muito diversas. O clínico deverá, pois, assumir uma atitude de suspeita, designadamente nas situações de risco atrás discriminadas.

As manifestações podem relacionar-se com todos os órgãos e sistemas, incluindo:

  • a pele (cianose, icterícia, escleredema, celulite, abcesso, sufusões hemorrágicas, má perfusão capilar periférica, tempo de recoloração prolongado, etc.);
  • aparelho respiratório (dificuldade respiratória, apneia, taquipneia, etc.);
  • aparelho digestivo (intolerância alimentar, vómitos, diarreia, distensão abdominal, icterícia, etc.);
  • aparelho cardiovascular (bradicárdia, taquicárdia, arritmia, hipertensão pulmonar, cardite, choque, etc.);
  • sistema nervoso central (alterações do tono muscular, convulsões, etc.);
  • sistema hematopoiético (diátese hemorrágica, anemia, hepatosplenomegália, etc.);
  • sistema osteoarticular (artrite).

Estes sinais podem aparecer isoladamente ou em associação, o que depende essencialmente da duração da infecção, da virulência do germe causal, da maturidade do RN, e dos respectivos mecanismos de defesa imunitária.

Exames complementares

O isolamento do germe patogénico no sangue por meio de hemocultura constitui o método mais específico para o diagnóstico de infecção sistémica.

As colheitas para exames culturais devem ser sempre realizadas antes do início da antibioticoterapia; sempre que possível devem ser realizadas duas hemoculturas com volume de sangue suficiente – pelo menos 0,5 mL.

Outros exames a realizar em função do contexto clínico são:

  • exames microbiológicos de exsudados periféricos;
  • exame cultural do aspirado traqueal obtido na sala de partos ou nas primeiras horas de vida;
  • exame cultural e citoquímico do LCR, caso haja clínica sugestiva de meningite e o estado clínico do RN permita a realização de punção lombar.

Contudo os resultados destes exames são demorados.

Entretanto, torna-se necessário realizar outros exames de resposta mais rápida que ajudem a consolidar a suspeita clínica de infecção: são os exames indirectos de infecção, nomeadamente os referentes aos reagentes de fase aguda (por ex. proteína C reactiva- PCR).

Contudo, não há nenhum marcador de infecção que, isoladamente, permita estabelecer um diagnóstico rápido e fidedigno de infecção precoce no RN. Por isso, muitos autores têm tentado estudar marcadores que, em conjunto, tenham elevado valor preditivo. Pouco se tem conseguido, mesmo considerando em conjunto critérios de gravidade baseados na clínica materna, neonatal, e vários parâmetros hematológicos e reagentes de fase aguda.

De acordo com a nossa experiência (MTN), o valor da proteína C reactiva (PCR), doseado seriadamente continua a ser o parâmetro analítico que melhor perfil apresenta. Três determinações negativas, com 12h a 24h de intervalo, permitirão interromper a antibioticoterapia às 72h com uma grande margem de segurança.

Mas, mais importante, segundo Remington, mesmo na era do diagnóstico molecular, continua a ser a experiência aliada à valorização dos dados clínicos: a história perinatal, o exame objectivo e a impressão clínica.

Tal como um único resultado de análise da PCR normal (até 1 mg/dL)(*) não deverá impedir o clínico de prescrever antibióticos se o RN evidenciar sinais sugestivos de doença – isto é, “não está bem”, também o resultado anormal de uma única análise não deve ser um indicativo absoluto para início de antibioticoterapia num RN evidenciando bom estado geral. Por outro lado, outros parâmetros laboratoriais poderão ser utilizados.

(*)Conquanto possa existir alguma variação dos valores de referência em diferentes laboratórios.

Nota importante:
De acordo com a experiência de determinados centros, outros parâmetros laboratoriais de avaliação poderão ser utilizados:

    1. hematológicos, valorizando o valor de leucócitos (leucocitose ou leucopénia) utilizando as chamadas curvas ou tabelas de Manroe tendo em conta que os limites de normalidade no RN oscilam ente 5.000/uL e 30.000/uL; e, igualmente, o quociente “número absoluto de neutrófilos imaturos (bastonetes)/número absoluto de neutrófilos totais”, sendo que valores > 0,2 sugerem infecção, com especificidade e sensibilidade de cerca de 80%-90%, e ponderando a eventualidade da presença doutras situações que podem alterar a dinâmica dos neutrófilos tais como hipertensão materna e toxémia.
    2. bioquímicos, salientando-se:
      1. 2.1 → a procalcitonina (PCT), com elevação ligeiramente mais precoce (~ 6 horas) do que a PCR, considerando-se como pontos de corte 3 ng/mL nos primeiros dias , e 0,5 ng/mL posteriormente;
      2. 2.2 → moléculas pró-inflamatórias (IL-6, IL-8, TNF-alfa), salientando-se a maior precocidade da elevação da IL-6, a partir da 1ª hora da infecção, com pico máximo pelas 4-6 horas, descendo depois rapidamente.

Publicações muito recentes, baseadas em meta-análises, apontam a vantagem de um marcador já usado em adultos, designado presepsina, relativamente à PCR e à PCT.

Tratamento

Ponderação de situações clínicas

A decisão de tratamento implica, primeiramente, valorizar a clínica. O médico poderá deparar com as seguintes situações:

  • O RN está doente – Nesses casos, o risco “deixou de ser risco, passou a infecção”.
    Nesta circunstância, a decisão é fácil de tomar: proceder a colheitas (hemocultura, cultura do aspirado traqueal colhido precocemente – sala de partos ou primeiras horas de vida) e iniciar antibioticoterapia.
  • O RN não evidencia sinais sugestivos de doença (ainda), mas há antecedentes de: a) amnionite; b) terapêutica materna com ampicilina e gentamicina no periparto (que obviamente atingiu o feto).
    Em tal circunstância, na realidade, a terapêutica teve início in utero e ao pediatra basta prescrever ao RN os mesmos antibióticos prescritos à grávida anteriormente, de modo a dar continuidade ao referido tratamento. A hemocultura que, contudo deverá ser feita, será provavelmente negativa, uma vez que o feto transita para a vida extrauterina com antibióticos na sua circulação.
    O RN não apresenta sinais sugestivos de doença, existe risco infeccioso perinatal, a mãe foi medicada com um antibiótico, ou não chegou a ser medicada.

Neste contexto, impõe-se uma vigilância clínica muito rigorosa e estudo seriado dos marcadores de infecção. A excepção a esta regra é o RN de mãe portadora de SGB a qual fora submetida a profilaxia da transmissão da infecção de modo adequado (2 ou mais administrações de ampicilina – 2 g seguidos de 1 g de 4 em 4h, ou penicilina); nesta última situação, em princípio, o RN não corre risco de infecção, não sendo necessário proceder a exames complementares – bastará a vigilância clínica rigorosa.

Nota Importante:
Muitas vezes há a percepção de que, ao ser iniciada antibioticoterapia na circunstância de RN com sinais inequívocos de doença infecciosa, tal início é tardio. De facto, tal terapêutica deveria ter sido iniciada in utero, sendo que o desenlace poderá ser fatal.
Reforça-se, por isso, a ideia de que a antibioticoterapia materna deverá ser iniciada logo que seja feito o diagnóstico de amnionite. A referida antibioticoterapia deve ser dupla.
Não havendo dúvidas quanto à utilização de gentamicina, existe discussão sobre se deve ser usada penicilina ou ampicilina.

Importa referir a decisão final, com base na seguinte constatação:

  • níveis séricos fetais da penicilina, baixos e tardios – 1/3 dos níveis séricos maternos 120 minutos depois versus
  • níveis séricos fetais da ampicilina, elevados e precoces, semelhantes aos maternos 60 a 90 minutos depois… conclui-se que deve ser recomendada a ampicilina.

Antibioticoterapia empírica

O tratamento empírico da infecção de origem materna é baseada nos possíveis agentes etiológicos. A penicilina ou ampicilina são antibióticos adequados para o tratamento da infecção por SGB, salientando-se que ainda se encontram estirpes de E. coli sensíveis também à ampicilina.

A administração conjunta de um aminoglicosídeo, habitualmente a gentamicina, alarga o espectro para as bactérias de Gram negativo, beneficiando-se ainda da potenciação do efeito bactericida quando se administra um beta-lactâmico juntamente com um aminoglicosídeo.

A ampicilina é usada na dose de 100 mg/kg/dia com periodicidade de 12 em 12h e a gentamicina na dose de 3 mg/kg/dia em administração única.

O tratamento deve durar 10 dias no caso de septicémia sem meningite. Se houver meningite por SGB, os antibióticos devem ser administrados durante 15 a 21 dias.

Nos casos de pneumonia, a terapêutica deve ser continuada até, pelo menos 2 dias, após desaparecimento dos sinais radiológicos.

Em situações clínicas muito graves – choque séptico, meningite grave – é admissível iniciar a terapêutica com 3 antibióticos: ampicilina, gentamicina e uma cefalosporina de 3ª geração, habitualmente cefotaxima (a ceftazidima deve ser reservada para infecções causadas por Pseudomonas), o que abrangerá com forte probabilidade todos os agentes mais comuns, incluindo os resistentes à ampicilina.

Quando o resultado da hemocultura estiver disponível ou, mais cedo ainda, quando tivermos o resultado do Gram, pode eventualmente ser possível, então, corrigir a terapêutica.

Como nota final, uma chamada de atenção para o conjunto de regras práticas para o clínico:

Atitudes que nunca deverão ser tomadas:

    • Nunca tratar uma sépsis neonatal em ambulatório;
    • Nunca solicitar exames complementares de diagnóstico em ambulatório mesmo que estejam disponíveis;

 Em vez disso, escrever um pequeno resumo clínico com a hipótese diagnóstica ao colega do centro hospitalar mais próximo, enviando o doente para este;

    • Nunca tratar uma sépsis neonatal com apenas um antibiótico;
    • Nunca tratar uma sépsis neonatal com antibioticoterapia por via oral;
    • Nunca menosprezar o diagnóstico baseado nos sinais clínicos. Uma história clínica elaborada com rigor é fundamental para a orientação do paciente.

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Especificidade do período perinatal

Modernamente, é comum usar-se o título “Infecção associada à prestação de cuidados de saúde” como substituto de “Infecção hospitalar”. No entanto, aquele é um conceito mais amplo, englobando não só a infecção de origem hospitalar mas também a infecção adquirida em ambulatório, onde muitos doentes recebem cuidados de saúde.

Cabe salientar, a propósito, que a infecção associada à prestação de cuidados de saúde na comunidade é raríssima no período neonatal. Entendemos, por isso, que neste grupo etário, somente terá pertinência dar ênfase ao conceito clássico de infecção de origem hospitalar (IH).

Importância do problema

Os RN gravemente doentes admitidos em UCIN têm risco de IH, tanto mais elevado quanto mais grave for a doença de base, menor a idade de gestação, mais manobras invasivas forem realizadas, e maior tempo de internamento. Trata-se, pois, de problema comportando genericamente morbilidade e mortalidade evitáveis.

Por outro lado, tal problema é susceptível de agravar a doença de base, provado que está o seu efeito muito deletério sobre a própria doença de base, mais frequentemente sobre a patologia do SNC e do sistema respiratório.

Em termos quantitativos, o impacte pode ser tipificado pela seguinte realidade: a frequência das IH em unidades de cuidados intensivos neonatais (UCIN) só é ultrapassada pela frequência de infecção nas unidades de queimados, o que determina custos acrescidos.

Manifestações clínicas

A septicémia relacionada com cateter venoso central (CVC) é muito frequente; mais rara é a pneumonia relacionada com o tubo traqueal nos RN submetidos a ventilação invasiva.

Ao contrário do que acontece em unidades de adultos em que a infecção mais frequente é a urinária, a infecção mais frequentemente encontrada nas UCIN é a sépsis (com hemocultura positiva ou negativa).

A lista dos agentes mais frequentemente isolados inclui Staphylococcus coagulase negativa, dos quais se destacam Staphylococcus epidermidis, frequentemente meticilinorresistentes – seguidos, de longe, pelas bactérias de Gram negativo de origem entérica ou não entérica, muitas vezes multirresistentes.

De notar, contudo, que a infecção que surge num RN admitido em UCIN, pode também ser de origem materna, pelo que tal hipótese deve estar sempre presente.

Prevenção

A atitude mais importante no que respeita às IH é a prevenção, e a medida isolada mais eficaz na prevenção é a lavagem das mãos. Depois, outros factores podem influenciar e ser melhorados no sentido de diminuir as taxas da referida morbilidade.

Uma correcta relação enfermeiro/doente, espaço físico e arquitectura adequados, equipas médica e de enfermagem estáveis, são alguns desse factores.

Outro factor de importância primordial é a política de antibióticos de uma unidade hospitalar. Dela depende a ecologia dos serviços e unidades. A multirresistência é, quer se queira aceitar ou não, uma consequência do uso desregrado de antibióticos, muitas vezes prescritos sem razão, para “alívio da consciência, por insegurança ou por ignorância”.

Se a lavagem das mãos é um procedimento fulcral no controlo de infecção, outras medidas não devem ser desprezadas, as quais fazem parte dos procedimentos escritos das unidades neonatais e da avaliação diária do doente. Referimo-nos aos seguintes procedimentos:

Notas importantes:

    • avaliação diária da necessidade de ventilação mecânica (se o doente puder ser extubado hoje não adiar para amanhã);
    • avaliação diária da necessidade de manter um cateter venoso central, ou de o colocar, que tipo de cateter, local de inserção, e se é colocado na UCIN ou no bloco operatório; (se o CVC puder ser retirado hoje não adiar para amanhã);
    • programação da alta, logo que possível (se o doente puder sair hoje, não adiar para amanhã).

Para além das precauções a ter com os dispositivos invasivos, devem ser tomadas em atenção as medidas de isolamento adequadas a determinadas situações. Assim,

  • um RN colonizado com bactéria multirresistente deve ser colocado em isolamento de contacto;
  • um RN admitido do domicílio com infecção respiratória aparentemente vírica, em contexto de epidemia, deve ser colocado também em isolamento de contacto.

Numa perspectiva preventiva, é sempre importante reiterar certas noções consubstanciando regras básicas de não adiamento de certas atitudes:

  • Retirar um CVC. Amanhã poderá já ser tarde, ter ocorrido um incidente – infecção, exteriorização, fractura, trombo;
  • Extubar um doente. Neste intervalo o doente poderá contrair uma pneumonia, ou o tubo traqueal ficar obstruído e o doente falecer;
  • Interromper antibioticoterapia;
  • Dar alta ao doente. Em mais um dia de internamento muitos eventos adversos poderão ocorrer.

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Definição e importância do problema

Os traumatismos de parto (traumatismos de nascimento ou tocotraumatismos) são lesões ocorridas no feto aquando do parto por acção de forças mecânicas de tracção ou pressão relacionadas em geral com situações muito diversas, evitáveis ou não, tais como partos obrigando ao recurso instrumental, quer com nascimento normal e sem relação causal aparente.

Actualmente, nos países industrializados a morte por traumatismo de parto, apesar de rara, contribui com uma proporção importante para a morbilidade neonatal. A incidência de tal patologia oscila, conforme diversos estudos epidemiológicos e diferentes locais de parto, entre 2 e 5/1.000 nados-vivos, valor que comparticipa entre 1% a 3% a mortalidade infantil.

Nesta perspectiva, o médico ou outro profissional de saúde que presta assistência ao parto (idealmente integrado em equipa) deve estar preparado para prevenir, enfrentar e resolver os problemas decorrentes deste tipo de lesões traumáticas potencialmente fatais ou podendo originar sequelas de gravidade variável.

Etiopatogénese e classificação

São considerados factores predisponentes de lesões traumáticas: macrossomia, desproporção feto-pélvica, prematuridade, distócia, trabalho de parto prolongado, parto vaginal com apresentação pélvica, anomalias de apresentação, manobras de versão intra ou extrauterina e utilização de instrumentos (ventosa, fórceps).

Com base na sua etiopatogénese, os traumatismos de parto (ante ou intraparto) podem ser divididos em duas categorias:

  1. Lesões provocadas por hipóxia-isquémia;
  2. Lesões decorrentes de aplicação de forças mecânicas.

Durante o trabalho de parto, a cabeça e o corpo do feto estão sujeitos à pressão cérvico-vaginal podendo, por isso, sofrer acção traumática da qual poderão resultar lesões. E sempre que haja necessidade de recurso a instrumentos ou a manobras de versão fetal, aumenta a probabilidade das mesmas.

As lesões por hipóxia-isquémia são provocadas por alterações placentares, estiramento do cordão umbilical, administração excessiva de fármacos à mãe, ou lesões provocadas pela manipulação fetal externa ou interna.

A ventosa, quando aplicada incorrectamente, pode alongar o crânio na direcção occípito-frontal provocando o estiramento da tenda do cerebelo, susceptível de provocar a ruptura da veia de Galeno ou dos seios recto ou transverso. O recém-nascido poderá inicialmente apresentar-se assintomático ou com lesões de gravidade variável (escoriações, abrasões, lacerações cutâneas, hematomas, fracturas, designadamente do crânio, com afundamento ou em bola de pingue-pongue, etc.), as quais poderão originar sequelas.

A aplicação do fórceps, procedimento mais difícil do que a ventosa e exigindo eficaz analgesia materna, pode originar quer lesões dos tecidos moles da mãe, quer das estruturas osteomusculares e cutâneas do feto (couro cabeludo e crânio, face, olhos e massa cerebral). As fracturas do crânio são mais frequentes com o fórceps do que com a ventosa.

Quando as colheres do fórceps são aplicadas de modo simétrico, a curva cefálica da colher do fórceps adapta-se à curva craniana fetal e torna possível a aplicação da força na maior superfície possível. Por consequência, se as colheres do referido instrumento não forem aplicadas de modo simétrico em relação ao plano sagital, a curva cefálica da colher, não se adaptando ao crânio fetal, gera forças tensionais que provocam a deformação e a eventual fractura do osso onde a colher estiver apoiada. Esta situação pode igualmente provocar a ruptura das veias perfurantes, levando a hemorragia intracraniana.

A monitorização fetal intra-parto (no caso de aplicação de eléctrodo no coiro cabeludo ou na parte corporal apresentada, por vezes em posição incorrecta), pode também ter consequências várias: abrasões e lacerações ao nível do crânio, face, globo ocular ou outro local. E da colheita de sangue fetal para estudo analítico poderá resultar hemorragia. Tal conjunto de sinais clínicos integra-se no conceito lesões iatrogénicas.

Manifestações clínicas e actuação

Seguidamente são descritas as principais formas clínicas de lesões traumáticas associadas às condições do nascimento, assim como a actuação essencial em tais circunstâncias, relacionando alguns tipos daquelas com a aplicação instrumental (fórceps ou ventosa). Determinadas situações referidas no Quadro 1 são objecto de descrição noutros capítulos do livro.

QUADRO 1 – Classificação das lesões traumáticas do parto relacionáveis com forças mecânicas.

Lesões extracranianas
Caput succedaneum; Cefalo-hematoma; Hemorragia subaponevrótica

Lesões cranianas
Fracturas; Escoriações; Outras

Lesões intracranianas
Hemorragia epidural; Hemorragia subdural; Hemorragia subaracnoideia

Lesões de nervos e espinhal medula
Lesão do plexo braquial; Paralisia do nervo facial; Lesão do nervo frénico; Lesão do nervo recorrente; Lesão da espinhal medula

Lesões dos ossos
Clavícula; Úmero; Fémur; Outras

Lesões dos músculos
Hematoma/Fibroma do esternocleidomastoideu

Lesões da face
Luxação do septo nasal; Lesões oculares

Lesões da pele
Equimoses; Escoriações; Hematomas; Esteatonecrose

Lesões viscerais
Hemorragia suprarrenal; Ruptura do baço; Ruptura do fígado; Outras

Lesões extracranianas

As lesões cranianas mais frequentes são o caput succedaneum e o céfalo-hematoma, por vezes associadas a parto instrumental; as mesmas manifestam-se por tumefacção com características, cronologia de aparecimento e evolução distintos (consultar capítulo sobre “Exame clínico do Recém-nascido”).

Caput succedaneum

O caput succedaneum (vulgo bossa sero-sanguínea, tratando-se de lesão na cabeça) apresenta-se no pós-parto imediato como uma zona de edema mole e superficial (ao nível do tecido celular subcutâneo) que ultrapassa o limite das suturas ósseas.

Acompanha-se de acentuada moldagem craniana e regride ao fim de alguns dias; não se torna, dum modo geral, necessária qualquer intervenção, exceptuando nos casos de diátese hemorrágica concomitante.

Cabe referir, a propósito, que a noção de caput succedaneum é lata, dizendo respeito, de facto à zona de apresentação que, na maior parte dos casos, é a cabeça. Portanto, conceptualmente, a designação de caput pode aplicar-se também a outras áreas de apresentação tais como face, fronte, nádegas (Figura 1) e extremidades.

FIGURA 1. Lesão traumática da nádega em RN (apresentação de nádegas) com escara. (URN-HDE)

O chamado caput vacuum é uma modalidade de caput succedaneum, de contornos bem demarcados pela aplicação dos bordos da ventosa.

Quanto à actuação, deverá adoptar-se atitude de vigilância, sem necessidade de qualquer terapêutica (não se devendo proceder à drenagem pelo risco de infecção).

Céfalo-hematoma

O céfalo-hematoma, ocorrendo em cerca de 1% a 2% dos nascimentos, é uma colecção hemática, dos tecidos não superficiais (localização subperióstica). Sendo subperióstica, não ultrapassa os limites de cada sutura óssea, ao contrário do que acontece no caput succedaneum. A localização mais frequente é parietal, podendo ser uni ou bilateral. Esta tumefacção resulta da lesão dos capilares e vasos diplóicos, que acompanha a separação do periósteo do osso respectivo, sendo que, não evidente no momento do nascimento, somente passa a ser notada ao cabo de alguns dias, com tendência para aumentar: passa, então, a palpar-se (e, por vezes, a ver-se) uma tumefacção esferóide sob tensão, por vezes com sinal de flutuação. Dada tal cronologia de aparecimento, muitas vezes é a mãe que nota a anomalia quando a criança já terá tido alta da maternidade.

No caso de o céfalo-hematoma se manifestar atipicamente, no pós-parto imediato e no contexto de parto laborioso e instrumental, pela etiopatogénese explanada anteriormente (colecção hemática subperióstica), tal facto poderá traduzir a presença de fractura óssea no contexto de paciente com quadro de diátese hemorrágica (constituindo esta última, factor predisponente.

A verificação de céfalo-hematoma não tem relação com o prognóstico neurológico a não ser que em simultâneo exista uma lesão do sistema nervoso central. Por isso, não obriga, em princípio, a qualquer terapêutica específica e não necessita de qualquer intervenção cirúrgica.

Se se tratar de lesão de grande dimensão (aspecto relacionável, por exemplo, com parto complicado ou diátese hemorrágica como situação de base), poderá verificar-se no pós-parto imediato um quadro de anemia por perda ou, ulteriormente, de icterícia por hemólise de quantidade significativa de sangue localizado.

A actuação nestas circunstâncias dependerá do grau de anemia e da hiperbilirrubinémia verificada. A médio prazo, poderá ocorrer calcificação, o que se traduz em tumefacção dura nas semanas e meses subsequentes, a qual passará a ser menos notória com o crescimento do crânio, não agravando o prognóstico na ausência doutras lesões.

Neste tipo de lesão, também não se deve proceder à drenagem.

Hemorragia subaponevrótica

As complicações hemorrágicas associadas ao parto por ventosa têm uma incidência de cerca de 0,7% e uma mortalidade ~ 0,2%. A hemorragia pode ocorrer em diferentes planos teciduais, desde a pele ao osso do crânio. A complicação mais grave derivada da aplicação da ventosa é a hemorragia subaponevrótica (entre a pele e o periósteo) caracterizada por uma “massa flutuante” que pode evidenciar sinais de “onda líquida” e que ultrapassa as suturas cranianas.

A hemorragia subaponevrótica pode ser acompanhada de palidez (anemia por perda), taquicárdia e hipotonia. Em estudos anátomo-patológicos estimou-se que o espaço subaponevrótico, quando preenchido por uma colecção de sangue com cerca de 1 cm de espessura, poderá acomodar um volume de sangue de 260 mL, o que excede a volémia total de alguns recém-nascidos.

A sua incidência é cerca de 4/10.000 em partos eutócicos e de 60/10.000 em partos por ventosa; a mortalidade é muito significativa (cerca de 22%).

Com efeito, sob a aponevrose, mais densa, existe uma outra camada fibrosa, menos densa, contendo grandes veias emissárias com ligação aos seios durais e veias do couro cabeludo. A lesão da referida aponevrose está associada a um conjunto de factores como a compressão externa com movimento de tracção, e a eventual défice de coagulação, que é particularmente grave na presença de hemofilia.

É mais rara do que a bossa sero-sanguínea, da qual difere por aumentar após o nascimento e se acompanhar de importante perda de sangue. Assim, os recém-nascidos de sexo masculino, que apresentem hemorragia subaponevrótica extensa após partos difíceis, devem ser avaliados quanto ao sistema de coagulação, em especial com doseamento dos factores VII e VIII. Embora rara, a hemofilia A deve ser admitida como hipótese face ao contexto clínico referido. Nos casos de hemofilia comprovada, e perante situações emergentes implicando necessidade de intervenção cirúrgica, deve ser efectuada terapêutica substitutiva com o factor em défice para prevenir a hemorragia pós-operatória.

O diagnóstico da hemorragia subaponevrótica reveste-se, por vezes, de grande dificuldade. Uma vez que o sangue não forma um coágulo, mas uma camada extensa e difusa nos tecidos moles, é frequente passar despercebida nas primeiras horas de vida. Têm sido referidas formas silenciosas responsáveis pela morte neonatal sem sinais clínicos evidentes numa fase inicial de observação.

A actuação consiste em vigiar a anemia – que poderá obrigar a transfusão de sangue – e a hiperbilirrubinémia. Em geral aquela regride ao fim da 3ª ou 4ª semana de vida, não estando indicada a drenagem.

Notas importantes:

    1. Dada a possibilidade de ocorrência de lesão traumática e a necessidade de um rápido diagnóstico e terapêutica, torna-se obrigatória a presença do neonatologista quando se realiza um parto por fórceps.
    2. Como será fácil depreender, a utilização sequencial da ventosa e fórceps está associada a maior frequência de lesões traumáticas (tais como lesão do plexo braquial, lesão do nervo facial, hemorragia intracraniana) e de asfixia perinatal. (ver adiante)
    3. O diagnóstico das lesões por fórceps ou ventosa efectua-se pela clínica, confirmada por ecografia transfontanelar, e por TAC ou RM se houver necessidade de detectar com mais rigor a presença de hemorragia na fossa posterior e nas estruturas cerebelosas.
    4. O prognóstico da fractura induzida pela aplicação do fórceps depende das lesões associadas, salientando-se que em cerca de 4% dos casos as sequelas a longo prazo poderão ser graves.

Lesões cranianas

Descrevem-se os seguintes tipos de lesões ósseas cranianas:

  • fracturas (lineares e com afundamento, também chamadas “em bola de ping pong, mais tipicamente associadas a ventosa);
  • formas de osteodiastase occipital (separação traumática da junção cartilagínea entre a escama do occipital e o osso parietal, situação hoje rara); e
  • fracturas espontâneas, raramente associadas a lesões cerebrais, ao contrário do que acontece nos partos com instrumentos. A sua incidência, difícil de determinar, depende da suspeita clínica e da realização da radiografia craniana (Figuras 2 e 3).

O diagnóstico da fractura craniana é confirmado por radiografia simples ou ecografia transfontanelar. Contudo, é frequente a ocorrência simultânea de acentuado edema do couro cabeludo, tal como acontece na presença da hemorragia subaponevrótica: nestes casos deve recorrer-se à TAC ou à RM crânio-encefálica. Esta última tem sido cada vez mais utilizada para avaliar as lesões hemorrágicas e parenquimatosas nos casos de traumatismos cranianos perinatais.

Tais situações implicam a colaboração indispensável das equipas de neurocirurgia e de cuidados intensivos neonatais.

A fractura linear não requer terapêutica específica, mas deve ser vigiada no plano clínico e imagiológico.

Lesões intracranianas

A hemorragia intracraniana no recém-nascido de termo pode ser uma complicação grave de traumatismo de parto. A sua frequência tem vindo a diminuir devido aos progressos relacionados com o número crescente de casos submetidos a monitorização contínua do bem-estar fetal e de partos por cesariana.

Os factores de risco estão relacionados com a aplicação do fórceps, da ventosa, do parto precipitado e da macrossomia fetal com parto por via vaginal.

A incidência da hemorragia intracraniana sintomática nos recém-nascidos de termo é cerca de 5 a 6/10.000.

De acordo com a sua localização, podem ser considerados os seguintes tipos: hemorragia subdural, epidural e subaracnoideia. Segundo Volpe, é muito importante ter em consideração:

  1. os factores de risco tais como a idade de gestação, o trabalho de parto, o parto, a ocorrência de eventos como a asfixia e a necessidade de reanimação;
  2. os sinais neurológicos de alarme, os quais deverão ser identificados o mais precocemente possível;
  3. a imagiologia para localização da hemorragia, com recurso à ecografia transfontanelar, TAC e RM; e
  4. o exame do líquido cefalorraquidiano.
Hemorragia epidural

Este tipo de lesão, consequência da ruptura da artéria meníngea média, está frequentemente associado a cefalo-hematoma ou a fractura craniana. A raridade desta situação no recém nascido deve-se à ausência do sulco da artéria meníngea média nos ossos cranianos, tornando a artéria menos susceptível à lesão.

FIGURA 2. Radiografia do crânio de RN (parto de fórcepes) com sinal de traço de fractura.

FIGURA 3. Radiografia do crânio de RN: osteodiastase traumática.

As manifestações clínicas podem incluir alterações neurológicas difusas com hipertensão intracraniana, fontanela hipertensa e alterações focais como convulsões e estrabismo.

O diagnóstico é confirmado pela ecografia transfontanelar e TAC cranioencefálica ou RM.

O tratamento inclui a correcção do choque hipovolémico e das alterações da coagulação. Na maioria dos casos está indicada drenagem cirúrgica, a cargo de equipa especializada.

Hemorragia subdural

É a menos frequente das hemorragias intracranianas, mas a mais frequentemente relacionada com evento traumático; pode afectar igualmente RN de termo e pré-termo. A sua incidência é cerca de 2 a 3 por 10.000 nados-vivos nos partos vaginais espontâneos, e cerca de 8 a 10 por 10.000 nos partos por ventosa e fórceps. Trata-se duma lesão traumática cuja incidência tem diminuído à medida que melhora a qualidade dos cuidados pré-natais.

O diagnóstico é determinante dado que a intervenção cirúrgica é decisiva para ultrapassar o risco de vida. Salienta-se que a presença de hemorragia subdural não corresponde necessariamente a traumatismo de parto grave.

Uma vez que a drenagem profunda do cérebro desagua na grande veia de Galeno, na junção da tenda do cerebelo com a foice do cérebro, a localização mais comum é a tentorial e a inter-hemisférica.

As manifestações clínicas dependem da localização da hemorragia. Esta, quando localizada na convexidade cerebral, produz alterações neurológicas focais; na fossa posterior, os sinais mais frequentes (apneia, assimetria pupilar, desvio ocular e coma) estão associados ao aumento da pressão intracraniana. De referir que a sintomatologia tem o seu início em geral nas primeiras 24 horas, mas nalguns casos, pode ocorrer no 4º ou 5º dia após o parto.

A ecografia transfontanelar pode constituir uma contribuição muito útil para o diagnóstico; contudo, a técnica de eleição é a TAC cranioencefálica.

A indicação para intervenção cirúrgica dependerá da localização da hemorragia e dos sinais de compressão do tronco cerebral.

O prognóstico depende da presença de enfarte cerebral e da localização da lesão. Trata-se duma situação que implica, evidentemente, apoio das equipas de neurocirurgia e de cuidados intensivos neonatais.

Hemorragia subaracnoideia

A incidência desta hemorragia é cerca de 1,3 por 10.000 nados-vivos de partos vaginais espontâneos; nos casos de partos por ventosa e fórceps, a mesma sobe para 2 a 3 por 10.000 nados-vivos.

Este problema clínico é originado pela ruptura das veias perfurantes do espaço subaracnoideu ou das pequenas veias leptomeníngeas. Pode ser assintomática ou manifestar-se por convulsões que ocorrem por volta do 2º dia de vida. O risco é mais significativo nos partos instrumentais. (ventosa)

O diagnóstico mais preciso é feito por TAC, pois a ecografia transfontanelar não propicia informação suficiente. Exceptuando os casos em que é muito extensa, nos recém-nascidos de termo tal hemorragia é reabsorvida, não exigindo qualquer intervenção. Se não houver lesão cortical ou encefalopatia, não surgirão sequelas. (ver adiante, nesta Parte XXXI, o capítulo sobre Hemorragias Intracranianas)

Como medidas gerais mais importantes aplicáveis a situações de hemorragias intracranianas, apontam-se:

    1. Monitorização dos sinais vitais, temperatura, PO2, PCO2, SpO2, pressão arterial, glicémia, balanço hidroelectrolítico, estudo da coagulação, etc.;
    2. Por vezes, torna-se necessário tratar o edema cerebral, utilizar anticonvulsantes, restringir o suprimento inicial de fluidos tendo em conta designadamente a eventualidade de surgimento de quadro de secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIADH) e ainda, a necessidade de algaliação.

Lesões dos nervos e espinhal medula

As lesões do plexo braquial, hoje mais raras com os progressos na prática obstétrica, ocorriam há três décadas, aproximadamente entre 0,5 a 2,6/1.000 nascimentos. Na maior parte dos casos (80%-90%), verifica-se recuperação em semanas ou meses, conquanto nos restantes 10%-20% haja necessidade de tratamento complexo e multidisciplinar.

Os factores de risco de lesão do plexo braquial são: macrossomia fetal (peso de nascimento > 4.000 gramas), microssomia (peso < 2.500 gramas) em apresentação pélvica, prolongamento do 2º estádio do trabalho de parto, distócia de ombros, má apresentação fetal e necessidade de parto com instrumentos.

Podem ser observados três tipos de lesão do plexo:

  • Paralisia de Erb-Duchenne, a mais frequente (cerca de 90% dos casos), envolvendo as raízes C5 e C6;
  • Paralisia de Klumpke, secundária a lesão das raízes inferiores de C8 e T1; e
  • Paralisia braquial total por lesão nas raízes de C5, C6, C8 e T1).

Para explicar este tipo de lesões têm sido admitidas várias hipóteses tais como:

  • tracção lateral do pescoço para libertar o ombro anterior, levando a edema;
  • hemorragia, ou mesmo ruptura, das raízes do plexo braquial; e
  • estiramento do plexo na sequência de rotações iguais ou superiores a 90º.

Na paralisia de Erb-Duchenne, o membro superior afectado evidencia posição em extensão, adução e rotação interna (um autor inglês chamou, com alguma ironia, a esta posição, o “sinal do empregado de café que pede discretamente gorgeta). O reflexo de preensão está presente, mas o reflexo de Moro é assimétrico à custa da parésia do lado afectado. À movimentação passiva, o membro evidencia flacidez e, quando solto, cai facilmente ao longo do tronco (Figura 4).

Neste tipo de lesão poderá verificar-se concomitantemente lesão do nervo frénico originando paralisia do diafragma, dada a sua relação com o plexo braquial (origem nas raízes de C3, C4, C5); tal situação poderá ter repercussão na mecânica ventilatória do diafragma. Tal pode ser demonstrado em cinerradioscopia ou ecografia (hemicúpula elevada e ausência de abaixamento do diafragma na inspiração) (Figura 5).

Na paralisia de Klumpke (Figura 6), mais rara, os músculos flexores do punho são atingidos, observando-se paralisia da mão; são notórias mão pendente, ausência de reflexo de preensão e de mobilidade do punho. A este tipo de lesão poderá associar-se a síndroma de Claude-Bernard-Horner (enoftalmia, miose e ptose palpebral por lesão do simpático) assim como paralisia de Erb-Duchenne paralisia braquial total).

FIGURA 4. Paralisia de Erb-Duchenne (lado direito). (NIHDE)

FIGURA 5. Lesão do frénico à direita originando paralisia da cúpula diafragmática direita. Concomitante fractura da clavícula homolateral. (URN-HDE)

FIGURA 6. Paralisia de Klumpke.

Deve ter-se em consideração a possibilidade de lesões associadas como o hematoma do músculo esternocleidomastoideu, fractura da clavícula, do úmero ou costelas, lesão do facial, do hipoglosso e, mesmo, da medula espinhal.

Em função do contexto clínico e antecedentes do parto poderão estar indicadas radiografia do ombro e membro superior afectados (para exclusão de fractura), radiografia do tórax e, eventualmente, ecografia ou cinerradioscopia se se verificar dificuldade respiratória relacionável com lesão do nervo frénico.

O tratamento das paralisias do plexo braquial deve incluir a fisioterapia precoce com o objectivo de evitar as contracturas e deformidades articulares, sendo o prognóstico favorável quando a recuperação dos movimentos dos músculos bicípete e adutor do ombro, aos 3 meses, for total.

Perante o diagnóstico de paralisia do frénico a actuação consiste em medidas de suporte, tais como, decúbito lateral sobre o lado afectado e oxigenoterapia. Na maioria dos casos verifica-se recuperação espontânea, sendo que a intervenção cirúrgica fica reservada para situações especiais de infecções respiratórias de repetição e insuficiência respiratória.

Lesão do nervo facial

A lesão do nervo facial (7º par craniano), que ocorre em cerca de 0,20%-0,30% dos nascimentos, é em geral causada pela compressão da porção periférica do nervo (paralisia periférica) no percurso exterior ao forâmen estilomastoideu ou no seu trajecto à frente do ramo da mandíbula (por exemplo por compressão in utero ou por aplicação de fórceps). O nervo é mais frequentemente afectado por compressão pelo fórceps ou pelo promontório materno (em partos laboriosos).

A paralisia do tipo central é menos frequente, estando relacionada com lesão traumática do SNC.

Os sinais clínicos da paralisia periférica (flácida) manifestam-se por sulco nasolabial menos notório no lado afectado, não encerramento completo das pálpebras do olho do lado afectado (o que não acontece na paralisia central) e desvio da comissura labial, mais aproximada da linha média (por vezes só detectado durante o choro ficando imóvel), em contraste com o lado oposto (são) em que a mesma se afasta da linha média.

Nas formas completas pode manifestar-se em toda a hemiface, o que se traduz por ausência de pregueamento da hemifronte afectada coincidindo com o choro da criança (Figura 7).

A paralisia central é espástica, atingindo apenas a metade inferior da face contralateral. Os movimentos das pálpebras e da fronte estão intactos. Está frequentemente associada a paralisia do 6º par e a hemorragia intracraniana.

O diagnóstico diferencial da paralisia facial traumática faz-se com:

    1. situações de paralisia (central) congénita relacionadas, por exemplo, com agenésia do núcleo do nervo facial (síndroma de Moebius);
    2. determinadas síndromas malformativas como síndroma de Goldenhar, trissomias 13 e 18, etc.; 3) e;
    3. outra situação congénita e benigna que consiste na ausência dos músculos depressores da boca.

FIGURA 7. Paralisia facial periférica à direita. (UCIN-HDE)

A evolução em geral é favorável, para a cura, em cerca de 2 a 3 semanas (na circunstância de existir apenas compressão e edema locais). A ausência de encerramento palpebral nos casos de paralisia periférica implica cuidados com a humidificação da córnea com soro fisiológico. O tratamento limita-se à protecção do olho afectado; a intervenção neurocirúgica (neuroplastia) somente está indicada nas situações persistentes.

Lesão do nervo recorrente

A lesão unilateral pode ser causada por tracção excessiva da cabeça fetal durante o parto com apresentação pélvica, ou por tracção lateral da cabeça provocada por aplicação de fórceps. A lesão bilateral pode ser causada por traumatismo, hipóxia–isquémia ou hemorragia do tronco cerebral.

Nos casos de paralisia unilateral, o RN poderá estar assintomático ou evidenciar disfonia ou estridor inspiratório durante o choro. Muitas vezes o traumatismo atinge também o nervo grande hipoglosso, o que originará dificuldade alimentar e acumulação de secreções na orofaringe por compromisso da deglutição. A paralisia bilateral origina estridor, dificuldade respiratória e cianose.

Na paralisia unilateral, as manifestações podem obrigar a diagnóstico diferencial com defeitos laríngeos congénitos; verificando-se sinais de paralisia bilateral, em função da história clínica (possível trauma não evidente), deverão ser excluídos defeitos congénitos do SNC incluindo anomalia de Arnold-Chiari, anomalias cardiovasculares e massas mediastínicas.

O diagnóstico pode ser feito através de laringoscopia flexível com fibra óptica.

A paralisia unilateral regride em geral ao cabo de 6-8 semanas, não necessitando de qualquer tratamento ou intervenção. Nalguns casos de paralisia bilateral o prognóstico é reservado, podendo ser necessária a traqueostomia.

Lesão da espinhal-medula

As lesões da espinhal-medula, cujas formas graves são raras, poderão surgir no contexto de hiperextensão da cabeça e pescoço, apresentação pélvica e distócia de ombros. As formas clínicas habituais são: hematoma espinhal epidural, lesão da artéria vertebral, hematomielia cervical traumática, oclusão da artéria espinhal e secção transversal.

As manifestações clínicas podem englobar-se em 4 modalidades, dependendo da localização:

  1. Lesão cervical alta e/ou do tronco cerebral: morte fetal, depressão neonatal, SDR, choque, e hipotermia, sendo o prognóstico mau, com óbito neonatal precoce;
  2. Lesão cervical média/alta: depressão neonatal, SDR, paralisia das extremidades inferiores, arreflexia tendinosa, perda da sensibilidade na metade inferior corporal, retenção urinária e obstipação; pode haver associação a paralisia braquial;
  3. Lesão ao nível de C7 ou inferior, por vezes reversível: atrofia muscular, deformidades ósseas, contracturas e incontinência urinária;
  4. Lesão espinhal parcial ou oclusão da artéria espinhal: espasticidade e sinais neurológicos subtis.

O diagnóstico diferencial inclui fundamentalmente amiotonia congénita, mielodisplasia associada a spina bifida, tumores da espinhal medula, etc.. A imagiologia, através de radiografia convencional da coluna vertebral, TAC e RM podem contribuir para o diagnóstico.

O prognóstico depende da gravidade e localização da lesão.

A actuação compreende, entre outras medidas, manobras de ressuscitação e imobilização da cabeça-pescoço-tronco, o que implica colaboração de centro especializado.

Lesões dos ossos

A distócia de ombros surge em 0,5% a 2% dos partos por via vaginal, representando, por vezes, uma verdadeira emergência obstétrica. Felizmente, a maior parte das distócias de ombros é resolvida sem morbilidade materna ou fetal; como complicações podem surgir vários tipos de fracturas (da clavícula, úmero, fémur) e/ou lesão do plexo braquial.

A clavícula é o osso que mais frequentemente se fractura no contexto de traumatismo do parto, variando a sua frequência entre 0,3% a 2,3 % dos casos; de salientar que o seu significado clínico é limitado, não reflectindo a qualidade dos cuidados prestados.

Como manifestações clínicas da fractura da clavícula citam-se: hipomobilidade do membro superior do lado correspondente, crepitação e irregularidade ou saliência notada pela palpação da região clavicular, reflexo de Moro ausente ou incompleto do mesmo lado, e diminuição da depressão supraclavicular resultante do espasmo do esternocleidomastoideu.

Dum modo geral (exceptuando nos casos de lesões traumáticas associadas), perante a suspeita de fractura simples, não se torna necessário proceder à radiografia da clavícula. Por vezes o diagnóstico de fractura é feito a posteriori pela mãe da criança ao prestar-lhe os cuidados: saliência indolor ovóide que corresponde ao calo ósseo, traduzindo a excelência do prognóstico e a rapidez da consolidação (Figura 8).

Se forem detectados sinais de fractura (a palpação da região clavicular constitui um procedimento obrigatório do primeiro exame físico do RN no pós-parto), deverá proceder-se a uma imobilização do membro superior e ombro no sentido de minorar a dor pelo manuseamento da criança (por exemplo fixar a manga do casaco à roupa que cobre o tronco com um alfinete de segurança).

As fracturas dos ossos longos dos membros são, em geral, em ramo verde, podendo, no entanto, ser completas. De acordo com diversos estudos epidemiológicos, a fractura do úmero é, a seguir à da clavícula, a segunda mais frequente, comparticipando cerca de 4,2% dos casos de lesões traumáticas; relaciona-se, na sua maioria, com manipulação fetal para extracção do membro superior em posição posterior.

FIGURA 8. Fractura da clavícula direita. (URN-HDE)

As fracturas do fémur e do rádio são hoje muito raras devido aos progressos na assistência ao parto; estão relacionadas, sobretudo, com partos de apresentação pélvica ou em cesarianas com extracção fetal muito difícil.

As fracturas metafisárias e descolamentos epifisários dos ossos longos surgem habitualmente no contexto de manobras de versão externa ou na extracção fetal durante a distócia de ombros.

O diagnóstico de fractura dos ossos longos implica imobilização de imediato, com a indispensável actuação pelo ortopedista.

Lesão dos músculos

Hematoma/Fibroma do esternocleidomastoideu

Este tipo de lesão cuja etiopatogénese é controversa surge, em geral, no contexto de partos distócicos com rotação e extensão excessivas do pescoço, do que resulta ruptura das fibras musculares do esternocleidomastoideu com hematoma ou trombose venosa e ulterior desenvolvimento de tecido fibroso; poderá também estar em relação com má-posição intrauterina.

As manifestações surgem, na maior parte das vezes, entre a primeira e a segunda semana de vida, quando a criança já está em casa. Observa-se tumoração ou nódulo em forma de azeitona, de consistência firme com cerca de 2 a 5 cm de diâmetro, fazendo corpo com o músculo em questão; por vezes verifica-se apenas um endurecimento localizado do músculo relacionado com fibrose difusa. Em ambas as circunstâncias pode verificar-se concomitantemente torcicolo, constituindo este o primeiro sinal de alerta (Figura 9).

São descritos dois tipos de evolução: – ou regressão pelo 5º-6º mês de vida; – ou fibrose residual com torcicolo, escoliose cervical e deformação craniofacial.

A actuação nestes casos implica encaminhamento para consulta de cirurgia pediátrica na eventualidade de ser necessário proceder a exames complementares (ecografia muscular, radiografia da coluna cervical, etc.) e fisioterapia. Entretanto, deverá promover-se o ensino a quem cuida da criança no sentido de se realizarem exercícios passivos (inclinação da cabeça para o lado oposto ao mesmo tempo que se volta o mento para o lado afectado). Durante o sono, a criança deverá ficar em posição que se oponha à posição viciosa, com o auxílio de saco de areia ou almofada especial.

Nos casos de evolução não favorável com a actuação conservadora, está indicada intervenção cirúrgica, idealmente não depois dos 4 anos (ver Parte XXV, sobre Ortopedia).

Lesão da face

Para além das fracturas dos ossos da face e maxilar inferior (hoje raras devido aos progressos da medicina materno-fetal e obstetrícia), cabe dar realce às fracturas dos ossos próprios do nariz e à luxação da cartilagem nasal; esta última, a mais frequente lesão nasal traumática, traduz-se por desvio do septo, que poderá comprometer a respiração por obstrução nasal. Trata-se duma situação que implicará correcção precoce a cargo da equipa de ORL pelo risco de sequelas (deformação permanente).

As lesões oculares foram abordadas na Parte XXVI – Oftalmologia.

A Figura 10 mostra o aspecto de um RN com um quadro de lesão traumática da fronte e face traduzida essencialmente por edema generalizado, no contexto de apresentação de face e asfixia perinatal. Trata-se duma situação evitável, hoje rara, que se apresenta por razões didácticas.

Lesão da pele e tecidos moles

Para além de equimoses, hematomas e feridas contusas, salientam-se dois quadros clínicos clássicos, raros:

Esteatonecrose

A esteatonecrose é uma lesão circunscrita da pele e tecido celular subcutâneo (do tipo placa), com certo grau de dureza à palpação, de cor avermelhada ou arroxeada.

FIGURA 9. Hematoma/fibroma do esternocleidomastoideu à direita. (URN-HDE)

FIGURA 10. Lesão traumática da fonte e face resultante de apresentação de face. (URN-HDE)

Os casos descritos na literatura englobam sobretudo antecedentes de macrossomia; as alterações descritas anteriormente surgem em geral entre a 1ª semana e a 2ª semana, após partos laboriosos e/ou traumáticos, em áreas com maior deposição de gordura tais como nádegas, dorso, coxas, membros superiores e face.

A etiopatogénese relaciona-se com trauma, hipóxia-isquémia e hipotermia, conduzindo a processo necrótico do tecido adiposo subcutâneo com ulceração ocasional. Estudos anátomo-patológicos demonstraram cristais de gordura neutra por solidificação da gordura originando ulteriormente “reacções de corpo estranho” (cristais de palmitina no citoplasma de células “gigantes”).

A evolução natural é no sentido de regressão espontânea lenta, em semanas a meses. Como sequelas poderá verificar-se atrofia residual, cicatrizes e, raramente, calcificações.

Não existe tratamento específico. Esta entidade foi abordada no capítulo sobre Paniculites, na Parte XXIII.

Máscara equimótica

Este quadro clínico, cuja designação é histórica, traduz-se por aspecto azulado da fronte, face e pescoço como consequência de petéquias e sufusões pequenas confluentes, em geral com hemorragia subconjuntival associada.

O mesmo resulta de hipertensão venosa no território da veia cava superior nos casos de circular do cordão apertada. Idêntico quadro pode surgir nos casos de partos com período expulsivo rápido, levando a descompressão brusca do tórax (patogénese semelhante à dos traumatismos torácicos verificados noutros grupos etários).

Em geral, o prognóstico é favorável na ausência de hipóxia-isquémia perinatal e boa adaptação à vida extrauterina (Figuras 11 e 12).

As lesões viscerais são mais frequentes nos partos pélvicos, em RN macrossómicos e nos casos de patologia de base acompanhada de visceromegália.

O fígado é o órgão mais frequentemente afectado, variando as manifestações clínicas do tipo de lesão (por ex. fractura, hematoma subcapsular, etc.). Na sua forma mais típica verifica-se palidez explicada por anemia por perda, diminuição progressiva do hematócrito e possível evolução para choque hipovolémico.

Como nota importante refere-se que a hepatomegália (resultante de hemorragia subcapsular) pode ser um sinal de alerta no contexto de parto laborioso. A ecografia ou radiografia simples abdominais poderão evidenciar sinais de conteúdo líquido intraperitoneal.

FIGURA 11. Máscara equimótica em RN (efeito resultante de circular apertada ao pescoço). (URN-HDE

FIGURA 12. Hemorragia subconjuntival em RN com máscara equimótica. (URN-HDE)

A ruptura do baço, menos frequente, poderá ter manifestações semelhantes às descritas para a lesão hepática; a radiografia abdominal simples poderá evidenciar sinais indirectos de hemoperitoneu (designadamente opacidade difusa, desvio da “bolha” gasosa gástrica para a linha média, etc.).

A lesão das suprarrenais (hemorragia) é, em regra, subclínica; nos casos de manifestações evidentes, poderão ser detectados sinais inespecíficos de modo progressivo em relação com:

  • anemia por perda (taquipneia, taquicárdia, palidez, etc.), ou com
  • insuficiência suprarrenal (vómitos, hipoglicémia, irritabilidade, coma, convulsões, diarreia, etc.).

A confirmação da hemorragia suprarrenal (a posteriori) pode ser obtida procedendo a ecografia ou radiografia simples: identificação de sinais localizados de calcificação.

A actuação engloba: – medidas de suporte; – eventualmente, terapêutica de substituição hormonal ou intervenção cirúrgica.

Aspectos importantes da actuação geral e prevenção

As lesões devem ser alvo de observação atenta, sendo papel do médico prever a sua evolução e orientar a atitude terapêutica de modo a facilitar, sempre que possível, a permanência do recém-nascido junto da sua mãe.

Se as lesões forem muito importantes, torna-se indispensável falar com os pais o mais precocemente possível, explicando-lhes a causa e a evolução a curto prazo da situação. Embora muitas lesões que ocorrem após partos laboriosos sejam transitórias, as mesmas poderão interferir com o processo de vinculação precoce entre o recém-nascido e seus pais. Por outro lado, a ansiedade que surge na mãe poderá perturbar, não apenas o aleitamento materno, mas também o modo como irá perspectivar toda a sua relação com o bebé.

Por isso, tendo em consideração a segurança do recém-nascido e da sua família, torna-se necessário promover uma relação de confiança com o médico e a equipa em geral, somente possível através da comunicação e disponibilidade dos profissionais durante a permanência do RN na unidade neonatal.

A avaliação cuidadosa da gravidez e apresentação fetal, do trabalho de parto e do modo de descida da apresentação, assim como a decisão do obstetra quanto ao tipo de parto, serão aspectos determinantes para a prevenção do traumatismo parto.

No que respeita a aspectos técnicos prevenivos quanto a parto instrumental do âmbito do especialista de obstetrícia, torna-se importante relevar que este deverá seguir cuidadosamente as boas práticas quanto à aplicação do fórceps, assim como as instruções do fabricante em relação ao manejo da ventosa (por ex. força de vácuo a utilizar, a duração da aplicação, etc.).

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Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

As convulsões são anomalias paroxísticas traduzidas por manifestações motoras, comportamentais ou autonómicas. Não se trata duma doença específica, mas seguramente de um importante epifenómeno de disfunção neurológica.

No conceito global de convulsão neonatal são englobados dois grandes grupos:

  • as convulsões epilépticas ou manifestações relacionadas com descargas eléctricas excessivas e síncronas de neurónios cerebrais, associadas a sinais electroencefalográficos; e
  • as convulsões não epilépticas ou manifestações paroxísticas estereotipadas, não acompanhadas de alterações electroencefalográficas.

Estabelecendo comparação com alterações paroxísticas doutros grupos etários, cabe referir as seguintes destrinças:

  • devido à imaturidade do córtex cerebral no RN e à incompleta mielinização do sistema nervoso, as convulsões tónico-clónicas generalizadas são raras no período neonatal;
  • tendo em conta, por outro lado, o maior desenvolvimento das áreas subcorticais (designadamente diencéfalo e tronco cerebral) no RN, os fenómenos oculomotores, oro-buco-linguais e os sinais de disfunção autonómica são mais frequentes.

A incidência de convulsões neonatais varia muito em função da idade gestacional, das populações estudadas (com situações de risco variáveis) e dos critérios utilizados para a sua definição (clínicos ou electroencefalográficos).

Considerando o peso de nascimento, é estimada a seguinte incidência: – RN de peso < 1.500 g: 57,5/1.000; – RN de peso entre 2.500 e 3.999 g: 2,8/1.000.

Devido à possibilidade de tal disfunção (relacionável com múltiplos factores) poder originar, por sua vez, danos subsequentes ao nível do sistema nervoso, deverá existir da parte do clínico que presta cuidados a RN um elevado nível de suspeita, o que implica diagnóstico e tratamento realizados com celeridade e, muitas vezes, aplicação de medidas sintomáticas antes do diagnóstico etiológico.

Etiopatogénese

Existindo ainda muitas dúvidas quanto à patogénese das convulsões em geral há, contudo, mecanismos básicos que importa realçar:

  • imaturidade cerebral associada a predomínio do papel dos neurotransmissores excitatórios (primariamente glutamato, com maior expressão dos respectivos receptores e escassez relativa dos respectivos transportadores) em relação aos neurotransmissores inibitórios (primariamente GABA/ácido gama aminobutírico); de tal resulta mais intenso e prolongado contacto do glutamato com os receptores pós-sinápticos; uma vez que a vitamina B6 ou piridoxina é um cofactor para a síntese de GABA, deduz-se que o défice ou ausência desta última constitui factor predisponente de convulsões;
  • as características de imaturidade dos receptores do glutamato anteriormente referidas facilitam o influxo catiónico e a despolarização da membrana, activando o fenómeno de convulsão;
  • hipofuncionamento dos neurotransmissores inibitórios no cérebro imaturo, o que se relaciona com a fraca expressão dos respectivos canais iónicos;
  • disfunção da bomba de Na/K com repercussão negativa na produção de energia celular, o que é favorecido em situações de hipóxia-isquémia e hipoglicémia;
  • disfunção ao nível da membrana celular do neurónio, traduzida nomeadamente por maior permeabilidade, o que é favorecido por situações acompanhadas de hipocalcémia e hipomagnesiémia.

Para além destes factores celulares, as características do desenvolvimento do SNC no cérebro imaturo também favorecem o predomínio do estado excitatório, predispondo a convulsões; por exemplo, ao nível da substantia nigra, as vias excitatórias desenvolvem-se antes das vias inibitórias.

Na perspectiva da prática clínica, os factores etiológicos mais frequentemente implicados são mencionados no Quadro 1.

QUADRO 1 – Convulsões neonatais. Factores etiológicos.

Encefalopatia hipóxico-isquémica
Encefalopatia hipertensiva
Infecções (grupo TORCHS, meningite, meningoencefalite, etc.)
Anomalias congénitas (agenésia cerebral, etc.)
Lesões cérebro-vasculares (enfartes arteriais e venosos, etc.)
Lesões traumáticas (hematoma subdural, hemorragia intraperiventricular, etc.)
Alterações hidroelectrolíticas e metabólicas (hiponatrémia, hipernatrémia, hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesémia, etc.)
Doenças hereditárias do metabolismo (galactosémia, frutosémia, aminoacidopatias, anomalias do ciclo da ureia, hiperglicinémia cetótica e não cetótica, etc.)
Convulsões familiares (esclerose tuberosa, síndromas neurocutâneas, etc.)
Privação de drogas (heroína, etc.)
Efeito de fármacos, “tóxicos e toxinas” (isoniazida, bilirrubina, etc.)
Síndromas genéticas (síndroma de Smith-Lemli-Opitz, síndroma de Zellweger, etc.)
Outros

Manifestações clínicas

A classificação das convulsões neonatais mais utilizada é a que foi descrita por JJ Volpe em 1989.

De acordo com a semiologia clínica são discriminados quatro tipos (subtis, clónicas, tónicas e mioclónicas.

Na classificação que integra o Quadro 2, a sistematização geral, variante da classificação de JJ Volpe considera: as convulsões com ou sem alterações electroencefalográficas, respectivamente epilépticas e não epilépticas e as chamadas convulsões traduzidas apenas por anomalias no EEG (assintomáticas).

A convulsão subtil corresponde a uma alteração motora, autonómica ou comportamental que surge mais frequentemente em RN pré-termo, nem sempre acompanhada de alterações do EEG.

QUADRO 2 – Tipos de convulsões neonatais.

Convulsões epilépticas (associadas a anomalias no EEG)

    • Subtis (predominantemente no RN pré-termo)
    • Clónicas focais e multifocais
    • Mioclónicas generalizadas e focais
    • Tónicas focais

 Convulsões não epilépticas (não associadas a anomalias no EEG)

    • Mioclónicas focais e multifocais
    • Tónicas generalizadas
    • Subtis
Convulsões “electroencefalográficas” ou anomalias do EEG assintomáticas

As respectivas manifestações podem ser sistematizadas do seguinte modo: movimentos de mastigação, desvio horizontal do globo ocular com ou sem tremor ocular, fixação ocular mantida, movimentos de pedalagem, movimentos dos membros superiores semelhantes a gestos de boxeur ou de nadador, fenómenos autonómicos como alterações vasomotoras hipertensão arterial, crises de hiperpneia ou apneia, etc.. A convulsão subtil acompanhada de alterações no EEG surge mais frequentemente no RN pré-termo.

Na convulsão clónica o RN evidencia movimentos rítmicos de grupos musculares em duas fases: uma, de contracção mais rápida, e outra mais lenta, voltando à posição inicial; podem verificar-se num grupo muscular (focal) ou em vários grupos musculares (multifocal) sendo que, por ex. o diafragma e a musculatura faríngea podem ser afectados, o que tem implicações na função respiratória. A convulsão focal está mais frequentemente associada a lesão localizada do SNC do que a alterações metabólicas.

A convulsão tónica caracteriza-se: por extensão ou flexão mantida dos membros superiores ou inferiores (tónica generalizada), sendo mais frequente em RN pré-termo; ou por postura mantida de um membro ou postura assimétrica do tronco em relação ao pescoço (tónica focal); ocorre com frequência semelhante no RN de termo e no pré-termo.

A convulsão mioclónica caracteriza-se por movimentos desordenados, síncronos ou assíncronos e rápidos, tendendo a ocorrer sobretudo em grupos musculares flexores; pode ser generalizada (flexão dos membros superiores – mais frequentemente –, ou dos membros inferiores), focal (com manifestação ao nível da musculatura flexora de um membro superior), ou multifocal (contracções musculares assíncronas de várias partes do corpo).

Na classificação de Mizrahi & Kellaway, com base em estudo vídeo-electroencefalográfico contínuo, considera-se ainda uma quinta modalidade de convulsão neonatal: os espasmos. Tais manifestações consistem em movimentos ou abalos muito rápidos e curtos de extensão, flexão ou flexão/extensão, durando não mais que 1-2 segundos, não provocados por estimulação, nem parados pela pressão ao toque.

De acordo com os referidos autores (M&K):

  • as convulsões clónicas focais, tónicas focais e mioclónicas generalizadas, assim como os espasmos são em regra associados a descargas electrográficas (convulsões epilépticas);
  • os automatismos motores subtis, as generalizadas, as tónicas generalizadas e os episódios mioclónicos multifocais traduzem mais frequentemente fenómenos de libertação secundários a lesão cerebral, do que verdadeiras convulsões epilépticas.

Salienta-se que muitas vezes, pela complexidade do quadro clínico e dos factores potencialmente lesivos para o SNC, a destrinça entre convulsões epilépticas e não epilépticas é difícil, tornando-se necessário proceder à utilização do EEG contínuo à cabeceira do doente.

Exames complementares

Perante uma convulsão, há pois que caracterizar as manifestações clínicas e proceder a exames complementares para esclarecimento etiológico tendo em conta a história clínica e as hipóteses que podem ser sugeridas pela consulta do Quadro 1. Alguns destes exames (prioritários) são abordados a propósito da actuação prática. (ver adiante)

Nesta alínea cabe uma referência especial aos seguintes:

  • EEG contínuo para se poder apreciar o traçado de base e a existência ou não de actividade paroxística; importa referir que pode haver actividade eléctrica paroxística detectada pelo EEG sem qualquer manifestação clínica. É a chamada “dissociação electroclínica”, relacionada com a imaturidade das conexões corticais;
  • aEEG (EEG de amplitude integrada) utilizável em situações especiais; no capítulo seguinte, relacionado com hipóxia-isquémia como causa de convulsões, é abordada esta modalidade;
  • Vídeo-EEG para o esclarecimento de casos recorrentes e hospitalizados (correlação entre as manifestações clínicas e o traçado electroencefalográfico) – técnica ainda não disponível em todos os serviços hospitalares;
  • RM (Ressonância Magnética) com particular interesse admitindo a hipótese de enfarte cerebral (na sua forma típica em território da artéria cerebral média).

Nota importante:
O enfarte de um território arterial na sua forma típica é decorrente duma artéria importante (artéria cerebral média). Começa por edema seguido de isquémia, sendo por vezes secundário a hemorragia. Semanas mais tarde a zona é substituída por quistos. Estes acidentes podem ocorrer no período de vida fetal ou intraparto. Situações como a gemelaridade e defeitos cardíacos podem condicionar esta patologia. Manifestam-se precocemente por convulsões precoces. A RM detecta a lesão com muito pormenor e permite definir o prognóstico quanto à função motora.

Diagnóstico diferencial

Ao abordar o tema “convulsões no RN” importa estabelecer a destrinça entre estas e outras perturbações paroxísticas/fenómenos motores de origem não epiléptica: tremores, mioclonias neonatais benignas do sono profundo e hiperecplexia.

Eis alguns sinais que permitem tal destrinça com:

Tremores

  • Os tremores são movimentos rítmicos de pequena amplitude, assim como de amplitude e frequência regulares; na convulsão (clónica) existe uma componente de movimento rápido e uma componente de movimento lento;
  • Os tremores são sensíveis a estímulos externos; são interrompidos com uma flexão passiva e suave do membro onde se verificam, o que não acontece na convulsão;
  • Os tremores não se acompanham de fenómenos oculares como fixação ou desvio ocular nem de alterações autonómicas (por ex. taquicárdia, crises de apneia, fenómenos vasomotores cutâneos, sialorreia ou alterações pupilares), ao contrário da convulsão.

Mioclonias neonatais benignas do sono profundo

  •  Esta situação, associada a exame neurológico normal e consistindo em abalos repetidos das extremidades somente durante o sono – mais frequentemente durante o sono calmo (REM) – cessa com o despertar e após os 2 meses.

Hiperecplexia (na língua inglesa denominada startle disease)

  • Este quadro, raro, traduz-se por espasmo tónico símile “sobressalto” induzido por estímulo externo.

Tratamento

Tendo em consideração que a convulsão, independentemente do factor etiológico, poderá resultar em lesão do SNC, sobretudo se for mantida, há que estabelecer prioridades na actuação, a qual deve ser precoce, urgente e, por vezes emergente; salienta-se, a propósito, que uma convulsão mantida origina incremento do consumo de glucose, substrato fundamental para o metabolismo da célula cerebral.

Embora, para fins didácticos, se estabeleça um esquema sequencial de actuação, por vezes torna-se necessário levar a cabo certas medidas quase em simultâneo, o que implica a colaboração de uma equipa especializada e experiente (por conseguinte, mais do que uma pessoa).

Aspectos gerais

  • promover ventilação (RCR inicial e eventual ventilação mecânica ulteriormente em função do quadro clínico) e perfusão adequadas, estabilidade hemodinâmica e aplicação de venoclise com soluto glucosado;
  • detectar factores etiológicos susceptíveis de correcção (hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesiémia, outras alterações hidro-electrolíticas e do equilíbrio ácido-base, infecção, etc.);
  • iniciar tratamento com fármacos anticonvulsantes adiante especificados;
  • monitorizçaão de sinais vitais;
  • realização doutros exames complementares em função da história clínica incluindo exames neuroimagiológicos, com prioridade para a ecografia transfontanelar;
  • nos casos em que não seja detectada etiologia específica, haverá que admitir a possibilidalidade de doença hereditária do metabolismo, o que obriga a ulterior análise de sangue para doseamento de lactato, amónia, aminoácidos séricos, e de urina para pesquisa e doseamento de ácidos orgânicos, etc..

Tratamento anticonvulsante

As opiniões dos autores especialistas e investigadores em neurologia neonatal dividem-se quanto à indicação de tratamento anticonvulsante: enquanto alguns recomendam que somente os RN com convulsões clínicas devem ser tratados com fármacos anticonvulsantes, outros opinam que, não só na situação anterior, mas também nos casos de alterações do EEG sem manifestações clínicas se deve proceder a tal tratamento, tendo em consideração o efeito adverso das alterações ao nível da célula do sistema nervoso sobre o metabolismo do cérebro imaturo.

Na prática, os fármacos antiepilépticos mais usados, são o fenobarbital, a fenitoína e as benzodiazepinas.

Fenobarbital

Este fármaco é em geral utilizado em 1ª linha; com vida média oscilando entre 45 e 173 horas, são habitualmente utilizadas as seguintes doses:

  • dose inicial de sobrecarga: 20 mg/kg IM ou IM, em cerca de 10-15 minutos se o RN estiver ventilado; em RN não ventilado a dose total de 20 mg é desdobrada em duas de 10 mg administradas sequencialmente com intervalo de 20 minutos.
    No caso de a dose inicial não ser efectiva, doses subsequentes de 5 ou 10 mg/kg em intervalos de 10 ou 15 minutos até ser atingida dose total de 40 mg/kg.
  • dose de manutenção: 5 mg/kg/dia (IM, IV ou oral a dividir por duas doses diárias), sendo recomendados níveis séricos terapêuticos/vale entre 16 e 40 mcg/mL; a colheita de sangue para doseamento do fármaco deverá ser feita antes da primeira dose diária.

O fenobarbital é eficaz em cerca de 70% a 80% das convulsões neonatais.

Fenitoína

Se após dose de 40 mg/kg de fenobarbital as crises de convulsões persistirem, deve iniciar-se a administração (concomitante) de fenitoína:

  • dose inicial de sobrecarga: 15 a 20 mg/kg IV (0,5-1 mg/kg/minuto) ou 7,5 a 10 mg/kg com intervalo de 20 minutos, de modo a atingir nível sérico entre 15 a 20 mcg/mL;
  • dose de manutenção: 4-8 mg/kg/dia (IV a dividir por duas doses diárias), sendo o início da manutenção 12 horas após a dose inicial.

A fenitoína é eficaz em cerca de 15% dos casos de convulsões que não cederam ao fenobarbital. Os níveis séricos são difíceis de manter porque o fármaco se redistribui rapidamente pelos tecidos, problema que é potenciado se a administração for por via oral; por isso, a manutenção não pode ser mantida por via oral. A absorção por via IM é irregular. Assim, como regra prática, não é recomendada a continuação do fármaco uma vez cessadas as convulsões e/ou removida venoclise.

Chama-se a atenção para o efeito secundário de cardiotoxicidade.

Benzodiazepinas

O diazepam, com uma vida média de cerca de 54 horas no RN pré-termo e de 18 horas no RN de termo, é a benzodiazepina mais frequentemente utilizada; a via aconselhada é a IV, pois a via IM condiciona absorção muito lenta.

Como limitações da sua utilização são citadas as seguintes: maior probabilidade de hipotonia e de depressão respiratória, sobretudo se utilizado em associação com barbitúricos; níveis terapêuticos próximos dos tóxicos; pela forte ligação às proteínas verifica-se tempo de impregnação no SNC fugaz, razão pela qual não está indicado em regime de manutenção; o benzoato de sódio, seu veículo para uso IV, compete com a bilirrubina na sua ligação à albumina, o que aumenta o risco de kernicterus.

  • dose em situação aguda (não seguida de manutenção): 0,1-0,2 mg/kg IV em administração lenta (2 minutos), seguindo-se perfusão ao ritmo de 0,5 mcg/kg/minuto, com incrementos de 0,5-1 mcg/kg cada 2 minutos até resposta favorável, não ultrapassando 7 mcg/kg/minuto.; pode ser repetida 15 a 30 minutos depois.

Como efeito secundário significativo cita-se a hipotensão.

O lorazepam IV (não disponível em todos os países), pode ser utilizado como alternativa ao diazepam na dose de 0,05-0,1 mg em 2 a 5 minutos, também podendo ser repetida a sua administração; a probabilidade de depressão respiratória é menor.

O midazolam IV utiliza-se na dose inicial de 0,15 mg/kg seguida da dose de 0,1-0,4 mg/kg/hora em regime de manutenção.

Nos casos de convulsões recorrentes verificadas nas primeiras horas de vida, e sem achados complementares esclarecedores, está indicado proceder a prova terapêutica com piridoxina endovenosa (50-100 mg/kg) durante a convulsão com monitorização simultânea de EEG; em situação de carência de piridoxina verifica-se cessação da crise e do traçado anómalo do EEG, o que implica ulterior terapêutica de manutenção na dose de 50-100 mg/dia por via oral ou endovenosa.

Mais raramente, sobretudo no contexto de convulsões refractárias e/ou associadas a patologia de base grave (por ex. defeitos congénitos do SNC, infecções, hipóxia-isquémia grave, hemorragia intracraniana e outras modalidades de AVC, etc.), implicando cooperação de neurologista-pediatra, são utilizados os fármacos levetiracetam e o topiramato, considerados de segunda e terceira escolha.

Duração do tratamento anticonvulsante

Para decidir sobre a duração do referido tratamento, foram consideradas:

  • a possibilidade de efeitos adversos do tratamento anticonvulsante prolongado sobre a morfologia e metabolismo das células neuronais;
  • que a duração do período de “lua de mel” ou livre de convulsões após o período neonatal é imprevisível – meses a anos.

Nesta perspectiva, foram definidos critérios que legitimam a interrupção do tratamento iniciado no período neonatal, mesmo nos casos de risco elevado de recorrência; como regra geral, o fenobarbital poderá ser suspenso se o exame neurológico e o EEG não revelarem alterações.

O processo de suspensão do fenobarbital deve ser gradual, em duas semanas.

Salienta-se que nos casos de antecedentes de EHI e de depressão importante nos traçados do EEG, existe probabilidade de recorrência de cerca de 30%-50%; nos casos de hipoglicémia e hipocalcémia, e na ausência de doença hereditária do metabolismo, tal probabilidade é praticamente nula.

Seguimento e prognóstico

Desde que as crises sejam controladas, o tratamento na data da alta depende fundamentalmente do diagnóstico, do resultado do exame neurológico e do EEG intercrise.

Se o resultado do exame neurológico evidenciar alterações, deverá ser mantida a terapêutica com anticonvulsante oral, mais frequentemente fenobarbital, e o paciente ser encaminhado para consulta de Neurologia pediátrica ao cabo de 4-5 semanas.

Como factores preditivos do prognóstico, apontam-se fundamentalmente as características das convulsões, a resposta ao tratamento inicial, a doença de base, e as alterações do EEG.

Com efeito, as crises de início mais precoce, tónicas, prolongadas (> 10 minutos/hora) e refractárias ao tratamento, assim como sinais do EEG evidenciando actividade eléctrica de baixa voltagem e padrão de “surto-supressão” na fase intercrise, são associados a prognóstico mais reservado.

Ao longo dos anos, o prognóstico das síndromas acompanhadas de convulsões tem melhorado graças aos progressos na assistência perinatal. No que respeita à morbilidade, os estudos epidemiológicos apontam proporção de sequelas entre 20% a 35% dos casos (principalmente insuficiência mental e doença motora não progressiva), sendo que, em muitas situações, aquelas se relacionam mais com a doença de base do que com as próprias convulsões; as convulsões recorrentes são referidas com uma frequência entre 15% e 20%.

Comparando as alterações do desenvolvimento em RN de termo e pré-termo, a médio e longo prazo, a proporção daquelas é muito maior no segundo caso (cerca de 75%) do que no primeiro (cerca de 40%).

Quanto à mortalidade, considerando globalmente RN pré-termo e de termo (~ 20%-25%), salienta-se que mais de metade dos óbitos ocorre nos RN pré-termo.

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Definições e importância do problema

A encefalopatia neonatal é uma síndroma definida clinicamente por disfunção neurológica no RN de termo no período neonatal precoce. Manifesta-se por uma combinação de sinais incluindo alteração do estado de consciência, tono muscular ou reflexos anormais, alterações da função autonómica, ou convulsões.

A importância deste problema clínico, relacionado com lesão neonatal do SNC, pode ser tipificada por números: em todo o mundo, anualmente, letalidade de 1 milhão de crianças e 1 milhão de casos com sequelas permanentes e invalidantes.

Como factores etiológicos descrevem-se os seguintes:

  1. combinação de hipóxia e isquémia intra ou pré-parto (encefalopatia hipóxico-isquémica/EHI) que pode ser acompanhada por sinais de sofrimento fetal, e diversas patologias do foro vascular, incluindo hemorragia intracraniana e acidente vascular cerebral;
  2. lesão secundária a traumatismo de nascimento;
  3. infecções;
  4. alterações genéticas;
  5. alterações metabólicas; e
  6. anomalias congénitas cerebrais.

Neste capítulo é dada ênfase à EHI em RN de termo. Nos capítulos seguintes são abordadas as seguintes nosologias: Hemorragias Intracranianas, Enfarte Cerebral e Leucomalácia Periventricular, esta última associada a determinado grupo de hemorragias intracranianas, como paradigma de lesão da substância branca.

Na literatura médica, relativamente à patologia parenquimatosa (adquirida) do SNC no RN, é adoptada uma sistematização nosológica diversa. Como alternativa ao termo Encefalopatia Neonatal, emprega-se o termo Lesão Cerebral Neonatal. Assim, neste conceito, são englobadas as seguintes entidades: Encefalopatia Hipóxico-Isquémica, Enfarte Cerebral, Hemorragia Intracraniana, Lesão da Substância Branca, Abcessos Cerebrais e Tumores Cerebrais.

ENCEFALOPATIA HIPÓXICO-ISQUÉMICA

Introdução

A EHI pressupõe a existência de lesão cerebral atribuída a hipóxa-isquémia.

O défice de oxigenação tecidual pode ser causado, quer por hipoxémia (diminuição do conteúdo em oxigénio no sangue), quer por isquémia (redução da perfusão sanguínea em determinado território); em geral, estes dois eventos ocorrem em simultâneo ou de modo sequencial.

Asfixia define-se como o compromisso das trocas gasosas, correspondendo, não só ao défice de oxigenação sanguínea, mas igualmente ao excesso de CO2 (hipercápnia), com consequente acidose.

O diagnóstico de asfixia perinatal implica a presença de 4 critérios:

  1. pH arterial umbilical <7,0;
  2. índice de Apgar 0-3 aos 5 minutos;
  3. sinais neurológicos no pós-parto;
  4. disfunção multiorgânica no período neonatal imediato (pulmonar, renal, cardiovascular, metabólico, gastrintestinal, hematológico), ou morte.

Uma situação de asfixia perinatal mantida, determinando a hipotensão e isquémia e conduzindo a alteração do débito sanguíneo cerebral, é a causa mais frequente de encefalopatia hipóxico-isquémica (EHI).

A designação de depressão neonatal corresponde à situação clínica de RN de termo com adaptação prolongada à vida extrauterina, geralmente associada a índice de Apgar baixo ao 1 e 5 minutos.

Aspectos epidemiológicos

A incidência de EHI (causa importante de morbilidade e de mortalidade) é cerca de 2 a 9/1.000 nados-vivos, em proporção muito maior nos países em desenvolvimento.

A mortalidade global por asfixia perinatal oscila entre 10% e 30%; a frequência de sequelas no âmbito do neurodesenvolvimento em sobreviventes com tal patologia é da ordem de 15% a 45%.

O risco de paralisia cerebral (PC), havendo antecedentes de asfixia perinatal, é 5%-10% em comparação com 0,2% na população geral. De acordo com estudo nacional sobre PC aos 5 anos, foi possível atribuir a etiologia “asfixia perinatal e neonatal” em 11% dos casos.

Importa referir-se, a propósito, que qualquer anomalia neurológica detectada após o período neonatal (designadamente na 1ª e 2ª infância) somente poderá ser atribuída a asfixia perinatal se se tiver verificado quadro compatível com EHI no período neonatal imediato.

Nota importante:
A maioria das situações de PC não se relaciona com asfixia perinatal e a maioria das situações de asfixia perinatal não causa PC.

Etiopatogénese

A agressão hipóxico-isquémica pode verificar-se de maneira aguda ou crónica, e em qualquer momento da gestação. Actualmente, admite-se que a lesão neuronal conduzindo à necrose, e relacionada com asfixia, surge após fase inicial de hipóxia-isquémia, isto é, na fase de reperfusão cerebral.

Durante os eventos de asfixia (que, em 90% dos casos, ocorrem ante- ou intra-parto), o metabolismo cerebral altera-se substancialmente; na falta de O2, entra em acção a glicólise anaeróbia como fonte energética de alternativa para a célula nervosa o que, por sua vez, conduz a depleção rápida da ATP neuronal, acumulação de lactato, e falência dos mecanismos de “bomba” da membrana, o que leva ao aparecimento de acidose. Desta última falência resultam influxo e acumulação intracelular de Na+ e Ca++ e de aminoácidos excitatórios tais como o aspartato e glutamato, levando a edema citotóxico e a vasospasmo.

Sendo restaurado o débito sanguíneo cerebral (reperfusão), são produzidos radicais livres de oxigénio e de óxido nítrico, o que leva ao agravamento do vasospasmo e a lesão mitocondrial. Estes, juntamente com o edema citotóxico, conduzem à morte neuronal, que pode ser imediata ou processar-se de modo progressivo em diversas áreas.

O óxido nítrico (nas células e nos endotélios), considerado inicialmente factor protector pelo efeito vasodilatador e antiagregante das plaquetas, reage com o superóxido produzindo peroxinitrito, de cuja degradação resulta o radical hidroxilo, potente agente oxidante.

Outro efeito da elevação do cálcio intracelular é a estimulação das fosfolipases que promovem a destruição das membranas fosfolipídicas das membranas neuronais com libertação de ácido araquidónico cuja metabolização – quer pela via da cicloxigenase, quer pela da lipoxigenase – leva à formação de compostos vasoconstritores (por ex. leucotrienos e tromboxanos) agravando a isquémia inicial.

No recém-nascido de termo, a necrose neuronal é selectiva, sendo atingidas as seguintes zonas: os hemisférios, o córtex visual, o hipocampo, os núcleos cinzentos centrais, o tálamo e o hipotálamo. No tronco cerebral são afectados os tubérculos quadrigémeos, os núcleos oculomotores, a formação reticulada, os núcleos da protuberância e os núcleos bulbares.

A gravidade das lesões exprime-se em geral de forma descendente; nas formas moderadas, as lesões são restritas ao córtex; e, nas formas graves, são afectados os núcleos cinzentos centrais.

A propósito dos mecanismos de lesão cerebral no RN de termo cabe salietar os resultados da investigação de Ferriero. Este autor chamou a atenção para uma particularidade do efeito do estresse oxidativo e da excitotoxicidade: simultaneamente inflamação e fenómeno de reparação. A morte celular inicia-se imediatamente após a agressão, continuando durante dias ou semanas. Verifica-se, contudo, uma mudança no fenótipo da morte celular variando entre padrão de morfologia necrótica precoce e patologia assemelhando-se a apoptose. A este tipo de evolução chama-se continuum de necrose-apoptose.

A nova modalidade de tratamento com hipotermia (ver adiante) permite reduzir o metabolismo cerebral, o edema citotóxico, a pressão intracraniana e a apoptose. De referir também como efeitos benéficos limitar a extensão da lesão neuronal através de mecanismos diversos tais como inibição de radicais livres.

Para além do SNC, outros órgãos podem evidenciar repercussões da asfixia, tais como:

  • rim, o órgão mais frequentemente afectado no contexto de asfixia perinatal (necrose tubular aguda ou cortical);
  • miocárdio e músculo estriado (isquémia, diminuição da contractilidade ventricular, insuficiência tricúspide, frequência cardíaca fixa, com ausência de variabilidade);*
  • sistema digestivo (isquémia intestinal e ECN);
  • sangue periférico, medula óssea e fígado (disfunção hepática, deficiente produção de factores de coagulação, deficiente produção de plaquetas);
  • sistema respiratório (aumento da resistência vascular pulmonar, disfunção e destruição do surfactante, hemorragia);
  • suprarrenal (hemorragia suprarrenal).

Etiopatogénese

A agressão hipóxico-isquémica pode verificar-se de maneira aguda ou crónica, e em qualquer momento da gestação. Actualmente, admite-se que a lesão neuronal conduzindo à necrose, e relacionada com asfixia, surge após fase inicial de hipóxia-isquémia, isto é, na fase de reperfusão cerebral.

Durante os eventos de asfixia (que, em 90% dos casos, ocorrem ante- ou intra-parto), o metabolismo cerebral altera-se substancialmente; na falta de O2, entra em acção a glicólise anaeróbia como fonte energética de alternativa para a célula nervosa o que, por sua vez, conduz a depleção rápida da ATP neuronal, acumulação de lactato, e falência dos mecanismos de “bomba” da membrana, o que leva ao aparecimento de acidose. Desta última falência resultam influxo e acumulação intracelular de Na+ e Ca++ e de aminoácidos excitatórios tais como o aspartato e glutamato, levando a edema citotóxico e a vasospasmo.

Sendo restaurado o débito sanguíneo cerebral (reperfusão), são produzidos radicais livres de oxigénio e de óxido nítrico, o que leva ao agravamento do vasospasmo e a lesão mitocondrial. Estes, juntamente com o edema citotóxico, conduzem à morte neuronal, que pode ser imediata ou processar-se de modo progressivo em diversas áreas.

O óxido nítrico (nas células e nos endotélios), considerado inicialmente factor protector pelo efeito vasodilatador e antiagregante das plaquetas, reage com o superóxido produzindo peroxinitrito, de cuja degradação resulta o radical hidroxilo, potente agente oxidante.

Outro efeito da elevação do cálcio intracelular é a estimulação das fosfolipases que promovem a destruição das membranas fosfolipídicas das membranas neuronais com libertação de ácido araquidónico cuja metabolização – quer pela via da cicloxigenase, quer pela da lipoxigenase – leva à formação de compostos vasoconstritores (por ex. leucotrienos e tromboxanos) agravando a isquémia inicial.

No recém-nascido de termo, a necrose neuronal é selectiva, sendo atingidas as seguintes zonas: os hemisférios, o córtex visual, o hipocampo, os núcleos cinzentos centrais, o tálamo e o hipotálamo. No tronco cerebral são afectados os tubérculos quadrigémeos, os núcleos oculomotores, a formação reticulada, os núcleos da protuberância e os núcleos bulbares.

A gravidade das lesões exprime-se em geral de forma descendente; nas formas moderadas, as lesões são restritas ao córtex; e, nas formas graves, são afectados os núcleos cinzentos centrais.

A propósito dos mecanismos de lesão cerebral no RN de termo cabe salietar os resultados da investigação de Ferriero. Este autor chamou a atenção para uma particularidade do efeito do estresse oxidativo e da excitotoxicidade: simultaneamente inflamação e fenómeno de reparação. A morte celular inicia-se imediatamente após a agressão, continuando durante dias ou semanas. Verifica-se, contudo, uma mudança no fenótipo da morte celular variando entre padrão de morfologia necrótica precoce e patologia assemelhando-se a apoptose. A este tipo de evolução chama-se continuum de necrose-apoptose.

A nova modalidade de tratamento com hipotermia (ver adiante) permite reduzir o metabolismo cerebral, o edema citotóxico, a pressão intracraniana e a apoptose. De referir também como efeitos benéficos limitar a extensão da lesão neuronal através de mecanismos diversos tais como inibição de radicais livres.

Para além do SNC, outros órgãos podem evidenciar repercussões da asfixia, tais como:

  • rim, o órgão mais frequentemente afectado no contexto de asfixia perinatal (necrose tubular aguda ou cortical);
  • miocárdio e músculo estriado (isquémia, diminuição da contractilidade ventricular, insuficiência tricúspide, frequência cardíaca fixa, com ausência de variabilidade);*
  • sistema digestivo (isquémia intestinal e ECN);
  • sangue periférico, medula óssea e fígado (disfunção hepática, deficiente produção de factores de coagulação, deficiente produção de plaquetas);
  • sistema respiratório (aumento da resistência vascular pulmonar, disfunção e destruição do surfactante, hemorragia);
  • suprarrenal (hemorragia suprarrenal).

*De facto a hipóxia-isquémia leva a lesão da membrana e libertação de substâncias intracelulares para a corrente sanguínea como troponina cardíaca I (cTNI) e péptido natriurético (N-Terminal PRO-BNP) que podem servir de marcadores de disfunção miocárdica. A creatina-quinase (CK-MB) elevada traduz estresse ao nível do músculo liso (ver adiante).

Manifestações clÍnicas

Quanto aos antecedentes há a referir: problemas obstétricos associados a dificuldade mecânica no parto e a difícil adaptação do feto à vida extrauterina com depressão grave traduzida por índice de Apgar baixo; e dificuldade na iniciação e manutenção da respiração espontânea obrigando a manobras de reanimação na sala de partos.

O quadro de EHI integra um conjunto de sinais neurológicos acompanhados ou não, em grau variável, doutras manifestações ao nível doutros sistemas (disfunção multiorgânica): disfunção renal, dificuldade respiratória, hipertensão pulmonar, hipoglicémia, hipocalcémia, acidose, disfunção hepática, enterocolite necrosante, trombocitopénia, CIVD, etc.. Os referidos sinais podem surgir no pós-parto imediato ou mais tarde.

O espectro de manifestações varia entre o grau I ou forma ligeira, grau II ou forma moderada e grau III ou forma grave (Quadro 1, adaptado de M Levene).

QUADRO 1 – Gravidade da EHI.

(adaptado de M Levene, 1985)
Grau I
(ligeira)
Grau II
(moderada)
Grau III
(grave)
Irritabilidade
Hiperalerta
Hipotonia ligeira
Sucção débil
Não convulsões

Letargia

Hipotonia moderada
Sonda de alimentação
Convulsões

Coma

Hipotonia grave
Não respiração espontânea
Convulsões prolongadas

Adoptando os critérios clássicos de Sarnat & Sarnat na EHI (englobando mais parâmetros do que os da classificação de M Levene) podem ser considerados três estádios evolutivos designados respectivamente por estádio 1 (manifestações ligeiras), estádio 2 (manifestações moderadas) e estádio 3 (manifestações graves) (Quadro 2).

QUADRO 2 – EHI – Critérios de Sarnat & Sarnat (Estádios 1, 2 e 3).

Abreviaturas: > = aumentado; < = diminuído; Mov espont = movimentos espontâneos; N = normal; ROT = reflexos ósteo-tendinosos; FC = frequência cardíaca; EEG = electroencefalograma; d = dias; h = horas; episód. = episódios de; GI = gastrintestinal.
Parâmetros 123
Consciência
Mov espont
Tono muscular
Postura
Irritabilidade
Aumentados
N ou > ligeiro
Flexão discreta das extremidades
Letargia
Diminuídos
< ligeiro
Flexão acentuada das extremidades
Estupor ou coma
Diminuídos ou ausentes
Flacidez
Extensão dos membros superiores e inferiores
ROT
Pupilas
N
Midríase
<
Miose ou anisocória
Arreflexia
Hipo/arreflexia à luz
RespiraçãoEspontâneaEspontânea ou apneia episód.Periódica ou apneia
FC
Secreção salivar, brônquica
Motilidade GI
Convulsões
EEG 
>
Escassa
N ou <
Não
N
<
Abundante
>
Frequentes
Amplitude < Espículas focais
Variável
Variável
Variável
Variável
Padrão periódico com fases isoeléctricas ou isoeléctrico
Duração
Prognóstico
< 24 h
Bom
2-14 d
Bom (80%) se < 5 d
Reservado se > 5 d
Horas a semanas
Mortalidade ~50%
Sequelas ~50%

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da EHI faz-se designadamente com outras situações acompanhadas de convulsões.

Nesta alínea cabe uma referência especial a um quadro relacionado com enfarte cerebral de território irrigado pela artéria cerebral média. É caracterizado clinicamente por convulsões de manifestação precoce, tal como acontece em certas formas de EHI.

Com efeito, estes acidentes vasculares podem ocorrer já no período de vida fetal ou intraparto; situações como a gemelaridade e anomalias congénitas cardíacas podem constituir factores predisponentes. Em cerca de 50% dos casos surgem como consequência de asfixia perinatal. Outros mecanismos patogénicos incluem arteriopatia, tromboembolismo/hipercoagulabilidade, vasospasmo e acção traumática.

Exames complementares

Salientando-se a noção de que o diagnóstico de EHI é fundamentalmente clínico, cabe referir alguns exames complementares com interesse para o estudo evolutivo e para avaliação prognóstica e diagnóstico diferencial; a sua escolha deverá ser criteriosa em função dos antecedentes e da evolução clínica.

Genericamente, pode ser evidenciada por critérios bioquímicos (CK-MB, CK-BB), electrofisiológicos (ECG, EEG), imagiológicos (ecografia transfontanelar), TAC, RM, ou anomalias detectadas post-mortem.

Sintetizando:

  • Exame do LCR – poderá estar indicado se existir suspeita de quadro infeccioso.
  • ECG – no âmbito deste exame, segundo estudos recentes, valoriza-se o parâmetro variabilidade da frequência cardíaca (VFC ou HRV) como possível marcador de lesão cerebral, com valor prognóstico. De salientar que a HRV permite avaliar a actividade do sistema nervoso autónomo (simpático e parassimpático), recordando-se que a elevada FC no RN traduz predomínio da actividade simpática associada a diminuição da actividade vagal.
  • EEG – reportando-nos ao Quadro 2, cabe salientar que o traçado se relaciona com a gravidade da situação.
  • aEEG – actualmente, está disponível uma nova modalidade de EEG (designada EEG de amplitude integrada) com vantagens no que respeita à monitorização dos efeitos do tratamento efectuado em situações com convulsões e/ou submetidas a hipotermia como terapêutica (ver adiante).
  • Ecografia transfontanelar – técnica com limitações, a realizar sistematicamente em todos os casos de asfixia perinatal na perspectiva de selecção de casos para outros exames; na fase inicial, a contribuição é escassa, podendo ser detectados sinais de edema; o eco-Doppler permite medir os fluxos arteriais e o chamado índice de resistência (Figuras 1 e 2).
  • TAC – poderá fornecer dados representativos de lesões do córtex cerebral, tálamo, gânglios da base e região periventricular; indicada na 2ª-4ª semana de vida, poderá dar contributo quanto ao prognóstico; igualmente com interesse nos casos em que se admite a hipótese de enfarte cerebral;
  • Espectroscopia de protões – trata-se duma técnica que permite avaliar a concentração de vários substratos do cérebro cujo perfil se altera após episódio de hipóxia-isquémia-reperfusão.

FIGURA 1. Imagem de ecografia transfontanelar de RN com EHI. Aspecto de enfarte na região têmporo-occipital (corte sagital). (UCIN-HDE)

FIGURA 2. Imagem de ecografia transfontanelar de RN com EHI. Aspecto de enfartes na região da fenda e zona cortical (corte coronal). (UCIN-HDE)

No que respeita à avaliação dos efeitos da asfixia em diversos órgãos e sistemas, cabe referir os seguintes exames:

Coração

  • Troponina cardíaca I (cTNI) e troponina cardíaca T (cTnT), proteínas que são marcadores de lesão do miocárdio, com efeito sobre a interacção entre actina e miosina, mediada pelo cálcio. Valores normais: I= 0-0,28 ±0,42 mcg/L; T= 0-0,097 mcg/L. Valores elevados associam-se situações de asfixia comprovada.
  • Creatinacinase, fracção MB (CK-MB). Valores elevados >5-10% poderão indicar lesão miocárdica.
  • NT-pro BNP (valores de referência entre as 24 e 48 horas de vida: mediana de 3300 pg/mL, diminuindo para 1180 pg/mL após 48 horas). Valores superiores devem ser avaliados em função do contexto clínico (ver Glossário Geral).

SNC

  • CK, fracção BB (CK-BB). Valores elevados em situação de asfixia ao cabo de ~12 horas; contudo não tem valor prognóstico.
  • Proteína S-100 + CK-BB. Valores elevados de proteína S-100 (>8,5 mcg/L) + de CK-BB, associados a pH arterial baixo são preditivos de encefalopatia moderada a grave (sensibilidade ~70% e especificidade ~90-95%).

Rim

  • Beta-2 microglobulina urinária (proteína de baixo peso molecular filtrada pelo glomérulo e quase reabsorvida na totalidade no túbulo proximal). Valores elevados são indicadores de disfunção tubular proximal.
  • FENa pode igualmente demonstrar a repercussão sobre a função renal.
  • CysC/cistatina C urinária e NGAL (Neutrophil gelatinase-associated lipocalin) sérica e urinária elevados são também marcadores preditivos precoces de lesão renal aguda secundária a encefalopatia neonatal (consultar bibliografia).
  • Ecografia renal. Anomalias detectadas correlacionam-se com oligúria.

Tratamento

Os princípios gerais do tratamento da EHI – não consensuais em centros internacionais idóneos – obedecem à noção de que a lesão neuronal pode ser minorada se a actuação no periparto for adequada e atempada.

Seguidamente resumem-se os tópicos principais de tal actuação:

  • Ventilação mecânica desde o pós-parto, e por período variando entre 48 a 72 horas em função do contexto clínico, com o objectivo de normalização dos parâmetros de pH e gases no sangue na tentativa de manutenção dos seguintes valores: pH (7,25-7,40), PaO2 (50-70 mmHg), PaCO2 (45-60 mmHg), SpO2 (90-93%);
  • Estabilização hemodinâmica, metabólica e hidroelectrolítica; ou seja, manutenção dos valores normais da pressão arterial, da glicémia, da natrémia, da potassémia com monitorização da diurese e dos parâmetros da função renal (osmolalidades sérica e urinária, creatinina sérica, ionogramas urinário e sérico, etc.);
  • Tratamento das convulsões;
  • Tratamento do edema cerebral através da administração de corticóides e manitol.

Outras medidas têm por finalidade prevenir a morte neuronal tardia por mecanismos diversos tais como administração de barbitúricos (tiopental), bloqueantes dos canais do cálcio, bloqueantes dos receptores dos neurotransmissores, inibidores da sintetase do óxido nítrico e células histaminais obtidas do cordão umbilical.

A hipotermia corporal iniciada antes das 6 horas de vida (providenciando temperaturas ~33-34ºC durante 72 horas, com reaquecimento ulterior progressivo), constitui um método já aplicado no nosso país com as seguintes indicações: < 6 horas de vida, > 36 semanas de idade gestacional, evidência de asfixia perinatal, EHI moderada ou grave e exclusão de defeitos congénitos.

O grau de EHI deve ser avaliado até 1 hora de vida no sentido de identificar forma ligeira (obrigando a hipotermia passiva), ou forma moderada a grave (obrigando a hipotermia induzida). Na forma moderada a grave está indicada transferência para hospital onde possa ser aplicada hipotermia induzida/terapêutica.

Os pormenores desta técnica ultrapassam os objectivos deste livro.

Como terapêuticas emergentes, em fase de investigação, citam-se a administração de eritropoietina e de células estaminais.

Prognóstico

Em complemento do que foi descrito no Quadro 2, e de acordo com diversos estudos multicêntricos, salienta-se que a mortalidade por EHI oscila entre 10 e 15%. As principais sequelas (15-20%) detectadas são: paralisia cerebral (formas discinéticas e tetraplegia), epilepsia, insuficiência mental, microcefalia, cegueira cortical, surdez e perturbações da linguagem.

Em suma, quanto mais precocemente se manifestarem os sinais neurológicos, maior duração tiverem, e mais exuberantes os achados do EEG, pior o prognóstico.

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Introdução

As hemorragias intracranianas no RN compreendem classicamente as seguintes entidades clínicas:

  1. Hemorragia cerebelosa;
  2. Hemorragia intraparenquimatosa;
  3. Hemorragia intraperiventricular (HIPV);
  4. Hemorragia subaracnoideia;
  5. Hemorragia subdural.

No capítulo sobre Traumatismos de Parto foi feita referência sucinta às hemorragias subdural e subaracnoideia, entidades associadas a lesões traumáticas.

Relativamente à hemorragia subdural, rara e própria do RN de termo, é importante referir que:

  • – quanto à evolução, estão descritas: – formas rapidamente letais; e formas mais benignas;
  • – quanto à localização: – formas infratentoriais ou da fossa posterior; e – formas localizadas à convexidade cerebral.

Quanto à hemorragia subaracnoideia, a mesma pode surgir associada a alterações circulatórias em RN pré-termo sem antecedentes de traumatismo de parto.

Tal como na hemorragia subdural, quando abundante, pode também ser rapidamente fatal, descrevendo-se como manifestações típicas as convulsões.

Neste capítulo, dando ênfase à hemorragia intraperiventricular (HIPV), abordam-se também as hemorragias cerebelosa e parenquimatosa.

1. HEMORRAGIA CEREBELOSA

Definição e importância do problema

Trata-se de hemorragia de localização intracerebelosa, incluindo ambos os hemisférios e o vermis. As lesões mais pequenas podem localizar-se sob a pia-máter ou sob o epêndimo. Nos RN de termo, a hemorragia inicia-se no vermis. É mais frequente em RN pré-termo com < 32 semanas de idade gestacional (em cerca de 15%-25% da totalidade das referidas hemorragias).

Etiopatogénese

No que se refere à etiopatogénese, multifactorial, cumpre referir o papel importante do trauma relacionado com o parto no contexto de aplicação de fórceps, apresentação de nádegas e asfixia perinatal.

Manifestações clínicas

As manifestações são geralmente subtis, sendo que, nos casos mais graves, poderão iniciar-se entre o 1º dia e as 2-3 semanas de vida. Surgindo no pós-parto imediato em casos de prematuridade, a lesão é fatal.

Como sinais clínicos mais representativos apontam-se os derivados da compressão do tronco cerebral (apneia, dificuldade respiratória, bradicárdia) e da obstrução do LCR (com hipertensão da fontanela, disjunção das suturas e dilatação ventricular). Outros sinais possíveis são: estrabismo, parésia facial, extensão tónica intermitente das extremidades, opistótono e tetraparésia.

Exames complementares

Perante a suspeita clínica face aos antecedentes perinatais, importa proceder a ecografia transfontanelar, ou transasterion, havendo disjunção das suturas.

A TAC-CE tem indicação com o fundamento de avaliar a extensão e distribuição da lesão. A RM deve estar reservada para os casos em que a TAC não permite esclarecer o diagnóstico.

2. HEMORRAGIA PARENQUIMATOSA

Este tipo de hemorragias intracranianas, surgindo geralmente em RN de termo, tem um prognóstico mau pelo risco elevado: – de sequelas várias; – de mortalidade rondando os 25%; e – de associação a alta incidência de paralisia cerebral (~10%).

Como particularidade, importa referir que em cerca de 30% dos casos há antecedentes de cesariana electiva ou de partos sem complicações, sobretudo em nulíparas.

Generalidades sobre o tratamento das hemorragias intracranianas (exceptuando HIPV)

Não existem critérios uniformes quanto ao tratamento.

→ No que respeita aos hematomas da fossa posterior, os resultados são semelhantes apenas com vigilância ou com tratamento médico. A intervenção neurocirúrgica está indicada perante deterioração neurológica ou sinais de compromisso do tronco cerebral.

→ Quanto às hemorragias supratentoriais, está indicada a cirurgia se as dimensões do hematoma forem importantes e se surgirem sinais de hipertensão intracraniana.

→ Nas situações de hematoma subdural evoluindo para a cronicidade, a fim de evitar desproporção craniofacial ou hipertensão intracraniana, está indicada a realização de punções subdurais; se estas não conduzirem à regressão, procede-se a intervenção neurocirúrgica.

3. HEMORRAGIA INTRAPERIVENTRICULAR (HIPV)

Definição e importância do problema

A chamada hemorragia intraventricular (HIV) é uma situação clínica típica nos RN pré-termo, caracterizada por processo hemorrágico localizado na área cerebral da matriz germinal, contígua com o ventrículo lateral em localização lateral-ventral.

Quando se verifica ruptura do epêndimo, a hemorragia, inicialmente periventricular, estende-se ao ventrículo – que pode sofrer dilatação – passando a chamar-se intraperiventricular (HIPV).

Há duas décadas verificava-se uma incidência de 30% em RN pré-termo de peso inferior a 1.500 gramas; com os progressos na assistência perinatal tem-se assistido a diminuição da mesma (na actualidade, em países industrializados e com recursos de terapia intensiva, cerca 12% a 15% em RN com < 32 semanas gestacionais).

Salienta-se, a propósito, que a incidência global abrangendo as diversas formas de hemorragia intracraniana neonatal (subdural, epidural, subaracnoideia, parenquimatosa e da matriz germinativa/intraventricular) varia entre 2% e > 30% em função da idade gestacional.

Como resultado de tal patologia poderão surgir sequelas neurológicas graves.

Aspectos do desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC)

Para a compreensão da problemática relacionada com a HIPV, é importante abordar de modo sucinto alguns aspectos do desenvolvimento do SNC, sugerindo-se a leitura complementar de textos relativos à anatomofisiologia respectiva, e do capítulo seguinte.

 O desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC) no decurso dos primeiros meses de gestação é caracterizado fundamentalmente por um processo de multiplicação e migração celulares: na sequência dum primeiro período de histogénese, na segunda metade da gravidez verifica-se marcado crescimento e diferenciação celulares, com continuidade após o nascimento.

A proliferação glial e neuronal é rápida nos primeiros meses, ocorrendo preferencialmente na zona ventricular do neuroepitélio primitivo. As células gliais radiárias estendem-se ao longo da parede ventricular até à pia-máter, servindo de guia a todos os neurónios jovens que vão surgir na zona germinativa ventricular. Todos estes eventos têm influência no número, diferenciação, e disposição da glia: qualquer noxa que actue nesta fase poderá originar alterações da migração, organização do tecido neuronal, e mielinização.

A partir da zona ventricular, uma primeira geração de neurónios em franca proliferação celular migra para a parte externa do tubo neural para formar a placa subcortical ou “sub placa”. Esta camada de células é em seguida atravessada por neurónios jovens que, em vagas sucessivas, vão formar, de dentro para fora, a placa cortical ou o futuro córtex. A migração celular termina por volta das 20-24 semanas, ficando então o capital neuronal fixado definitivamente.

A matriz germinativa é uma região transitória muito vascularizada, involuindo a partir das 34 semanas; praticamente desaparecida no termo da gestação, cabe salientar que os respectivos vasos, com características peculiares (grandes e irregulares, não exibindo características de arteríolas ou vénulas e constituídos basicamente por endotélio e membrana basal frágil), são muito vulneráveis a diversas noxas. A matriz germinativa, confinando com o ventrículo lateral, é um local de mitoses e proliferação celular, com produção de células gliais e de oligodendrócitos, os quais produzem mais tarde a mielina; a matriz germinativa produz igualmente astrócitos, que migram para a superfície externa do córtex.

A placa subcortical é uma estrutura transitória cujos neurónios, migrando, vão constituir o córtex; tais células, diferenciando-se, contribuem igualmente para a formação de receptores, de neurotransmissores e de factores de crescimento. A actividade destes neurónios processa-se a partir das 15 semanas de gestação, mantendo-se até cerca das 22-34 semanas; mediante processo de apoptose que, entretanto, se inicia e se processa até aos 6 meses de vida pós-natal, torna-se progressivamente nítido o desenvolvimento de conexões e de estruturas definitivas.

A formação dos sulcos acompanha a formação do córtex. O aspecto deste é liso cerca das 20 semanas, acelerando-se o seu crescimento no último trimestre; as etapas de formação dos sulcos são bem precisas, permitindo uma relação sequencial com a idade gestacional.

Os primeiros vasos sanguíneos provenientes da rede meníngea são alimentados por três grandes artérias cerebrais; têm um trajecto perpendicular à superfície na sua “penetração” e progressão para as camadas profundas. De salientar que a proliferação da árvore vascular é particularmente activa durante a fase de proliferação neuronal, sendo a maturação morfológica dos capilares muito precoce e muito rápida.

A mielinização constitui um fenómeno essencial para a velocidade de condução do influxo nervoso; o conjunto dos axónios mielinizados, formando um tecido branco nacarado, constitui a chamada substância branca.

Etiopatogénese e factores de risco

A HIPV, cuja etiopatogénese é multifactorial e envolve aspectos controversos, sem unanimidade entre os especialistas e investigadores, origina-se na zona da matriz germinal subependimária, zona muito vascularizada a partir da qual se geram neuroblastos e glioblastos. A mesma sofre processo de involução a partir das 34 semanas; ou seja, tal zona germinal tem tanto maior dimensão quanto menor a idade gestacional.

Os vasos capilares da referida matriz são constituídos por estrutura indiferenciada: endotélio e membrana basal frágil com escassez de tecidos de suporte envolvente e muito dependentes do metabolismo oxidante; tal fragilidade estrutural predispõe à ruptura e hemorragia por acção de determinados factores determinantes, mecânicos e hipóxico-isquémicos (factores vasculares).

Para além dos factores vasculares, são descritos outros factores determinantes (intravasculares e extravasculares).

Os factores extravasculares são constituídos pelo deficiente suporte tecidual envolvente e pela actividade fibrinolítica aumentada.

Os factores intravasculares podem ser sistematizados do seguinte modo:

  • hipotensão arterial com consequente hipoxémia e isquémia, seguidas de reperfusão;
  • alterações da coagulação e das plaquetas nem sempre explicadas (trombocitopénia, disfunção plaquetar), podendo originar obstrução paulatina de ramos das artérias cerebrais, já no terceiro trimestre da gravidez;
  • pressão venosa aumentada por dificuldade do retorno venoso, determinando congestão excessiva ao nível da zona germinal (associada a situações clínicas na transição fetal para a vida extrauterina, tais como trabalho de parto laborioso por via vaginal e a dificuldade respiratória, etc.);
  • débito cerebral aumentado e situações clínicas como hipertensão arterial de etiopatogénese diversa, hipercápnia e aumento da pressão arterial de CO2, hipervolémia, diminuição do hematócrito (a diminuição de 1 mmol/L de Hb contribui para incremento de 12% do débito cerebral), hipoglicémia, etc.;
  • instabilidade hemodinâmica com flutuações da pressão arterial e do débito cerebral (por exemplo em casos de ventilação mecânica assíncrona com os movimentos respiratórios do RN, susceptível de ser revertida por acção de agentes paralisantes musculares), manuseamento intempestivo do RN, convulsões, pneumotórax, aspiração traqueal em RN ventilados, canal arterial permeável, FiO2 elevada, etc..

Os mecanismos de lesão cerebral associados a HIPV podem ser assim sintetizados:

  1. congestão venosa e isquémia periventricular;
  2. destruição da matriz (com consequente destruição dos precursores da glia, formação quística e repercussão no desenvolvimento futuro por lesão cerebral);
  3. necrose hemorrágica na substância branca periventricular (unilateralmente) por obstrução do retorno venoso por sangue coagulado.
    De salientar que tal necrose/lesão da substância branca:
    • não resulta da extensão da hemorragia ventricular para o parênquima;
    • é distinta da leucomalácia periventricular – LPV (lesão simétrica bilateral, não hemorrágica, relacionável com perturbação circulatória arterial), abordada adiante, em capítulo próprio.*

*A LPV é uma forma de lesão da substância branca, frequentemente associada a HIPV na zona da matriz germinal, e cujo mecanismo exacto não está totalmente esclarecido: admite-se que seja secundária a isquémia e inflamação, associada a activação glial e a lesão dos preoligodendrócitos.

 

  1. hidrocefalia, desenvolvendo-se de forma aguda (dias), ou de modo progressivo e lento (designada lentamente progressiva, em semanas), explicável pelo fluxo de sangue coagulado ventricular através dos buracos de Magendie e Luschka, originando obstrução ao nível do quarto ventrículo e compromisso da circulação e/ou de reabsorção do LCR; se se verificar obstrução do aqueduto de Sylvius a hidrocefalia é não comunicante. Surge em cerca de 40% das grandes hemorragias.

Notas importantes:

    • De acordo com os conceitos de Volpe, determinada área de necrose inicialmente não hemorrágica pode evoluir para necrose hemorrágica no contexto de subsequente fenómeno de reperfusão a qual, por sua vez, poderá agravar a HIPV;
    • A hidrocefalia que surge nos casos de HIPV tem uma patogénese diversa da chamada ventriculomegália, esta última compensatória de atrofia cortical (tipo ex-vacuo);
    • No RN de termo, a HIPV pode manifestar-se por convulsões, apneia, irritabilidade, ou letargia, vómitos, desidratação ou fontanela hipertensa.

 

As HIPV, em função da sua extensão e gravidade, podem ser classificadas em 4 graus de acordo com os critérios de Papile e colaboradores; tal classificação tem implicações práticas importantes na clínica pela sua correspondência com parâmetros imagiológicos (designadamente ecográficos) que, em certa medida, são preditivos das complicações e do prognóstico a curto e longo prazo (Quadro 1).

QUADRO 1 – Classificação das HIPV em função da gravidade (critérios de Papile).

Notas: Os graus III e IV comportam maior risco de sequelas neurológicas.
A hemorragia subependimária é uma lesão hemorrágica de tamanho variável localizada na matriz germinal cobrindo a cabeça do núcleo caudado, área particularmente vascularizada entre as 24 e 32 semanas; distingue-se, pela localização, da hemorragia dos plexos coroideus que nunca está localizada à frente dos buracos de Monro.

Grau I
Hemorragia localizada à matriz germinal/hemorragia subependimária isolada (uni ou bilateral) – não hemorragia intraventricular

Grau II
Existência de sangue no ventrículo sem dilatação ventricular por ruptura da zona matriz – epêndimo

Grau III
Existência de sangue no ventrículo com dilatação ventricular

Grau IV
HIPV com extensão intraparenquimatosa

Volpe apresentou uma classificação baseada em critérios ecográficos, considerando três graus (Quadro 2).

QUADRO 2 – HIPV – Classificação de Volpe.

Notas: Segundo este critério, deve ser anotado se existe ou não ecodensidade periventricular (localização e extensão)
I
Hemorragia da matriz germinal não atingindo o ventrículo, ou sangue no ventrículo ocupando < 10% do seu volume
II
HIV ocupando 10%-15% do volume ventricular (visão em plano ecográfico sagital)
III
HIV ocupando > 50% do volume ventricular (visão em plano ecográfico para-sagital, com distensão lateral do ventrículo)

Manifestações clínicas e exames complementares

Cerca de 90% dos casos de HIPV surgem até às 72 horas de vida (3 dias de vida) e 50% até às 24 horas de vida. Por outro lado, a extensão das lesões ocorre em 20% a 40% dos casos em cerca de 3 a 5 dias.

Formas clínicas

As manifestações clínicas da HIPV podem assumir três formas:

Forma subclínica ou silenciosa

Nesta forma, mais frequente, os sinais neurológicos são praticamente inexistentes, sobressaindo a diminuição do hematócrito como sinal mais típico, e a dificuldade de correcção do respectivo défice após transfusão; daí a necessidade da detecção, como rotina, da HIPV em todos os RN pré-termo assistidos em UCIN.

Forma intermitente ou saltitante

Nesta forma, que corresponde a hemorragia de pequenas dimensões, os sinais surgem por fases (períodos sintomáticos de horas ou dias entrecortados por períodos de duração idêntica com aparente estabilização): hipotonia, diminuição da actividade motora espontânea, dificuldade respiratória, movimentos oculares anómalos, alteração do sensório (estado vígil, irritabilidade, estupor), ângulo poplíteo em extensão, etc.. Estes sinais podem passar despercebidos em RN pré-termo já afectados por outros problemas, neurológicos ou não.

Forma catastrófica

Esta forma, correspondente a HIPV importante, traduz-se por:

  1. um ou mais sinais de deterioração neurológica de modo rápido, em minutos a escassas horas: estupor ou coma, dificuldade respiratória (diminuição da amplitude e frequência dos movimentos respiratórios, apneia), convulsões tónicas generalizadas, pupilas não reactivas, tetraparésia flácida, postura de descerebração, etc.;
  2. um ou mais dos seguintes sinais: hipertensão da fontanela anterior, diminuição do hematócrito, hipotensão, bradicárdia, instabilidade térmica, acidose metabólica, alterações da homeostase glicémica e hidroelectrolítica, etc..

Poderá surgir quadro de hidrocefalia aguda, sendo que a mortalidade nesta forma é elevada.

No âmbito da avaliação clínica diária (implicando, entre outros gestos, medição rigorosa do perímetro cefálico), a verificação de aumento do perímetro cefálico igual ou superior a 2 cm por semana aponta para a possibilidade de hidrocefalia pós-hemorrágica.

Exames complementares

Ecografia transfontanelar e ecografia com-doppler

O exame de eleição à cabeceira do doente é a ecografia transfontanelar, susceptível de identificar os 4 graus de HIPV conforme foi referido antes (classificação de Papile).

Tendo em conta a data habitual de aparecimento de HIPV atrás referida, e sem prejuízo das decisões pontuais em função do contexto clínico, é aconselhável proceder em todos os RN com idade gestacional inferior a 32 semanas, a exames ecográficos seriados no 1º, 3º e 7º dias de vida pós-natal e, depois, semanalmente.

No caso de se verificarem alterações relevantes, deve proceder-se a seguimento ecográfico mais pormenorizado e mais frequente para detecção atempada de complicações, tais como dilatação ventricular e hidrocefalia pós-hemorrágica (medição das dimensões dos ventrículos através da funcionalidade do ecógrafo, determinação do chamado índice de dilatação ventricular).

Utilizando o eco-doppler, pode determinar-se o índice de resistência (IR) através da fórmula: IR = (VFS-VFD)/VFS em que VF= velocidade de fluxo, S= sistólico, e D= diastólico; com o referido índice, pretende-se medir a resistência ao fluxo sanguíneo, sendo que um índice elevado pode indicar baixa compliance (distensibilidade) intracraniana, o que comporta risco de perfusão cerebral deficitária e, consequentemente, possibilidade de lesão isquémica.

Reportando-nos à classificação de Papile, será mais fácil interpretar os aspectos da ecografia transfontanelar. (Figuras 1, 2, 3 e 4)

FIGURA 1. Hemorragia de grau I, já em fase de quisto. Corte sagital mediano. (UCIN-HDE)

FIGURA 2. Hemorragia de grau II com coágulos visíveis ao nível do corno posterior. Corte sagital. (UCIN-HDE)

FIGURA 3. Hemorragia de grau III com coágulo de moldagem. Corte coronal. (UCIN-HDE)

FIGURA 4. Hemorragia de grau III, com extensão ao parênquima (grau IV). Corte coronal. (UCIN-HDE)

Quando a hemorragia é maciça (grau III), pode observar-se todo o ventrículo preenchido e dilatado; a dilatação é proporcional às dimensões do conteúdo intraventricular. Em situações extremas poderão verificar-se sinais hemorrágicos no 3º e 4º ventrículo e, por vezes, no espaço subaracnoideu infratentorial, ocupando a cisterna magna.

A hemorragia intraparenquimatosa (grau IV), unilateral, é detectada como lesão hiperecogénica, ocupando o parênquima (evoluindo para cavitação), em contacto íntimo com o ventrículo lateral, de forma globosa ou de forma triangular; está associada a hemorragia intraventricular abundante. Por vezes produz efeito de massa e anomalias da circulação cerebral da zona atingida. (Figura 4)

A ecografia transfontanelar poderá igualmente identificar sinais de hemorragia cerebelosa cuja destrinça com hemorragia subdural infratentorial é difícil.

Tomografia axial computadorizada (TAC)

Em situações especiais poderá estar indicado este tipo de exame imagiológico para esclarecimento etiopatogénico de lesões intraparenquimatosas mais periféricas; está também indicado em casos compatíveis com síndromas neurológicas acompanhadas de hemorragia intracraniana, havendo antecedentes de parto traumático (por ex. hematoma subdural e epidural da fossa posterior, hemorragia cerebelosa no pré-termo).

Ressonância magnética (RM)

Tendo em conta as limitações técnicas relacionadas com a sua execução, está indicada apenas em formas graves e no estudo evolutivo pós-neonatal.

Espectroscopia próxima dos infravermelhos

Nalguns centros especializados e em situações seleccionadas, utiliza-se este método para avaliar o processo de autorregulação da circulação cerebral.

Exame do líquido cefalorraquidiano (LCR)

Somente se justifica a punção lombar em RN sem condições para intervenção cirúrgica e com a finalidade de tentar reverter a dilatação ventricular (ver adiante); no caso de ser realizada, é possível verificar-se eritrorráquia, hiperproteinorráquia e hipoglicorráquia.

Diagnóstico diferencial

No RN pré-termo poderá surgir um quadro neurológico (tipificado por uma das formas clínicas atrás descritas), caracterizado fundamentalmente por convulsões e depressão respiratória, e explicado por hemorragia cerebelosa espontânea ou de causa traumática (partos de apresentação pélvica ou manobras de reanimação com máscara implicando compressão da face e região occipital); como consequência poderá surgir enfarte venoso.

Como factores predisponentes citam-se alterações hemodinâmicas e da coagulação.

Prevenção

A prevenção da HIPV implica um conjunto de medidas pré-natais, intra-parto e pós-natais.

Medidas pré-natais

As medidas pré-natais dizem respeito essencialmente à correcta assistência da grávida transferindo-a atempadamente para centros especializados se existir risco de parto pré-termo. Duas medidas pré-natais importantes dizem respeito:

  • à administração de antibioticoterapia à grávida em caso de ruptura prematura das membranas como medida eficaz de prevenção da hemorragia da matriz germinal e de parto pré-termo (com efeito, a infecção das membranas, associada à sua ruptura prematura, poderá desencadear o parto pelo facto de certos microrganismos, produtores de prostaglandinas, estimularem a contractilidade uterina);
  • à corticoterapia com betametasona como medida potencialmente útil no que respeita à maturação dos vasos da matriz germinal.

Medidas intra-parto

Estas medidas dizem respeito ao parto minimamente traumático e realizado por equipa experiente em centro especializado.

Medidas pós-natais

Reanimação neonatal
  •  minimamente traumática, em ambiente de termoneutralidade;
  • evitando a utilização de solutos hipertónicos e de expansão rápida da volémia;
  • evitando hipóxia, hiperóxia, hipercápnia, hipocápnia e oscilações da pressão arterial.
Cuidados gerais
  • mantendo a cabeça do RN em posição neutra/decúbito dorsal (a rotação da cabeça poderá aumentar a pressão venosa central);
  • promovendo a mínima manipulação, o mínimo ruído e a mínima luminosidade.

Nota importante:
A administração de fenobarbital, vitamina E, indometacina e etamcilato não evidenciaram redução da incidência de HIPV, de acordo com as conclusões de estudos meta-analíticos.

 

Tratamento

Caso se verifiquem sinais de dilatação ventricular progressiva para além das quatro semanas de vida, há que intervir com um conjunto de procedimentos e atitudes cujo objectivo é facilitar a eliminação ou a remoção do LCR; está indicada tal remoção assistida por eco-doppler caso se verifique incremento de IR > 30% em relação à linha de base, ou linha de base de IR > 0,9.

  • punção lombar periódica: em geral procede-se à extracção de parcelas de 10-15 mL/kg de LCR em cada punção lombar, dependendo o número e duração das mesmas da evolução e resultado conseguido; este método tem riscos, tais como meningite e ventriculite;
  • drenagem ventricular: a drenagem ventricular recomendada é a drenagem definitiva ventriculoperitoneal por equipa de neurocirurgia pediátrica; como técnica invasiva, indicada em cerca de 10% das HIPV, comporta também riscos relacionados com morbilidade infecciosa; como alternativa provisória, em certos casos, pode utilizar-se a derivação externa para correcção emergente de hipertensão intracraniana ou nos casos de obstrução da derivação definitiva.

Como se pode depreender, em todas as circunstâncias torna-se obrigatória a vigilância seriada ecográfica (enquanto a fontanela anterior persistir) e/ou através de TAC.

  • inibidores da anidrase carbónica: em geral utiliza-se a acetazolamida, que também comporta riscos como aparecimento de acidose metabólica e efeito desmielinizante; caso se associe ao furosemido, existe ainda o risco de nefrocalcinose por hipercalciúria.

Prognóstico

O prognóstico da HIPV é, em princípio, reservado, designadamente nas situações correspondentes aos graus III e IV; tal circunstância implica um esquema organizado de seguimento multidisciplinar a longo prazo. Contudo, em RN pré-termo com formas de grau I-II, em comparação com idêntica população sem HIPV, existe maior probabilidade de paralisia cerebral e de alterações do foro cognitivo.

As sequelas mais frequentemente surgidas, dependentes das lesões associadas, são as seguintes: epilepsia, sequelas motoras, hemiplegia espástica, e alterações cognitivas por lesões de diversas estruturas como axónios, dendritos, sinapses e mielina.

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Definição e aspectos epidemiológicos

Define-se enfarte cerebral como uma área de lesão do tecido cerebral confirmada por neuroimagem ou por exame anátomo-patológico, ocorrendo entre as 20 semanas gestacionais e os 28 dias de vida pós-natal. Tal lesão pode ser resultante de dois mecanismos:

  1. interrupção do fluxo sanguíneo numa artéria cerebral maior por trombose ou embolia (enfarte isquémico arterial perinatal), mais frequentemente; ou
  2. trombose duma veia cerebral maior (trombose do seio venoso cerebral) levando geralmente a enfarte hemorrágico; como regra, o enfarte hemorrágico é tipicamente venoso, localizado na zona periventricular, e habitualmente secundário a congestão venosa por hemorragia periventricular.

De salientar as seguintes associações mais frequentes:

  • o enfarte parassagital bilateral, a EHI;
  • o enfarte bilateral, a hipoglicémia; e
  • o enfarte multifocal, a infecções bacterianas ou víricas.

Etiopatogénese

Na maior parte dos casos o enfarte isquémico arterial perinatal resulta de êmbolo a partir da placenta que, atravessando o foramen ovale, atinge a aorta e os ramos da artéria carótida comum esquerda; o território mais afectado é o que corresponde à artéria cerebral média esquerda.

O enfarte parenquimatoso no contexto de trombose do seio venoso cerebral é secundário a drenagem venosa interrompida, não tendo, portanto, distribuição arterial. É em geral devido a compressão do seio sagital e a má posição cefálica e do pescoço.

São descritos os seguintes factores de risco de enfarte isquémico arterial perinatal e de trombose do seio venoso cerebral:

  • protrombóticos (explicando cerca de 40%-80% da patologia em análise), tais como: aumento da lipoproteína (a) e outras dislipoproteinémias, policitémia, mutação G1691 do factor V de Leiden, mutação G20210A do factor II, anticorpos antifosfolípidos adquiridos, défice das proteínas S e C, níveis elevados de homocisteína, etc.;
  • maternos, tais como: doenças autoimunes, pré-eclâmpsia, HTA, diabetes gestacional, consumo de cocaína, etc.;
  • fetoplacentares, tais como descolamento prematuro da placenta, infecção e hemorragia fetomaterna, gemelaridade, etc.;
  • tipo de parto, em geral, parto complicado com intervenção instrumental, etc.;
  • neonatais, em geral relacionados com hipoglicémia, desidratação, meningite, sépsis, tratamento com ECMO, etc..

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de enfarte isquémico arterial perinatal, constando de episódios de apneia e cianose, convulsões, hipotonia e irritabilidade, surgem em cerca de 90% dos casos antes dos primeiros três dias.

A trombose do seio venoso cerebral apresenta-se em cerca de 50% dos casos nos primeiros 2 dias de vida, e em 25% durante a primeira semana. As convulsões surgem como manifestação mais frequente, associada às da patologia de base anteriormente descrita.

Exames complementares

Para além dos exames laboratoriais gerais com base na história clínica e nos factores etiopatogénicos descritos, estão indicados os seguintes exames complementares:

  • rastreio protrombótico: incluindo, nos primeiros dias de vida, do foro genético – mutação do factor V Leiden, variante termolábil MTHFR e mutação protrombina G20210A; no seguimento em consulta (3-6 meses) – antitrombina III, proteína C e S, resistência à antitrombina, fibrinogénio, factor VIII, factor XII, inibidor do activador do plasminogénio, homocisteína, lipoproteína (a), anticoagulante lúpico, anticorpos anticardiolipina, e antibeta-2 glicoproteína I.

NB: estes exames devem ser realizados na mãe igualmente;

  • de imagem: ecografia transfontanelar (com baixa sensibilidade e especificidade), TAC-CE (confirmando enfarte isquémico e trombose sinovenosa, e excluindo hemorragia, também com sensibilidade e especificidade baixas), e RM (este último de 1ª linha, sendo preditivo de sequelas a longo prazo);
  • EEG: para além da recomendação de monitorização por vídeo-EEG convencional, está também indicada a realização de EEG integrado por amplitude (aEEG), este último, com interesse na avaliação do prognóstico motor em casos de lesão isquémica.

Tratamento

Citam-se como fundamentais as seguintes medidas:

  • normalização da glicémia e da temperatura, ventilação/oxigenação adequadas, manutenção da normovolémia e da normopressão arterial, e tratamento das convulsões e da febre; e
  • terapêutica anticoagulante com heparina não fraccionada ou de baixo peso molecular

→ nos casos de enfarte arterial isquémico;
→ nos casos de trombose sinovenosa sem hemorragia intracerebral e quando há
→ extensão da trombose; a trombólise não é recomendada.

Prognóstico

Globalmente, podem ser verificadas sequelas diversas (défices motores, cognitivos (associados sobretudo a hemiplegia e convulsões), da linguagem, da visão, e epilepsia.

Em cerca de 50% dos casos de crianças com enfarte da artéria cerebral média desenvolve-se hemiplegia.

Os sinais clínicos poderão não ser detectados durante vários meses, sendo que os resultados da exploração neurológica neonatal não são preditivos dos resultados tardios.

Na trombose sinovenosa, a taxa de mortalidade pode atingir os 10%-20%. A taxa de epilepsia oscila entre 15% e 40% e a de paralisia cerebral entre 6% e 7%.

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Definição e importância do problema

A leucomalácia periventricular (LPV) é uma forma de lesão estrutural da substância branca, em geral associada a HIPV da matriz germinal; tal designação foi usada pela primeira vez em 1962 por Banker e Larroche.

Malácia significa “amolecimento ou dissolução”. Tratando-se de tal fenómeno localizado na substância branca na zona periventricular (surgindo cerca de duas semanas após actuação da noxa), fala-se em leucomalácia periventricular. De salientar que o dito fenómeno de malácia, noutro contexto etiopatogénico poderá verificar-se noutras zonas da sustância branca: tratar-se-á de leucomalácia com outra localização.

Trata-se dum problema neurológico grave verificado predominantemente no RN pré-termo, integrando diversas entidades clinicopatológicas.

A incidência é tanto maior quanto menor a idade gestacional, o que se relaciona com o grau de vulnerabilidade da estrutura da substância branca e a data da agressão dos factores lesivos (intrauterinos e/ou pós-natais). O risco é maior nos casos de HIPV grave ou ventriculomegália.

Segundo a descrição clássica, como resultado de isquémia cerebral, são verificadas zonas bilaterais de necrose na área da substância branca periventricular, disrupção de axónios, inflamação, activação glial e lesão dos pré-oligodendrócitos conduzindo a sequelas em grau variável.

A lesão da substância branca tem sido também observada em situações com componentes de infecção e inflamação, tais como hipóxia ou hipotensão pós-natal, enterocolite necrosante, prematuridade tardia ou nascimento de termo e status pós-reparação cirúrgica de cardiopatia congénita.

De acordo com estudos realizados em diversos centros especializados em populações de crianças ex-RN com peso de nascimento inferior a 1.000 gramas, tem sido apurada incidência de LPV entre 3% e 5%.

Etiopatogénese

A compreensão da etiopatogénese da LPV tem evoluído ao longo do tempo, admitindo-se a comparticipação de eventos intrauterinos e pós-natais.

Realça-se uma complexa interacção entre determinados factores: o desenvolvimento da vasculatura cerebral, a regulação do débito sanguíneo cerebral (ambos dependendo da idade gestacional), o estado de maior ou menor vulnerabilidade (dependente do grau de maturação) dos precursores dos oligodendrócitos ou pré-oligodendrócitos, fundamentais para a mielinização, e os processos de infecção e inflamação materno-fetal.

Relativamente aos pré-oligodendrócitos (considerado factor major), importa referir que, quanto maior a sua maturação, maior a resistência à toxicidade do glutamato e dos radicais livres, gerados em abundância em caso de isquémia-reperfusão.

Acontece o contrário (maior vulnerabilidade) com os pré-oligodendrócitos imaturos. Trata-se, pois, de células extremamente vulneráveis à agressão por radicais livres.

A prematuridade constitui um importante factor predisponente de LPV.

No RN pré-termo, com imaturidade estrutural, são as áreas da substância branca as mais vulneráveis e susceptíveis a isquémia-reperfusão: pequenas zonas entre a confluência ou anastomose de dois sistemas de drenagem sanguínea em continuidade (zonas “fronteira”).

Tais áreas de perfusão inadequada, subsidiárias das artérias medulares profundas, localizam-se na substância branca a alguns milímetros da parede ventricular (localização periventricular). Sendo afectados os axónios que atravessam as referidas “zonas fronteira”, de tal interrupção anatomofuncional resultará diplegia espástica, a sequela ou perturbação motora típica do RN pré-termo.

Se as lesões da substância branca forem mais extensas, poderão ser afectados os axónios que se estendem até aos membros superiores e face. As ramificações ópticas e acústicas também podem ser atingidas.

Por outro lado, no RN pré-termo o córtex cerebral é mais poupado aos efeitos da isquémia-reperfusão porque possui abundante vascularização dependente das artérias leptomeníngeas.

No RN de termo a área de maior vulnerabilidade é o córtex cerebral, podendo então surgir outro tipo de leucomalácia – chamada leucomalácia subcortical, situação pouco abordada na literatura.

Para além da prematuridade per se, menciona-se o papel de outros factores que, por sua vez, podem estar associados a prematuridade:

    • instabilidade hemodinâmica, com oscilações da pressão arterial e variações do débito sanguíneo cerebral no contexto de patologia diversa característica do RN pré-termo (dificuldade respiratória, infecção sistémica, manuseamento intempestivo, episódios de apneia, hipoglicémia, oscilações da temperatura corporal, etc.).
    • débito sanguíneo cerebral influenciado por variações da pressão de CO2 e de O2. A hipercápnia induz vasodilatação cerebral, e a hipocápnia provoca vasoconstrição com consequente diminuição do débito sanguíneo cerebral. Por sua vez, a hipóxia induz vasodilatação, e a hiperóxia leva a constrição dos pequenos vasos. Estes efeitos são mediados provavelmente através dum efeito local do pH da parede vascular.
    • deficiência do mecanismo de autorregulação circulatória (mecanismo pelo qual se mantém débito cerebral constante apesar das variações da pressão arterial sistémica) no RN pré-termo, recordando-se que o débito cerebral é regulado por variações no calibre das arteríolas intracerebrais.
    • infecção e inflamação, o que tem sido demonstrado pela associação entre infecção materna, ruptura prolongada de membranas, níveis elevados de IL-6 no sangue do cordão e incidência mais elevada de LPV; com efeito, a chamada síndroma de resposta inflamatória fetal (SRIF) é actualmente considerada como a causa major de morbilidade e mortalidade no feto/RN. E, em determinadas situações específicas, tal mecanismo é responsável por quadros clínicos simile sépsis.

Como consequência da isquémia-reperfusão e dos eventos referidos ao nível da substância branca periventricular, surge o quadro morfológico de leucomalácia, a forma mais característica de necrose axonal e glial na substância branca no RN pré-termo.

Segundo Volpe, a maior probabilidade de surgimento de LPV no contexto de hemorragia intraperiventricular (HIPV) pode relacionar-se com o aumento da concentração local de Ferro derivado da hemorragia.

A LPV constitui uma patologia sempre bilateral, com localização mais habitual na região do corpo do ventrículo lateral e do corno frontal, ao nível do buraco de Monro e do corno occipital. Pode ser difusa ou focal.

A LPV focal é classicamente descrita como áreas macroscópicas de necrose, as quais inicialmente são identificadas como lesões ecodensas na área periventricular, com ou sem sangue nos ventrículos. Algumas semanas depois, estas áreas ecodensas evoluem para áreas quísticas, quadro morfológico que traduz a chamada LPV quística, uma minoria entre as LPV (< 5% em RNMBP). A gliose cicatricial contribui, por sua vez, para a redução do volume das cavidades, podendo seguir-se microcalcificações secundárias.

A LPV difusa, na era moderna mais frequentemente explicada por maturação anormal dos neurónios e da glia do que por necrose, está associada a perda de pré-oligodendrócitos; tal facto conduz a hipomielinização e diminuição do volume da substância branca por retracção cicatricial, e à dilatação ventricular por mecanismo ex-vacuo.

No âmbito da avaliação imagiológica desta patologia está indicada a ressonância magnética (RM), tendo em conta as limitações da ecografia. (ver adiante)

Manifestações clínicas

Inicialmente, as manifestações clínicas podem ser inespecíficas. De facto, as mesmas correspondem a sequelas dos eventos descritos anteriormente: fundamentalmente, diplegia espástica (típica da LPV), alterações da motricidade fina, alterações da esfera cognitiva, problemas de memorização e atenção e, nalgumas crianças, insuficiência mental.

Para avaliação do prognóstico, torna-se necessário proceder a exame neurológico rigoroso e seriado durante o período de internamento hospitalar e após a alta.

A probabilidade de doença motora futura depende, entre outros factores, da localização e do tipo das lesões encontradas nos estudos imagiológicos.

Exames complementares

Na prática clínica corrente assume particular importância, como complemento do exame neurológico seriado, a ecografia transfontanelar (também realizada de modo seriado).

Os sinais ecográficos mais característicos de LPV são: hiperecogenicidade periventricular seguida de sinais de quistos porencefálicos (sinal do “queijo suíço”); numa fase mais tardia e nas formas mais graves passam a ser notórios sinais de atrofia cortical com alargamento dos ventrículos (Figuras 1, 2 e 3).

FIGURA 1. Aspecto ecográfico de leucomalácia não quística ao nível dos cornos frontais. Corte coronal e parassagital. (UCIN-HDE)

FIGURA 2. Leucomalácia periventricular (LPV) quística e alargamento do sistema ventricular por mecanismo ex vacuo. Corte coronal posterior. (UCIN-HDE)

FIGURA 3. Leucomalácia quística posterior.Corte coronal. (UCIN-HDE)

Em estudos de correlação clínico-patológica, a sensibilidade da ecografia transfontanelar é cerca de 70%, o que equivale a dizer que existe fraca capacidade discriminativa para a detecção de pequenas áreas de necrose.

Assim, outros exames de imagem evidenciando maior sensibilidade, poderão estar indicados em função do contexto clínico (RM, TAC, Eco-doppler, Espectroscopia próxima dos infravermelhos, etc.).

A RM é um método mais rigoroso identificar todas as formas de LPV, quer no lactente, quer na criança mais velha, designadamente nos casos em que há antecedentes de prematuridade e quadro de alterações cognitivas, sensoriais e ou motoras. Em função do contexto clínico poderá estar indicado o EEG.

Tratamento e prevenção

Na fase actual dos conhecimentos não existem medicações nem medidas para o tratamento específico da LPV durante o período neonatal. Nesta perspectiva, todos os esforços deverão ser dirigidos essencialmente para a prevenção da isquémia-reperfusão e da HIPV, atendendo aos factores de risco e etiopatogénese.

Assim, torna-se fundamental garantir uma perfusão cerebral normal e estável através de procedimentos e atitudes no âmbito do internamento em UCIN: monitorização da pressão arterial (evitando variações bruscas deste parâmetro),* volémia, oxigenação e ventilação com especial atenção para a hipocápnia e hipóxia, manuseamento mínimo do RN, evicção da infecção materno-fetal, antibioticoterapia atempada para tratamento da infecção materno-fetal e neonatal, etc.. Resultados da investigação experimental apontam para a utilização de antagonistas dos radicais livres, de agentes anticitocinas e antiglutamato.

*Existe controvérsia acerca dos procedimentos para manter pressão arterial normal no pré-termo, pois, de acordo com o que foi referido na alínea Etiopatogénese, face às características de disfunção do mecanismo de autorregulação cerebral no RN pré-termo, pressão arterial normal não significa necessariamente perfusão cerebral normal, o que constitui uma dificuldade para o clínico.

Prognóstico e seguimento

A LPV constitui a principal causa de disfunção cognitiva, comportamental, motora e sensorial em crianças nascidas com idade gestacional < 32 semanas. Nas formas mais graves poderá desenvolver-se epilepsia.

Como resultado da LPV, verifica-se incidência aproximada de paralisia cerebral ~10%, e de dificuldades escolares ~35%-50%, sendo que estes resultados traduzem, segundo alguns estudos, associação de HIPV e LPV. As sequelas são tanto mais frequentes quanto menor a idade gestacional.

A diplegia espástica constitui a sequela mais frequentemente associada a patologia do SNC em RN pré-termo, dado que a lesão na substância branca se localiza em geral na zona vizinha ou justaposta aos ventrículos. Se as lesões se localizarem mais perifericamente, poderão ser afectados os axónios de que dependem a face, os membros superiores e a visão (neste último caso, se a localização for dorsolateral ou contígua aos cornos occipitais).

Como se pode depreender, os casos de LPV, muitas vezes associados a outros problemas no contexto de ex-RN pré-termo, deverão ser seguidos pelo médico assistente, por sua vez, em ligação a uma equipa multidisciplinar no âmbito de um centro de desenvolvimento.

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*Revisão de Aguinaldo Cabral

Importância do problema

As doenças hereditárias do metabolismo (DHM), embora raras, estão associadas a morbilidade e mortalidade significativas em relação, sobretudo, com o atraso no diagnóstico e a aplicação de medidas terapêuticas indicadas, já no período neonatal.

Muitas destas doenças são provocadas por mutações em genes que codificam proteínas específicas; o resultado final de tais anomalias será o compromisso variável da capacidade funcional daquelas (enzimas, receptores, proteínas de transporte, componentes da membrana celular ou de outras estruturas celulares como ácidos nucleicos, lisossomas, peroxissomas, aparelho de Golgi, mitocôndrias, etc.) originando quadros clínicos de expressão diversa.

Até à actualidade, foram identificados mais de seis centenas de defeitos enzimáticos responsáveis por tais doenças hereditárias. Foram mapeados, clonados, isolados e sequenciados muitos dos genes envolvidos e catalogado um enorme número de mutações responsáveis por heterogeneidade bioquímica e genética.

Também os progressos impressionantes no diagnóstico e terapêutica contribuiram para mudar o perfil e o prognóstico deste tipo de patologia.

Na sua maioria (cerca de 60%), trata-se de doenças de transmissão autossómica recessiva, sendo cerca de 20% de transmissão autossómica dominante, 12% ligadas ao cromossoma X e 8% com padrão de hereditariedade mitocondrial. Salienta-se que podem ocorrer em qualquer idade, desde a vida fetal até à idade adulta.

Como se depreende, tais patologias deverão ser assistidas e orientadas inicialmente em centros especializados de referência, embora o seu seguimento se possa realizar em instituições menos diferenciadas, mas sempre em estreita ligação com aqueles.

Rastreio

A detecção no período neonatal de algumas patologias através do rastreio universal, visando a identificação de diversas situações, tem sido realizada ao longo de várias décadas. Com os avanços da tecnologia, muitas doenças genéticas/metabólicas podem ser diagnosticadas ainda antes do início das manifestações clínicas. É este o conceito de diagnóstico precoce.

A escolha das doenças a rastrear implica a obediência a um conjunto de condições básicas:

  • a possibilidade de diagnóstico confiável numa fase precoce da vida, quando os sinais são inespecíficos, inexistentes ou raros; e
  • a existência de uma terapêutica considerada eficaz.

Um rastreio implica, igualmente, a ponderação de um conjunto de questões de ordem prática, relacionadas, nomeadamente, com:

  • a tecnologia a utilizar;
  • o controlo laboratorial de qualidade; e
  • a garantia das condições, a sua realização de forma ininterrupta ao longo do tempo.

Uma vez rastreados os casos de possível doença, devem os mesmos ser encaminhados para centros de referência para confirmação diagnóstica e tratamento específico.

O Programa Nacional de Diagnóstico Precoce (PNDP) é um programa de saúde pública que teve o seu início em 1979 no âmbito do Instituto de Genética Médica Dr. Jacinto Magalhães com o rastreio da fenilcetonúria (doença hereditária do metabolismo-DHM) e, posteriormente, em 1981, com o do hipotiroidismo congénito.

A partir de 2004 passaram a ser incluídas progressivamente no Programa Nacional de Diagnóstico Precoce (PNDP) outras doenças hereditárias do metabolismo (rastreio alargado), utilizando a espectrofotometria de massa em tandem, sendo em 2008 já rastreadas 26 patologias (25 metabólicas e o hipotiroidismo congénito). Como dados globais nacionais importa referir que até final de 2015 foram rastreados mais de três milhões de recém-nascidos.

De acordo com o Relatório do PNDP de 2015, o painel de rastreio das DHM em Portugal abrange as seguintes doenças:

  1. Aminoacidopatias/Doenças do ciclo da ureia
    Fenilcetonúria/hiperfenilalaninémias
    Tirosinémia tipo I
    Tirosinémia tipos II/III
    Leucinose (MSUD)
    Homocistinúria clássica
    Hipermetioninémia (def. MATI/III)
    Citrulinémia tipo I
    Acidúria arginino-succínica
    Hiperargininémia
  2. Acidúrias orgânicas
    Acidúria propiónica (PA)
    Acidúria metilmalónica (MMA, Mut-)
    Acidúria isovalérica (IVA)
    Acidúria 3 – hidroxi-3-metilglutárica (3-HMG)
    Acidúria glutárica tipo I (GA I)
    3-Metilcrotonilglicinúria (def. 3-MCC)
    Acidúria malónica
  3. Doenças da Beta-oxidação mitocondrial dos ácidos gordos
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia curta (SCHAD)
    Def. desidrogenase dos ácidos gordos de cadeia média (MCAD)
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia longa (LCHAD)/TFP
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia muito longa (VLCAD)
    Def. Carnitina-palmitoil transferase I (CPT I)
    Def. Carnitina-palmitoil transferase II (CPT II)/CACT
    Def. múltipla das desidrogenases dos ác. gordos (MADD)/Acidúria glutárica tipo II
    Def. primária em carnitina (CUD)

Em Portugal, desde o início do PNDP até final de 2015, foram identicadas DHM com a prevalência de de 1/2.333.

No ano de 2015, em 85.058 recém-nascidos rastreados foram identificadas 30 DHM fazendo parte do painel (prevalência de 1/2.835) assim distribuídas:

  • MCAD…..12;
  • PKU/Hiperfenilalaninémia…..7;
  • MSUD…..3;
  • MAT I/III…..3;
  • MADD…..1;
  • VLCAD….1;
  • CACT…..1;
  • TIR II/III…..1;
  • MMA…..1;

Manifestações clínicas gerais

Poderá suspeitar-se de DHM nas seguintes circunstâncias:

  • no período pré-natal, existindo antecedentes familiares de doença e de mortes inexplicadas;
  • no período neonatal, verificando-se:
    • letargia, hipotonia, convulsões, deterioração neurológica, coma
    • hepatosplenenomegália, hipoglicémia, falência hepática, icterícia
    • cardiomiopatia, falência cardíaca, morte súbita, hidropisia não imune
    • odor anormal, corporal ou urinário
    • acidose metabólica grave, cetose, hiperamoniémia, hiperlactacidémia
    • sinais dismórficos
    • doença grave inexplicada;
  • no período pós-neonatal, verificando-se:
    • dismorfia facial, alterações esqueléticas
    • vómitos intermitentes inexplicados
    • atraso do desenvolvimento psicomotor/sensorial
    • ataxia recorrente
    • letargia
    • coma recorrente (metabólico, neurológico ou hepático)
    • convulsões
    • odor anormal, corporal ou urinário
    • icterícia
    • hepatomegália
    • acidose metabólica
    • luxação do cristalino
    • cabelo anormal
    • hipopigmentação
    • cálculos renais, etc..

Como se disse, estas doenças podem manifestar-se em qualquer idade, chamando-se a atenção para formas clínicas de apresentação tardia, no adulto, por vezes interpretadas erroneamente como processos degenerativos, vasculares, etc..

Exames laboratoriais

A suspeita de DHM com base em dados obtidos pelo clínico (anamnese e exame objectivo) implica a realização de análises laboratoriais (sempre que possível, antes de qualquer terapêutica) em regime hospitalar para avaliação de determinados parâmetros em simultâneo no sangue e urina (e LCR perante contexto clínico de encefalopatia): uma colheita, quer para estudo imediato, quer para eventual estudo ulterior mais sofisticado a que adiante se fará referência.

No sangue estão indicadas, de imediato, as seguintes análises: hemograma, ionograma, hiato iónico, glicemia, provas de função hepática, provas de função renal, estudo da coagulação, pH e gases, ácido úrico, amónia e lactato; e na urina: pesquisa de cetonúria, anotação da cor, odor e pH.

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*Revisão de Aguinaldo Cabral

Sistematização

As doenças hereditárias do metabolismo (DHM) dos aminoácidos compreendem diferentes situações clínicas como: hiperfenilalaninémias (incluindo fenilcetonúria); tirosinémia dos tipos I, II e III; alcaptonúria, hawkinsinúria; acidémias/acidúrias orgânicas de cadeia ramificada (leucinoses, acidémias propiónica, metilmalónica, isovalérica e outras); doenças do ciclo da ureia; doenças dos aminoácidos sulfurados (incluindo homocistinúria e outras); hiperornitémias, síndroma HHH; acidúrias orgânicas “cerebrais” e doenças do catabolismo da lisina (incluindo a acidúria glutárica tipo I, a L2-hidroxiglutárica, a D2 – hidroxiglutárica, a acidúria N-acetilaspártica ou doença de Canavan); hiperglicinémia não cetótica; doenças do metabolismo da prolina e da serina; defeitos do transporte dos aminoácidos através das membranas celulares (cistinúria, intolerância proteica lisinúrica, doença de Hartnup) e muitas outras.

Etiopatogénese

As deficiências de determinadas enzimas envolvidas no metabolismo dos aminoácidos conduzem frequentemente a sinais e sintomas de intoxicação aguda ou crónica por acumulação de metabólitos e lesão tecidual. Os órgãos mais frequentemente afectados são o sistema nervoso central, o fígado e os rins.

A expressão clínica e da gravidade dependem fundamentalmente do grau de deficiência enzimática e, particularmente, da ingestão proteica e da produção endógena decorrente do catabolismo proteico.

Manifestações clínicas

A idade de apresentação é variável.

No período neonatal, geralmente após um intervalo livre que pode ser inferior a 24 horas, depois do início da alimentação, ocorrem os seguintes sinais, por vezes associados: recusa alimentar, sucção pobre, episódios de apneia, vómitos, não ganho de peso, hipotonia, letargia, convulsões, hipotermia, coma, alterações do tono muscular, mioclonias e, por vezes, odor anómalo.

Após o período neonatal, as formas de apresentação podem ser: crises agudas ou recorrentes de coma, vómitos crónicos, acidose, hipoglicémia, ataxia, alterações do comportamento, neuropatia, deterioração neurológica e/ou mental progressiva, autismo, etc..

Na primeira infância, coincidindo com a diversificação alimentar, poderão surgir febre, anorexia ou vómitos.

Na puberdade, o crescimento e eventuais alterações do foro endócrino poderão constituir factores desencadeantes de estresse metabólico.

Exames complementares

Perante a suspeita de doença relacionável com defeitos do metabolismo dos aminoácidos, e paralelamente às análises em amostras de sangue, urina e LCR, discriminadas no capítulo anterior, devem ser feitas outras análises mais específicas em laboratório especializado, a partir das referidas amostras:

  • Cromatografia dos aminoácidos no sangue e urina;
  • Cromatografia dos ácidos orgânicos na urina;
  • Cromatografia dos aminoácidos no LCR se suspeita de encefalopatia metabólica;
  • Perfil de acilcarnitinas no plasma.

Outros exames a solicitar dependerão da suspeita diagnóstica específica (ver adiante).

Tratamento de emergência

Em muitas destas situações verifica-se descompensação aguda directamente relacionada com incremento da ingestão proteica ou com estado catabólico, factor altamente deletério.

Assim, as principais linhas de actuação incluem:

  • Interromper o estado catabólico: propiciando um suprimento energético aumentado, geralmente soluto glicosado endovenoso (excepcionalmente por sonda nasogástrica), se necessário associando a administração de insulina por via endovenosa.
  • Interromper o suprimento proteico: propiciando a chamada “nutrição de emergência” através de nutrição (entérica ou parentérica de acordo com a situação clínica) à custa de hidratos de carbono, lípidos, NaCl, KCl, gluconato de cálcio e água durante 24-48 horas.
    Após este período, o suprimento proteico é iniciado cautelosamente de modo progressivo com leite materno, se possível, ou com fórmula; se a via entérica não for viável, procede-se à nutrição parentérica com solução de aminoácidos em incrementos progressivos; nesta última circunstância, com a melhoria do quadro clínico, procede-se à transição para a alimentação entérica, geralmente dentro do período de 4-5 dias.
  • Propiciar suprimento hídrico e electrolítico adequados. Níveis séricos de sódio dentro dos limites da normalidade reduzirão o risco de edema e lesão cerebrais.
  • Terapêutica medicamentosa específica ou vitamínica (cofactores enzimáticos) dependendo da patologia em causa (por exemplo, biotina na acidúria propiónica, hidroxicobalamina na acidúria metilmalónica, carnitina nas acidúrias orgânicas, glicina na acidúria isovalérica, etc.), e fármacos que promovem a eliminação da amónia (benzoato de sódio, fenilbutirato de sódio nas doenças do ciclo da ureia).
  • Meios de depuração dependendo da patologia, estado clínico e achados laboratoriais: diurese forçada, diálise peritoneal, hemodiálise, hemofiltração, exsanguinotransfusão, etc..

Tratamento de manutenção

  • Dietético: dieta hipoproteica, e suplemento de mistura específica aminoácidos (não contendo os aminoácidos cuja via metabólica está bloqueada) associado a oligoelementos e sais minerais.
    De referir que a utilização de mistura de aminoácidos é crucial nos casos de fenilcetonúria, leucinose, tirosinémia, homocistinúria, e no defeito da ornitina-aminotransferase; noutras situações, como as acidúrias orgânicas, a mistura de aminoácidos é mais controversa, especialmente na fase aguda, podendo contribuir para elevação da amónia. No entanto, cabe referir que a restrição proteica excessiva pode levar a catabolismo.
  • Medicamentoso: aplicam-se as noções referidas a propósito do tratamento de emergência que contribuam para a desintoxicação, por exemplo, nas doenças do ciclo da ureia, tirosinémia tipo I, etc..

Avaliação regular do crescimento, desenvolvimento e parâmetros laboratoriais

Chama-se a atenção para o risco de má-nutrição e de deficiências nutricionais diversas como resultado do regime dietético restritivo.

De acordo com as patologias em causa, para além das análises para avaliação global, haverá que incluir o ionograma sérico, ureia no sangue e urina, determinação de proteínas totais e fracções, amoniémia, aminoácidos urinários e plasmáticos e ácidos orgânicos na urina. Importa igualmente a avaliação nutricional.

Educação da família

A família deve ser instruída sobre as características principais da doença em causa, sobre a sintomatologia nas crises de descompensação, sobre critérios de gravidade e sobre medidas emergentes a tomar. Torna-se, assim, fundamental que a família aprenda a contactar de imediato o centro especializado de tratamento a que a criança deve recorrer nas situações graves.

No âmbito deste capítulo é feita uma referência especial à fenilcetonúria, à tirosinémia do tipo I, à homocistinúria, à leucinose, às acidúrias orgânicas clássicas e às doenças do ciclo da ureia.

1. FENILCETONÚRIA

Esta doença, vulgarmente designada nos países de língua inglesa pela sigla PKU (de phenylketonuria), pertence ao grupo das hiperfenilalaninémias.

A PKU na sua forma clássica surge com uma frequência estimada entre 1/10.000 e 1/20.000 RN; em Portugal, até final do ano de 2005, em 2.590.890 RN foi encontrada prevalência ~1/11.000 e, em 2015, ~1/12.150.

A mesma resulta do défice total ou parcial da enzima fenilalanina – hidroxilase hepática (PAH) originando níveis elevados de fenilalanina e seus metabólitos no sangue; o gene que codifica a fenilalanina-hidroxilase localiza-se no cromossoma 12q24.1, descrevendo-se uma diversidade de mutações (mais de 500). A maioria dos doentes corresponde a heterozigotias para dois diferentes alelos mutantes.

De referir que em cerca de 1-3% dos casos com valores elevados de fenilalanina no sangue, a anomalia é explicada por défice duma das enzimas necessárias para a produção ou renovação do cofactor tetra-hidro-biopterina (BH4); trata-se das chamadas formas malignas de hiperfenilalaninémia, ou mais correctamente, hiperfenilalaninémias por defeito de BH4, muito graves, não respondendo à dieta hipoproteica isolada.

Quanto a manifestações clínicas, salienta-se que a criança afectada é assintomática na data do nascimento mas, caso não se verifique qualquer intervenção (o que acontecia na era pré-rastreio) verifica-se atraso do neurodesenvolvimento progressivo e grave: atraso psicomotor, da locomoção, da fala, hiperactividade frequente, comportamento autista, negativismo, etc.. Pode igualmente verificar-se quadro de hipsarritmia (“espasmos infantis”), hipertonia e hiperreflexia osteotendinosa; sem tratamento, surge deterioração neurológica e mental progressiva.

Os fenilcetonúricos podem apresentar, de modo inconstante, um fenótipo clínico particular: pele clara, dermatose aparentando eczema, cabelos loiros e olhos azuis; trata-se dum pseudo-albinismo secundário.

O tratamento dietético é fundamental: consiste numa dieta hipoproteica, semi-sintética, suplementada com aminoácidos apropriados, sendo o suprimento em fenilalanina reduzido e controlado.Tal regime deve ser mantido durante toda a vida.

O leite materno pode ser usado durante os primeiros meses de vida, sob rigorosa vigilância do centro especializado de tratamento.

A vigilância metabólica é feita com o doseamento regular do nível sérico da fenilalanina, o qual deve ser mantido entre 3-6 mg/dL. Chama-se, a propósito, a atenção para o facto de dietas extremamente restritivas, originando valores séricos < 3 mg/dL, poderem conduzir a quadros de défice de fenilalanina (que é um aminoácido essencial) traduzido por hipocrescimento, letargia, anemia, alterações ósseas e até, morte.

Estão descritas formas de hiperfenilalaninémia moderada, benigna, com valores de fenilalaninémia ligeiramente elevados, até 6-6,5 mg/dL, com dieta normal. Nestes casos o prognóstico parece ser bom, sem necessidade de regime alimentar restritivo, sendo, no entanto, prudente o seguimento clínico (com atenção especial ao exame neurológico) e a vigilância laboratorial periódica.

Alguns centros utilizam um biomarcador independente dos níveis sanguíneos fenilalanina: a ADMA (dimetilarginina assimétrica). Na prática, utiliza-se a ratio ADMA/creatinina, com interesse sobretudo para detectar casos de pacientes com dieta eventualmente não balanceada, susceptível de efeitos negativos a longo prazo.

Se o indivíduo afectado atingir a idade adulta e, no sexo feminino, a idade de procriar, há que atender a que níveis elevados de fenilalanina durante a gravidez podem ter efeito lesivo sobre o feto (aborto frequente, baixo peso de nascimento, restrição do crescimento fetal, defeitos cardíacos, microcefalia e outras anomalias congénitas). É necessário, pois, que a mulher com hiperfenilalaninémia cumpra dieta muito rigorosa antes da concepção e durante toda a gravidez, de modo a manter níveis séricos de fenilalanina entre 1-3 mg/dL.

As novas terapias incluem:

  • Suplementação de aminoácidos neutros, os quais competem com o transporte da fenilalanina/Phe;
  • Administração de BH4 (sapropterina di-hidrocloreto- Kuvan) em doentes seleccionados. A resposta/sensibilidade ao BH4 necessita da presença de alguma actividade residual da PAH. Permite aumentar, duas a três vezes, a tolerância alimentar à PHE, com menores ou nulas restrições dietéticas;
  • Terapia enzimática com PAL (fenilalanina – amónia – liase), proteína que converte a Phe em excesso em metabólito não tóxico;
  • Administração de glicomacropeptídeo, proteína natural derivada da caseína resultante do fabrico de queijo. Está presente no soro do leite e, na forma pura, não contém Phe. Os alimentos preparados a partir desta proteína são boa alternativa à mistura de aminoácidos sintéticos;
  • Alimentos hipoproteicos de nova geração e novas apresentações de misturas de aminoácidos em barras, saquetas, comprimidos, líquidos são resultado dos enormes progressos da tecnologia;
  • Terapia génica, que se tem desenvolvido na procura de correcção duradoira ou permanente do fenótipo PKU.

2. TIROSINÉMIA DO TIPO I

A tirosinémia do tipo I (ou tirosinémia hepatorrenal) é uma doença autossómica recessiva rara, provocada por défice da enzima fumaril-aceto-acetato-hidrolase originando elevação da tirosina sérica e acumulação de metabólitos tóxicos intermediários.

Como consequência surge compromisso grave ao nível do fígado, rim e nervo.

A doença raramente tem início no período neonatal; dum modo geral, surge a partir da 4ª-5ª semana de vida e, mais frequentemente, nos primeiros meses.

Trata-se duma doença hepática grave, com insuficiência hepática aguda que pode ser fatal. Os sinais clínicos poderão ser desencadeados por doença intercorrente levando a estado catabólico (por ex. febre).

Caracteriza-se por icterícia, hepatosplenomegália, edema, diátese hemorrágica, ascite, hipoglicémia, e, por vezes, odor a “couve cozida”. Pode existir disfunção tubular renal complexa, raquitismo de causa renal, e, raramente, sinais de polineuropatia periférica aguda (simile porfíria). Os doentes estão em risco de sofrer de hepatocarcinoma, o qual pode aparecer precocemente. (Figura 1)

No âmbito da avaliação laboratorial do quadro sindrómico de hepatopatia e diátese hemorrágica, cabe referir níveis elevados de ALT e AST traduzindo citólise, e níveis baixos dos factores de coagulação II, VII, IX, XI, XII.

O diagnóstico diferencial faz-se fundamentalmente com a galactosémia e intolerância hereditária à frutose pela hepatopatia, diátese hemorrágica e tubulopatia.

O diagnóstico baseia-se na demonstração de níveis elevados de tirosina e de alfa-fetoproteína (no sangue), de ácido aminolevulínico (ALA) (na urina), e da presença de succinilacetona (SA) na urina e sangue.

FIGURA 1. Lactente com quadro clínico de tirosinémia tipo I: hepatosplenomegália, sinais de raquitismo, e desnutrição com hepatocarcinoma aos 11 meses de idade. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Salienta-se que esta última constitui melhor marcador para o diagnóstico do que a hipertirosinémia, a qual pode acompanhar outros tipos de hepatopatias agudas adquiridas.

Progressos recentes relacionados com o PNDP alargado permitem diagnóstico mais rápido com a medição da SA no sangue fresco.

A confirmação diagnóstica faz-se pela determinação da actividade da enzima acima referida em amostras de biópsia hepática, de culturas de fibroblastos, e ainda através de estudo genético (análise mutacional).

O tratamento consiste essencialmente:

  1. numa dieta hipoproteica com suprimento reduzido e controlado de fenilalanina e tirosina, suplementado com mistura apropriada de aminoácidos; e
  2. na utilização imediata do fármaco NTBC (nitro-triflurometil-benzoil-cicloexanediona), tricetona que inibe a hidroxifenil-piruvato dioxigenase, bloqueando a montante o catabolismo da tirosina, e evitando a acumulação de metabólitos tóxicos para o fígado, rim e nervo, o que se traduz numa melhoria dramática.

Trata-se duma terapêutica de primeira linha em qualquer idade, inclusivamente no RN em coma. Se não houver resposta ao NTBC (o que pode ocorrer em cerca de 10% dos casos) e/ou houver suspeita de malignidade hepática, o transplante do fígado impõe-se com urgência.

3. HOMOCISTINÚRIA

A homocistinúria clássica ou de tipo I, devida a deficiência da cistationina-beta-sintetase (CBS), é o erro inato do metabolismo da metionina mais frequente. Tal deficiência, relacionada com gene localizado no cromossoma 21q.22.3, leva à acumulação nos tecidos de metionina, homocistina e derivados, com perda de cistationina e baixa concentração de cistina.

No que respeita a manifestações clínicas, cabe referir que a doença está associada a anomalias graves em quatro órgãos ou sistemas: o olho (luxação do cristalino, miopia, glaucoma, etc.), o esqueleto (dolicostenomélia, aracnodactilia, escoliose, osteoporose, fracturas patológicas, mobilidade articular diminuída, etc.), o sistema nervoso central (insuficiência mental, AVC, sintomas psiquiátricos, etc.) e o sistema vascular (tromboembolismo das artérias e veias, a principal causa de morbilidade e mortalidade).

A acumulação de homocistina é provavelmente determinante do dano vascular generalizado e complicações tromboembólicas.

A criança é assintomática ao nascer, mas, se não for tratada, surgirá progressivamente o quadro clínico completo, incluindo o fenótipo semelhante ao da síndroma de Marfan (estatura elevada, ossos longos finos e alongados) e aracnodactilia na transição para a puberdade. Contudo, a restrição da mobilidade articular contrasta com a laxidão da autêntica síndroma de Marfan. As anomalias surgem significativamente mais cedo nos doentes não respondentes à piridoxina (vitamina B6). Casos moderados poderão ser reconhecidos após o surgimento de complicações tardias como os AVC.

O diagnóstico inicial assenta no perfil típico da cromatografia dos aminoácidos no plasma: elevação da metionina e homocistina, baixo nível de cistina, e não aumento de cistationina. A determinação da homocisteína total (tHcy) no plasma (p) é de grande valor diagnóstico, considerando-se valor normal de tHcy p: < 15 µmol/L; os doentes não tratados têm valores > 200 µmol/L.

O diagnóstico definitivo far-se-á determinando a actividade enzimática nos fibroblastos e hepatócitos (biópsia hepática) e por análise mutacional.

O tratamento tem como objectivo reduzir os níveis elevados de homocistina para valores próximos do normal, mantendo um ritmo de crescimento normal. O mesmo consiste em dieta com suprimento de metionina reduzido, e de cistina elevado, associando piridoxina, ácido fólico, vitamina C, vitamina B12 e betaína, em várias combinações; por vezes é necessária uma mistura específica de aminoácidos isenta de metionina.

Cerca de 50% dos doentes respondem, por vezes parcialmente, a doses altas de vitamina B6 (mas sempre < 1 grama/dia). Salienta-se igualmente a importância do tratamento antitrombótico. A ausência de resposta à piridoxina poderá estar relacionada com a carência em folato.

4. LEUCINOSES

As leucinoses são doenças do catabolismo dos aminoácidos de cadeia ramificada (AACR): leucina, isoleucina e valina, por deficiência do complexo da desidrogenase dos α-cetoácidos de CR (BCKD), complexo composto por três unidades catalíticas e duas enzimas reguladoras, codificadas por 6 loci genéticos diferentes: E1 (E1α e E1β), E2, E3, e as reguladoras BCKD-fosfatase e cinase.

Sobre a etiopatogénese, importa referir que a deficiência da BCKD origina uma elevação marcada dos AACR e dos seus cetoácidos no plasma, urina e LCR. Da isoleucina elevada forma-se, por racemização não enzimática, a alo-isoleucina, cuja presença é sistemática nos doentes com leucinose. Os AACR representam aproximadamente 40% das necessidades em AAE (essenciais).

O excesso de AACR e dos seus cetoácidos interfere com o metabolismo do sistema neurónio/astrócito, o que afecta a biossíntese das aminas biogéneas e altera o equilíbrio dos ciclos leucina/glutamato e glutamato/glutamina, no cérebro. A leucina e o ácido 2-cetoisocapróico elevados provocam disfunção cerebral: são os metabólitos mais neurotóxicos.

No que respeita à genética e epidemiologia, importa referir que se trata duma doença AR, pan-étnica, com incidência de 1/120.000 a 1/500.000 na Europa, sendo no Mundo à volta de 1/185.000 nados-vivos. Em Portugal é frequente nas comunidades ciganas, especialmente no sul do país.

Existem 6 formas de apresentação clínica: 1- Forma clássica: grave, de início neonatal; 2- Forma intermédia; 3- Forma intermitente; 4- Forma sensível à tiamina; 5- Forma por deficiência de E3; e 6- Formas assintomáticas, estas últimas na actualidade mais frequentemente diagnosticadas através da realização do rastreio alargado.

A Forma clássica, representando 80% das leucinoses, é caracterizada por encefalopatia + cetose. No geral, trata-se de um RN de termo que nasce bem, mas que, após um intervalo livre, seja entre o 4º e o 7º dia, evidencia sucessivamente: sucção débil, recusa alimentar, letargia, soluços, hipotonia, bradicardia, crises de apneia, hipotonia axial com hipertonia dos membros, movimentos de boxage e pedalagem, por vezes elevação lenta dos membros (espontânea ou após estimulação), tremores, opistótono, mioclonias, fontanela anterior hipertensa, um odor especial da urina (açúcar/ caramelo). Os abalos mioclónicos podem ser interpretados como convulsões; o EEG pode registar um padrão periódico (do tipo burst suppression).

A alimentação com leite materno pode atrasar os sintomas para a segunda semana de vida.

O odor característico (com algum valor na suspeição) pode surgir em RN alimentado com leite materno no contexto de mãe lactante tendo ingerido caril, especiarias, condimentos, ou de o coto umbilical ter sido limpo com iodopovidona.

Sem tratamento, rapidamente surge o coma e morte precoce. Durante o coma podem ser observados sinais neurológicos focais, hemiplegia aguda, hemianópsia e sinais de edema cerebral.

Para o diagnóstico, torna-se fundamental a realização dum conjunto de exames, predominantemente bioquímicos e, complementarmente, imagiológicos.

A cromatografia de aminoácidos (CAA) no plasma, sangue, urina e LCR mostra valores elevados de AACR (especialmente de leucina), dos respectivos cetoácidos (em especial do 2-cetoisocapróico) e de alo-isoleucina.

O teste DNPH (di-nitro-fenil-hidrazina) na urina, método colorimétrico detectando os cetácidos de CR, é positivo na fase aguda.

A presença de alo-isoleucina no plasma e urina é patognomónica, mas poderá não surgir até ao 6º dia de vida.

Existe cetonúria acentuada e a amónia pode estar elevada, embora com valor < 130 µmol/L). Mais raramente pode ocorrer acidose e hipoglicémia. A razão alo-isoleucina/ isoleucina > 0,6 é típica da Forma Clássica.

Com valores de leucina plasmática > 800 µmol/L, a encefalopatia torna-se evidente.

Através da imagiologia cerebral (TAC, RM) podem ser observados sinais de edema cerebral generalizado e de alterações da substância branca profunda: cerebelo, pedúnculos e cápsula interna. Salienta-se, pois, que a leucinose é uma doença da substância branca.

Para a confirmação diagnóstica procede-se à determinação da actividade enzimática nos fibroblastos/ linfoblastos em cultura, ou a estudos de biologia molecular.

O diagnóstico pré-natal é possível.

As complicações são frequentes: edema cerebral, sobretudo no RN e lactente; nos doentes mais velhos poderá surgir compressão do tronco cerebral e morte súbita (atenção à reidratação vigorosa). Outras complicações: desmielinização, alopécia, descamação cutânea, ulcerações da córnea, pancreatite e desnutrição; esta última poderá ser reversível com dieta correcta e continuada.

I – O tratamento do RN sintomático com a forma clássica é uma emergência médica.

Ia – Na fase aguda

Os objectivos são: reduzir rapidamente os níveis plasmáticos de AACR; combater o catabolismo; fomentar o anabolismo; providenciar o suprimento adequado de nutrientes. Assim:

  • fluidoterapia IV (soro fisiológico se necessário), mantendo valores plasmáticos de Na > 140 mEq/L e Osmol > 290 mOsm/L, com atenção ao edema cerebral, e evitando glicémia > 150-200 mg/dL;
  • métodos dialíticos (HFvv, HD – sendo que os AACR têm baixa depuração/ clearance renal), de acordo com os seguintes critérios: sintomas neurológicos graves, leucina (p) > 1500 µmol/L, intolerância gástrica (frequente), descida de leucina (s) < 500 µmol/L após 24 horas de dieta específica, ausência de melhoria clínica;
  • paragem de proteína natural (24-48 horas); suprimento energético > 100 kcal/kg/dia;
  • introdução de mistura de aminoácidos (Mx AA) livre de AACR para aumentar a síntese proteica;
  • suplementos de valina e isoleucina, ao 2º-3º dia de terapia, na dose 300-400 mg/dia de cada, para fomentar a síntese proteica e evitar a sua deficiência precoce, visto se eliminarem mais rapidamente do que a leucina; a dieta será administrada, consoante os casos, por sonda nasogástrica ou por alimentação parentérica total;
  • tiamina: 100-500 mg/dia, particularmente nas formas sensíveis à vitamina B1; alguns centros advogam uma terapia dietética apenas (evitando a diálise), mas somente se o diagnóstico for precoce (antes do 3º-7º dia de vida) e em doentes assintomáticos.
  • após as 24-48 horas sem proteínas naturais, deve iniciar-se um suprimento cauteloso das mesmas, incluindo de leucina, até à tolerância do doente.

Ib – Na fase de manutenção

Os objectivos são: manter o equilíbrio metabólico e alcançar um bom estado nutricional, de crescimento e de desenvolvimento. Assim:

  • dieta hipoproteica, semissintética, regularmente ajustada, para toda a vida. Os suprimentos de leucina são monitorizados de acordo com os respectivos níveis plasmáticos;
  • manter a ingestão de Mx de AA livre de AACR, que é crucial (pode fornecer-se na proporção de ~90% da proteína total);
  • manter o suplemento de valina e isoleucina até ser necessário;
  • manter o suplemento de tiamina (é prática comum);
  • suprimentos de leucina cerca de 300-400 mg/dia (60 a 110 mg/kg/dia) até aos 6 meses de idade. Crianças maiores de 3 anos, adolescentes e adultos podem tolerar até 500-700 mg/dia;
  • vigiar/corrigir possíveis deficiências de: isoleucina, valina, cálcio, magnésio, zinco, selénio e outros, e também de ácidos gordos (AG) essenciais;
  • usar tabelas de equivalentes: 1 parte é igual ao peso em gramas de um alimento que forneça 50 mg de leucina. Muito útil na confecção diária das dietas: evita monotonia alimentar e melhora o estado nutricional.

Nota importante:
A restrição excessiva de leucina pode ser tão devastadora como a sua acumulação
.

    • Níveis plasmáticos de AACR desejáveis:
    • Leucina: 80-200 µmol/L; Isoleucina: 40-90 µmol/L; Valina: 200-425 µmol/L, em sangue colhido 2-3 horas pós-prandial. Alguns centros preconizam níveis mais altos de isoleucina e valina, entre 200-400 µmol/L, no pressuposto de que tais valores elevados vão competir com a leucina, na entrada para o cérebro.
    • As crises de descompensação metabólica são potencialmente fatais.
    • Deve dar-se atenção à vacinação, pelo risco de descompensação nos 8-10 dias subsequentes.

Ic – Durante as intercorrências

Se no decurso da terapia ocorrerem situações febris, vómitos, diarreia (que aumentam o catabolismo), os níveis plasmáticos dos AACR e cetoácidos podem atingir níveis neurotóxicos em poucas horas, surgindo então sinais de alarme: apatia, ataxia, alucinações, anorexia, convulsões, alterações do equilíbrio e do comportamento.

Os pais devem procceder de imediato à realização do teste DNPH na urina para detectar a cetonúria, reduzir/ suprimir o suprimento de proteína natural, fornecer mais energia, manter os suplementos de Mx de AA, de valina e de isoleucina. Se houver intolerância gástrica, e ao mínimo sinal de alteração da consciência, deve contactar-se prontamente o centro de referência hospitalar.

II– Outras terapias

  • transplante hepático: já executado com êxito: o risco de descompensação em eventos catabólicos parece abolido;
  • transplante de hepatócitos: o interesse nos humanos está em avaliação;
  • fenilbutirato: reduz a concentração plasmática dos AACR e cetoácidos, parecendo aumentar a activiade residual da BCKD;
  • recentemente: introdução de fórmulas enriquecidas em vários AA que competem no transporte dos AACR através da BHE, diminuindo a entrada da leucina no cérebro;
  • uso de norleucina: potente competidor da leucina ao nível da BHE, diminuindo a sua entrada e acumulação, e especialmente do 2-cetoisocapróico, no cérebro. É um isómero da leucina e isoleucina.

Nas variantes moderadas, se assintomáticas, não é clara a necessidade de terapêutica de longo prazo; contudo, os doentes e famílias devem saber evitar/ corrigir hipotéticas crises.

Nos casos de leucinose materna: dieta hipoproteica rigorosa; deve manter-se concentração de leucina entre 100-300 µmol/L, e de valina e isoleucina, normal a ligeiramente elevada. É possível o nascimento de filho saudável. Todavia, há que ter em atenção o puerpério: risco de descompensação metabólica da mãe até 6 a 8 semanas após o parto.

Sobre a evolução e prognóstico, há a salientar os seguintes factos:

  • nos sobreviventes poderão surgir sequelas neurológicas graves, insuficiência cognitiva, espasticidade e cegueira cortical;
  • actualmente verificam-se menor morbilidade, menor mortalidade e mais baixa proporção de hospitalizações. Mais de 1/3 dos doentes com a forma clássica alcançarão QI > 90, e 1/3 entre 70-90. Os doentes que apresentam espasticidade, quadriplegia, regra geral, têm pior prognóstico intelectual.

5. HIPERGLICINÉMIA NÃO CETÓTICA

A glicina é o aminoácido mais pequeno que existe, não essencial, actuando como neurotransmissor inibidor no SNC.

A doença mais representativa em relação com este aminoácido é a hiperglicinémia não cetótica a qual se deve a um defeito no complexo multienzimático encarregado de metabolizar a glicina e diminuir a sua concentração no organismo.

Existem duas formas de apresentação clínica:

  1. precoce, mais grave e frequente; e
  2. tardia.

A forma precoce (neonatal) cursa com encefalopatia grave e deterioração neurológica progressiva (hipotonia generalizada, convulsões e ulterior espasticidade); o prognóstico é muito reservado.

A forma tardia, podendo surgir em qualquer fase da infância ou no adulto, traduz-se essencialmente por movimentos paroxísticos coreicos, confusão mental e alterações do comportamento.

A glicina está elevada no plasma (p) e no LCR, com razão LCR/p elevada

(normal = < 0,02; na situação em análise: proporção muito elevada = > 0,08).

O tratamento com dextrometorfan, benzoato de sódio e folatos é de sucesso limitado.

6. ACIDÚRIAS ORGÂNICAS

SISTEMATIZAÇÃO

As acidúrias orgânicas (AO) são devidas a deficiências enzimáticas no metabolismo mitocondrial dos ácidos carboxílicos activados pela CoA, muitos dos quais resultam do catabolismo dos aminoácidos (AA).

São devidas, não só à acumulação de intermediários tóxicos, mas também à alteração do metabolismo energético mitocondrial e da homeostase da carnitina.

Incluem-se nas AO a deficiência de biotinidase ou de holocarboxilase sintetase levando a deficiência múltipla de carboxilases.

O termo mais correcto é acidúria, e não acidémia, porquanto se trata de doenças essencialmente detectadas pela análise da urina.

As AO mais conhecidas, ditas clássicas, incluem as seguintes nosologias:

Grupo I

  • Acidúria propriónica (AP);
  • Acidúria metilmalónica (AMM); e
  • Acidúria isovalérica (AIV).

Grupo II

  • Acidúria metilmalónica (AMM) e homocistinúria (forma especial de AMM).

Como exemplos de AO mais raras, não abordadas neste capítulo, citam-se:

3-metil-crotonil-glicinúria;
3-metilglutacónica I; deficiência de desidrogenase da Acil-CoA de CC;
2-metil-3-hidroxibutiril-CoA desidrogenase;
isobutiril-CoA desidrogenase, 3-hidroxi-isobutírica;
acidúria malónica;
e defeitos do metabolismo da biotina, já referidos.

Grupo I

As AP, AMM e AIV, ditas clássicas, são causadas por defeitos do catabolismo dos AACR (leucina, isoleucina, valina).

Formas de apresentação

  • Forma de início neonatal, grave;
  • Forma de início tardio, aguda, intermitente;
  • Forma crónica, progressiva;
  • Formas assintomáticas.

A forma de início neonatal comporta-se como encefalopatia metabólica de “tipo intoxicação” que surge após um intervalo livre de sintomas.

O início é marcado por deterioração (sem causa aparente e sem resposta à terapia sintomática). Primeiros sinais: recusa alimentar e sonolência, a que se seguem coma, desregulação neurovegetativa (dificuldade respiratória, soluços, episódios de apneia, bradicardia, hipotermia).

No coma é frequente ocorrerem alterações do tono muscular e movimentos involuntários, episódios de hipertonia generalizada com opistótono, movimentos de pedalagem e boxage, e outras manifestações de intoxicação central como hipotonia axial com hipertonia dos membros, tremores e espasmos mioclónicos. No EEG é comum um padrão periódico (burst-suppression). A desidratação é frequente, assim como hepatomegália moderada. Na AIV é dado importante o odor a pés suados.

As características bioquímicas incluem: acidose metabólica, cetose, hiato aniónico com valor elevado, hiperamoniémia de grau variável (se > 500 µmol/L poderá induzir alcalose respiratória e a suspeita errada de doença do ciclo da ureia), hipocalcémia, glicémia normal, baixa ou elevada (se elevada poderá induzir suspeita errada de coma diabético), neutropénia, anemia, trombocitopénia, pancitopénia (podendo induzir suspeita errada de sépsis) e, por vezes, valor do lactato elevado.

A forma de início tardio, de modo agudo e intermitente, surge geralmente após intervalo livre longo (por vezes superior a um ano), ou mesmo até na adolescência e na idade adulta.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas traduzem-se por crises recorrentes, intercaladas por períodos assintomáticos, como regra.

A crise inicial pode ser fatal; as recorrentes ocorrem, em geral, no contexto de infecção, estado catabólico, suprimento alimentar rico em proteínas, ou sem causa aparente. São comuns situações de coma recorrente (de todos os tipos) e crises recorrentes de ataxia e letargia.

Os doentes poderão apresentar sinais neurológicos focais, sintomatologia de edema cerebral (sugerindo erradamente encefalite, AVC ou tumor cerebral).

Outra apresentação traduz-se por um quadro similar ao da síndroma de Reye.

De salientar que a neutropénia e trombocitopénia podem ser sinais inaugurais.

A forma crónica, progressiva pode manifestar-se por anorexia persistente, vómitos crónicos, má progressão ponderal e osteoporose. Tal sintomatologia poderá levar à suspeita errada de: refluxo gastresofágico, intolerância às proteínas do leite de vaca, doença celíaca, ou de estenose pilórica tardia.

Noutros casos, verifica-se hipotonia, fraqueza muscular e massas musculares pobres sugerindo miopatia ou doenças neurológicas congénitas; noutros ainda, atraso de desenvolvimento não específico, atraso psicomotor progressivo, insuficiência mental, convulsões e patologia dos movimentos.

Frequentemente, os doentes permanecem por longo tempo sem diagnóstico correcto até à ocorrência de crise neurológica aguda e coma; nestas circunstâncias poderá então surgir a suspeita de DHM.

As formas assintomáticas, descritas cada vez com maior frequência como resultado do rastreio alargado, podem ser representadas pela AIV associada a mutação C932T (A282V), geralmente em heterozigotia, e com fenótipo bioquímico moderado. Tais formas assintomáticas de AO levantam dúvidas quanto à necessidade de tratamento dietético contínuo e ao prognóstico a longo prazo.

Complicações

As complicações das AO clássicas são várias: sindroma extrapiramidal aguda ou progressiva, envolvimento ou mesmo necrose dos gânglios basais, atrofia cerebral, atraso de mielinização e alterações da motilidade.

Na AMM, de modo especial: falência renal que pode ocorrer pelos 10 anos de idade e progredir até à insuficiência renal terminal, necessitando de diálise e/ou TR; as lesões cutâneas são também comuns: descamação, alopécia, úlceras da córnea, geralmente devidas a má-nutrição proteica e deficiência de isoleucina.

Na AIV salienta-se: pancreatite aguda ou crónica que pode ser o quadro inaugural nos casos tardios, e ainda, cardiomiopatia.

Na AP pode surgir igualmente cardiomiopatia, a qual poderá estabelecer a indicação para transplante.

Diagnóstico

Quanto ao diagnóstico, importa referir que se torna fundamental a realização, entre outros, dos seguintes exames laboratoriais:

  • cromatografia de AA plasmáticos (CAA);
  • cromatografia de ácidos orgânicos urinários (CAO) podendo evidenciar o perfil específico de cada patologia;
  • doseamento no plasma da carnitina total, livre e acilcarnitinas, amónia e lactato.

A acilcarnitina anómala na AP e AMM é a propionilcarnitina (C3), e na AIV a isovalerilcarnitina (C5).

A marca bioquímica típica das AO Clássicas é: acidocetose e hiperamoniémia secundária.

O diagnóstico deve ser confirmado por estudos enzimáticos ou por estudo genético mutacional.

Tratamento

O tratamento das AO clássicas (AP, AMM e AIV) inclui procedimentos diversos na fase aguda e na fase de manutenção

Na fase aguda
  • combater o catabolismo com altas doses endovenosas de glucose (mais insulina, se necessário); corrigir a acidose e tratar a infecção e a anemia;
  • interromper o suprimento de proteínas (máximo: 24-48 horas) a par de suprimento energético normal/ elevado;
  • administrar carnitina em todas as AO, e carnitina + glicina nas formas graves de AIV;
  • descontaminação intestinal com metronidazol (20 mg/kg) para reduzir a produção de propionato pelo microbioma intestinal (AP, AMM);
  • administrar vit B12 (AMM) e biotina (AP);
  • promover a remoção dos metabólitos tóxicos com métodos dialíticos: HD (hemodiálise), HF (hemofiltração) ou HDF (hemodiafiltração); a DP (diálise peritoneal) é menos eficaz, especialmente nas situações muito graves, com hiperamoniémia grave (frequente na AP).
    Na AMM, como a clearance renal do ácido metilmalónico é alta, se a amoniémia não for muito elevada, poderá ser suficiente a reidratação, a promoção do anabolismo e a dieta hipoproteica;
  • benzoato de sódio e carbamilglutamato em casos de amónia elevada; se o lactato estiver muito elevado (o que poderá ocorrer na AP) por deficiência de tiamina, deve esta ser suplementada.
Na fase de manutenção
  • dieta hipoproteica, por vezes suplementada com Mx de AA isenta dos AA cujo metabolismo está afectado;
  • administar sempre carnitina, e carnitina + glicina (AIV);
  • descontaminação intestinal intermitente (com metronidazol) durante 10 dias em cada mês, ou contínua com metronidazol (1 mês), trimetroprim (1 mês), amoxicilina (1 mês) e assim sucessivamente (na AP e AMM);
  • administar hidroxicobalamina (AMM) e biotina (AP) nas formas sensíveis;
  • por vezes é necessário recorrer ao TH (AP), ou TH e/ou TR na AMM;
  • vigilância dos desequilíbrios dos AA plasmáticos, especialmente dos AA essenciais, e do nível dos AG essenciais, podendo ser necessário suplemento de ácido docosa-hexanóico;
  • alimentação entérica nocturna sistemática, nos mais jovens (qualquer que seja o apetite); por vezes, devido às dificuldades alimentares, tão comuns nas AO, há que recorrer à alimentação por sonda nasogástrica ou gastrostomia.

Grupo II

Uma forma especial de AMM pelas suas características e tratamento particulares é a acidúria metilmalónica associada a homocistinúria. Trata-se de um defeito da síntese intracelular da adenosilcobalamina e da metilcobalamina, cofactores, respectivamente, da metilmalonil-CoA mutase e da metionina sintetase.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas podem iniciar-se in utero: restrição de crescimento fetal, dismorfias moderadas, microcefalia e cardiomiopatia dilatada fatal.

Após o nascimento são descritas duas formas:

Forma infantil: de início precoce, mais frequente e grave, multissistémica, progressiva.

Como alterações mais típicas, citam-se: restrição do crescimento, microcefalia, dificuldades alimentares e de ganho ponderal, hipotonia, hidrocefalia, deterioração neurológica, anemia megaloblástica, alterações maculares e síndroma hemolítica urémica.

Forma tardia: sintomatologia mais evidente após os 4 anos de idade – regressão neurológica, sintomas neuropsiquiátricos, encefalopatia progressiva, degenerescência da espinhal medula, anemia megaloblástica, complicações tromboembólicas.

Diagnóstico

O diagnóstico desta forma especial depende dos resultados dum conjunto de exames laboratoriais: – cromatografia de AA plasmáticos (CAA); – cromatografia de ácidos orgânicos urinários (CAO); – doseamento do ácido metilmalónico e de homocisteína total (tHcy) no plasma; e perfil das acilcarnitinas no plasma.

O perfil bioquímico desta forma clínica inclui: ácido metilmalónico e homocisteína elevados, cistationina e metionina baixos; os níveis de vitamina B12 dentro do normal e de acilcarnitina C3 elevados constituem o padrão clássico.

Tratamento

O tratamento inclui administração diária parentérica de hidroxicobalamina (não a cianocobalamina) parentérica, betaína, ácido folínico e carnitina oral. Está em estudo o uso de hidroxicobalamina intranasal; a administração por via oral é ineficaz.

A dieta hipoproteica é controversa, porquanto as proteínas dietéticas têm muito pouca homocisteína. Podendo ser necessários suplementos de metionina, não deve administrar-se Mx de AA sem metionina (usadas na AMM) pelo risco de hipometioninémia grave.

Estão ainda indicadas:

  • dose antiagregante plaquetária de ácido acetilsalicílico;
  • monitorização regular da concentração de tHcy no plasma.

Como medida pré-natal importante cita-se a necessidade de reduzir as concentrações dos metabólitos tóxicos na mãe, o que parece ter impacte nas complicações de longo prazo.

Complicações

As complicações são variadas por atingirem diversos sistemas: SNC, olhos, sangue, vasos sanguíneos, rim, coração. A melhor estratégia para as evitar e ou conter diz respeito à administração de doses correctas diárias de hidroxicobalamina parentérica + betaína.

Na forma infantil pode ocorrer perda progressiva de visão até à cegueira (primeira década de vida). As complicações vasculares determinam maior morbilidade e mortalidade.

Salienta-se que no contexto de analgesia/ anestesia/ cirurgia não deve ser usado o óxido nitroso por ser potencialmente tóxico nesta doença.

Recomenda-se, se possível, o uso limitado das Mx de AA específicas, o que poderá facilitar o ajuste individualizado do suprimento de proteínas naturais. O doseamento da ureia e da creatinina na urina de 24 horas será de grande utilidade para esse cálculo. Assim, se o doente estiver medicado com Mx de AA, a razão ureia/ creatinina urinária será elevada, geralmente > 30, o que significa que muitos dos aminoácidos da Mx são excretados pela urina, sem qualquer efeito; se a ureia urinária (que reflecte o catabolismo proteico) for muito baixa e o doente não estiver a tomar a Mx de AA, pode-se, com alguma segurança, aumentar o suprimento proteico, fundamental para o equilíbrio metabólico, nutricional e o crescimento.

Estão em estudo:

    • o uso de vitamina E, vitamina C e creatina para melhorar o estado mitocondrial e as defesas antioxidantes, alterados nas AO; e
    • a administração de determinados precursores para “recarregar” os metabólitos deficientes no ciclo de Krebs.

Abreviaturas: Mx <> misturas

7. DOENÇAS DO CICLO DA UREIA

ETIOPATOGÉNESE

O ciclo da ureia ou de Krebs-Henseleit que, na sua forma completa, tem lugar somente no fígado, constitui a principal via metabólica comum para a excreção do azoto. A sequência de reacções que o integram, em parte na mitocôndria, em parte no citosol, converte (sobretudo a partir da glutamina e do glutamato) a amónia tóxica e outros compostos nitrogenados em produto não tóxico – a ureia – excretada através da urina.

Aos diferentes defeitos genéticos responsáveis por deficiência de uma ou mais enzimas que intervêm no ciclo (em número de oito – Figura 2) – correspondem diversas entidades clínicas adiante discriminadas em que se verifica hiperamoniémia. De referir, no entanto, que defeitos enzimáticos noutras vias metabólicas poderão secundariamente bloquear qualquer passo do ciclo da ureia.

FIGURA 2. Ciclo da ureia e vias alternativas de excreção de azoto. 1) Carbamil fosfato sintetase; 2) Ornitina transcarbamilase; 3) Arginino-succinato sintetase; 4) Arginino-succinato liase; 5) Arginase; 6) N-acetilglutamato sintetase; 7) Glutamina sintetase; 8) Citrina (transportador mitocondrial de aspartato-glutamato).

As vias alternativas de excreção do azoto, nomeadamente a conjugação da glicina com o benzoato, e da glutamina com o fenilacetato poderão ser aproveitadas como meio de tratamento dos doentes com défice de formação de ureia e hiperamoniémia.

Aspectos epidemiológicos

As doenças do ciclo da ureia (DCU) correspondem aos erros metabólicos hereditários dos mais frequentes (incidência cumulativa de 1/8.000).

Descrevem-se as seguintes entidades clínicas:

  • deficiência de ornitina transcarbamilase (OTC);
  • deficiência de arginino-succinato sintetase (AS) ou citrulinémia (vários tipos);
  • deficiência de arginino-succinato liase (AL);
  • deficiência de arginase ou hiperargininémia;
  • deficiência de glutamina-sintetase (GS);
  • dficiência de carbamil fosfato sintetase (CPS);
  • deficiência de N-acetilglutamato sintetase (NAGS); e
  • defeito da citrina.

Com excepção da deficiência da ornitina transcarbamilase ou OTC (de transmissão hereditária ligada ao cromossoma X e a forma mais comum de todas as doenças do ciclo da ureia), os outros defeitos são de transmissão autossómica recessiva. Como regra geral, os homozigotos com OTC do sexo masculino têm formas mais graves que os heterozigotos do sexo feminino; por outro lado, os heterozigotos do sexo feminino podem ter formas ligeiras, sendo que cerca de 75% são assintomáticos.

Manifestações clínicas e laboratoriais

As manifestações clínicas das doenças do ciclo da ureia são extremamente variáveis:

No RN aparentemente saudável com peso adequado à idade, após um intervalo livre por vezes inferior a 24 horas, ou de alguns dias, surge anorexia, recusa alimentar, vómitos, letargia, e/ou irritabilidade e taquipneia. Verifica-se deterioração rápida com alterações neurológicas, alterações do tono muscular, hiporreflexia, instabilidade vasomotora, hipotermia, apneia e convulsões, podendo seguir-se coma profundo e morte.

As complicações são: hemorragia cerebral e pulmonar; e, como sequela: grave atraso do neurodesenvolvimento. O diagnóstico inicial sugere habitualmente septicémia, sendo que a presença de alcalose respiratória, associada às manifestações descritas, poderá ser a chave para o diagnóstico.

A ureia plasmática muito baixa (1-2 mg/dL) é um dado relevante; portanto:

    • num RN gravemente doente com ureia de valor muito baixo, há que admitir doença do ciclo da ureia;
    • num RN em presença de alcalose respiratória, com hiato iónico normal e glicémia normal, sem cetoacidose, há igualmente que admitir doença do ciclo da ureia.

Após o período neonatal, as manifestações poderão ser menos agudas e mais variáveis: anorexia, letargia, vómitos, hepatomegália, má progressão ponderal, atraso do neurodesenvolvimento, episódios de irritabilidade; diplegia, tetraplegia espástica na deficiência da argininase (argininémia); alterações do cabelo (tricorexis nodosa) na deficiência da arginino-succinato liase.

No adolescente e no adulto: habitualmente verificam-se sintomas neurológicos e/ou psiquiátricos crónicos, com alterações do comportamento, por vezes bizarro, com desorientação, letargia, alterações do estado de consciência, e quadro de psicose. As referidas doenças poderão também manifestar-se por encefalopatia recorrente, geralmente associada a ingestão de elevado teor de proteínas, infecção, estresse, anestesia, estado catabólico ou, por vezes, sem causa aparente.

Na hiperargininémia, o quadro poderá ser diferente, caracterizando-se fundamentalmente por diplegia espástica, (por vezes interpretada como fazendo parte de paralisia cerebral), hiperactividade, ataxia, atetose, distonia e, raramente, coma e convulsões refractárias ao tratamento anticonvulsante.

Diagnóstico

O Quadro 1 mostra situações que, não sendo doenças do ciclo da ureia, podem cursar com hiperamoniémia.

QUADRO 1 – Situações que apresentam hiperamoniémia.

    • Deficiências de enzimas do ciclo da ureia (UCD)
    • Insuficiência hepática
    • Doenças dos ácidos orgânicos
    • Defeitos de oxidação dos ácidos gordos
    • Síndroma de Reye
    • Terapêutica com valproato
    • Choque hipovolémico
    • Hiperamoniémia transitória do RN
    • Síndroma HHH (hiperornitinémia, hiperamoniémia, homocitrulinúria)
    • Infecção por vírus Herpes simplex
    • Síndroma de hiperamoniémia e hiperinsulinismo
    • Miopatias mitocondriais, deficiência de piruvato carboxilase, deficiência de piruvato desidrogenase
    • Intolerância proteica lisinúrica
    • Asfixia perinatal
    • Insuficiência cardíaca congestiva
    • Tratamento com asparaginase
    • Infecção por bactérias urease positivas

 

Salienta-se que, das hiperamoniémias não devidas a artefactos, cerca de 2/3 correspondem efectivamente a DCU.

No que respeita ao diagnóstico das doenças do ciclo da ureia, é importante rever algumas definições, dando ênfase aos exames analíticos.

Assim, fala-se de hiperamoniémia quando o valor da amónia no sangue é > 80 µmol/L no RN, e > 50 µmol/L após os 28 dias de vida. Na prática, consideram-se valores normais, respectivamente os valores < 50 µmol/L no RN, e < 35 µmol/L após o período neonatal.

Num RN sem doença deste foro, mas com patologia relacionada com septicémia ou asfixia, raramente a amónia é > 180 µmol/L; se o valor for > 200 µmol/L há que suspeitar de doença metabólica, sendo que nas doenças do ciclo da ureia, e designadamente neste grupo etário, são atingidos valores de amónia > 1.500 µmol/L, sem cetoacidose e, geralmente, sem hipoglicémia.

Salienta-se, a propósito, que a hiperamoniémia é uma emergência médica.

Nas situações de suspeita clínica de doença do ciclo da ureia torna-se fundamental realizar de imediato um conjunto de análises básicas obedecendo a rigorosas condições técnicas de colheita e transporte (designadamente amostras de sangue e urina em recipientes acondicionados em gelo); no sangue – amónia, electrólitos, pH e gases, hiato iónico, lactato, glucose, ureia, creatinina, provas de função hepática e factores de coagulação; na urina – análise sumária.

Como análises especiais (em laboratório especializado) estão indicados os seguintes doseamentos: aminoácidos plasmáticos e urinários, ácidos orgânicos urinários, ácido orótico na urina, e perfil da carnitina e acilcarnitinas no plasma. Na deficiência de OTC verifica-se: aumento importante de ácido orótico na urina. Em todas as DCU há acumulação de glutamina (excepto na deficiência de glutamina sintetase/GS) e de alanina.

Os resultados obtidos quanto ao padrão de aminoácidos plasmáticos poderão ter valor diagnóstico para as entidades clínicas a seguir discriminadas: deficiência de arginino-succinato-sintetase (AS), de arginino-succinato liase (AL), de arginase, e de glutamina-sintetase (GS).

O diagnóstico pode ser confirmado, quer por estudo enzimático (leucócitos, fibroblastos, hepatócitos), quer por análise mutacional.

Salienta-se que o doseamento urgente da amónia no sangue deve fazer parte da investigação básica obrigatória em todos os doentes com encefalopatia não esclarecida, em qualquer idade.


Reiterando que a hiperamoniémia implica tratamento emergente, há no entanto que atender a uma eventual situação de coma hiperamoniémico com duração superior a 2-3 dias: a equipa médica responsável deverá discutir com os pais do paciente as opções a tomar.

Tratamento

O tratamento de emergência compreende:

  • interrupção imediata do suprimento proteico durante 24-48 horas;
  • aplicação imediata de sonda cânula ou cateter IV para suprimento energético elevado à base de soluto de glucose (a 10% se em veia periférica ou a 10-25% se em veia central); contudo, está indicada restrição de fluidos se houver suspeita de edema cerebral;
  • se os vómitos forem persistentes, pode usar-se ondansetron IV na dose de 0,15 mg/kg em 15 minutos, podendo repetir-se até 3 doses diárias;
  • introdução imediata de drogas eliminadoras de amónia:
    *benzoato de sódio até 500 mg/kg/dia, PO ou IV em 2 doses (1ª de 250 mg/kg em 2-4 horas; 2ª de 250 mg/kg nas próximas 20-22 horas);
    *fenilbutirato de sódio até 600 mg/kg/dia, PO ou IV em 2 doses (1ª de 250 mg/kg em 2-4 horas; 2ª de 350 mg/kg nas próximas 20-22 horas);
    *L-arginina PO ou IV (até 700 mg/kg/dia na citrulinémia e acidúria arginino-succínica); até 150 mg/kg/dia nas deficiências de ornitina transcarbamilase/ OTC, de carbamilfosfato-sintetase/CPS e de N-acetilglutamato-sintetase/ NAGS; também se usa o carbamil-glutamato nos defeitos de NAGS e CPS, o qual é activador da CPS, primeira enzima do ciclo da ureia – dose inicial de 100 mg/kg/dia, ulteriormente até 300 mg/kg/dia;
    *L-carnitina PO ou IV na dose de 200 mg/kg/dia, se o doente estiver submetido a tratamento com benzoato de sódio e emulsão de lípidos (AP);
  • técnicas de diálise; se a amoniémia for muito elevada (> 400 µmol/L), o doente estiver em coma, a amoniémia não descer significativamente nas primeiras 4 horas do tratamento atrás indicado, ou houver falência multiorgânica, estão indicadas técnicas de diálise: HD (hemodiálise), HF (hemofiltração) ou HDF (hemodiafiltração); em alternativa, diálise peritoneal, menos eficaz; não se deve fazer exsanguinotransfusão; o recurso à ECMO é muito eficaz;
  • introdução cautelosa da dieta de emergência sem proteínas nas primeiras 24-48 horas através de alimentação entérica (AE) e/ou alimentação parentérica (AP) consoante a gravidade da encefalopatia aguda, e intolerância digestiva;
  • após 24-48 horas sem proteínas, início de suprimento de proteínas- 0,5 g/kg/dia (na AP, sob a forma de aminoácidos) ou na AE através de fórmula infantil adequada à restrição proteica;
  • se surgirem convulsões, não usar valproato nem corticóides; os riscos nesta fase são hiperidratação, edema cerebral e má-nutrição;
  • se for necessário proceder a transfusão, usar apenas sangue fresco;
  • evitar a toxicidade de drogas; sendo impossível o respectivo doseamento sérico, utilizar o valor do hiato iónico: se > 15 mEq/L ou incremento de 6 mEq/L em relação a valor anterior, é provável o estado de toxicidade.

O tratamento de manutenção baseia-se em:

  • dieta hipoproteica com restrição de proteína natural de acordo com o tipo de doença, idade, peso, e tolerância individual, suplementada com mistura apropriada de aminoácidos;
  • administração de fármacos eliminadores de amónia, per os, como o fenilbutirato de sódio e/ou benzoato de sódio, cloridrato de arginina (excepto no defeito da arginase); na deficiência de arginina-succinato-liase (AL) a dose de arginina deverá ser muito mais baixa do que a usada na fase aguda (manutenção da arginina entre 50-200 µmol/L;
  • suprimento adequado de vitaminas, minerais e oligoelementos;
  • os fármacos devem ser administrados durante as principais refeições para rendibilizar a remoção da amónia.

Os objectivos do tratamento são:

  • manter amoniémia < 80 µmol/L, e glutamina < 800-1.000 µmol/L;
  • manter ausência de ácido orótico na urina;
  • manter a normalidade dos níveis plasmáticos de proteínas totais, de albumina e pré-albumina, de aminoácidos essenciais (manter Isol > 25 µmol/L – valor baixo é marcador de má-nutrição proteica) e de carnitina total (> 30 µmol/L).

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*Revisão de Aguinaldo Cabral

Introdução

A glicose é para as células dos mamíferos a fonte primária de energia, podendo ser armazenada na forma macromolecular como glicogénio para uso ulterior. A galactose e a frutose também constituem fontes de energia, embora em menor grau que a glucose.

Assim, os hidratos de carbono com implicações clínicas mais relevantes nas doenças hereditárias do metabolismo (DHM) compreendem três monossacáridos (glucose, galactose e frutose), três dissacáridos (lactose<>galactose+glucose, isomaltose<>glucose+glucose, e sacarose<>frutose+glucose), e um polissacárido (o já referido glicogénio).

A galactose entra na composição de certos glicolípidos, glicoproteínas e glicosaminoglicanos.

O suprimento contínuo de glucose a partir da alimentação, gluconeogénese e glicogenólise mantém a normalidade do nível de glucose no sangue.

Recorda-se que:

    • o metabolismo da glucose gera ATP pela via da glicólise (conversão da glucose ou glicogénio em piruvato), fosforilação oxidativa mitocondrial (conversão do piruvato em dióxido de carbono e água), ou ambas; e
    • as fontes dietéticas da glucose provêm dos polissacáridos ingeridos, amidos e dissacáridos.

As alterações do metabolismo dos hidratos de carbono mais importantes são: os defeitos hereditários do metabolismo da galactose e frutose, defeitos da neoglucogénese, doenças de armazenamento de glicogénio (glicogenoses), defeitos do metabolismo do glicerol, do metabolismo das pentoses, do transporte da glicose, e o hiperinsulinismo congénito.

Neste capítulo são abordadas, pela sua maior frequência, as glicogenoses, a galactosémia e a intolerância hereditária à frutose.

1. GLICOGENOSES

Introdução

As glicogenoses são afecções hereditárias relacionadas com defeitos genéticos originando défice congénito de determinadas enzimas intervindo no metabolismo do glicogénio e caracterizadas pela acumulação do mesmo, de estrutura normal ou anormal (em quantidade e qualidade ou ambas) nas células de diferentes tecidos.

O resultado final das alterações do metabolismo do glicogénio (essencialmente dizendo respeito a glicogénese, glicogenólise e respectiva regulação) é o surgimento de um largo espectro de doenças de grande heterogeneidade genética e clínica.

Tais afecções constituem uma das formas das chamadas doenças de armazenamento (tesaurismoses) – neste caso, do glicogénio, distinguindo-se as formas hepáticas, musculares e generalizadas.

Metabolismo do glicogénio e nosologia

Para a compreensão da patogénese e fisiopatologia das glicogenoses, importa sintetizar alguns tópicos sobre o metabolismo do glicogénio.

A formação do glicogénio ocorre a partir da glicose (glicogénese) em praticamente todos os órgãos e tecidos, mas principalmente no fígado e músculo.

A glicogenólise (no citoplasma e nos lisossomas), processo inverso da glicogénese, consiste na degradação do glicogénio.

A glicose pode sofrer dois diferentes destinos: – ser degradada (glicólise); ou -sair da célula e ser utilizada.

A regulação do metabolismo do glicogénio faz-se essencialmente através de duas enzimas fundamentais: a glicogénio-sintetase e a fosforilase. O AMP cíclico desempenha um papel fundamental na regulação destas enzimas pois, mediando a fosforilação destas enzimas, inibe a sintetase e estimula a fosforilase com consequente glicogenólise.

A regulação do metabolismo do glicogénio do músculo é do tipo hormonal, através da adrenalina e da insulina. Tal regulação ao nível do fígado faz-se através da glucagina (ou glucagom), do cálcio, da insulina e da própria glucose.

Os aspectos fundamentais da síntese e degradação do glicogénio estão resumidos na Figura 1.

Figura 1. Metabolismo do glicogénio.

São conhecidas actualmente mais de 12 glicogenoses que podem ser: predominantemente hepáticas, preferencialmente musculares, ou generalizadas.

As glicogenoses hepáticas compreendem os seguintes tipos: I (Ia e I não a), III, IV, VI, IX, XI e O.

As glicogenoses musculares mais frequentes são tipo V e VII, não esquecendo o envolvimento muscular, por vezes muito relevante, nas glicogenoses III e IX, e na forma juvenil/ adulto da glicogenose tipo II; outras: defeito da fosfogliceratoquinase, fosfogliceratomutase, defeito da desidrogenase láctica, defeito da frutose-1, 6-difosfato aldolase A, defeito da isoforma muscular da piruvatoquinase, e defeito da fosfogluco-isomerase.

A glicogenose generalizada é essencialmente a glicogenose tipo II (doença de Pompe), embora se reconheça carácter sistémico à glicogenose tipo IV.

Glicogenose tipo I

Como foi referido, é uma das mais frequentes glicogenoses (cerca de 1/4 de tais afecções); distinguem-se dois subtipos, resultantes respectivamente:

  • do defeito da subunidade catalítica da glucose-6-fosfatase (tipo Ia ou doença de von Gierke); e
  • do defeito da translocase da glucose-6-fosfato (tipo I não-a ou tipo Ib).

Quanto às manifestações clínicas em relação com a etiopatogénese, há a salientar: hipoglicémia recorrente (de jejum curto), convulsões por hipoglicémia, hepatomegália, acidose láctica e hiperventilação. Outros sinais frequentes são: baixa estatura, fácies de boneca, obesidade do tronco, abdómen saliente por grande hepatomegália, postura lordótica, musculatura hipotrófica, hipotonia, equimoses e epistaxes. O coração tem tamanho normal e os rins estão simetricamente aumentados. (Figura 2)

O tipo Ib, menos frequente, apresenta ainda: esplenomegália, infecções bacterianas ou fúngicas recorrentes devidas a neutropénia, anomalias fagocitárias e outras anomalias da imunidade. Neste tipo é também frequente a doença inflamatória intestinal (semelhante à doença de Crohn), diarreia prolongada, anemia e artrite ocasional. A morte pode ocorrer por sépsis.

FIGURA 2. Fenótipo de crianças com glicogenose do tipo Ia (von Gierke). Fácies de boneca, grande distensão abdominal por hepatomegália importante e obesidade. (NIHDE)

No que respeita ao diagnóstico, este deve basear-se na clínica, e nos resultados de análises bioquímicas e genéticas (mutacionais). Os achados de hepatomegália, hipoglicémia de jejum curto, acidose láctica, hiperlipidémia e hiperuricémia são altamente sugestivos. Poderá ser necessário realizar uma prova de tolerância à glucose oral (2 g/kg, até máximo de 50 g, com colheitas de sangue aos 30, 60, 90, 120 e 180 minutos) para destrinça diagnóstica: na glicogenose de tipo I (Ia ou Ib) verifica-se diminuição da lactacidémia, enquanto nas outras glicogenoses se verifica aumento.

A prova do glucagom (500 µg ou 30-100 µg/kg IM com determinação da glicémia aos 15, 30, 45 e 60 minutos) mostrará falta de resposta hiperglicémica (ausência de incremento de 25 mg/dL em 45 minutos e marcada elevação da lactacidémia), salientando-se que poderá surgir neste contexto hipoglicémia ou acidose grave. Só raramente será necessário proceder a biópsia hepática para o estudo enzimático (fígado fresco, idealmente não congelado).

Sob o ponto de vista de novas tecnologias aplicadas à semiologia, com implicações práticas importantes no tratamento, cita-se um novo sensor que, para além da monitorização contínua subcutânea da glicémia, permite igualmente proceder em 1 minuto à determinação do nível plasmático de lactato (Lactate-Pro).

Nas glicogenoses tipo I, os objectivos do tratamento são evitar a hipoglicémia e alterações metabólicas secundárias, promover o crescimento normal e prevenir a nefropatia. Assim, torna-se fundamental propiciar um suprimento exógeno de glucose continuamente, dia e noite, a um ritmo que mantenha a glicemia acima do limiar dos mecanismos de contrarregulação.

Salienta-se, a propósito, que as necessidades diárias de glucose vão diminuindo com a idade: 0-12 meses à 7-9 mg/kg/minuto; >1-3 anos (A) → 6-8 mg/kg/minuto; > 3-6 A → 6-7 mg/kg/minuto; > 6-12 A → 5-6 mg/kg/minuto; adolescente → 5 mg/kg/minuto; adulto → 3-4 mg/kg/minuto.

O valor calórico total (VCT) deverá ser repartido do seguinte modo: hidratos de carbono à 60-70%; gorduras à 20-30%, substituindo as gorduras saturadas por insaturadas; proteínas à 10-15%.

As necessidades são cobertas por refeições frequentes, ricas em hidratos de carbono durante o dia e, durante a noite, com a chamada alimentação contínua nocturna (ACN) de acordo com o seguinte esquema: duração ~12 horas até aos 6 anos, cobrindo ~50-35% do VCT; duração ~10 horas após os 6 anos até ao fim da adolescência (~30% do VCT); e duração ~8 horas no adulto (~25% VCT).

Para evitar a hipoglicémia, a ACN deve iniciar-se, no máximo, 1 hora após a última refeição do dia; e, na manhã seguinte, deve iniciar-se a alimentação do doente cerca de 15-30 minutos depois de terminada a ACN. Após 1 ano de idade emprega-se o amido cru: de 4-4 horas até aos 2 anos de idade; e, depois, de 6-6 horas.

Nos casos em que não é possível a ACN, está indicada a administração de alimentos ricos em hidratos de carbono a intervalos regulares, de 2-2, 3-3, ou 4-4 horas, também durante a noite.

Quanto aos hidratos de carbono de absorção rápida, salienta-se a necessidade de restringir a lactose e evitar a sacarose.

Em função do contexto clínico de cada caso, poderá ser necessário recorrer a terapêuticas complementares dirigidas a situações específicas, como: hiperlipidémia, proteinúria mantida, nefrocalcinose, nefrolitíase, hiperuricémia, osteopénia, osteoporose, restrição do crescimento (a hormona de crescimento/GH não traz benefícios) etc..

Por vezes é necessário recorrer a transplantes: hepático, de hepatócitos, e renal.

Como novas terapias, citam-se a dieta rica em ácidos gordos de cadeia média, e novo amido modificado proporcionando melhor tolerância em jejum.

Nos doentes com mau controlo metabólico, não explicado por deficiente adesão às orientações médicas, é fundamental avaliar a função tiroideia pelo risco de hipotiroidismo. Efectivamente, a intensa terapia com hidratos de carbono, alterando o padrão alimentar, poderá originar carências nutricionais específicas, designadamente em vitamina B12, cálcio e selénio.

Na glicogenose do tipo Ib o tratamento é semelhante ao do tipo Ia; contudo, face às respectivas manifestações clínicas (ver atrás) existem certas particularidades:

  • a gastrostomia está contraindicada;
  • precaução com o suprimento de amido cru, susceptível de exacerbar doença inflamatória intestinal;
  • a utilização de antbióticos profilácticos deverá ser ponderada;
  • a utilização de G-CSF (factor estimulante do crescimento dos granulócitos), não glicosilado que, aumentando significativamente o número de neutrófilos (se neutropénia < 1.500/mmc), contribui para a diminuição da frequência e gravidade das infecções, a melhoria da cicatrização de abcessos e úlceras, e a melhoria da doença inflamatória intestinal;
  • a utilização de IECA diminui a hiperfiltração, a proteinúria e a hipertensão arterial;
  • eventualidade de esplenectomia nos casos de esplenomegália irreversível, resultante do tratamento com G-CSF.

Novas propostas de tratamento incluem: adalimumab (anticorpo monoclonal cujo alvo é o factor alfa de necrose tumoral); suplementação com vitamina E (antioxidante); terapia nutricional com dieta polimérica suplementar com TGF-Beta2 (Modulen-IBD):

Como complicações da glicogenose do tipo I há a referir: adenoma hepático, que pode evoluir para carcinoma hepatocelular; doença renal que se inicia precocemente e pode levar à necessidade de transplante renal; gota; cálculos renais; pancreatite; anemia; osteopénia; ovários poliquísticos; hipertensão pulmonar; hipocrescimento; atraso pubertário; tendência hemorrágiaca; e envolvimento neurológico. O atraso mental é raro.

Glicogenose tipo II (doença de Pompe)

Esta forma de glicogenose, mais rara que as de tipo I (incidência estimada em ~1/50.000 nados-vivos, correspondendo nas estatísticas de vários centros a 1/5 de todas as glicogenoses), resulta do défice da enzima maltase ácida lisossomal (alfa-1,4 glucosidase ácida) cujo gene estrutural está localizado no cromossoma 17q25.2. Importa salientar que foram identificadas diversas mutações.

Estão descritas duas formas principais: neonatal/ infantil (mais frequente) e juvenil/ adulto, conforme a data de início de manifestações; contudo existem formas com início em diversas idades e de evolução lenta caracterizadas essencialmente por miopatia.

Na forma neonatal/ infantil – início nas primeiras semanas ou nos primeiros meses de vida ou já no RN – são notórios hipotonia generalizada (floppy baby) com massas musculares de volume normal, perturbações da deglutição, macroglóssia (por vezes o primeiro sinal que chama a atenção), cardiomegália exuberante e progressiva/ cardiomiopatia hipertrófica, e insuficiência cardiorrespiratória que pode conduzir à morte nos primeiros meses (< 1-2 anos). Não existe hepatomegália ou a mesma é discreta. O ECG, muito típico na forma infantil, revela encurtamento de P-R e complexos QRS de alta voltagem. (Figuras 3 e 4)

Existe uma variante muscular com início nos primeiros 6 meses de vida, com sintomatologia muscular predominante, geralmente sem compromisso cardíaco.

A forma juvenil caracteriza-se fundamentalmente por fraqueza muscular proximal, sobretudo nos membros inferiores e tronco, incapacidade progressiva e impossibilidade da marcha autónoma ao longo dos anos, com desfecho fatal em idade variável, em geral por volta dos 30 anos. O EMG revela sinais de irritabilidade eléctrica.

No adulto simula outras miopatias. A miopatia proximal é lentamente progressiva sem atingimento cardíaco, ou mínimo.

Os achados laboratoriais são semelhantes nas duas formas: demonstração de vacúolos nas células (musculares, leucócitos, fibroblastos) que se coram para o glicogénio, e elevação da fosfatase ácida, CK e, por vezes de ALT e AST. A glicémia, a lactacidémia, a prova de tolerância à glucose oral e a do glucagom são normais.

Outros exames:

  • EMG com padrão miopático em todos os fenótipos;
  • Avaliação da função pulmonar, evidenciando marcada diminuição da capacidade vital e fadiga diafragmática precoce.

A confirmação do diagnóstico faz-se:

  • Pela demonstração do défice enzimático; e
  • Por análise mutacional, segundo a metodologia já referida para outras doenças hereditárias do metabolismo (biópsia muscular, fibroblastos, etc.).

FIGURA 3. Lactente com hipotonia generalizada (floppy baby) no contexto de glicogenose tipo II (doença de Pompe). (NIHDE)

FIGURA 4. Sinais radiológicas de cardiomegália em criança com doença de Pompe. (NIHDE)

É possível o diagnóstico pré-natal.

O tratamento tem uma base multidisciplinar (dietética, suporte ventilatório e fisioterapia) enquanto não se inicia a terapêutica enzimática de substituição (TES):

  • Dietaelevado suprimento proteico (20-30% do VCT) com ou sem misturas de AA ramificados e suprimento calórico adedquado;
  • Suporte ventilatório – por vezes há que recorrer a traqueostomia e ventilação mecânica;
  • Fisioterapiaé importante o treino dos músculos inspiratórios;
  • TES procede-se a terapia endovenosa semanal, geralmente com boa tolerância: diminui a dependência do ventilador, melhoria da CM, motora e da função respiratória.

2. GALACTOSÉMIA

Metabolismo da galactose e nosologia

A galactosémia é uma doença hereditária traduzindo-se por valor elevado de galactose no sangue e integrando três formas clínicas associadas, respectivamente, a deficiência de três diferentes enzimas que integram o metabolismo da galactose.

Tais enzimas são: a galactose-1-fosfato-uridil transferase (GALT), a galactoquinase (GALK) e a uridina difosfato galactose-4-epimerase (GALE ).

A designação de galactosémia, embora apropriada para qualquer das deficiências enzimáticas referidas, na generalidade é atribuída à forma clássica (GALT), mais prevalente, em que se verifica deficiência completa da enzima GALT.

A propósito do metabolismo da galactose, cabe recordar que a lactose, dissacárido constituído por glicose e galactose, é o principal hidrato de carbono do leite. Ao ser ingerida, a lactose é hidrolisada no intestino por acção da lactase, em glicose e galactose; a galactose é depois fosforilada em galactose-1-fosfato (Gal-1-P) pela galactoquinase (GALK).

Outra enzima, a galactose-1-P-uridil transferase (GALT) converte a Gal-1-P e a uridina difosfato glicose (UDP glucose) em uridina difosfato galactose-4-epimerase (GALE ou UDP-galactose) e em glucose-1-P, sendo esta metabolizada em glucose-6-P, a partir da qual se formam glicose, piruvato e lactato. [UDP <> Uridina Di Fosfato] [F<>Phosphate].

A galactose pode ser também convertida em galactitol (causa primária das cataratas) por acção da aldolase redutase; por sua vez, a UDP glicose pode ser convertida em UDP galactose pela UDP galactose epimerase.

A UDP galactose é utilizada na síntese de glicoconjugados e intervém nas vias de síntese de novo, isto é, de produção endógena de galactose, facto que parece explicar muitas complicações tardias da galactosémia; a produção endógena, que é contínua, da ordem de 0,53-1,05 mg/kg/hora, pode conduzir a verdadeira intoxicação do SNC.

A fonte principal de galactose é o leite e produtos lácteos, existindo livre nas frutas e vegetais.

Aspectos epidemiológicos e genética

A galactosémia, doença autossómica recessiva, surge com incidência na Europa entre 1/18.000 e 1/60.000 na sua forma clássica, mais frequente na Irlanda. A mesma resulta da deficiência completa de GALT, com consequente acumulação de galactose-1-fosfato (Gal-1-P), exercendo acção lesiva nas células parenquimatosas do rim, fígado e cérebro.

De realçar que outras variantes derivam de graus diversos de deficiência parcial de GALT, como a variante Duarte que, em homozigotia, tem uma actividade enzimática de 50%.

A deficiência GALK, rara, com consequente acumulação nos tecidos de galactitol, tem sido descrita com maior incidência na Roménia. A deficiência GALE é a mais benigna, descrevendo-se o incremento de UDP-galactose nos tecidos e apenas deficiência enzimática ao nível de leucócitos e eritrócitos, sem desregulação metabólica noutros tecidos.

O gene para a transferase GALT localiza-se no cromossoma 9p13. Relativamente à forma GALK foram descritos dois genes: GK1 no cromossoma 17q24 e GK2 no cromossoma 15. O gene para a epimerase (GALE) localiza-se no cromossoma 1p-35-36.

Manifestações clínicas

A forma clássica (GALT), mais grave, tem início de forma aguda por volta da 1ª semana de vida após ingestão de leite, incluindo leite materno: vómitos, diarreia, perda ponderal, letargia, hipotonia, icterícia por hiperbilirrubinémia não conjugada ou mista, hepatomegália, disfunção hepática, hemorragias; tais manifestações podem ser fatais. As cataratas podem estar presentes desde os primeiros dias de vida ou observar-se mais tarde.

Na sua forma crónica verifica-se, em geral, anorexia persistente, vómitos frequentes, restrição do crescimento e alterações do desenvolvimento. (Figura 5)

Uma constelação de achados clínicos no RN e lactente, como doença hepática, diátese hemorrágica, icterícia, vómitos recorrentes, não progressão do peso, etc. devem levantar a suspeita diagnóstica de galactosémia, sendo que o diagnóstico de sépsis é muitas vezes o primeiro a ser sugerido. Por outro lado, há que ter em atenção que a septicémia por E. coli surge com frequência nos doentes com galactosémia.

Quanto às manifestações clínicas da forma GALK, dentro da raridade, citam-se: catarata e sinais de pseudotumor cerebri causados pelo galactitol.

FIGURA 5. Lactente com galactosémia: icterícia, desnutrição e distensão abdominal notórias. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Exames laboratoriais

Como achados laboratoriais há a realçar acidose metabólica, glicosúria, galactosúria, albuminúria, e aminoacidúria relacionáveis com disfunção tubular renal.

A positividade de substâncias redutoras na urina, embora não seja um achado muito sensível, pode fortalecer a suspeita.

Obtém-se maior sensibilidade e maior especificidade com o chamado teste de Beutler (fluorescent spot test), realizado com amostra de sangue total: não se observa fluorescência em caso de deficiência de GALT; esta análise só deverá ser executada 120 dias após eventual transfusão de sangue.

O resultado positivo apontará para suspeita diagnóstica de galactosémia, a confirmar mediante:

  • Análise mutacional, genética, pesquisando mutações: no nosso país, a mais prevalente é a Q188R;
  • Determinação da actividade enzimática nos eritrócitos “método padrão de ouro” (só após 120 dias de transfusão).

Na forma GALK o diagnóstico final é feito demonstrando actividade normal de GALT e ausência de actividade de GALK nos eritrócitos.

Diagnóstico precoce

O diagnóstico precoce (antes das manifestações clínicas) pode ser feito após o nascimento. O rastreio alargado para a galactosémia clássica é feito na Europa apenas em 10 países (dados de 2014). A este propósito, importa referir que foi introduzida nova estratégia para diminuir os resultados falsos positivos: nos casos em que a actividade enzimática é < 15% faz-se o teste da galactose-desidrogenase, avaliado por fluorescência com radiação ultravioleta.

Tratamento

O tratamento baseia-se na exclusão da galactose e lactose da alimentação. Assim, em caso de suspeita de doença, deve excluir-se de imediato a galactose da alimentação, designadamente interrompendo:

  • O aleitamento materno e/ou fórmulas convencionais (derivadas do leite de vaca); e
  • Os produtos lácteos e derivados.

Na fase aguda é importante a administração de vitamina K e plasma fresco; a fototerapia raramente é necessária.

A dieta específica levará em geral a uma melhoria rápida, especialmente da função hepática e da doença tubular renal e, mais tardiamente, das cataratas.

Ultrapassada a fase aguda, o único tratamento específico é a dieta. Contudo, não é possível prevenir as complicações neurológicas tardias.

Deve proceder-se à administração de suplementos de cálcio, escolhendo cautelosamente os preparados sem lactose.

A falência ovárica evidencia-se por hipogonadismo hipergonadotrófico, o qual atinge cerca de 90% das mulheres doentes; são comuns a puberdade atrasada, a amenorreia e a oligomenorreia. As mulheres galactosémicas grávidas devem continuar a dieta sem lactose durante a gravidez.

O marcador mais importante para monitorizar o tratamento é a medição da Gal-1-P nos eritrócitos, admitindo-se como valor no limite superior aceitável: 150 µmol/L.

Os doentes com galactosémia necessitam de seguimento especializado, com especial atenção para o desenvolvimento na área da fala e para a vertente endocrinológica (em relação com início de tratamento hormonal – anticoncepção – nas raparigas, pelos 12-13 anos).

A forma GALE não necessita de tratamento. Nas formas assintomáticas, identificadas em programas de rastreio, aconselha-se, não dieta livre de galactose, mas apenas restrição, dado o papel importante da galactose no desenvolvimento do sistema nervoso.

Complicações

Mesmo nos doentes tratados poderão surgir complicações tardias frequentes como moderada restrição do crescimento, atraso da fala, dispraxia (movimentos “desajeitados e descoordenados” – incluindo ao nível dos músculos que intervêm na fala – sem que haja parésia ou ataxia), hipotonia, tremor, deficiência psíquica, deficiência da visão e percepção, disfunção ovárica conduzindo a infertilidade, ataxia, etc.. Por isso, o prognóstico final poderá ser problemático, tendo em conta designadamente que o QI diminuindo durante a infância, sofrerá progressivo agravamento com a idade.

3. INTOLERÂNCIA HEREDITÁRIA À FRUTOSE

Metabolismo da frutose e nosologia

A intolerância hereditária à frutose (IHF) é uma afecção causada por deficiência da actividade da aldolase B (frutose1,6 – difosfato) no fígado, rim e intestino. É explicável por mutações no gene da aldolase B no cromossoma 9q22.3.

A aldolase B catalisa a hidrólise da frutose 1,6 difosfato em triose fosfato e gliceraldeído fosfato; hidrolisa igualmente a frutose-1-fosfato (F-1-P).

Quando se verifica ingestão de frutose, o resultado do défice enzimático é o surgimento de sintomas por acumulação de frutose 1-fosfato com acção tóxica tecidual, devida a redução do ATP intracelular e inibição da glicogenólise.

A frutose é importante fonte dietética de hidratos de carbono, encontrando-se no mel, vegetais, leguminosas, frutos, sacarose, sorbitol (este último, poliálcool que resulta da redução enzimática da glicose). Dum modo geral, um adulto consome diariamente cerca de 100 gramas de frutose, consumo que, infelizmente, está em crescendo.

Distinguem diversas entidades clínicas, entre elas:

  • A frutosúria essencial ou benigna, assintomática, resultante de défice da frutoquinase (que catalisa a fosforilação da frutose em frutose-1-fosfato), com incidência ~1/120.000; e
  • A intolerância hereditária à frutose (IHF) por défice da aldolase B [ou aldolase da frutose 1,6-difosfato (F-1,6 DP)] ao nível do fígado, rim e intestino delgado, com uma incidência aproximada de 1/23.000.

Neste capítulo é dada ênfase à IHF.

Manifestações clínicas

Como regra geral, os indivíduos de qualquer idade com a anomalia não evidenciam sintomatologia até ingerirem alimentos contendo frutose ou sacarose (açúcar de mesa). Os RN e lactentes alimentados exclusivamente com leite materno estão assintomáticos.

Existem formas de apresentação aguda e crónica. O modo mais frequente corresponde ao início da diversificação alimentar com a introdução de fruta ou sacarose: palidez, vómitos, diarreia, hipoglicémia, sudorese, tremor, choque, icterícia, diátese hemorrágica, apatia, coma, edema, ascite, oligoanúria, hepatomegália e, por vezes, esplenomegália, insuficiência hepática aguda e disfunção tubular renal que podem ser fatais. (Figura 6) A sintomatologia inicial é semelhante à da galactosémia.

A sensibilidade à frutose é variável: enquanto certos doentes exibem sintomas com pequenas doses de frutose, outros poderão tolerarar até 250 mg/kg/dia; dum modo geral, a exuberância de manifestações é directamente proporcional ao teor de frutose ingerido.

FIGURA 6. Imagem de histologia hepática: lactente com IHF, sendo notórias alterações cirróticas no contexto de hepatomegália em regressão com dieta. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Poderá desenvolver-se aversão aos doces e hábitos alimentares peculiares, o que tem efeito protector pela menor ingestão do nutriente: típica ausência de cárie).

Poderá haver atraso do diagnóstico correcto, conhecendo-se casos em que tal é somente realizado na idade adulta. Deve reforçar-se a ideia de que os doentes não identificados estão em risco de vida.

Havendo suspeita da doença, deve proceder-se a um conjunto de exames laboratoriais:

  • Análise de urina (incluindo pesquisa de substâncias redutoras); os achados clássicos em caso de intolerância à frutose são: frutosúria, glicosúria, fosfatúria, proteinúria, aminoacidúria testemunhando disfunção tubular renal;
  • Análise de sangue: pH, fósforo, potássio, glicose diminuídos; e lactato, ALT, AST elevados; alteração dos factores de coagulação;

NB- a hipoglicémia verificada num tempo curto após exposição à frutose poderá escapar à detecção.

 

  • Análise de ADN permite confirmação diagnóstica em mais de 95% dos casos), pesquisando a mutação prevalente na Europa (A149P);
  • Análise – medição da actividade enzimática, de preferência nas células hepáticas ou, como alternativa, no intestino delgado (biópsia), havendo dúvidas; salienta-se que tal medição não deve ser realizada nas células do sangue nem nos fibroblastos, os quais somente expressam a aldolase A.

Notas importantes:

    • não se deve proceder à prova de sobrecarga com frutose oral (envolvendo risco); somente, e se for considerado indispensável, se pode realizar a prova de sobrecarga com frutose IV de forma lenta, em 4 horas, com 200 mg/kg de frutose; no caso de IHF verifica-se: diminuição do fosfato, hipoglicémia a seguir, e elevação subsequente de ácido úrico e magnésio.
    • o diagnóstico deve ser sempre transmitido à equipa de saúde, quer no contexto de consulta, quer no de serviço de urgência.

Tratamento

O tratamento consiste em prescrever para toda a vida um regime alimentar isento de frutose, assim como de seus precursores como sacarose e sorbitol. Uma vez ultrapassada a fase aguda, o cumprimento de tal dieta permite, em geral, um curso benigno.

As fórmulas infantis não devem conter frutose nem sacarose.

Alguns autores preconizam a suplementação de vitamina C e de folatos.

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*Revisão de Aguinaldo Cabral

1. DOENÇAS DO METABOLISMO DAS PURINAS E PIRIMIDINAS

Introdução

A propósito do tema-base deste capítulo, e para uma melhor compreensão do mesmo, importa recordar certas noções essenciais relacionadas.

As purinas (adenina e guanina ou guanidina) e as pirimidinas (tiamina, citosina e uracilo) são bases azotadas, componentes essenciais dos nucleótidos.

Os nucleótidos são compostos constituídos por um açúcar (ribose ou desoxirribose) ligado ao ácido fosfórico sob a forma de éster e combinado com uma base púrica ou com uma base pirimídica. Os referidos nucleótidos são constituintes essenciais de todas as células vivas, sob a forma de ácidos nucleicos ou de fosfatos destes ácidos. Certos nucleótidos actuam como transportadores de energia em diversas reacções enzimáticas.

A propósito de ácidos nucleicos, citam-se o ácido ribonucleico (ARN ou RNA) e o ácido desoxirribonucleico (ADN ou DNA).

O RNA é um ácido nucleico cujo açúcar é a ribose, o qual é um constituinte do citoplasma e núcleo das células.

O DNA tem como açúcar uma ribose que perdeu oxigénio (daí a designação do prefixo desoxi). Os DNA são igualmente constituintes dos núcleos celulares, os quais incorporam cromossomas contendo genes. Em suma, os genes, partículas elementares dos cromossomas, são constituídos essencialmente por DNA.

Metabolismo das purinas e pirimidinas

Abordar sucintamente o metabolismo das purinas e pirimidinas implica uma descrição breve da síntese dos ácidos nucleicos; esta faz-se a partir da ribose-5-fosfato que, sob a acção da fosfo-ribosil-pirofosfato sintetase (PRPS) origina a P-5-ribose-pirofosfato (PRPP) de que derivam dois tipos de compostos: precisamente, as purinas (ou bases purínicas) e as pirimidinas (ou bases pirimídicas).

A biossíntese das purinas decorre duma via complexa implicando diversas enzimas e mecanismos de retrocontrolo, resultando em inosina monofosfato (IMP), que é convertida em adenosina monofosfato e guanosina monofosfato (AMP, GMP). As purinas são catabolisadas via transformação hipoxantina → xantina → ácido úrico.

A biossíntese das pirimidinas faz-se por junção à PRPP de ácido orótico proveniente do aspartato e do carbamil fosfato. Forma-se assim o ácido orótico e o ácido uridílico, precursores das bases pirimídicas dos ácidos nucleicos, o que implica – tal como na via das purinas – a intervenção de diversas enzimas e mecanismos de retrocontrolo que podem estar ausentes, deficitários ou disfuncionantes (por ex. hiperactividade).

As doenças hereditárias do metabolismo das purinas e pirimidinas, traduzem as perturbações em diversos passos das vias metabólicas, com implicações clínicas.

Manifestações clínicas gerais

No seu conjunto, a clínica poderá integrar:

  • manifestações renais: infecções recorrentes do tracto urinário, nefrolitíase, insuficiência renal;
  • manifestações neuropsíquicas: atraso psicomotor, epilepsia, espasticidade, distonia, ataxia, coreoatetose, autismo, automutilação, surdez, cegueira congénita, dismorfias, etc.;
  • artrite e gota;
  • baixa estatura;
  • cãimbras e fraqueza musculares, hipotonia;
  • imunodeficiência e infecções recorrentes, etc..

Diagnóstico

Para o diagnóstico torna-se fundamental valorizar um conjunto de parâmetros, a saber:

  • determinação do nível de ácido úrico no soro e na urina de 24 horas;
  • determinação da relação ácido úrico/ creatinina na urina da manhã;
  • detecção de cristais urinários;
  • estudo das purinas e pirimidinas na urina de 24 horas, evitando nas 24 horas precedentes e durante a colheita, a ingestão de xantinas (veiculadas pelo chá, café, cacau, licores, etc.);
  • determinação do ácido orótico na urina.

Nosologia

As doenças resultantes de alteração do metabolismo das purinas e pirimidinas integram um conjunto muito heterogéneo, com formas de apresentação diversa. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Doenças das purinas e pirimidinas.

PURINAS

    • Hiperactividade da fosfo-ribosil-pirofosfato sintetase
    • Deficiência da adenilsuccinase
    • AICA-ribosidúria
    • Deficiência de AMP deaminase muscular (miodenilato desminase)
    • Deficiência de adenosina deaminase (ADA)
    • Hiperactividade da ADA
    • Deficiência de nucleosídeo fosforilase (NP)
    • Deficiência de xantina – oxidase (ou desidrogenase)
    • Síndoma de Lesch-Nyhan
    • Deficiência de adenina-fosfo-ribose-transferase
    • Deficiência de deoxiguanosina cinase

PIRIMIDINAS

    • Acidúria orótica hereditária
    • Deficiência de di-hidropirimidina de-hidrogenase
    • Deficiência de di-hidropirimidinase
    • Deficiência de pirimidina 5’-nucleotidase
    • Hiperactividade da 5’-nucleotidase citosólica
    • Deficiência de timidina fosforilase (síndroma MNGIE)
    • Deficiência de timidina cinase

Principais doenças do metabolismo das purinas

Seleccionam-se, como exemplos mais representativos, as seguintes:

Deficiência de adenosina deamidase (ADA)

Sucintamente, esta afecção integra um quadro de imunodeficiência combinada grave, múltiplas infecções recorrentes, diarreia, hipocrescimento, sinais neurológicos progressivos, hipogamaglobulinémia, linfopénia e elevação da adenosina e deoxiadenosina. O tratamento consiste em transplante da medula óssea, salientando-se que é possível a terapêutica de reposição enzimática.

A terapêutica génica é controversa.

Nefropatia hiperuricémica familiar juvenil

Trata-se dum quadro possivelmente relacionado com defeito de transporte renal. Manifestando-se a partir da puberdade, é caracterizado por gota, insuficiência renal precoce e antecedentes familiares de idêntica patologia.

Comprova-se, por exame laboratorial, hiperuricémia, excreção renal diminuída de ácido úrico, e relação elevada ácido úrico/ creatinina.

Síndroma de Lesch-Nyhan

Esta síndroma, de transmissão ligada ao cromossoma X, decorre de regeneração deficiente de IMP a partir de hipoxantina, e de GMP, a partir de guanina, com implicação da enzima HPRT (hipoxantina/ guanina fosfo-ribosil transferase). As manifestações clínicas, que podem manifestar-se a partir dos 3-4 meses, integram atraso motor, hipotonia muscular, distonia, coreoatetose, espasticidade com hiperreflexia, epilepsia, automutilação compulsiva, gota, cálculos de ácido úrico e insuficiência renal.

Nos primeiros meses é notada a presença de cristais cor de laranja nas fraldas.

Estão descritas formas de mais discreta expressão clínica, quer articular, quer neurológica. (Figura 1)

Existe hiperuricémia, aumento da relação ácido úrico/ creatinina na urina da manhã e aumento da hipoxantina. O tratamento, sem efeito na sintomatologia neurológica, inclui regime alimentar com restrição de purinas e administração de alopurinol.

FIGURA 1 – Síndroma de Lesch-Nyhan: criança com distonia; são visíveis as marcas de automutilação na mão esquerda. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Outras doenças do metabolismo das purinas

Salientam-se, entre outras:

  • a hiperactividade da fosfo-ribosil pirofosfato sintetase (PRPS), ligada ao X, cursando com hiperuricémia, hiper ou hipoxantinémia e quadro de gota, associando-se nefrolitíase e surdez neurossensorial; e
  • a xantinúria por défice da xantina-oxidase ou xantina-desidrogenase cursando com nefrolitíase e artromiopatia, hematúria, hipouricémia, hiperxantinémia e hiper-hipoxantinémia.

Ambas requerem dieta restrita em purina e alopurinol.

Principais doenças do metabolismo das pirimidinas

Citam-se, entre outras, duas entidades:

Acidúria orótica hereditária

Esta afecção, resultante do défice de uridina-monofosfato sintetase, pode manifestar-se já no RN e lactente com um quadro de hipocrescimento, atraso no neurodesenvolvimento e anemia megaloblástica refractária ao tratamento. O achado laboratorial mais notório é a elevação maciça de ácido orótico na urina. O tratamento consiste na administração de uridina (25 a 150 mg/kg/dia) em função do resultado do doseamento urinário de ácido orótico.

Deficiência de timidina fosforilase (TP)

A principal característica clínica desta doença, em geral com início de manifestações entre os 5 e 15 anos, é a chamada encefalopatia mitocondrial (mio-neuro-gastrintestinal – sigla MNGIE) acompanhada de diarreia intermitente alternando com períodos de pseudobstrução, neuromiopatia com RRF, oftalmoplegia externa crónica progressiva (CPEO), neuropatia periférica e caquexia. Como achado laboratorial ressalta-se a elevação do teor de timidina na urina.

2. DOENÇAS DO METABOLISMO DO HEME: AS PORFÍRIAS

Introdução

A síntese da hemoglobina, em cuja fórmula química entra o heme (constituído por núcleo tetrapirrólico e ferro), é um fenómeno muito complexo. Classicamente, podem ser esquematizados os seguintes passos na respectiva via metabólica: combinação dos ácidos succínico e glicínico resultando o ácido α-amino- β-ceto-adípico que imediatamente se transforma por descarboxilação em ácido δ-amino-levulínico; da polimerização deste último forma-se porfobilinogénio, passo fundamental da sucessiva formação de porfirinas (uroporfirina III, coproporfirina III e protoporfirina III). Finalmente introduz-se o ferro no interior do núcleo da protoporfirina, produzindo-se o heme.

No âmbito da abordagem sucinta do metabolismo do heme, é importante recordar, para melhor compreensão dos problemas clínicos a ele ligados, que a biossíntese daquele se processa a partir da glicina e succinil-CoA, principalmente na medula óssea (~80%) e no fígado, com o concurso de oito enzimas. O heme é metabolizado em bilirrubina, com ulterior excreção biliar.

As porfírias são doenças monogénicas, frequentemente de transmissão autossómica dominante (AD) caracterizadas pela acumulação e excreção excessivas de porfirinas e de seus precursores. Cada uma das porfírias é consequência do defeito de uma enzima da via de síntese do heme. Os défices de actividade enzimática rersultam de mutações dos genes correspondentes a cada enzima.

Descrevem-se dois grupos de porfírias tendo em conta os tecidos em que o defeito metabólico primariamente se expressa:

  1. Hepáticas
  2. Eritropoiéticas

A definição geral de porfíria exige que, além da eliminação de porfirina ou dos seus precursores, exista um quadro clínico imputável à acção tóxica das porfirinas (síndroma cutânea, abdominal, neurológica ou psíquica).

A única excepção é a intoxicação por chumbo, actualmente inexistente, citada apenas por razões histórias e pedagógicas.

Manifestações clínicas gerais

Sob o ponto de vista clínico consideram-se duas formas:

  1. aguda neurovisceral; e
  2. cutânea.

As manifestações clínicas das anomalias do metabolismo do heme integram fundamentalmente sintomas abdominais, neurológicos e dermatológicos, os quais estão relacionados com níveis elevados de porfirinas e seus precursores no sangue, sua acumulação nos tecidos, e ulterior excreção pela urina e fezes.

Nas porfírias eritropoiéticas a fotodermatose das partes expostas à luz é característica.

Nas formas agudas constuem características: dor abdominal crónica, náuseas, vómitos, obstipação e sintomas psiquiátricos.

Nas formas não agudas predominam as manifestações dermatológicas.

Diagnóstico

Para o diagnóstico torna-se fundamental valorizar um conjunto de parâmetros, a saber:

  • detecção de porfobilinogénio na urina (provas de Hoesch, de Watson-Schwartz), havendo suspeita de porfíria hepática aguda;
  • detecção de coproporfirina e protoporfirina nas fezes;
  • detecção de coproporfirina e porfirinas (uro, hepta-, hexa-, penta-) na urina;
  • detecção de precursores da porfirina (ácido delta-aminolevulínico e porfobilinogénio) na urina nos casos de suspeita de porfíria hepática e doença de Gunther;
  • detecção da actividade enzimática eritrocitária em situações específicas (sobretudo na protoporfíria): por ex. deidratase do ácido delta-aminolevulínico, sintetase do uroporfirinobilinogénio III, etc..

Nosologia

O Quadro 2, adaptado de Saudubray, sintetiza a classificação das porfírias relacionando as diversas entidades clínicas com os respectivos defeitos enzimáticos.

QUADRO 2 – Porfírias e defeitos enzimáticos.

Doença/ Porfíria Enzima Classificação
Hepática Eritropoiética Aguda Cutânea
De-hidratase ácida 5-aminolevulínica De-hidratase ácida 5-aminolevulínica  ?X  X
Aguda intermitente Desaminase porfobilinogénio  X  X
Congénita eritropoiética Co-sintetase uroporfirinogénio III X X
Tardia cutânea Descarboxilase uroporfirinogénio X X
Hepatoeritropoiética Descarboxilase uroporfirinogénio X X X
Coproporfíria hereditária Oxidase coproporfirinogénio X X X
Variável Oxidase protoporfirinogénio X X X
Protoporfíria ertitropoiética Ferroquelatase X X

Alguns exemplos de porfírias

Foram seleccionadas as seguintes entidades:

Porfíria eritropoiética congénita (doença de Gunther)

Esta afecção, manifestando-se desde idades muito precoces (período neonatal), com transmissão autossómica recessiva (AR), é muito rara. Só é patente nos homozigotas.

A etiopatogénese relaciona-se com defeito enzimático correspondente à co-sintetase uroporfirinogénio III (10q25.2-q26.3). Na ausência de metabolizção, os porfirinogénios são oxidados, dando origem a hiperprodução de uro- e coproporfirina I, compostos fotoactivos responsáveis pela fotossensibilidade.

As manifestações clínicas caracterizam-se por fotossensibilidade grave, levando a fotodermatose, por vezes mutilante (nariz, lábios, orelhas e mãos) associada a crises hemolíticas explicadas por acção dos raios solares sobre os eritrócitos circulando nos capilares subcutâneos.

Os dentes e escleróticas podem ter coloração avermelhada e fluorescerem com a luz de Wood. Outras manifestações oculares incluem blefarite, ectropion cicatricial, conjuntivite e opacificação da córnea, podendo levar a cegueira.

A urina pode ter coloração rosada devido à eliminação de porfirinas.

O tratamento inclui evitar a radiação solar, usando roupa e óculos com protecção UV, e chapéu de abas largas. A administração de beta-caroteno tem utilidade limitada. A hemólise poderá estabelecer a indicação de transfusão sanguínea. Alguns autores aconselham a administração de alfa-tocoferol (vitamina E) e de vitamina C como captadores e inibidores de radicais livres, tentando prevenir a fototoxicidade cutânea induzida pelas porfirinas acumuladas na pele e eritrócitos.

Porfíria hepática intermitente aguda

É a porfíria mais comum. Mais frequente no sexo feminino, manifesta-se na adolescência e idade adulta mediante a acção de desencadeantes como fármacos indutores enzimáticos, fome, estresse, álcool, barbitúricos, hormonas contraceptivas, menstruação, etc..

Trata-se de doença de transmissão autossómica dominante (AD); a mesma  resulta de défice da enzima porfobilinogénio desaminase (11q23) avaliada nos eritrócitos.

Os precursores das porfirinas acumulam-se e são responsáveis pelas seguintes manifestações clínicas: vómitos, cólicas abdominais, quadro simile abdómen agudo, polineuropatia periférica, taquicardia, hipotensão, tremores, e sudorese aumentada; e ainda, dores generalizadas (cabeça, pescoço, tórax), fraqueza muscular, disúria, convulsões por hiponatrémia e manifestações do foro psiquiátrico.

As crises graves e prolongadas podem ser fatais por paralisia bulbar. Existe risco aumentado de hepatocarcinoma, depressão e suicídio.

De acordo com os exames laboratoriais importa salientar:

  • os precursores porfobilinogénio [PBG] e ácido 5-aminolevulínico evidenciam subida da sua concentração na urina;
  • nas fezes a concentração de porfirinas é normal ou está ligeiramente aumentada; este dado é importante para o diagnóstico diferencial com outras porfírias.

O tratamento tem como objectivo essencial inibir a síntese de heme e a produção de precursores de porfirinas, adoptando-se a seguinte actuação:

  • nas crises agudas, para além da evicção de desencadeantes, está indicada analgesia (clorpromazina, opiáceos), anti-emese (promazina) e glicose a 10% IV (4-6 g/kg/dia) e hematina (3-4 mg/kg/dia) em administração IV lenta de curta duração, durante 4 dias;
  • se não for possível esta actuação, é necessário providenciar elevado suprimento de hidratos de carbono (300-500 g/dia). Nas crises agudas a hospitalização é frequente.

O tratamento das convulsões é problemático: podem ser administrados brometos, gabapentina e vigabatrim.

Protoporfíria eritropoiética-hepática

Esta doença, de transmissão AD, tem como base etiopatogénica défice de descarboxilase uroporfirinogénio. Como manifestações clínicas, essencialmente registam-se fotossensibilidade, fotodermatose (urticária solar de repetição) e, nalguns pacientes, doença hepática que poderá culminar em insuficiência hepática.

Para além dos marcadores atrás referidos a propósito do diagnóstico laboratorial das porfírias em geral, cabe referir o teor elevado de protoporfirina livre nos eritrócitos, plasma e fezes.

O tratamento inclui fotoprotecção, administração de beta-carotenos, cisteína, colestiramina e ácidos biliares nas complicações hepáticas. O transplante hepático é controverso e o transplante de medula óssea poderá trazer benefícios.

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*Revisão de Aguinaldo Cabral

Introdução

As células do organismo humano possuem diversos organelos interligados funcionalmente:

  • Lisossomas
  • Peroxissomas
  • Retículo endoplásmico
  • Aparelho de Golgi
  • Mitocôndrias

Os processos fisiopatológicos verificados a este nível permitem a individualização de determinadas nosologias do foro metabólico e hereditário e uma melhor compreensão dos problemas clínicos que as integram.

Lisossomas

Os lisossomas, organelos que contêm hidrolases em meio ácido, são fundamentais para a cisão intracelular de moléculas e compostos de diversas dimensões. Certas enzimas lisossómicas, sendo captadas através de endocitose por outras células, poderão ser identificadas nos fluidos orgânicos.

Como consequência de defeitos em genes que codificam as referidas enzimas lisossómicas, haverá acumulação de substratos incompletamente catabolisados nos organelos de diversos sistemas e órgãos (por ex. órgãos sólidos, tecido conjuntivo, sistema osteoarticular, sistema nervoso, etc.), cuja tradução clínica é o surgimento de organomegálias e outras disfunções de carácter progressivo.

No âmbito das doenças dos lisossomas são consideradas diversas entidades clínicas assim discriminadas:

  • Mucopolissacaridoses (MPS);
  • Oligossacaridoses;
  • Mucolipidoses (ML);
  • Esfingolipidoses;
  • Doenças lisossómicas de armazenamento ou depósito de lípidos (incluindo as lipofuscinoses), e de glicogénio (glicogenose tipo II ou doença de Pompe, já abordada);
  • Doenças por defeito de transporte lisossómico.

Neste capítulo, é dada ênfase às primeiras quatro entidades clínicas (MPS, Oligossacaridoses, ML e Esfingolipidoses), respectivamente nas alíneas 1, 2, 3, 4, adiante sistematizadas.

Na sua globalidade, as doenças lisossómicas, com uma prevalência de 1/5.000 a 1/7.700, compreendem mais de 50 entidades clínicas.

Peroxissomas

Os peroxissomas são organelos celulares que possuem funções anabólicas e catabólicas, sintetizam fosfolípidos (plasmalogénios, importantes constituintes das membranas celulares), a mielina; intervêm na beta-oxidação dos ácidos gordos de cadeia muito longa e alfa-oxidação do ácido fitânico (ácido gordo 3-metil) e na formação dos ácidos biliares; e promovem o catabolismo da lisina e do glioxilato.

Muitas reacções dependentes do oxigénio verificam-se nos peroxissomas para proteger a célula dos radicais livres, sendo que o H2O2 produzido é metabolizado pela catalase peroxissómica. Salienta-se que, para a biossíntese dos peroxissomas e transporte transmembranar, se torna fundamental o concurso das chamadas peroxinas codificadas pelo gene PEX.

Neste contexto, as doenças dos peroxissomas podem ser sucintamente sistematizadas em:

  • Defeitos da biogénese dos peroxissomas;
  • Defeitos do metabolismo dos peroxissomas (defeitos enzimáticos isolados).

Neste capítulo, a alínea 5. (ver adiante) aborda sucintamente o metabolismo dos peroxissomas (defeitos enzimáticos isolados).

Retículo endoplásmico e Aparelho de Golgi

Citam-se outros organelos com importância na etiopatogénese de um grupo de doenças hereditárias do metabolismo:

  • O retículo endoplásmico (RE) – estrutura do citoplasma celular constituída por um conjunto de sáculos e de túbulos achatados cuja função está associada a outro organelo, o aparelho de Golgi;
  • O aparelho de Golgi (AG) – microestrutura com pequenas bolsas e vesículas, com função importante nos processos de secreção e absorção da célula.

Para melhor compreensão das doenças relacionadas com alteração do metabolismo destes organelos RE e AG, importa recordar as seguintes noções:

  • Muitas enzimas e proteínas de membrana e de transporte, assim como certas hormonas, requerem glicosilação (glicosilação proteica) para que se tornem funcionais, formando-se glicoproteínas; salienta-se que existe também a modalidade de glicosilação lipídica;
  • Tal processo requer a participação mais de 50 enzimas localizadas nos referidos organelos (RE e AG);
  • As perturbações ao nível de múltiplos passos metabólicos relacionados com a glicosilação originam uma diversidade de síndromas designadas genericamente por síndromas CDG (da sigla em inglês – congenital defects of glycosylation).

Tais perturbações são abordadas adiante neste capítulo, integrando a alínea 6. , com o título: defeitos da glicosilação (síndromas CDG).

Mitocôndrias

Uma das principais funções das mitocôndrias, organelo em forma de grão, bastonete ou filamento, é o fornecimento de energia sob a forma de ATP através da oxidação dos ácidos gordos, a oxidação de acetilCoA no ciclo do ácido tricarboxílico e a fosforilação oxidativa na cadeia respiratória. Tal processo implica o concurso de mais de 50 enzimas e complexos enzimáticos compostos por número variável de polipéptidos.

As doenças do metabolismo energético mitocondrial, ou simplesmente doenças mitocondriais, decorrem de perturbações de enzimas ou complexos enzimáticos directamente envolvidos na geração de energia química pela fosforilação oxidativa; incluem o complexo piruvato desidrogenase (PDH), o ciclo do ácido tricarboxílico, a cadeia respiratória e a ATP sintetase.

Este tópico é abordado separadamente no próximo capítulo.

1. MUCOPOLISSACARIDOSES (MPS)

Definição e etiopatogénese

AS MPS são doenças lisossómicas de sobrecarga, resultantes de deficiência de enzimas lisossómicas (hidrolases ácidas), com consequente degradação incompleta dos glicosaminoglicanos (com a abreviatura de GAG, sinónimo do termo antigo de mucopolissacáridos), os quais se depositam nos órgãos e tecidos.

Os GAG (que constituem a matriz extracelular das membranas celulares dos tecidos conjuntivo e cartilagíneo, das paredes vasculares e fluidos articulares) são açúcares de cadeia longa aminoacetilados ou sulfatados em ligação a estrutura proteica.

Trata-se de doenças crónicas, progressivas e multissistémicas, de transmissão AR, exceptuando no caso da MPS II (doença de Hunter), que é ligada ao cromossoma X. Nas formas moderadas ou atenuadas, o fenótipo e a esperança de vida aproximam-se da normalidade. O diagnóstico pré-natal é possível para todos os tipos.

Os bebés afectados têm geralmente aparência normal ao nascer, com o tempo definindo-se o fenótipo; se este for sugestivo logo ao nascer, é mais provável que a situação em causa se relacione com mucolipidose tipo II ou I-cell disease, ou gangliosidose GM1, ou doenças de aramazenamento de ácido siálico (ver adiante).

Manifestações clínicas gerais

As manifestações clínicas mais relevantes das MPS podem ser sistematizadas como se segue:

  • Dismorfia facial (fácies grotesca)
  • Alterações esqueléticas (disostose múltipla)
  • Hepatosplenomegália
  • Hérnia umbilical e inguinal
  • Rigidez articular como regra, exceptuando na doença de Mórquio
  • Hipocrescimento de grau variável (nanismo na antiga nomenclatura)
  • Surdez, opacidade da córnea
  • Deterioração mental e alterações neurológicas progressivas (variáveis)
  • Defeitos cardíacos (lesões valvulares)
  • Pele áspera e hirsutismo
  • Infecções respiratórias frequentes.

Nosologia

O Quadro 1 resume a classificação das MPS, dando ênfase a aspectos clínicos característicos.

QUADRO 1 – Síntese classificativa das MPS.

Designação dos tipos de MPS: I-Hurler; II-Hunter; III-Sanfilippo; IV-Mórquio; VI-Maroteaux-Lamy; VII-Sly. (  )=variável.
TipoDismorfia facial         Disostose múltipla         Atraso mental         Opacidade da córnea           Coração
I+++++++++
II+++(++)+++
III+++++
IV+++(+)
VI+++++
VII++(+)+(+)


O tipo IX (Natowicz) contou durante longo tempo com um caso apenas. Contudo, até 2015 foram descritos vários casos na mesma família considerados “artrite idiopática juvenil”, e correspondendo a fenótipo limitado às articulações.

Em síntese, as MPS podem ser caracterizadas do seguinte modo:

  • Síndroma dismórfica e hipocrescimento (Hurler, Hunter e Maroteaux- Lamy, Sly) (Figuras 1-A, B, C; 2; 3; 4);
  • Deficiência mental com regressão das capacidades e alterações do comportamento (Sanfilippo) (Figura 5);
  • Displasia óssea grave com inteligência normal (Mórquio) (Figura 6).

FIGURA 1A. MPS-I (Hurler): Nanismo, fácies grosseira, organomegália, mão bota. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 1B. MPS-I (Hurler): Fácies grosseira, opacidade da córnea/ tapada, pescoço curto, hirsutismo.

FIGURA 1C. MPS-I (Hurler): Aspecto das mãos, dedos grosseiros. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 2. MPS-II (Hunter): Atraso mental, fácies grosseira, organomegália, dificuldade de extensão articular. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 3. Maroteaux-Lamy (MPS-VI): Fácies grosseira, alterações esqueléticas, hérnia umbilical, dificuldade de extensão articular, nanismo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 4. Sly (MPS-VII): Fácies grosseira, hipertrofia gengival, organomegália, alterações esqueléticas, hidrocele. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 5. Sanfilippo (MPS-III): hirsutismo, fácies grosseira. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 6. Mórquio (MPS-IV-A): 2 irmãos com a doença; nanismo severo, ausência de rigidez articular e inteligência normal. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se:

  • Na detecção urinária e caracterização dos GAG parcialmente degradados (QUADRO 2);
  • Na análise (no soro, leucócitos ou fibroblastos) da actividade das enzimas específicas (QUADRO 3);
  • Na análise molecular (estudo mutacional);
  • No estudo radiológico (FIGURAS 7 a 11).

O cuidadoso estudo radiológico pode contribuir para o diagnóstico, valorizando as seguintes alterações: escafocefalia, sela turca alargada; costelas alargadas e grosseiras com afilamento proximal (costelas em remo); corpos vertebrais em anzol com esporão ântero-inferior, gibosidade, cifose dorsal, lordose lombar; metacárpicos com afilamento proximal; alteração dos ossos da bacia (grandes asas do ilíaco, como na doença de Mórquio), cavidades cotiloideias fugidias e irregulares, etc. (Figuras 7 a 11).

QUADRO 2 – Glicosaminoglicanos(•) patológicos na urina em diferentes MPS.

(•) Anteriormente designados mucopolissacáridos (GAG/MPS) e pesquisados como triagem; probabilidade de falsos negativos nos tipos III e IV.

( ) = varável; n = normal

 

Normal

Mucopolissacaridose

Achados clínicos típicos, sistemas orgânicos afectados

 

 

I

II

III

IV

VI

VII

 

Sulfato de dermatano

 

++

++

  

++

+

Esqueleto + órgãos internos

Sulfato de heparano

 

+

+

+

  

n/+

Atraso mental

Sulfato de queratano

    

+

  

Esqueleto

Sulfato de condroitina

+

   

(+)

 

+

 

QUADRO 3 – Mucopolissacaridoses e défices enzimáticos específicos.

MPS I (Hurler-Scheie) → alfa-L-iduronidase

MPS II (Hunter) iduronato-2-sulfatase

MPS III (Sanfilippo) quatro enzimas (A, B, C, D, E) do metabolismo do sulfato de heparano, respectivamente: heparano N sulfatase, N-ac-glucosaminidase, Ac-CoA-glucosamina-N-acetiltransferase, N-ac-glucosamina-6-sulfato sulfatase

MPS III E → arilsulfatase G

MPS IV (Mórquio) duas enzimas (A, B) do metabolismo do sulfato de queratano, respectivamente: N-ac-galactosamina-6-sulfatase (Mórquio A), beta-galactosidase (Mórquio B)

MPS VI (Maroteaux-Lamy) N-acetilgalactosamina-4-sulfatase (arilsulfatase B)

MPS VII (Sly) beta-glucuronidase

MPS IX (Natowicz) hialuronidase ou hialuronoglucosidase I (Hyal I)

FIGURA 7. MPS: aspecto radiológico de costelas em remo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 8. Aspecto radiológico de MPS; vista lateral da coluna vertebral: costelas alargadas, grosseiras; alteração dos corpos vertebrais (vértebras em “anzol”) com esporão anteroinferior; retrolistese. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 9. MPS: padrão radiológico (pormenor de vértebra em anzol). (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 10. MPS: radiografia do 1/3 inferior dos antebraços e das mãos: metacárpicos grosseiros, com afilamento proximal; metacárpicos em “favo de mel”. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 11. Radiografia do crânio de MPS: vista lateral do crânio com sela turca alargada em “tamanco”. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Tratamento

Apesar dos recentes avanços, o tratamento definitivo ou curativo na maioria das afecções que atingem o cérebro ainda não é possível. Para além do tratamento sintomático, salienta-se a importância de certas medidas que poderão retardar a progressão da doença:

  • Terapêutica enzimática de substituição (TES), disponível para alguns tipos de MPS (I, II, IV-A e VI -perfusão IV semanal de enzima recombinante);
  • Transplante de células estaminais/ stem-cells hematopoiéticas (TSCH) eventualmente associada a terapêutica enzimática; como a enzima administrada por via IV não atravessa a barreira hematoencefálica, a terapia de eleição na MPS I severa é o tratamento combinado com terapia enzimática de substituição (TES);
  • Transplante de medula óssea: nalguns casos de MPS tipos I (especialmente), II e VI tem sido realizado este procedimento com resultados variáveis, menos notórios quanto às alterações esqueléticas e oculares.

Seguimento

Dada a natureza progressiva das MPS, torna-se necessária uma avaliação clínica seriada e rigorosa abrangendo várias funções: audição, visão, cardiovascular, pulmonar, articular, neurológica, qualidade do sono, etc.. Nesta perspectiva, impõe-se a colaboração de equipas multidisciplinares para a actuação específica em determinadas situações como hidrocefalia comunicante, opacidade da córnea, degenerescência da retina, surdez, rigidez articular, síndroma do canal cárpico, profilaxia da endocardite bacteriana, da compressão medular, etc.. Há também que ter a maior atenção à anestesia a realizar nos casos de doença de Mórquio A.

2. OLIGOSSACARIDOSES

Definição e etiopatogénese

As oligossacaridoses são doenças de armazenamento lisossomial, autossómicas recessivas, resultantes da deficiência de enzimas que fazem a degradação das cadeias oligossacarídicas das glicoproteínas; daí serem também chamadas glicoproteinoses. A deficiência enzimática específica origina acumulação intracelular de glicoproteínas e/ou de oligossacáridos, parcialmente degradados, com consequente excreção aumentada na urina.

A sua frequência, inferior à das MPS, é elevada contudo em certas regiões do mundo, como é o caso da fucosidose em Itália, e da aspartilglicosaminúria na Finlândia.

Existe grande heterogeneidade clínica, em parte explicada pela vasta heterogeneidade alélica. O mesmo defeito enzimático pode dar origem a formas clínicas diferentes, com idade de início, gravidade e envolvimento de órgãos, muito variáveis, sendo responsável tanto pelas formas precoces como pelas de começo tardio. Partilham muitos aspectos clínicos com as mucolipidoses (ML), e outras doenças lisossomais, mas em particular com as mucopolissacaridoses (MPS), designadamente no que respeita a alterações esqueléticas e fácies grosseira. Dum modo geral as manifestações das oligossacaridoses surgem mais precocemente do que as das MPS (RN ou primeira infância).

Nosologia

As oligossacaridoses integram as seguintes entidades clínicas:

  • Manosidoses
  • Fucosidoses
  • Doença de Schindler
  • Aspartilglicosaminúria
  • Sialidoses e
  • Galactossialidoses, descritas de modo sucinto a seguir.

Alfa-Manosidose (McKusick 248500)

Esta doença é devida à deficiência da alfa-manosidase que causa acumulação de oligossacáridos e glicoproteínas ligadas a resíduos de manose em vários tecidos e tipos de células, incluindo neurónios. Existem mais de 60 mutações, sendo a R750W a mais comum.

As manifestações clínicas são de largo espectro, desde formas perinatais, geralmente fatais, a formas oligossintomáticas, na idade adulta. São frequentes: fácies grosseiro (simile-Hurler), disostose múltipla, atraso psicomotor, surdez, cataratas, opacidade da córnea, hepatosplenomegália e hérnias. As infecções bacterianas são comuns, possivelmente em relação com deficiência imunitária. Por vezes surgem: ataxia progressiva e hidrocefalia comunicante. A pesquisa de linfócitos com vacúolos é habitualmente positiva.

São descritos dois tipos:

  • Tipo 1 (Infantil), ocorrendo antes do 1 ano de idade com: fácies grosseira, hipertrofia gengival, macroglossia, organomegália, surdez, atraso psicomotor evoluindo para atraso mental grave. A morte ocorre entre 3-10 anos de idade;
  • Tipo 2 (Juvenil/ Adulto), mais moderado, com início mais tardio, da infância à idade adulta, com disostose múltipla, atraso mental moderado, surdez progressiva e sintomas psiquiátricos. Os angioqueratomas são raros.

O tratamento, requerendo apoio multidisciplinar, é de suporte e preventivo das complicações. O transplante de medula óssea (TMO) ou TMO/TSCH, se efectuados precocemente, poderão estabilizar a deterioração neurológica. Em estudos experimentais de investigação animal verificou-se melhoria da ataxia com TES.

Beta-Manosidose (McKusick 248510)

Devida à deficiência da beta-manosidase, é muito menos frequente do que a doença anterior.

Como manifestações clínicas descrevem-se: graves dificuldades de aprendizagem, alterações graves de comportamento, surdez e infecções frequentes.

O fenótipo simile-Hurler tem menor incidência. A disostose múltipla é mais rara e a organomegália é inconstante. Por vezes surgem angioqueratomas.

Mais frequentemente surgem: atraso mental que pode estar associado a neuropatia periférica, convulsões, surdez e atraso de crescimento. O início surge por volta dos 1-2 anos, podendo alguns doentes viver até à idade adulta.

Fucosidose (McKusick 230000)

É devida à deficiência da alfa-L-fucosidase, com consequente acumulação de glicoesfingolípidos, glicolípidos e glicoproteínas contendo fucose em vários tecidos, originando grave doença neurodegenerativa, convulsões frequentes, e moderada disostose múltipla. Estão descritas mais de 20 mutações.

As manifestações clínicas iniciam-se-se em geral entre as idades de 1-2 anos, podendo verificar-se sobrevivência até à idade adulta. No geral verifica-se: fácies grosseira, atraso mental, infecções respiratórias frequentes, deterioração neurológica, alterações esqueléticas, hepatosplenomegália. Alguns doentes apresentam angioqueratomas proeminentes.

Estão descritos dois tipos:

  • Tipo 1, de início precoce (3-18 meses) com compromisso do SNC e medula espinal, deterioração progressiva com convulsões, rigidez de descerebração terminal, atraso mental, atraso de crescimento, disostose múltipla, alterações vertebrais, cardiomegália, hepatosplenomegália, hérnias, destacando-se o prognóstico muito reservado e morte na primeira década de vida; neste tipo 1 os doentes apresentam concentração de NaCl elevada no suor;
  • Tipo 2, de início mais tardio e curso mais lento, com angioqueratomas (aspecto típico), sendo a concentração de NaCl no suor normal.

Em ambos os tipos podem observar-se linfócitos no sangue periférico, com vacúolos.

O tratamento é de suporte, verificando-se melhoria se o TMO for efectuado precocemente.

Doença de Schindler (McKusick 104170)

Trata-se de doença muito rara resultante de deficiência de α-N-acetilgalactosaminidase que provoca acumulação anormal de glicoesfingolípidos, glicopéptidos e oligossacáridos em vários tecidos. Descrevem-se dois tipos:

  • Tipo 1 (Infantil), de início por volta do 1 ano de idade, em crianças até aí aparentemente normais; depois verifica-se deterioração neurológica com convulsões, hipotonia axial, espasticidade, atrofia óptica, nistagmo, surdez e atraso psicomotor grave.

Tipicamente há pois um quadro de distrofia neuroaxonal e crises mioclónicas sem alterações viscerais, as quais são típicas noutras doenças dos lisossomas. Outros doentes apresentam síndroma piramidal e cerebelosa; alguns têm hiperacúsia, oftalmoplegia e estrabismo.
Nas fases terminais: cegueira, espasticidade, mioclonias, postura de descorticação, atraso psicomotor profundo, contracturas em flexão e imobilidade.
Através da neuroimagem demonstra-se atrofia do córtex cerebral, cerebelo e tronco: a electromiografia evidencia sinais de degenerescência axonal e o electrorretinograma é normal. O EEG evidencia sinais de compromisso cerebral difuso, e de irritabilidade multifocal, especialmente nas regiões central, parietal e occipital.
A mutação E25K é a mais comum nesta forma grave, especialmente em homozigotia.

A marca anátomo-patológica evidencia axónios terminais e pré-terminais esferóides:

  • Tipo 2 (Adulto), ou doença de Kansaki; todos os doentes apresentam telangiectasias, angioqueratomas, vasos sanguíneos tortuosos nas conjuntivas, atraso mental ligeiro e degenerescência axonal periférica; por vezes, fácies grosseira e lábios grossos. Os sinais clínicos mais chamativos são a ausência da fala e de interactividade com o ambiente, o que leva muitas vezes ao diagnóstico de autismo.

Pela neuroimagem comprovam-se sinais de enfartes lacunares sem atrofia cortical. O electromiograma permite evidenciar redução de amplitude e velocidade de condução normal. Não ocorre degenerescência progressiva. Estão descritos quadros intermédios sem organomegália ou alterações ósseas. Existe discrepância genótipo-fenótipo admitindo-se que outros factores contribuam para o quadro neurológico tão grave das formas precoces.

Aspartilglicosaminúria (McKusick 208400)

Trata-se duma doença causada pela deficiência da aspartilglicosaminidase que leva ao armazenamento de aspartilglicosamina nos tecidos, e à sua excreção elevada na urina. É frequente na Finlândia (1/17.000), e rara noutras regiões.

Como manifestações clínicas destacam-se: atraso do neurodesenvolvimento, diminuição da coordenação dos movimentos finos, atraso da linguagem (dado fundamental), alterações psiquiátricas, hiperactividade, infecções recorrentes nos primeiros anos de vida, diarreia e hérnias.

Salientam-se atraso da linguagem, alterações do comportamento, dismorfias, cifose, baixa estatura, fraqueza ligamentar, macroglossia, voz rouca, acne, fotossensibilidade, angioqueratomas e telangiectasias.

O desenvolvimento motor é menos afectado do que a fala e as capacidades intelectuais.

Contudo, estas últimas vão-se deteriorando com a idade.

A hepatomegália é rara, excepto nos doentes finlandeses. No adolescente pode surgir macrorquidismo. A disostose é ligeira e não há alterações visuais (excepto, por vezes, um ponteado semelhante a cristal na córnea).

Alguns autores referem um aspecto facial característico: hipertelorismo, nariz pequeno e grosseiro, pavilhões auriculares com lobos pequenos ou ausentes e lábios grossos. A morte pode ocorrer na terceira década, fase em que o adulto emite já poucas palavras, tem marcha atáxica e incoordenação motora.

Alguns doentes podem apresentar microcefalia, opacidade da córnea, espasticidade, hipotonia, hipertrofia das válvulas cardíacas e sinais de artrite inflamatória.

A marca anátomo-patológica é a extensa vacuolização celular em vários órgãos como o cérebro; no sangue periférico podem ser observados linfócitos com vacúolos. Na Finlândia a mutação mais frequente é a C163S.

O tratamento com o TMO permite normalização bioquímica e ligeira melhoria da capacidade intelectual; contudo, poderão surgir complicações; para o tratamento das convulsões utiliza-se a carbamazepina.

Sialidoses (McKusick 256550)

As sialidoses são devidas à deficiência da α-neuraminidase responsável pela remoção dos resíduos de ácido siálico dos sialoconjugados, com consequente excreção urinária elevada de sialoligossacáridos. O espectro clínico é amplo, desde formas precoces com hidropisia fetal, até formas de progressão lenta de síndroma mioclónica e mancha cor de cereja ou cherry-red spot detectável por fundoscopia.

Descrevem-se dois tipos principais:

  • Tipo 1, de início na infância/ adolescência, com perda visual progressiva, cherry-red spot na mácula (constante), convulsões, mioclonias de difícil controlo, que se agravam com os estímulos emocionais/ sensoriais e ataxia. Mais tarde: atrofia óptica, opacidade punctiforme da córnea e cegueira. Não ocorrem: dismorfias, alterações esqueléticas nem atraso mental significativo.

Em geral, nas 2-3 primeiras décadas de vida, os doentes podem apresentar desenvolvimento e aspecto físico normais, embora com marcha anómala.

Pela neuroimagem detecta-se atrofia cerebral e do cerebelo. Por vezes são observados linfócitos vacuolizados no sangue periférico.

  • Tipo 2, de início muito mais precoce, com fácies grosseira, disostose múltipla e hepatosplenomegália.
    Este tipo integra duas formas:
    • Congénita, com hidropisia fetal, ascite, hérnias, displasia óssea, opacidade da córnea e telangiectasias; a morte é precoce (pré-natal ou nas primeiras semanas de vida); e
    • Infantil, com grave atraso do desenvolvimento neurológico, hepatosplenomegália; edema; a ascite pode observar-se ao nascer ou mais tarde; o fenótipo like-Hurler vai-se acentuando; são comuns: cherry-red spot na mácula, opacidade punctiforme na córnea e cristalino, surdez, convulsões, atraso de crescimento e disfunção motora; pode verificar-se macrocefalia nalguns casos.

Os doentes podem sobreviver até à segunda década, mas, geralmente a morte ocorre na infância (1-7 anos). Como achados radiológicos destacam-se: disostose múltipla que pode ser grave e sinis de condrodisplasia puntacta epifisária.

Verifica-se intensa vacuolização dos leucócitos em diferentes tecidos e órgãos, incluindo fígado e cérebro. O diagnóstico pode ser difícil: por defeito isolado da neuraminidase, ou por defeito combinado com a deficiência da β- galactosidase.

Para confirmação, devem ser usados de preferência tecidos frescos (fibroblastos, amniócitos, vilosidades coriónicas); leucócitos ou tecidos congelados não devem ser usados.

Galactossialidoses (McKusick 256540)

Trata-se de doenças devidas a defeito combinado da neuraminidase e da β-galactosidase, o qual é causado por falta duma proteína protectora, a catepsina A, responsável pela estabilidade do complexo enzimático dentro dos lisossomas.

Há vários sialoligossacáridos excretados pela urina.

As manifestações clínicas são dominadas por fácies grosseira, cherry-red spot na mácula, e alterações ósseas. O exame do esfregaço do sangue periférico evidencia linfócitos vacuolizados.

Distinguem-se três tipos:

  • Tipo infantil precoce, com as seguintes manifestações, já no RN: hidropisia fetal, ou edema, ascite, hérnia inguinal, fácies grosseira, fígado e baço aumentados, insuficiência renal com proteinúria maciça, cardiomegália, e telangiectasias. A morte é precoce por insuficiência cardíaca e renal;
  • Tipo infantil tardio, manifestando-se até aos 2 anos por fácies grosseira, hepatosplenomegália, hérnia inguinal, disostose múltipla, cherry-red spot e opacidade da córnea e, por vezes, convulsões. Como complicações descreve-se insuficiência cardíaca devida ao encerramento das válvulas aórtica e mitral. Nalguns doentes verificam-se macrocefalia e surdez neurossensorial;
  • Tipo juvenil/ adulto, ocorrendo com maior incidência no Japão e em idade média de início aos 15 anos. Neste tipo são evidentes: fácies grosseira, opacidade da córnea, angioqueratomas, envolvimento cardíaco e alterações da coluna vertebral (platispondilia); nalguns casos são verificados: deterioração neurológica progressiva com ataxia, mioclonias, convulsões, sinais piramidais, insuficiência mental e ausência de visceromegália.

Estão descritos quadros atípicos em que se verificam crises de dor neuropática e ausência de sialoligossacaridúria.

Para confirmar o diagnóstico procede-se:

  • À execução de cromatografia da urina em camada fina a qual evidenciará excreção elevada de sialoligossacáridos;
  • À determinação da actividade enzimática da neuraminidase e da beta-glucosidase.

Como complemento destes exames pode dosear-se a catepsina A e proceder-se à análise mutacional.

Não existe tratamento específico; apenas é possível executar medidas de suporte.

O transplante renal, a fazer-se em caso de insuficiência renal, não impede a progressão da doença. O TMO nesta patologia está em fase de investigação experimental.

Diagnóstico diferencial, definitivo e pré-natal

Do ponto de vista clínico, as oligossacaridoses partilham muitos sinais e sintomas, não só com as mucolipidoses (ML) II e III como, principalmente, com as mucopolissacaridoses (MPS). Os pacientes portadores destas últimas, contudo, excretam na urina GAG (mucopolissacáridos) e não oligossacáridos.

Assim, perante um doente com fácies grosseira (semelhante à da síndroma de Hurler), alterações esqueléticas, com (ou sem) atraso mental, torna-se fundamental proceder, de imediato, a cromatografia em camada fina em urina de 24 horas (a única prova de rastreio útil e fiável para pesquisa de oligossacáridos e mucopolissacáridos).

Se se comprovar mucopolissacaridúria, tal apontará, em princípio, para MPS; se se verificar oligossacaridúria, há que admitir a possibilidade de oligossacaridose, ou de doenças relacionadas, como ML, ou ainda doutras doenças lisossomais que apresentam oligossacaridúria como: GM1, GM2, e doença de armazenamento de ácido siálico infantil.

Chama-se a atenção para o facto de outras doenças, não metabólicas poderem apresentar alteração na excreção de oligossacáridos, tais como: síndromas de: Coffin-Lowry, Coffin-Siris, displasia frontometafisária, Sotos, Williams, Costello, e outras, não esquecendo o hipotiroidismo congénito.

Será importante dosear, no plasma, a quitotriosidase, que está elevada não só na doença de Gaucher, mas também nas doenças: GM1, Krabbe, MPS IV-B, NP-B, NP-C, doença de armazenamento de ésteres do colesterol, Wolman, fucosidose, galactosialidose e glicogenose IV.

A pesquisa de linfócitos vacuolizados no sangue periférico, quando positiva, constitui um elemento adjuvante da suspeição clínica.

O exame radiológico dos ossos, particularmente da coluna vertebral, em dois planos, é fundamental para provar (ou não) a existência de disostose múltipla.

A confirmação diagnóstica faz-se pela determinação da actividade das enzimas lisossómicas específicas nos leucócitos, fibroblastos, linfoblastos, amniócitos, vilosidades coriónicas, e raramente no plasma. Nas sialidoses e galactosialidoses não devem ser usados, para esse fim, os leucócitos, sendo preferível a cultura de células. Na galactossialidose é possível determinar a actividade da catepsina A nos fibroblastos.

A análise do DNA está disponível para todas estas patologias.

Para o diagnóstico pré-natal podem ser usadas as vilosidades coriónicas em todas as doenças, excepto na sialidose e galactossialidose (para as quais se dá preferência, respectivamente, ao líquido amniótico e à cultura de células).

Tratamento e prognóstico das oligossacaridoses

Para o tratamento das oligossacaridoses, como já foi referido, torna-se fundamental o apoio multidisciplinar de centros especializados em doenças hereditárias do metabolismo.

Deve ser dada atenção às possíveis perturbações do sono e do comportamento, assim como às situações que necessitem de anestesia. A dismorfia facial, a displasia esquelética, a obstrução das vias aéreas superiores podem dificultar grandemente as manobras de anestesia.

O transplante de células estaminais hematopoiéticas (TSCH), a terapêutica enzimática de substituição (TES), e de redução do substrato estão em evolução.

O transplante de medula óssea (TMO) tem sido realizado em número reduzido de casos, não sendo a sua eficácia definida com exactidão: na alfa– manosidose parece favorável quando realizado muito precocemente; na fucosidose os resultados têm sido inconclusivos, referindo-se que alguns doentes finlandeses com aspartilglicosaminúria tiveram importantes complicações após o referido TMO.

O êxito da TES na doença de Gaucher, na doença de Fabry e nalgumas MPS, faz prever que as oligossacaridoses possam vir a beneficiar dessa terapêutica, assim como da terapia génica.

3. MUCOLIPIDOSES (ML)

As mucolipidoses (ML), outro tipo de doenças lisossómicas, partilham características clínicas e bioquímicas das MPS e das esfingolipidoses.

Nosologia

As ML integram os seguintes tipos: ML I (sialidose do tipo II), ML II (doença da célula-I ou I-cell disease), ML III (distrofia pseudo-Hurler), e a ML IV.

A ML I, considerada por alguns como oligossacaridose, é devida a deficiência da enzima lisossómica alfa-neuraminidase. As manifestações clínicas são variáveis: hidropisia fetal, défice visual, convulsões mioclónicas, alterações da marcha, fundoscopia evidenciando mancha cor de cereja e disostose múltipla.

As ML II e ML III são devidas a deficiência da enzima: N-acetilglicosamil fosfotransferase.

A ML II, por defeito completo da enzima N-acetilglicosamil fosfotransferase é semelhante à doença de Hurler, mas com início muito precoce e com evolução grave: dismorfia facial, macroglossia, cifoscoliose, gibosidade lombar, visceromegália, cardiomiopatia, coronariopatia, rigidez articular, hipertrofia gengival, atraso psicomotor em geral grave e morte precoce (2-8 anos). É frequente a ocorrência de hidropisia fetal.

A ML III, por defeito parcial da mesma enzima – N-acetilglicosamil fosfotransferase-, comportando maior sobrevivência, evidencia quadro clínico menos exuberante, embora alguns doentes evidenciem displasia óssea progressivamente incapacitante; outras manifestações: escassos ou nenhuns problemas de aprendizagem, dores articulares por vezes intensas, e limitação motora semelhante à verificada na artrite reumatóide juvenil; compromisso das vávulas cardíacas; e sobrevivência até à idade adulta.

Na ML II e III existe vacuolização em vários tipos de células de vários órgãos. Existem também inclusões citoplásmicas nos fibroblastos [daí o nome de célula i (I) ].

Estas doenças resultam do defeito na captação e localização intracelular das enzimas lisossómicas por falta do marcador do reconhecimento – a manose-6-fosfato; por esta razão, os doentes têm elevada concentração no plasma de várias enzimas lisossómicas, e baixa concentração intracelular das mesmas enzimas, aspecto importante para o diagnóstico. O doseamento da N-acetilglicosamil fosfotransferase faz-se nos leucócitos ou fibroblastos.

 

A ML IV, devida a deficiência de mucolipidina 1 (proteína de canal do cálcio com papel importante na endocitose) caracteriza-se fundamentalmente por alteração progressiva do neurodesenvolvimento, opacidade da córnea e elevação da gastrina na maioria dos casos (parâmetro que poderá ser utilizado como triagem).

Tratamento

O tratamento das ML é sintomático. Quanto a TMO, se for precoce, pode ser benéfico. O TCSH está em estudo. Por vezes está indicada intervenção cirúrgica ortopédica em patologia da articulação coxofemoral; nos casos de dor óssea e hipomobilidade consequente pode utilizar-se o pamidronato.

4. ESFINGOLIPIDOSES

Definição e etiopatogénese

As esfingolipidoses são doenças dos lisossomas afectando um ou mais órgãos através da acumulação de esfingolípidos, por deficiência primária de enzimas ou de proteínas activadoras envolvidas no respectivo catabolismo.

Os esfingolípidos, localizados predominantemente no sistema nervoso, estão distribuídos por todo o organismo. Incluem fundamentalmente:

  • Os galactocerebrosídeos, sulfatídeos e esfingomielina, componentes essenciais das camadas de mielina; e
  • Os gangliosídeos, encontrados particularmente na substância cinzenta do cérebro.

Deste modo, as esfingolipidoses surgem como doenças primárias do SNC ou periférico; contudo, as manifestações também poderão decorrer da acumulação de esfingolípidos no sistema reticuloendotelial (SRE) ou noutras células.

Manifestações clínicas gerais

Como manifestações clínicas gerais das esfingolipidoses citam-se: atraso progressivo do neurodesenvolvimento, epilepsia, ataxia e/ou espasticidade. Poderá verificar-se hepatosplenomegália, sendo que alterações esqueléticas e dismórficas são raras (excepto na GM1 – ver adiante).

Outros achados incluem: o aspecto fundoscópico de mancha cor de cereja na mácula, medula óssea com células espumosas, e linfócitos vacuolados.

Nosologia

As entidades clínicas que fazem parte das esfingolipidoses são:

  • Doença de Gaucher
  • Doença de Niemann-Pick A e B
  • Gangliosidoses GM1
  • Gangliosidoses GM2
  • Doença de Krabbe
  • Leucodistrofia metacromática
  • Doença de Fabry
  • Doença de Farber
  • Doença de Niemann-Pick C
  • Defeito da prosaposina.

Todas, excepto a doença de Fabry (recessiva, ligada ao X), são doenças autossómicas recessivas.

Seguidamente, procede-se à abordagem sucinta das primeiras quatro doenças citadas.

Doença de Gaucher

É uma das doenças lisossómicas mais comuns.

A etiopatogénese da doença de Gaucher (DG) relaciona-se a deficiência de beta-glucosidase (ou glucocerebrosidase). Embora se admita hoje que existe um espectro clínico contínuo e diversificado, a tradicional subdivisão em 3 fenótipos é útil e tem cunho didáctico:

  • Tipo 1 (doença não neuropática ou tipo adulto), mais frequente, correspondendo a 80-90% dos casos de doença de Gaucher;
  • Tipo 2 (doença neuropática aguda ou infantil); e
  • Tipo 3 (doença neuropática subaguda, crónica ou juvenil).

Todos os tipos são pan-étnicos, realçando-se que o tipo 1 é particularmente prevalente nos judeus Ashkenazi (1/450).

DG do tipo 1: conquanto seja geralmente diagnosticada na idade adulta, pode aparecer em qualquer idade, com manifestações muito variáveis, desde formas assintomáticas a formas extremamente incapacitantes. Salientando-se que não ocorrem, em geral, alterações neurológicas significativas, cabe referir que os sintomas prevalentes são viscerais, hematológicos e ósseos.

Na criança surge esplenomegália, geralmente acompanhada de hepatomegália, anemia, trombocitopénia, tendência hemorrágica, crises agudas de dor abdominal (estas últimas, relacionadas com enfartes esplénicos), crises dolorosas ósseas (por enfartes medulares nos ossos longos). O envolvimento ósseo é, nos mais velhos, uma causa maior de morbilidade; a necrose asséptica da cabeça do fémur e as fracturas espontâneas são comuns. Poderá ocorrer infiltração pulmonar e, nos adultos, poderá surgir quadro de hipertensão pulmonar.

DG do tipo 2: a sintomatologia torna-se notória na infância precoce com disfunção do tronco cerebral, disfagia, alteração da motilidade ocular (oftalmoplegia), espleno-hepatomegália, retroflexão do pescoço, espasticidade marcada, hipocrescimento e caquexia. A evolução é geralmente rápida: poucos doentes sobrevivem até aos 2 anos de idade, sendo que outros têm curso mais lento e sobrevivem até aos 5 anos. Estão descritas variantes fetais e neonatais com elevada incidência de óbitos por hidropisia. Estas formas clínicas são por vezes descritas como de “bébé colódio”.

DG do tipo 3: é muito heterogénea. As manifestações clínicas mais frequentes e mais graves traduzem compromisso do SNC (tronco cerebral): paralisias dos músculos oculares (compromisso da motilidade para cima e horizontal), surdez e, por vezes, atraso do neurodesenvolvimento. Pode haver quadro de epilepsia mioclónica progressiva com demência e morte. Em doentes mais velhos pode surgir sintomatologia simile doença de Parkinson. Pode também verificar-se compromisso cardíaco e esplenomegália.

Salienta-se que nos casos de DG:

    • é comum o surgimento de gamapatias e malignidade, como mieloma múltiplo, linfoma, leucemia linfoblástica, etc.;
    • a qualidade de vida dos doentes e da família é muito precária.


O diagnóstico assenta essencialmente:

  • Na demonstração de células de Gaucher em esfregaço da medula óssea;
  • Na verificação de níveis elevados de quitotriosidase (igualmente importante para a monitorização do tratamento);
  • Na demonstração da deficiência enzimática ~30% do normal (em leucócitos, linfócitos, fibroblastos, células do fígado e baço;
  • Na análise mutacional (sendo que mais de 300 mutações já foram identificadas).

Actualmente existem dois tipos fundamentais de tratamento:

  • A terapêutica enzimática de substituição (TES); e
  • A terapêutica de redução do substrato (TRS).

A TES com administração IV lenta de enzima recombinante foi já usada em milhares de doentes, tendo-se comprovado eficácia e segurança, especialmente na DG do tipo 1.

Alguns centros têm utilizado com resultados promissores a alglucerase, a imiglucerase, a velaglucerase e a taliglucerase, medicamentos já autorizados na União Europeia. No geral a TES é eficaz no controlo dos sintomas clássicos – organomegália, trombocitopénia, anemia – mas menos satisfatória nos casos com manifestações ósseas, em que o miglustat é muito útil.

A TRS é uma terapêutica oral (miglustat) que pretende reduzir a acumulação de células de Gaucher nos vários tecidos, incluindo o ósseo. Pode usar-se isoladamente ou em associação a TES. Estão ainda disponíveis algumas drogas-órfão para a TRS e uso de chaperones farmacológicos.

Doença de Niemann-Pick (tipos A e B)

Esta entidade clínica engloba um grupo heterogéneo de doenças, actualmente divididas em dois subgrupos:

  • Os tipos A e B, em que existe deficiência da enzima lisossómica esfingomielinase (mais acentuada no tipo A), com consequente acumulação progressiva de esfingomielina e colesterol não esterificado nos órgãos sistémicos e no cérebro (menos acentuada no tipo B); e
  • O tipo C devido, não a deficiência enzimática do lisossoma ou do seu cofactor, mas a defeito do tráfico de lípidos (perturbação da saída de colesterol do lisossoma com consequente depósito de esfingomielina).

O tipo A é uma forma neuropática aguda e mais prevalente nos judeus Ashkenazi; o tipo B é uma forma não neuropática com incidência étnica mais alargada.

Quanto a manifestações clínicas e laboratoriais, importa salientar:

O tipo A clássico caracteriza-se fundamentalmente pelo surgimento dos primeiros sintomas nas primeiras semanas de vida com vómitos e/ou diarreia e estabilização do crescimento. Pode surgir icterícia colestática neonatal raramente.

Antes dos 3-4 meses verifica-se hipotonia e fraqueza musculares, hepatosplenomegália e linfadenopatias progressivas. Pelos 6 meses torna-se evidente atraso do neurodesenvolvimento. Entretanto, a par do quadro de hipotonia axial inicial, que é substituído por espasticidade e rigidez, surge frequentemente caquexia.

Por fundoscopia, em cerca de 50% dos casos verifica-se a presença de mancha cor de cereja na mácula.

A deterioração motora e cognitiva é progressiva, ocorrendo em geral a morte entre os 18 e 36 meses. Estão descritos, no entanto, quadros clínicos de gravidade intermédia, com início do quadro neurológico no período infantil tardio, juvenil, ou até na idade adulta.

O tipo B corresponde a uma doença crónica que tipicamente se inicia com esplenomegália ou hepatosplenomegália na infância, mas que pode ocorrer em qualquer idade. Existe raramente doença hepática grave.

Os achados mais comuns são: infiltração reticulonodular no pulmão e doença pulmonar intersticial com repercussão funcional variável. Os doentes evidenciam também um perfil lipídico anormal, transaminases elevadas e trombocitopénia. No adulto a fibrose pulmonar com sintomatogia acompanhante leva à necessidade de oxigenoterapia. Nos casos “puros” de tipo B não se verificam alterações neurológicas nem défice cognitivo (Figura 12).

FIGURA 12. Criança do sexo feminino com doença de Niemann-Pick do tipo B em cujo quadro sobressai hepatosplenomegália; ausência de défice cognitivo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

O curso da doença é marcado por hiperesplenismo progressivo (implicando raramente esplenectomia), perfil lipídico aterogénico e deterioração da função pulmonar. Nalguns casos a esperança de vida é quase normal.

No tipo C verifica-se grande heterogeneidade de manifestações clínicas. Em cerca de metade dos doentes surge icterícia colestática neonatal prolongada, desaparecendo espontaneamente nos primeiros 3 meses de vida; noutra metade existe quadro de doença hepática grave. É comum haver insuficiência mental, epilepsia e cataplexia; embora o neurodesenvolvimento seja inicialmente normal, surge regressão ulteriormente. Um sinal típico não habitual no início da doença, é “paralisia do olhar para cima”. Hepatosplenomegália inconstante.

Nas formas de início tardio, os sinais principais são ataxia e demência lentamente progressiva.

O diagnóstico pode ser suspeitado pela verificação de histiócitos esponjosos na medula óssea (células de Niemann-Pick), de histiócitos “azul-marinho”, e pela determinação da concentração do biomarcador quitotriosidase, moderadamente aumentada.

O diagnóstico definitivo baseia-se na determinação da actividade enzimática nos fibroblastos (de preferência, pela maior confiabilidade), ou nos leucócitos. Nos fibroblastos em cultura demonstra-se esterificação do colesterol deficiente. O estudo mutacional é importante.

No âmbito do tratamento, a experiência com o transplante de medula óssea (TMO), limitada, não parece trazer benefícios para os doentes do tipo A. A esplenectomia pode ter efeitos deletérios nos casos de doença pulmonar. Está disponível a terapêutica enzimática de substituição (TES) com enzima humana recombinante para o tipo B. A oxigenoterapia nos doentes com doença pulmonar crónica faz parte das medidas de tratamento sintomático.

O miglustat pode melhorar os sintomas neurológicos e em especial a ataxia. Nos casos de cataplexia: clomipramina. Recentemente têm-se tentado a ciclodextrina e a “heat shock protein 70” humana recombinante.

Gangliosidose GM1

Trata-se duma esfingolipidose devida a defeito da enzima lisossómica beta-galactosidase, com manifestações fenotípicas muito diversas. A enzima normal catalisa, não só glicoconjugados, gangliósidos GM1 e outros glicosfingolípidos, mas também oligossacáridos contendo galactose, e o sulfato de queratano. Deste modo, as formas mais graves são uma combinação de aspectos observados nas neurolipidoses, MPS e oligossacaridoses.

A deficiência da enzima vem associada a duas doenças clinicamente distintas:

  • As gangliosidoses GM1 (com anomalias que as aproximam mais das esfingolipidoses) e – a doença de Mórquio B, com anomalias que a torna mais próxima das MPS.

Em Portugal esta patologia é frequente na etnia cigana.

Quanto a manifestações clínicas, distinguem-se 3 tipos de GM1:

  • Tipo 1: neste tipo (infantil-precoce) verifica-se hipotonia nos primeiros dias/ semanas de vida, instabilidade cérvico-cefálica, estabilização do neurodesenvolvimento pelos 3-6 meses, dificuldade alimentar, hipocrescimento e, por vezes, edema da face e periférico.

As características dismórficas poderão ser notórias logo ao nascer, ou paulatinamente ao longo do tempo: fácies grosseira, edema palpebral, macroglóssia, hipertrofia gengival, achatamento da raiz nasal e filtro longo.

A hepatosplenomegália está quase sempre presente, assim como a cifoscoliose. Com o tempo surge défice visual, nistagmo pendular, sendo que em cerca de 50% dos casos por fundoscopia observa-se a cherry-red spot ou mancha cor de cereja da mácula.

Por outro lado, a hipotonia dá lugar a espasticidade e verifica-se deterioração neurológica pelos 12 meses com evolução fatal até cerca dos 2 anos de idade. Uma variante mais grave de expressão fetal/ neonatal inclui hidropisia e cardiomiopatia. As alterações esqueléticas dos ossos longos e coluna têm tradução radiológica semelhante às das MPS (Hurler) (Figura 13);

FIGURA 13. Criança de etnia cigana com gangliosidose GM1. Fácies grosseira, edema da face, achatamento da raiz nasal e filtro longo. Hipotonia e atraso psicomotor. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

  • Tipo 2 (infantil-tardio), cujas manifestações surgem em geral entre os 12-18 meses, com disfunção motora, sobretudo no sentar-se, pôr-se de pé, dificuldades da marcha, ataxia, etc.. A breve trecho surge tetraparésia espástica e quadro de convulsões. Não há sinais dismórficos, nem alterações visuais ou visceromegália;
  • Tipo 3 (crónico, tipo adulto, de início tardio), com início de manifestações no final da infância, adolescência, ou na idade adulta, a evolução é muito lenta: disartria e distonia frequentes, inteligência normal ou ligeiramente afectada. Não existem anomalias oculares.

O diagnóstico da GM1 baseia-se na presença de linfócitos com vacúolos no sangue periférico e de histiócitos espumosos na medula óssea, assim como de alterações radiológicas ósseas. Como foi referido, no caso da GM1 do tipo 1, tais alterações são semelhantes às que se associam à MPS (Hurler).

Através de fundoscopia pode ser detectado o já referido sinal de mancha cor de cereja na mácula nas GM1 do tipo 1.

Para o diagnóstico definitivo torna-se fundamental determinar a actividade enzimática nos leucócitos. O doseamento da neuraminidase em leucócitos ou fibroblastos deve ser feito sistematicamente em todos os casos de deficiência de beta-galactosidase para se excluir galactossialidose.

O tratamento inclui a utilização do fármaco miglustat, administrado por via oral com o objectivo de redução do substrato.

Gangliosidose GM2

Distinguem-se três subtipos desta esfingolipidose:

  • Doença de Tay-Sachs (mais comum, por deficiência da beta-hexosaminidase A);
  • Doença de Sandhoff (por deficiência da beta-hexosaminidase A e B); e
  • Deficiência do activador GM2, subtipo raro.

Em todos os subtipos existe alteração do catabolismo dos gangliósidos GM2 nos lisossomas, acumulando-se nos neurónios.

A forma clássica da doença de Tay-Sachs (T-S) tem elevada incidência entre judeus Ashkenazi; uma variante especial de T-S (variante B1) tem elevada incidência no norte de Portugal e sul da Europa.

No que respeita a cronologia das manifestações clínicas, qualquer dos subtipos pode evidenciar formas infantis, formas infantis tardias ou juvenis e formas crónicas ou do adulto.

As formas infantis dos 3 subtipos têm uma apresentação similar: por volta dos 4-6 meses de idade nota-se fraqueza muscular e hipotonia, assim como típica resposta de sobressalto aos sons com hiperextensão dos membros superiores (reacção por hiperacúsia).

À medida que a hipotonia se acentua, verifica-se de modo progressivo regressão das capacidades psicomotoras, dificuldades de deglutição, convulsões, deficiência visual progressiva com amaurose, tetraplegia espástica e macrocefalia, com descerebração pelos 3 anos. A mancha cor de cereja na mácula é inconstante. Na doença de Sandhoff pode verificar-se hepatosplenomegália.

Nas formas infantis tardias ou juvenis, particularmente T-S, o início dos sintomas tem lugar entre os 2 e 10 anos com ataxia, disartria, involução psicomotora, espasticidade e convulsões. A mancha cor de cereja é inconstante.

As formas crónicas ou do adulto apresentam-se de modo muito diverso: distonia, ataxia, atetose, psicose (em 30-50% dos adultos doentes), síndroma do neurónio motor inferior, disfunção espinocerebelosa com oftalmoplegia supranuclear, disfunção autonómica, etc..

Quanto ao diagnóstico, quer na forma infantil, quer na forma infantil tardia ou juvenil, está indicada a fundoscopia para detecção da mancha cor de cereja na mácula que, conforme foi referido, é inconstante.

Torna-se igualmente fundamental a determinação da actividade enzimática nos leucócitos ou fibroblastos. O estudo anátomo-patológico ultraestrutural da pele ou conjuntiva pode contribuir para o diagnóstico através da identificação de corpos lamelares concêntricos nas terminações nervosas.

Para o diagnóstico definitivo é importante o estudo genético; por exemplo, a mutação R178H em homozigotia é frequente na forma juvenil da variante B1.

Tal como no caso da GM1, tem sido utilizado o miglustat oral como tratamento para restrição de substrato.

5. DEFEITOS DO METABOLISMO DOS PEROXISSOMAS

Manifestações clínicas gerais

Os defeitos do metabolismo dos peroxissomas causam, em geral, doenças multissistémicas progressivas e graves.

As doenças do peroxissoma podem ser reconhecidas por um conjunto de manifestações clínicas, traduzidas fundamentalmente por sinais dismórficos, anomalias neurológicas, disfunção hepática, gastrintestinal e por vezes renal, a saber:

  • Dismorfia craniofacial, anomalias esqueléticas, encurtamento proximal (rizomélico) dos membros, calcificações das epífises, etc.;
  • Encefalopatia, convulsões, neuropatia periférica, marcha anormal, hipotonia;
  • Anomalias auditivas e oculares (retinopatia, cataratas, desmielinização do nervo óptico, cegueira);
  • Doença hepática com hepatomegália, icterícia e colestase;
  • Nefrolitíase, nefrocalcinose;
  • Alteração do comportamento e deterioração cognitiva;
  • Falência do crescimento.

Em função da idade, os sintomas e sinais podem ser assim discriminados:

  1. RN: hipotonia, hipoactividade, convulsões, dismorfia craniofacial, alterações esqueléticas, e icterícia colestática (prolongada);
  2. 1-6 meses: hipocrescimento, hepatomegália, icterícia prolongada, anomalias gastrintestinais, hipocolesterolémia, défice de vitamina E, e anomalias visuais;
  3. > 6 meses – 4 anos: hipocrescimento, problemas neurológicos, atraso no neurodesenvolvimento, deficiência visual e auditiva, osteoporose;
  4. > 4 anos: alterações do comportamento, deterioração cognitiva, sinais de desmielinização da substância branca, paraparésia espástica, deficiência visual e auditiva, neuropatia periférica, anomalias da marcha; sintomas psiquiátricos no adolescente e adulto.

Nosologia

O Quadro 4 resume a classificação das doenças do peroxissoma.

QUADRO 4 – Classificação das doenças dos peroxissomas.

Defeitos da biogénese dos peroxissomas

    • Síndroma de Zellweger (ZS)
    • Adrenoleucodistrofia neonatal (NALD)
    • Doença de Refsum infantil (IRD)
    • Condrodisplasia punctata rizomélica tipo 1 (RCDP1)

Defeitos enzimáticos isolados

    • Adrenoleucodistrofia ligada ao X (X-ALD)
    • Adrenomieloneuropatia (AMN)
    • Pseudoadrenoleucodistrofia neonatal
    • Deficiência da proteína D-bifuncional
    • RCDP tipo 2 e tipo 3
    • Deficiência de 2-metilacil-CoA racemase
    • Doença de Refsum do adulto
    • Hiperoxalúria tipo 1
    • Acidémia glutárica tipo 3
    • Acatalasémia
    • Nanismo de Mulibrey


Seguidamente são descritas algumas das formas clínicas mais representativas das doenças dos peroxissomas.

Síndroma de Zellweger-ZS (ou cérebro-hepato-renal)

As principais manifestações clínicas desta afecção incluem: fácies peculiar (simile Down), fronte elevada, epicanto, fontanela anterior muito grande, hipotonia muscular acentuada, convulsões neonatais, anomalias oculares (glaucoma, catarata, retinopatia pigmentar, displasia do nervo óptico), pavilhões auriculares displásicos, surdez neurossensorial, doença hepática, quistos renais, calcificações epifisárias.

A morte ocorre habitualmente no primeiro ano de vida.

Adrenoleucodistrofia neonatal-NALD

Nesta situação, em que se verifica progressiva alteração da substância branca, os achados dismórficos podem estar ausentes ou ser menos acentuados que na ZS. Alguns doentes exibem fenótipo sugestivo de doença de Werdnig-Hoffman. No RN são habituais convulsões e hipotonia. Não se verificam calcificações epifisárias e a morte surge em geral na infância tardia.

Doença de Refsum infantil-IRD

Trata-se da forma mais ligeira do espectro de Zellweger, com sobrevivência possível até à idade adulta. Os doentes poderão evidenciar início tardio de sintomas e ausência, quer de anomalias de migração neuronal, quer de doença progressiva da substância branca. A dismorfia facial, ligeira (ou inconstante), é semelhante à que se verifica na ZS. O desenvolvimento cognitivo e motor é muito variável, desde quadro muito severo a moderada dificuldade de aprendizagem com surdez, deficiência visual devida a retinopatia.

A síndroma de Zellweger (ZS), a adrenoleucodistrofia neonatal (NALD) e a doença de Refsum infantil (IRD) constituem, em continuum, o chamado espectro Zellweger, ou seja, diversidade de manifestações duma mesma entidade, desde a forma mais grave à mais ligeira.

Condrodisplasia punctata rizomélica clássica (RCDP)

Esta condrodisplasia caracteriza-se por encurtamento dos segmentos proximais dos membros, dismorfia facial típica, calcificações epifisárias que podem desaparecer depois dos 2 anos, contracturas, cataratas, atraso psicomotor grave, restrição de crescimento e, por vezes, ictiose.

No fenótipo estão implicados muitos genes, o que determina grande heterogeneidade na tipologia clínica (por exemplo, tipos 1, 2 e 3, indistiguíveis no plano clínico). As variantes mais moderadas devem ser destrinçadas de outras formas de condrodisplasia punctata como a forma AD de Conradi-Hunermann (sem atraso mental), e as formas AR e ligadas ao X (recessivas ou dominantes).

Lembra-se, a propósito, que uma forma de condrodisplasia, de etiopatogénese desconhecida, foi documentada no âmbito do capítulo desta obra sobre osteocondrodisplasias (Parte XXIV-volume 2).

Doença de Refsum clássica

Nesta doença, que tem início na idade escolar ou adolescência, ou mais tardiamente na 5ª década de vida, os aspectos clínicos mais relevantes são: retinopatia, neuropatia periférica, ataxia cerebelosa. O sintoma mais precoce parece ser cegueira nocturna na idade escolar.

Sem tratamento, verifica-se deterioração do quadro clínico. Menos frequentemente: surdez neurossensorial, alterações cutâneas, anósmia, anomalias esqueléticas e cardíacas. Não se observam dismorfias, disfunção hepática, nem atraso mental.

Existe hiperproteinorráquia sem aumento do número de células no LCR.

Nalguns casos poderá ser sugerido o diagnóstico de doença de Charcot-Marie-Tooth.

Adrenoleucodistrofia ligada ao cromossoma X (X-ALD)

Esta doença manifesta-se com grande variabilidade clínica, inclusivamente dentro da mesma família. A forma cerebral da criança constitui o fenótipo mais grave: início de sintomas entre os 5 e 12 anos, levando a estado vegetativo e morte em poucos anos.

Os rapazes afectados poderão apresentar como primeiras manifestações: défice da atenção, alterações comportamentais, mau aproveitamento escolar, deficiência visual-espacial e/ou surdez. Posteriormente: deficiência visual e auditiva graves, quadriplegia, ataxia cerebelosa, convulsões e, por vezes, hipertensão intracraniana.

Sintomas de insuficiência suprarrenal (hipoglicémia, crises de perda de sal, pigmentação cutânea) poderão preceder, coexistir ou seguir o quadro neurológico.

Adrenomieloneuropatia (AMN)

Pode considerar-se uma variante da X-ALD. Afecta cerca de 60% dos homens com ALD entre os 20 e 50 anos e 60% das mulheres heterozigóticas com mais de 40 anos. Em ambos os sexos a doença apresenta-se com paraparésia espástica progressiva e, nalguns homens, desenvolve-se posteriormente desmielinização cerebral lentamente fatal, o que não acontece no sexo feminino.

Diagnóstico

No âmbito do diagnóstico das doenças do metabolismo dos peroxissomas, para além de exames de imagem do SNC (TAC, RM, etc.) em todas as doenças deste foro, está indicada a realização sistemática do doseamento do colesterol total (normal ou baixo), da bilirrubinémia total e conjugada (existe hiperbilirrubinémia conjugada) e das provas de função hepática (resultados indicadores de disfunção).

Quanto a análises específicas (doseamentos) cabe referir as seguintes:

  • Ácidos gordos de cadeia muito longa (AGCML) no plasma – análise fundamental: valores elevados nas doenças com deficiência de beta-oxidação nos peroxissomas; valores normais na doença de Refsum, deficiência de alfa-metil-acil-CoA racemase e RCDP;
  • Plasmalogénios eritrocitários: valor baixo aponta para doenças do espectro Zellweger e RCDP;
  • Ácido fitânico no soro e LCR: aumentado nos defeitos de biogénese e na doença de Refsum;
  • Ácido pristânico no soro: aumentado nas doenças em que está afectada a beta-oxidação nos peroxissomas; elevação isolada indica deficiência de alfa-meti-acil-CoA racemase;
  • Intermediários dos ácidos biliares (soro, urina): elevados na deficiência de alfa-metil-acil-CoA racemase, e normais ou elevados nos defeitos da biogénese dos peroxissomas;
  • Glioxalato, oxalato e glicolato urinários: excreção elevada na hiperoxalúria primária tipo 1;
  • Ácido pipecólico: os valores determinados permitem fazer a destrinça das várias formas;
  • Exame do LCR: hiperproteinorráquia sem aumento de células (LCR) na doença de Refsum clássica.

Após estas análises:

  • Estudo enzimático (fibroblastos); e
  • Análise mutacional.

O exame ultraestrutural do fígado evidencia ausência de peroxissomas na ZS.

Tratamento

As bases essenciais do tratamento das doenças do metabolismo dos peroxissomas incluem dieta com restrição de ácido fitânico (proibição de carnes de ruminantes e de gorduras), com ou sem plasmaférese na doença de Refsum clássica.

Na ALD ligada ao X, o transplante de células hematopoiéticas (TCSH) pode estabilizar, ou até reverter, a desmielinização cerebral, desde que realizado muito precocemente e em doentes seleccionados.

Não existe tratamento eficaz para a forma inflamatória cerebral de ALD.

O óleo de Lorenzo (mistura na proporção respectiva de 4/1 de trioleato de gliceril e de trierucato de gliceril) parece não ter efeito curativo nem preventivo.

Na hiperoxalúria tipo I alguns centros têm experiência com a realização de transplante renal e hepático.

6. DEFEITOS DA GLICOSILAÇÃO (SÍNDROMAS CDG)

Definição e etiopatogénese

Reiterando o que atrás foi referido no início do capítulo, a glicosilação [um passo metabólico ocorrendo no retículo endoplásmico (RE) e no aparelho de Golgi (AG)] consiste no processo de síntese de glicanos (oligossacáridos) e na sua ligação covalente a outros compostos, designadamente, proteínas (produzindo as glicoproteínas).

Salientando-se que o processo de glicosilação se pode verificar igualmente nos lípidos, neste capítulo é dada ênfase à glicosilação proteica.

 

Cerca de metade das proteínas corporais [tais como muitas proteínas do soro (transferrinas, factores de coagulação, etc.), de membrana, intracelulares como enzimas e também hormonas] são glicoproteínas que requerem glicosilação para serem glicoproteínas funcionais.

Em diversos passos do processo metabólico de glicosilação intervêm mais de 100 enzimas conhecidas, localizadas nos referidos organelos (RE e AG).

As perturbações ao nível de diversos passos metabólicos em relação com defeitos enzimáticos comprometendo a glicosilação proteica originam uma diversidade de afecções multissistémicas, genéticas familiares, designadas genericamente por síndromas CDG (da sigla em inglês- congenital defects of glycosylation).

Do vasto leque de doenças (em expansão crescente acompanhando com o tempo a investigação) destaca-se a seguinte tipologia: as anomalias estruturais e de funções em distintas combinações, o compromisso neurológico e o espectro de gravidade muito variável.

Manifestações clínicas de alerta

Seguidamente são referidas algumas manifestações clínicas sugestivas de CDG:

  • Distribuição anormal da gordura corporal e/ou mamilos invertidos;
  • Ictiose; cutis laxa;
  • Diarreia crónica; fibrose hepática;
  • Cataratas e/ou coloboma;
  • Sinostose rádio-cubital;
  • Surdez neurossensorial;
  • Síndroma neurológica e grupo sanguíneo bombay; síndroma cerebrocostomandibular;
  • Síndroma neurológica e hipertermia episódica;
  • Anemia diseritropoiética congénita ii;
  • Cardiomiopatia sindrómica;
  • Infecções recorrentes com hiperleucocitose.

Outra sintomatologia específica, associada a certas formas clínicas, é descrita na alínea Nosologia.

Genética

Quanto a padrões genéticos, importa salientar:

  • Todas as CDG conhecidas são doenças autossómicas recessivas;
  • Com excepção da EXT1/EXT2-CDG, já citada, que é autossómica dominante, e a MAGT1-CDG que é ligada ao cromossoma X, e apresenta atraso mental puro, e um padrão normal na focagem isoeléctrica da transferrina sérica (ver adiante).

Nosologia

A primeira CDG foi descrita por Jaak Jacken em 1980. A nomenclatura existente até 2009, usando números romanos e letras árabes (por ex: CDG-Ia a Ip, CDG-IIa a IIL) tornou-se, devido ao número crescente de novas doenças e ao melhor conhecimento da etiopatogénese.

Foi então proposta uma classificação mais simples que englobasse os defeitos da N- e O-glicosilação, e também os defeitos da glicosilação dos lípidos e da glicofosfatidilinositol.

Actualmente cada CDG é identificada pelo nome do gene envolvido, seguido pelo “sufixo” CDG (a designação clássica que se mantém); alguns exemplos: PMM2-CDG (antiga CDG-Ia), e PMI-CDG (antiga CDG-Ib), em que PMM2 significa fosfomanomutase 2, e MPI fosfomanose-isomerase.

Assim, a nova classificação das CDG (de 2009), de acordo com o defeito da glicosilação, é a seguinte (Quadro 5):

  1. Defeitos da N-glicosilação proteica;
  2. Defeitos da O-glicosilação proteica;
  3. Defeitos da glicosilação dos lípidos e do glicofosfatidilinositol (GPI);
  4. Defeitos múltiplos da glicosilação e de outras vias.

QUADRO 5 – Defeitos congénitos da glicosilação segundo a nova nomenclatura.*

Def <> Defeitos

 *Adaptado de Theodore M & Morava E, 2011

Def N-glicosilação proteica Def O-glicosilação proteicaDef glicosilação lipídica e GPIDef múltiplos glicosilação
PMM2-CDG (CDG-Ia)
MPI-CDG (CDG-Ib)
ALG6-CDG (CDG-Ic)
ALG3-CDG (CDG-Id)
ALG12-CDG (CDG-Ig)
ALG8-CDG (CDG-Ih)
ALG2-CDG (CDGIi)
DPAGT1-CDG (CDG-Ij)
ALG1-CDG (CDG-Ik)
ALG9-CDG (CDG-IL)
RFT1-CDG (CDG-In)
ALG11-CDG (CDG-Ip)
TUSC3-CDG
MAGT1-CDG
MGAT2-CDG (CDG-IIa)
GCS1-CDG (CDG-IIb)
EXT1/EXT2-CDG
B4GALT7-CDG
GALNT3-CDG
SLC35D1-CDG
POMGNT1-CDG
SCDO3-CDG
B3GALTL-CDG
DK1-CDG (CDG-Im)
SIAT9-CDG
PIGM-CDG
PIGV-CDG
DPM1-CDG (CDG-Ie)
DPM3-CDG (CDG-Io)
MPDU1-CDG (CDG-If)
GNE-CDG
B4GALT1-CDG (CDG-IId)
SLC35A1-CDG (CDG-IIf)
SLC35C1-CDG (GDG-IIc)
SRD5A3-CDG (CDG-Iq)
COG-CDG (COG1,4-8)
ATP6V0A2-CDG
SEC23B-CDG

I- Defeitos da N-glicosilação proteica

As CDG resultantes de defeitos da N-glicosilação proteica são o grupo mais comum (só em 2013 foram descritas mais oito novas CDG).
Na N-glicosilação estão envolvidos três compartimentos celulares: citosol, retículo endoplásmico (RE) e o aparelho de Golgi (AG).
Trata-se de doenças fenotipicamente muito diversas, afectando múltiplos sistemas e funções, como o SNC, as funções musculares, de transporte, de regulação, a imunidade, o sistema endócrino, a coagulação, e outros.

Alguns doentes podem ter uma sobrevivência longa, e outros apenas uma deficiência intelectual sem sinais dismórficos como a TUSC3-CDG.

II- Defeitos da O-glicosilação proteica

Já os defeitos da O-glicosilação proteica são geralmente específicos de tecido e clinicamente diferentes das doenças da N-glicosilação, como:
EXT1/EXT2-CDG (exostoses cartilagíneas múltiplas); a B4GALT7-CDG (variante da síndroma de Ehlers-Danlos simile progéria); a POMTI-CDG (síndroma de Walker-Warburg); a POMGNT1-CDG (doença músculo-olho-cérebro, e o espectro da distrofia muscular congénita; a GALNT3-CDG (calcinose tumoral familiar); a SLC35D1-CDG (displasia de Schneckenbecken); a FKTN-CDG (distrofia muscular congénita de Fukuyama) e outras.

III- Defeitos da glicosilação dos lípidos e do glicofosfatidilinositol (GPI)

Os defeitos da glicosilação dos lípidos (o primeiro foi descrito em 2004) são, em termos clínicos, semelhantes ao fenótipo da N-glicosilação, como a SIAT9-CDG (epilepsia infantil Amish);
Os defeitos do glicofosfatidilinositol incluem algumas síndromas conhecidas como a doença de Mabry ou a hemoglobinúria paroxística nocturna, com apresentação específica de órgão ou tecido.

Nota importante: Um grupo crescente de doentes com padrão alterado de glicosilação, mas ainda sem defeito enzimático ou molecular definido, constitui o tipo CDGx, admitindo-se assim que muitas formas de CDG estão ainda por descobrir.

IV- Defeitos múltiplos da glicosilação e de outras vias

No grupo dos defeitos múltiplos da glicosilação e outras vias estão actualmente incluídas algumas CDG anteriormente classificadas como Ie, If, Im, Io, Iq, IIc, IId, IIf e outras, como os defeitos do complexo COG (conserved oligomeric Golgi): COG1, COG4, COG5, COG6, COG7 e COG8.
O COG é um complexo oligomérico do aparelho de Golgi, constituído por 8 unidades; o defeito de qualquer delas pode produzir alteração em ambas as vias de glicosilação no aparelho de Golgi, porquanto o complexo é crucial no controlo da N- e O- glicosilação e na ligação entre o RE e o aparelho de Golgi.

 

Nesta alínea, é dada ênfase a duas formas mais frequentes, sendo a última tratável

  • PMM2-CDG
  • PMI-CDG

PMM2-CDG (antiga CDG Ia)

Esta doença, a forma mais comum no âmbito dos defeitos em análise (identificados mais de 550 casos), é devida à deficiência de fosfomanomutase 2 (PMM2).

Os sintomas e sinais são distintos consoante a idade, salientando-se que o SNC está afectado na generalidade dos casos, sendo o compromisso doutros órgãos variável.

No feto surge hidropisia detectável por ecografia pré-natal; no RN são notórios derrame pericárdico e ascite. Pode ocorrer falência multiorgânica e morte.

No lactente, verifica-se distribuição anómala da gordura subcutânea, mamilos invertidos, estrabismo, aracnodactilia, hipotonia axial (podendo desaparecer mais tarde), hipocrescimento, dificuldade alimentar (vómitos, diarreia, anorexia), atraso no neurodesenvolvimento, ataxia, hiporreflexia, hepatomegália, diátese hemorrágica, doença tromboembólica, etc.. Alguns doentes evidenciam sinais de renomegália, derrame pericárdico e/ou cardiomiopatia. A mortalidade ocorre em cerca de 25% dos casos por insuficiência hepática, cardíaca ou renal.

Na segunda infância e adolescência, são evidentes alterações neurológicas, endócrinas, insuficiência mental, disfunção cerebelosa, retinite pigmentar, convulsões ou AVC recorrentes. Poderão também surgir anomalias esqueléticas e osteopénia.

No adulto, surge ataxia, insuficiência mental não progressiva, neuropatia periférica e alterações esqueléticas (tórax e coluna) com impotência funcional obrigando ao recurso a cadeira de rodas. No geral, os doentes são extrovertidos e alegres. É frequente o hipogonadismo hipergonadotrófico -puberdade ausente – no sexo feminino.

Estão descritas formas ligeiras, sem dismorfismo e com atraso psicomotor moderado.

PMI-CDG (antiga CDG Ib)

Esta forma, devida a deficiência de fosfomanose-isomerase (PMI), é fundamentalmente dominada por sintomatologia do foro hepatointestinal. São frequentes enteropatia com perda de proteínas, fibrose hepática congénita, coagulopatia, e doença trombótica. Alguns doentes evidenciam vómitos persistentes, e/ou sinais de hipoglicémia com hiperinsulinismo.

Não existem alterações neurológicas nem sinais dismórficos, e o neurodesenvolvimento é em geral normal.

Nota importante: O diagnóstico de síndroma CDG deverá ser considerado em todo e qualquer quadro clínico sem explicação etiopatogénica aparente, multissistémico ou não, com ou sem compromisso neurológico.

Exames complementares e diagnóstico

Perante uma suspeita de CDG está indicada como rastreio a electroforese da transferrina sérica por focagem isoeléctrica (FIE), tandem MS, ou por electroforese capilar. Para a colheita de sangue não devem ser usados tubos EDTA.

Os padrões anormais da FIE são de dois tipos:

  • Padrão tipo 1- aumento da disialotransferrina e/ou da assialotransferrina, e diminuição da tetrasialotransferrina; e o
  • Padrão tipo 2: aumento da trisialotransferrina, di-, mono- e/ou assialotransferrina.

Uma vez detectado um padrão anormal são necessários, conforme os casos, estudos adicionais:

  • Análise dos oligossacáridos por HPLC, enzimologia, imunocitoquímica, espectrometria de massa com electrospray e estudos mutacionais para confirmação diagnóstica.

Um padrão normal da FIE das transferrinas não exclui síndroma CDG, porquanto o mesmo resultado ocorre nas seguintes situações: GCSI-CDG (CDG-IIb), SLC35C1 (CDG-IIc), SLC35A1 (CDG IIf), TUSC3-CDG e, ainda por vezes, em doentes adolescentes e adultos.

Poderá estar indicado fazer-se a FIE utilizando outras glicoproteínas como: haptoglobina, tiroglobulina e alfa-1-antitripsina.

Quanto a diagnóstico diferencial, importa referir que padrões relacionados com alterações secundárias da glicosilação podem ser detectados noutras afecções como galactosémia, intolerância hereditária à frutose, hepatite e alcoolismo crónico.

Algumas doenças da O-glicosilação podem ser detectadas:

  • No soro, pela FIE da apolipoproteína CIII no soro (casos da síndroma de Walker-Warburg);
  • No músculo através de biópsia, por coloração apropriada do complexo da alfa-distroglicano nos casos de síndroma músculo-olho-cérebro.

O dois tipos de CDG descritos [PMM2 e PMI-CDG] apresentam um padrão do tipo 1 da FIE da transferrina sérica.

São comuns as alterações da coagulação:

  • Em todos os casos de CDG: défice do Factor XI
  • Nalguns casos de CDG: défice das proteínas C, S, antitrombina III-AT III, hipoalbuminémia, elevação de ALT e AST, hipocolesterolémia e proteinúria tubular.

A imagiologia do SNC na PMM2-CDG evidencia sinais de hipoplasia cerebelosa (constante), hipoplasia cerebral (inconstante), e de hipomielinização do SN periférico (frequente); no fígado são observados sinais de fibrose e esteatose.

O doseamento da actividade enzimática da PMM2 pode efectuar-se nos leucócitos ou fibroblastos.

O estudo mutacional (mais de 70 mutações identificadas) é fundamental; a mutação mais frequente é a Rl41H, letal em homozigotia.

Na PMI-CDG podem ser comprovadas as seguintes alterações: hipoglicémia com hiperinsulinismo e alterações bioquímicas e da coagulação já descritas na PMM2-GDG.

O doseamento da actividade da PMI pode realizar-se nos leucócitos e fibroblastos.

Tratamento

No caso da PMM2-CDG não existe tratamento específico.

Discute-se o interesse da dieta cetogénica. Para além do tratamento anticonvulsante, importa ter em conta a prevenção dos AVC com ácido acetilsalicílico na dose de 0,5-1 mg/kg/dia. Se surgirem fracturas frequentes, estão indicados os bifosfonatos.

Recentemente tem sido feita a proposta de terapia com chaperones farmacológicos.

Quanto à PMI-CDG, é essencial o diagnóstico precoce, pois existe tratamento disponível com manose oral em doses elevadas; com efeito, os sintomas regridem rapidamente, embora o padrão alterado das transferrinas leve alguns meses a melhorar ou a normalizar.

A terapia com heparina parece eficaz para a enteropatia com perda de proteínas. Será de encarar o recurso ao TH nos doentes resistentes ao tratamento com manose que apresentem icterícia hemolítica, fibrose hepática progressiva, dispneia acentuada e intolerância ao exercício (por envolvimento pulmonar); após o TH muitas destas manifestações melhoram dramaticamente.

Para além desta CDG tratável, algumas outras, a seguir discriminadas, têm actualmente algum tipo de terapia:

  • A SLC35C1 (antiga CDG-iic) por défice de transportador GDP-fucose pode ser parcialmente tratada com fucose, que é eficaz nas típicas infecções recorrentes com hiperleucocitose;
  • Na PIGM-CDG (convulsões intratáveis e trombose venosa, portal e hepática) a administração de butirato parece controlar;
  • As convulsões;
  • Na DPAGT1-CDG, o tratamento com colinesterase melhora a fraqueza muscular;
  • Na PCM1-CDG, com deficiente galactosilação, a terapia com galactose oral:
    • melhora a função hepática, a hepatomegália e a hipoglicémia;
    • normaliza a coagulação; e
    • pode permitir uma puberdade normal nas raparigas com hipogonadismo hipogonadotrópico.

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Introdução

O metabolismo da mitocôndria, muito complexo, compreende a produção de energia necessária a diversos processos metabólicos sob a forma de Adenosina trifosfato/ TriPhosphate/ ATP) através da fosforilação oxidativa, oxidação do piruvato, ciclo de Krebs, beta-oxidação de ácidos gordos, catabolismo dos aminoácidos e apoptose. Nesta perspectiva, a disfunção de tal mecanismo pode verificar-se em numerosas situações.

Enquanto uma maior parcela da energia (ATP) advém da fosforilação oxidativa (OXPHOS) obtida através da cadeia respiratória (CR), uma menor parcela da energia é obtida através dos restantes processos atrás citados, sendo que nas respectivas vias metabólicas está envolvida uma multiplicidade de enzimas sob controlo genético.

Às doenças decorrentes de alterações no metabolismo energético mitocondrial [em relação com defeitos de enzimas ou de complexos enzimáticos, interferindo nas vias metabólicas que conduzem à geração de energia] tem sido dado o nome de doenças mitocondriais (DM). Dado que o cérebro e o músculo são muito dependentes do sistema OXPHOS/CR, a sintomatologia neurológica e muscular é muito comum. Assim, surgiu o termo encefalopatia mitocondrial como sinónimo de DM, conceito que abrange um largo espectro de doenças multissistémicas.

A este propósito, importa reter as seguintes noções:

  • As DM são causadas por mutações em genes do DNA mitocondrial (DNAmit – a que correspondem cerca de 40 genes) ou do DNA nuclear (DNAn – a que correspondem cerca de 1500 genes). De salientar que os defeitos do genoma nuclear são responsáveis pela maioria (80-90%) das doenças mitocondriais que se manifestam na idade pediátrica;
  • Tal patologia, com uma prevalência de 1/5.000 a 1/10.000 nados-vivos e a que corresponde um grupo nosológico de enorme heterogeneidade, integra as formas mais comuns de alterações neurológicas hereditárias;
  • A sintomatologia das DM, evidenciando várias combinações de sintomas, traduz a disfunção de órgãos com grandes necessidades energéticas de suprimento de ATP, como cérebro, coração, musculatura esquelética, rins ou retina.

A mitocôndria possui o seu próprio sistema DNA (DNAmit), o qual está fortemente dependente do genoma nuclear para a produção de inúmeros factores essenciais a diversas funções das mesmas mitocôndrias, como transcrição, tradução, replicação.

Assim, cada célula contém centenas de mitocôndrias, ou seja milhares de cópias do DNAmit, e de genes que as codificam.

Notas importantes:

    1. Anteriormente, considerava-se que as doenças mitocondriais (DM) eram afecções caracterizadas exclusivamente por disfunção primária da cadeia respiratória mitocondrial (CR) ou sistema OXFOS com a consequente diminuição da produção de energia pela fosforilação oxidativa, na forma de ATP.
    2. Na actualidade, o conceito DM é mais amplo, dizendo respeito (para além da disfunção na cadeia respiratória), a outras disfunções da mitocôndria relacionadas com vias metabólicas em que participam processos bioquímicos, enzimas e complexos enzimáticos, interdependentes, como: complexo da piruvato-desidrogenase (c PDH), ciclo da carnitina, β-oxidação dos ácidos gordos (β-OXAG), oxidação de acetilCoA no ciclo tricarboxílico, cetogénese, cetólise, síntese e transporte da creatina, ciclo de Krebs, homeostase do cálcio, apoptose, estresse oxidativo, etc. (ver adiante).
    3. As DM na sua grande maioria dizem respeito a situações de base hereditária genética, as quais constituem o objecto de estudo deste capítulo (DM primárias).
    4. Com efeito, a par desta maioria, existe uma minoria de situações adquiridas (DM secundárias) em que se comprova disfunção mitocondrial, tais como síndroma metabólica, isquémia-reperfusão após acidente vascular cerebral, doenças neurodegenerativas, etc.

 

Neste capítulo são abordados tópicos essenciais das doenças mitocondriais de base hereditária/ genética, dando ênfase aos defeitos/ às disfunções da CR, da oxidação dos ácidos gordos, da cetogénese e cetólise, assim como aos defeitos da biossíntese e transporte da creatina.

Em certos livros de texto, os tópicos relacionados com a oxidação dos ácidos gordos, da cetogénese e cetólise, assim como os defeitos da biossíntese e transporte da creatina, são abordados no âmbito do metabolismo dos lípidos e dos aminoácidos.

1. DISFUNÇÃO DA CADEIA RESPIRATÓRIA (Sistema OXPHOS)

Complexos e funções da cadeia respiratória (CR)

A fosforilação oxidativa (OXPHOS) é obtida através da cadeia respiratória (CR) formada por cinco complexos.

A CR, localizada na membrana interna da mitocôndria, merece assim uma referência especial, designadamente quanto a complexos que integra e suas funções; a mesma está dependente de dois genomas diferentes: o DNAn e o DNAmit, ao nível dos quais se podem verificar mutações (ver caixas seguintes, realçando-se a importância de uma das suas funções – fosforilação oxidativa – na produção de energia/ ATP).

CRcomplexos

    • complexo I (CI): NADH-CoQ- oxido-redutase que contém mais de 40 subunidades codificadas pelo DNA nuclear (DNAn), e apenas 7 pelo DNAmit;
    • complexo II (CII): Succinato-CoQ-oxido-redutase com 4 subunidades codificadas apenas e só pelo DNAn;
    • complexo III (CIII): Ubiquinol-citocromo c-oxido-redutase, com dez subunidades codificadas pelo DNAn, e uma pelo DNAmit;
    • complexo IV (CIV): Citocromo c-redutase (oxidase) com dez subunidades do DNAn, e três codificadas pelo DNAmit; e
    • complexo V (CV): ATP-sintetase com catorze subunidades do DNAn, e apenas duas do DNAmit. Portanto: das 80-90 proteínas da CR, apenas 13 são codificadas pelo DNAmit.

CRfunções

    • a reoxidação do NADH e FADH oriundos do ciclo do ácido cítrico (CAC) e da b-OXAG;
    • a transferência de electrões para o O2; e
    • a fosforilação oxidativa do ADP em ATP (Fig. 1).

A reoxidação dos referidos substratos liberta energia [E] que serve para bombear protões da matriz da mitocôndria para o espaço intermembranar; o gradiente electroquímico gerado é utilizado pelo CV para a síntese de ATP (Fig. 2, esquematizando apenas os aspectos fundamentais).


Os defeitos ou disfunções da CR podem surgir em qualquer idade. O desenvolvimento intrauterino pode ser afectado gravemente, o que se traduz em defeitos congénitos, designadamente do SNC (necrose neuronal, alteração da migração axonal originando por ex. dismorfia craniofacial); nas crianças mais pequenas predomina a patologia encefalopática, intermitentemente progressiva, enquanto em adolescentes e adultos predomina a patologia miopática.

FIGURA 1. Funções da cadeia respiratória mitocondrial.

FIGURA 2. Complexos da CR e formação de ATP.

Genética

Para melhor compreensão da clínica das DM, importa relembrar algumas noções fundamentais de genética referente à mitocôndria e ao núcleo:

  1. O DNAmit é herdado da mãe;
  2. As moléculas do DNAmit existem em múltiplas cópias na célula (poliplasmia);
  3. As mutações patogénicas afectam, no geral, uma certa proporção do DNAmit (heteroplasmia);
  4. Apenas acima de uma percentagem mínima crítica de DNA que sofreu mutação surgem alterações significativas da fosforilação oxidativa e sintomatologia (efeito limiar);
  5. O grau de heteroplasmia, nas gerações seguintes de células, pode alterar-se (segregação replicativa), podendo mudar o quadro clínico;
  6. Os defeitos enzimáticos da CR podem ser: isolados (um só complexo afectado), ou combinados, sendo que qualquer defeito enzimático da CR, independentemente da sua localização, poderá afectar gravemente o metabolismo;
  7. As mutações do DNAn que podem afectar o metabolismo energético são ainda pouco conhecidas, mas o seu número cresce progressivamente;
  8. Na fertilização, todo o DNAmit provém do ovócito, pelo que o padrão de transmissão do DNAmit (e mutações patogénicas) é radicalmente diferente do da hereditariedade mendeliana (nuclear). Assim, uma mãe com mutação pontual no DNAmit transmite-a a todos os seus filhos de ambos os sexos, mas só as filhas a transmitirão à descendência (hereditariedade materna);
  9. O fenótipo é assim determinado pela proporção relativa entre o DNA em que se verificou mutação e o DNA normal, que é variável nos diferentes tecidos, e pode alterar-se ao longo da vida.

Na perspectiva da relação entre alterações genéticas e entidades clínicas, pode estabelecer-se a seguinte sistematização:

Alterações primárias do DNAmit

As doenças resultantes de tais alterações associam-se a hereditariedade mitocondrial.

Podem surgir deleções simples, duplicações (estas últimas podendo coexistir), e mutações pontuais. As deleções simples, apresentando-se geralmente de forma esporádica, determinam determinadas síndromas como: de Pearson, de Kearn-Sayre (KSS), PEO (oftalmoplegia externa progressiva), diabetes e surdez. Ocasionalmente pode haver transmissão materna.

No que respeita às mutações pontuais (cerca de 200) poderão decorrer de hereditariedade materna e ser multissistémicas, ou esporádicas e específicas de tecido; o seu número tem crescido, sugerindo-se, para actualização, a consulta do sítio – http://infinity.gen.emory.edu/mitomap. html.

Nas encefalomiopatias de transmissão materna há fundamentalmente 4 síndromas mais importantes a destacar: MELAS, MERFF, NARP/MILS e LHON.

Para além destas formas sindromáticas (e outras, como veremos adiante), bem definidas e caracterizadas, estão descritas inúmeras associações de sinais/ sintomas devidas a mutações do DNAmit. Os órgãos ou sistemas mais frequentemente afectados são, entre outros, os relacionados com: visão, audição, sistemas endócrino, cardiovascular, digestivo, renal, etc..

Alterações do DNAn

As doenças resultantes de tais alterações associando-se a hereditariedade nuclear, mendeliana, especificamente dependem de mutações em genes que codificam proteínas da CR e defeitos da sinalização intergenómica.

Das várias dezenas de polipéptidos que constituem a CR, apenas 13 são codificados pelo DNAmit, sendo todos os outros pelo DNAn.

Eis alguns exemplos: mutações que codificam subunidades do CI e CII dando origem:

  • a formas autossómicas recessivas (AR) de síndroma de Leigh; ou
  • a defeitos predominantemente miopáticos, encefalopáticos ou generalizados do CoQ10; ou
  • a mutações nos genes que codificam proteínas necessárias à “reunificação” dos diferentes complexos da CR, como: SURF1, SCO2, COX10, COX15, SCO1 associadas a formas de Leigh, a formas infantis miltissistémicas fatais, a encefalopatia e cardiomiopatia (SCO2, COX15), a nefropatia (COX10), a hepatopatia (SCO1).

Nota: É importante mencionar, a propósito, o defeito primário de CoQ10: primeiros casos descritos em 1989 em 2 irmãos com fadiga progressiva, fraqueza proximal, crises de mioglobinúria, presença de RRF (ver adiante) e lípidos no músculo. A actividade enzimática dos complexos da CR era normal, mas diminuída a dos CI+III e II+III. Outros doentes podem apresentar encefalomiopatia sem mioglobinúria, ou fenótipo de Leigh, com início na idade adulta.

No que se refere aos defeitos da sinalização intergenómica, importa salientar que as mutações nos genes nucleares podem provocar alterações qualitativas ou quantitativas no DNAmit.

  • Alterações qualitativas: deleções múltiplas do DNAmit (AD ou AR) com: oftalmoplegia externa progressiva (PEO) associada a variados sinais/ sintomas; ou mutações no gene da timidina fosforilase (TP) originando a síndroma MNGIE (encefalomiopatia neurogastrintestinal mitocondrial); ou mutações no gene de uma isoforma do transportador do nucleótido adenina (ANT1) com PEO (AD); ou mutações no gene da polimeraseg (POLG) com PEO (AD ou AR); ou no gene Twinkle (helicase).
  • Alterações quantitativas: deplecções acentuadas a parciais do DNAmit com formas congénitas ou juvenis de miopatia ou hepatopatia (AR). Estão identificados 2 genes na síndroma de depleção do DNAmit: gene da timidina-quinase 2 (TK2) com depleção do DNAmit e miopatia isolada; e gene da deoxiguanosina-quinase (δ GK) com formas sistémicas de depleção, frequentemente com miopatia e compromisso hepático.

Têm sido descritos recentemente mais genes nucleares patogénicos, como: o gene da síndroma de Barth (tafazina), e os genes nucleares do CI: NDUFV1, NDUFV2, NDUFS1, NDUFS3, NDUFS4, NDUFS6, NDUFS7. A investigação nesta área está em franco progresso.

Resumindo:

    • As DM podem resultar, quer de mutações no genoma mitocondrial ou nuclear, quer de defeitos da comunicação intergenómica;
    • As DM evidenciam quadros clínicos muito variados resultantes do compromisso de numerosas funções em órgãos com grandes necessidades energéticas de suprimento de ATP, como cérebro, coração, musculatura esquelética, rins ou retina: combinações de sinais e sintomas envolvendo sistemas diferentes e independentes.

Manifestações clínicas de suspeita de DM

Como regra geral, deve suspeitar-se de DM quando ocorrer uma associação inexplicável (isto é sem relação aparentemente funcional ou embriológica) de dois ou mais sintomas, geralmente com curso rapidamente progressivo ou persistente. É característico observar-se um número crescente de órgãos/tecidos afectados em que o SNC acaba por estar envolvido nas fases avançadas.

A sintomatologia inicial pode persistir ou agravar-se ou, por vezes, melhorar ou desaparecer, à medida que outros órgãos vão sendo afectados.

    • As DM podem surgir em qualquer idade, com qualquer tipo de sintomas, atingir qualquer órgão ou sistema, e com qualquer tipo de hereditariedade.
    • Para além de um alto grau de suspeição, é crucial realizar uma anamnese detalhada e um exame físico o mais completo possível.

São descritos a seguir determinados sinais e sintomas clínicos de suspeição em função de diferentes idades:

Período neonatal

  • Cardíacos: cardiomiopatia;
  • Digestivos: hepatopatia, hipoglicémia refractária, insuficiência hepatocelular grave;
  • Multissistémicos: alterações multiorgânicas e acidose láctica, alterações hematológicas como anemia e pancitopénia;
  • Neurológicos: dificuldade respiratória e acidose láctica marcadas, grave hipotonia isolada, verificação de lesões quísticas na imagiologia cerebral sem história de asfixia perinatal.

A causa mais frequente da sintomatologia neurológica é a depleção do DNAmit por mutações em DNAn.

Período pós-neonatal

  • Metabólicos: coma com cetoacidose, crises de acidocetose e hiperlacticidémia em períodos febris, morte súbita, síndroma de Reye;
  • Gastrintestinais: não progressão ponderal, vómitos recorrentes, diarreia crónica, atrofia das vilosidades intestinais, hipocrescimento, insuficiência hepática grave, hepatomegália progressiva, falência hepática devida ao valproato, disfunção pancreática exócrina, pseudo-obstrução intestinal;
  • Cardíacos: cardiomiopatia, geralmente hipertrófica (concêntrica), síndroma de hiperexcitabilidade, bloqueios de condução;
  • Hematológicos: anemia sideroblástica, pancitopénia com medula aplástica, neutropénia e trombocitopénia, anemia macrocítica refractária e dependente de múltiplas transfusões;
  • Endócrinos: hipoglicémia recorrente, diabetes mellitus insulinodependente, diabetes insípida, hipocrescimento, atraso da idade óssea, hipotiroidismo, hipoparatiroidismo, deficiência de hormona de crescimento, insuficiência suprarrenal, hiperaldosteronismo, insuficiência ovárica ou disfunção hipotalâmica com infertilidade;
  • Renais: raquitismo vitaminorresistente, hipercalciúria, insuficiência renal, nefrite tubulointersticial, síndroma de Toni-Debré-Fanconi, de Bartter, nefrótica, hemolítica-urémica;
  • Musculares: hipotonia e fraqueza musculares, instabilidade cérvico-cefálica, hipomobilidade espontânea, atrofias musculares, fadiga fácil, miopatia, intolerância ao exercício com mialgias, mioglobinúria recorrente, distonia;
  • Neurológicos: atraso ou paragem do desenvolvimento psicomotor, ataxia cerebelosa, epilepsia resistente ou que se agrava com valproato, epilepsia mioclónica, síndroma de West, polineuropatia sensitivo-motora, pés cavos, amiotrofia muscular, leucodistrofia;
  • Oftalmológicos: ptose palpebral, atrofia óptica, retinite pigmentar, degenerescência retiniana, retinopatia “sal e pimenta”, motilidade ocular alterada, oftalmoplegia externa, cataratas, opacidades da córnea, diplopia;
  • ORL: surdez neurossensorial progressiva, ototoxicidade provocada por aminoglicosídeos;
  • Dermatológicos: pigmentação marmoreada, pigmentação de áreas expostas à luz, cabelo fraco, quebradiço, tricotilodistrofia, exantemas;
  • Dismórficos: fácies simile síndroma alcoólica fetal, com ou sem agenésia do corpo caloso;
  • Outros: lipomatose simétrica múltipla, paraganglioma hereditário.

Formas clínicas

Para além da vastidão do perfil clínico, destacam-se formas sindromáticas particulares (algumas designadas por siglas do inglês) que importa conhecer.

Síndroma de Leigh

Esta síndroma, com especial interesse na idade pediátrica, reflecte as consequências da alteração do metabolismo energético no desenvolvimento do cérebro. Demonstrou-se associação, quer a outras alterações relacionadas com DNAmit e DNAn, quer a defeitos do metabolismo do piruvato.

Também chamada encefalomielopatia necrosante subaguda, caracteriza-se por lesões bilaterais, simétricas, de espongiose, proliferação vascular e astrocitose, afectando os gânglios da base, tronco cerebral e medula.

A evolução faz-se por crises com regressão psicomotora, episódios frequentes de apneia e problemas de deglutição por alteração do tronco cerebral.

É frequente a verificação de: vómitos, recusa alimentar, paralisia oculomotora, atrofia óptica, nistagmo, movimentos involuntários (e/ou síndroma extrapiramidal), síndroma piramidal por vezes com reflexos osteotendinosos ausentes.

Menos frequentes: proteínas elevadas no LCR, diminuição da velocidade de condução nervosa, leucodistrofia.

Foram identificadas mutações em cerca de 75% dos genes nucleares com padrão de hereditariedade AR ou ligada ao X. Em cerca de 25% dos casos existem mutações do DNAmit.

A imagiologia cerebral é fundamental para documentar as alterações referidas.

Síndroma de Pearson

Surge habitualmente no primeiro ano de vida com compromisso multiorgânico variável, anemia macrocítica refractária, com ou sem neutropénia, e trombocitopénia.

Na medula óssea: vacuolização dos precursores eritróides e mielóides, hemossiderose, sideroblastos em anel. É frequente observar-se disfunção pancreática exócrina.

Trata-se de síndroma geralmente fatal durante a infância; nos sobreviventes regista-se evolução para síndroma de Kearn-Sayre.

Através da genética molecular são identificadas grandes deleções simples do DNAmit de novo.

Síndroma de Kearns-Sayre (KSS)

Esta síndroma integra um qaudro multissistémico definido pela tríade: início habitual antes dos 20 anos, oftalmoplegia externa progressiva e retinite pigmentar; por outro lado, os doentes afectados têm pelo menos um dos seguintes sinais: bloqueio cardíaco, ataxia cerebelosa ou proteínas no LCR > 100 mg/dL.

Outras manifestações incluem: demência, diabetes, hipoparatiroidismo, baixa estatura por défice da hormona de crescimento, presença de RRF (tradução de Red Rough Fibres, fibras vermelhas rasgadas ou defeituosas) no músculo.

A nível genético foram identificadas mais de 150 deleções simples diferentes no DNAmit.

Síndroma de Barth

Nesta afecção, com hereditariedade ligada ao cromossoma X, salientam-se cardiomiopatia dilatada, neutropénia crónica grave, miopatia e acidúria 3-metilglutacónica (tipo II).

Síndroma de Alpers ou Alpers-Huttenlocher

Ocorrendo habitualmente entre 1-4 anos de idade, tem as seguintes manifestações: regressão psicomotora e crises mioclónicas refractárias, microcefalia, poliodistrofia rapidamente progressiva com perda neuronal, astrocitose, espongiose e hepatopatia (insuficiência hepatocelular).

Síndroma de depleção do DNAmit

São descritas várias formas:

  • Encefalopática com hepatopatia: ocorrendo desde o período de RN até aos 2 anos de vida, com hipotonia generalizada, grave encefalopatia, acidose láctica, hipocrescimento, morte precoce e hepatopatia fatal. Pode verificar-se epilepsia mioclónica e cardiomiopatia;
  • Miopática: no RN e lactente jovem, com hipotonia generalizada, miopatia progressiva, acidose láctica, tubulopatia frequente, distrofia e atrofia musculares progressivas. A histologia do músculo pode ser normal ou evidenciar RRF (ver atrás). O EMG evidencia padrão miopático.

MELAS (Mitochondrial Encephalomyopathy, Lactic Acidosis, Stroke-like episodes)

Esta síndroma caracteriza-se pela seguinte tríade: episódios simile AVC, encefalopatia com convulsões e/ou demência e acidose láctica ou presença de RRF evidenciadas em biópsia muscular (ver atrás) geralmente antes dos 40 anos.

Outras manifestações incluem crises epilépticas focais ou generalizadas, cefaleias recorrentes (tipo enxaqueca), vómitos, hipocrescimento/ baixa estatura, surdez neurossensorial, oftalmoplegia externa progressiva, diabetes não insulinodependente, polineuropatia. Pelo exame do LCR: proteinorráquia (~50% dos casos). Pela imagiologia: calcificações nos gânglios. A mutação mais comum é a A3243G.

MERRF (Myoclonic Epilepsy Ragged Red Fibres)

Síndroma multissistémica (com nome derivado de abreviaturas em inglês: evidenciando mioclonias, por vezes o primeiro sinal de epilepsia mioclónica com presença de RRF. Por vezes, demência, surdez neurossensorial, atrofia óptica, e neuropatia sensitiva. Mutação mais típica: A8344G.

NARP (Neuropathy, Ataxia, Retinitis Pigmentosa)

Síndroma caracterizada essencialmente por neuropatia, ataxia, retinite pigmentar e fraqueza muscular proximal, em combinações variáveis. Também, atraso psicomotor, epilepsia e atraso mental.

LHON ou neuropatia óptica de Leber

Mais frequente no sexo masculino (4 a 5 vezes), o quadro clínico inclui: perda de visão aguda ou subaguda devida a atrofia óptica bilateral, neuropatia retrobulbar, tortuosidade dos vasos retinianos e edema do disco óptico, síndroma cerebelosa, piramidal, neuropatia periférica e alterações da condução cardíaca.

MNGIE (Mitochondrial Neuro-Gastro-Intestinal Encephalopathy)

Encefalopatia mio-neuro-gastrintestinal que ocorre com diarreia intermitente alternando com períodos de pseudobstrução intestinal, miopatia com RRF, oftalmoplegia externa progressiva, neuropatia periférica, leucodistrofia e caquexia.

Síndroma de Wolfram (DIDMOAD)

Esta forma clínica, muito rara (prevalência global de 1/770.000 nados vivos), é conhecida também pelo acrónimo assinalado (em inglês ) significando combinação de sinais e sintomas, respectivamente: diabetes insípida, diabetes mellitus, atrofia óptica (optical atrophy) e surdez neurossensorial (deafness).

Trata-se de patologia progressiva, década a década da vida: na idade adulta, surgimento de complicações renais e neurológicas (ataxia cerebelosa e mioclonias).

Diagnóstico

O diagnóstico definitivo das DM exge um trabalho complexo, necessitando, dum modo geral, da conjugação de parâmetros clínicos, bioquímicos, anatomopatológicos e genéticos. De acordo com os resultados respectivos, o diagnóstico poderá ser considerado: confirmado, provável, possível, ou refutado.

Tal complexidade resulta do facto de a clínica e as alterações bioquímicas não serem específicas do defeito metabólico, o que poderá levar a resultados inconclusivos. Na literatura científica é realçada uma “verdadeira odisseia” relacionada com uma exigência de raciocínio clínico laborioso conducente ao diagnóstico.

Por outro lado, se os resultados forem normais, tal não invalida o diagnóstico de DM. Por consequência, são necessárias, por vezes, provas dinâmicas que ponham em evidência a alteração do metabolismo energético subjacente, provas que implicam padronização com o objectivo de uma mais correcta interpretação.

Assim, frequentemente, o diagnóstico bioquímico/ genético só é concretizado após uma longa série de estudos bioquímicos e moleculares, em diferentes tecidos, de preferência os mais afectados clinicamente. É crucial, pois, existir um diálogo contínuo entre o clínico, o bioquímico e o geneticista para uma interpretação integrada de todos os dados recolhidos.

De salientar que devem ser evitadas as provas/ estudos desnecessários, chamando-se a atenção para a necessidade do consentimento informado e esclarecido.

Para o diagnóstico de DM torna-se necessário persistência, humildade e, não raras vezes, aguardar pela evolução do quadro clínico.

O fluxograma da Figura 3 poderá ser útil.

FIGURA 3. Doenças mitocondriais – marcha diagnóstica.

SUSPEITA DE DOENÇA MITOCONDRIAL
Atingimento de órgãos sem aparente relação com evolução clínica progressiva
Acidose metabólica no momento da descompensação aguda
Padrão simile AVC (stroke-like)
Atingimento dos gânglios basais
Alteração da substância branca

Exames bioquímicos basais (iniciais)

Análise basal de metabólitos

Doseamento de: lactato (L), piruvato (P), razão L/P, 3-hidroxibutirato (3OHB), acetoacetato (AcAc), razão 3OHB/AcAc, e glicémia e AG livres, em jejum e 1 hora após refeição, se possível ao longo de 24 horas.

Fundamental para o diagnóstico: hiperlacticidémia (L > 4 mmol/L); frequentemente a razão L/P e, também, a razão 3OHB/AcAc estão elevadas; cetonémia paradoxal após refeição: é sugestiva.

Tais relações reflectem, indirectamente, o potencial redox do citoplasma (L/P), e da mitocôndria (3OHB/AcAc).

Deve ser colhido sangue venoso ou arterial em tubo com fluoreto de sódio, não usando garrote e evitando, quanto possível, designadamente, a agitação (movimentos) e o choro. É útil recordar a correspondência: Lactato em mmol/L <> mg/dL x 0,11.

Outros metabólitos: CPK, ácido úrico, amónia, CoQ10, AA (alanina), carnitina total, livre e acilcarnitinas no plasma e urina; aminoácidos (AA) e ácidos orgânicos (AO) urinários. Se possível: tocoferol e biotinidase.

Se houver sintomas gastrintestinais (GI) predominantes, deve dosear-se a timidina no sangue para o diagnóstico de MNGIE.

Nota: se os doseamentos evidenciarem resultados normais no sangue, mas existirem sinais de compromisso do SNC, deve proceder-se aos seguintes doseamentos no LCR: glucose, proteínas, L, P, L/P, AA e folatos.

Provas dinâmicas

  • Prova de sobrecarga com glucose: 2 g glucose/kg, com doseamento no sangue (imediatamente antes e 60 minutos após a toma) de: glicémia, L, P, 3OHB e AcAc, respectivas razões; e, na urina, os AO. A prova procura revelar uma alteração do metabolismo energético mitocondrial não evidente nas condições basais, como seja um L ou alanina elevados. Trata-se duma prova ideal para crianças.
  • Prova de esforço: em crianças maiores colaborantes, adolescentes e adultos. Dosear no sangue: CPK, L, P, L/P, AA (alanina), e AO (urina), antes e após o esforço. Interpretação por vezes difícil.
Outros estudos

Cita-se a análise do consumo de O2 (polarografia) em mitocôndrias a fresco, só possível em laboratórios especializados muito experientes.

Outros exames complementares

Todos os órgãos-alvo devem ser explorados cuidadosamente.

  • Olhos: fundoscopia, acuidade visual, campimetria, motilidade ocular. A retinite pigmentar está presente em 75% dos casos.
  • Sistema nervoso: EMG e velocidade de condução nervosa; potenciais evocados auditivos e visuais; ERG; EEG (vigília e sono) com poligrafia. RM-CE convencional: possível detecção de lesões hiperintensas nos núcleos da base e tronco (Leigh); lesões vasculares agudas (MELAS), alterações difusas da substância branca central (KSS, defeito do CII); RM-CE com espectroscopia: estudo do pico de L, mielinização, perda neuronal, medição de picos de outros metabólitos como: creatina, colina, acetil-aspartato; TAC-CE para detecção de calcificações (MELAS, KSS). Com estes exames de neuroimagem podem ser observadas alterações em 80% dos doentes, dependendo, contudo, do tempo de evolução da doença.
  • Sistema cardiovascular: para detecção de cardiomiopatia, bloqueios de condução, síndroma de hiperexcitabilidade, etc..
  • ORL: audiometria (detecção de surdez neurossensorial, frequente).
  • Sistema endócrino: detecção de diabetes, hipoparatiroidismo (Pearson, KSS, MELAS). Prova com ACTH e outros estudos se existir baixa estatura.
  • Rim: função renal completa, glomerular e tubular, urina de 24 horas. Avaliação sobre eventualidade de síndroma de Fanconi ou outras alterações até ao momento não evidenciadas (Pearson, KSS, MELAS).
  • Sangue: alterações podem afectar as três séries; se suspeitar de Pearson, há que proceder a punção da medula óssea.
  • Sistema digestivo: frequentes os problemas alimentares e RGE, particularmente nos mais jovens; valorizar vómitos frequentes, diarreia crónica, hipocrescimento, disfunção pancreática exócrina (Pearson), episódios de pseudobstrução intestinal; valorizar os sintomas do foro hepático como hepatomegália, insuficiência hepática induzida pelo valproato, disfunção hepática aguda (depleção do DNAmit).
  • Sistema muscular: poderá ser necessário estudar o metabolismo energético da mitocôndria com RM e espectroscopia com 31P, e determinar a relação fosfocreatina/ fósforo inorgânico no estado de repouso, exercício e na recuperação. Nos doentes, a relação é baixa no repouso, desce mais ainda no exercício e, na recuperação, verifica-se subida lenta, sendo que a técnica é difícil de aplicar em crianças.
  • Sistema cognitivo: uma avaliação cognitiva cuidadosa é, obviamente, importante.

Nota importante: deverá proceder-se a registos audiovisuais: fotos e videoimagens, para estudo evolutivo.

Exame histológico

Os estudos histológicos são muito importantes para o diagnóstico de DM. O achado ultra-estrutural de fibras vermelhas rasgadas (RRF) (Figura 4) corresponde a fibras musculares com acumulação subsarcolémica de mitocôndrias alteradas quanto ao seu número, disposição, forma e estrutura interna. Tal achado foi considerado como marcador inequívoco de DM, mas actualmente não é aceite, pois poderá ser observado noutras doenças não mitocondriais como a distrofia muscular, polimiosite, dermatomiosite, ou até em pessoas idosas.

Por outro lado, pode verificar-se DM sem padrão RRF, designadamente nas formas LHON e síndroma de Leigh, em relação com mutações no gene da ATPase 6.

Nos estudos histológicos usam-se actualmente diferentes técnicas: morfológicas (como o teste tricrómio Gomorri modificado); histoquímicas (succinato desidrogenase, citocromo c-oxidase, ou ambas); de fluorescência (catiões lipofílicos fluorescentes); imuno-histoquímicas (anticorpos), ou de hibridação in situ (sondas específicas). No músculo dos doentes é frequente a observação de depósitos de gordura e de glicogénio.

As alterações mitocondriais são mais difíceis de interpretar noutros tecidos, como hepatócitos, células tubulares renais, miocárdio, músculos extraoculares, etc..

FIGURA 4. Aspecto ultra-estrutural RRF (fibras musculares rasgadas, defeituosas ou Ragged Red Fibers). (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Exame bioquímico ulterior

Após a realização dos estudos bioquímicos iniciais, e perante a suspeita de DM, deve proceder-se ao doseamento da actividade dos complexos da CR, o qual pode ser efectuado em diferentes tecidos:

  • Cultura de fibroblastos através de biópsia de pele; ou
  • Biópsia do músculo.

As biópsias devem ser executadas nas condições mais adequadas, cumprindo regras essenciais:

    • No caso da biópsia de pele, a amostra deve ser colocada em meio especial (ex. Hans), conservada e enviada à temperatura ambiente até ao limite de 48 horas, para o laboratório especializado;
    • No caso da biópsia do músculo e para estudos a fresco (métodos polarográficos), os mesmos deverão ser feitos obrigatoriamente no mesmo dia da biópsia, o que implica a realização desta no próprio centro especializado. Se tal não acontecer, deve dividir-se a amostra de músculo em 2 porções, conservadas a -80º C:
      → uma para estudo da actividade enzimática e DNA; e
      → outra para estudos histológicos. Chama-se a atenção para a importância do doseamento de CoQ10 no músculo, porquanto a doença por defeito de CoQ10 é tratável.

 

Em suma, o uso de amostras congeladas é a prática mais comum, ainda que não a ideal. É aconselhável medir a actividade enzimática individual dos complexos da CR, mas também a actividade do I+III e II+III.

Deve padronizar-se a actividade de cada complexo pela actividade da citrato-sintetase, para garantia da validade e estado de conservação da amostra.

Nota importante: uma actividade enzimática normal dos complexos da CR não afasta o diagnóstico de DM. Com efeito, poderá acontecer que o tecido estudado não expresse a doença ou, no caso de a expressar, que exista um mosaicismo celular.

Exame genético

O exame genético é, por vezes, decisivo para diagnóstico de DM.

Assim, numa primeira fase, deve proceder-se do seguinte modo:

  • Investigar as mutações do DNAmit e DNAn (estas últimas ainda pouco conhecidas);
  • Escolher o(s) tecido(s) mais afectado(s) clinicamente a que possivelmente corresponderá uma proporção maior de DNA que sofreu mutação;
  • Estudar: mutações pontuais, deleções, duplicações e deplecção do DNAmit;
  • Técnicas: colheita de sangue: 5-10 mL em tubo EDTA; colheita de tecidos: fibroblastos, músculo, fígado, outros.

É útil fazer o estudo genético do(a) filho(a) e da mãe, se houver suspeita de mutações do DNAmit e hereditariedade materna; ou no doente e em ambos os progenitores, se se suspeitar de mutações nucleares e hereditariedade mendeliana.

Se houver suspeita de determinada síndroma clínica em concreto, como por exemplo: MERRF, MELAS, NARP, Leigh, etc., deve fazer-se a detecção prévia das alterações genéticas conhecidas do DNAmit; se o estudo mutacional for negativo, deve proceder-se a biópsia muscular para estudos bioquímicos, histológicos e moleculares.

Se a situação configurar uma associação de sintomas e sinais não conhecida, mas evocadora de uma DM, deve proceder-se a biópsia muscular e a outros estudos neste tecido.

Tratamento

Específico

Pela ausência de grandes séries de doentes, não há estudos conclusivos quanto ao efeito dos múltiplos tratamentos experimentados. A terapêutica farmacológica específica revela apenas alguma melhoria em casos raros, geralmente sem efeito nas formas precoces e multissistémicas. Como excepção devem ser citados os seguintes fármacos:

  • A ubiquinona-10 ou CoQ10, potente antioxidante, eficaz no defeito primário do CoQ10;
  • A idebenona: similar à ubiquinona mas muito mais solúvel; pode atravessar a barreira hemato-encefálica, e pode ser útil na doença de Friedrich;
  • Outros (sendo referida entre parênteses a entidade clínica para a qual é dirigido): vitamina C (def. CIII); vitamina K3, menadiona (def. CIV provavelmente); vitamina B2, riboflavina (def. CI); vitamina B1, tiamina (útil apenas no def. PDH); citocromo c (KSS provavelmente); mono-hidrato de creatina (crises agudas do MELAS); histidinato de cobre (a tentar nas formas graves de encefalomiocardiopatia do lactente com defeito de COX – mutação SCO2); carnitina (útil nas deficiências secundárias); dicloroacetato (útil nas acidoses lácticas graves no defeito PDH, mas por períodos curtos); bicarbonato (melhoria da hiperventilação); ácido fólico (útil no KSS e anomalias da mielinização); ácido folínico (por vezes alguma melhoria em situações de alteração da substância branca cerebral); corticóides (por vezes útil nas crises do MELAS e na insuficiência suprarrenal no MELAS e KSS); L-arginina, precursora do óxido nítrico (vasodilatador), com acção inconstante nas crises de AVC no MELAS.

Nota importante: não devem ser usados fármacos que inibam a CR e/ou o metabolismo da mitocôndria: valproato de sódio, fenobarbital, hidantoína, tetraciclinas, ciprofloxicina, aminoglicosídeos (especialmente nos doentes com a mutação A1555G, que têm surdez), anestésicos vários, analgésicos (como o fentanil).


Os transplantes hepático, renal ou cardíaco deverão ser cuidadosamente ponderados em casos muito seleccionados, dadas as características evolutivas das DM.

Medidas gerais

Reforça-se o papel importante de certas medidas de suporte, a saber:

  • Evicção/correcção de descompensações metabólicas agudas, tendo em atenção a correcção sintomática em função de sinais de compromisso de diferentes órgãos;
  • Suprimento energético adequado, não excessivo: evicção do jejum prolongado, promovendo refeições com intervalos regulares;
  • Dieta cetogénica somente com indicação no def. PDH, e no Leigh, com resultados contraditórios;
  • Evicção de situações que exijam elevada necessidade energética: administração de antipiréticos em casos de febre (não ácido acetilsalicílico, preferindo ibuprofeno), evicção de ambientes muito quentes, abstenção de álcool;
  • Reidratação IV em situações de desidratação;
  • Diálise se insuficiência renal ou nos casos de MNGIE (se timidina muito elevada no sangue);
  • Fomento do exercício físico aeróbico controlado, sempre que possível para melhorar a tolerância à fadiga;
  • Correcção da acidose: bicarbonato; nos casos de acidose láctica grave, poderão estar indicadas diálise peritoneal ou hemodiálise;
  • Apoio psicológico e/ou psiquiátrico aos doentes e familiares, quando necessário (aspecto fundamental, a não descurar).

Nota importante:

    1. Apesar de não existir tratamento curativo para as DM, ante a mínima suspeita deve proceder-se à administração de cofactores para melhorar a função da CR. No caso específico de MELAS, em todos os doentes deve administrar-se suplemento com arginina e citrulina durante os surtos de “AVC” e na fase de manutenção.
    2. Abundam controvérsias acerca dos resultados e benefícios de muitas das terapêuticas citadas.

2. DOENÇAS POR DEFEITOS DA OXIDAÇÃO MITOCONDRIAL DOS ÁCIDOS GORDOS E DA CETOGÉNESE

Etiopatogénese e nosologia

A oxidação dos ácidos gordos (AG) na mitocôndria é crucial para a produção de energia. Nos estádios tardios de jejum, os AG fornecem ~80% das necessidades totais de energia pela síntese hepática de corpos cetónicos e por oxidação directa noutros tecidos.

Os ácidos gordos de cadeia longa (AGCL: C16-C20) constituem a fonte energética essencial para o músculo esquelético durante o exercício prolongado e a fonte preferida pelo miocárdio.

A oxidação de AG integra quatro componentes:

  1. Ciclo da carnitina;
  2. Ciclo da beta-oxidação;
  3. Via de transferência de electrões; e
  4. Síntese dos corpos cetónicos (ver adiante).

A via de transferência de electrões transfere uma parcela da energia libertada na beta-oxidação para a cadeia respiratória, daí resultando síntese de ATP.

No fígado, parte importante da acetil-CoA derivada do ciclo da beta-oxidação é utilizada para a síntese de corpos cetónicos: 3-hidroxibutirato e acetoacetato. Estes corpos cetónicos são então exportados para os tecidos para a oxidação final (principalmente para o cérebro), poupando glicose.

Noutros tecidos, como o músculo, a acetil-CoA entra no ciclo de Krebs para a produção de ATP.

Os AG livres, libertados com o concurso das lipases, dos triglicéridos armazenados no tecido adiposo, circulam ligados à albumina. A sua oxidação nos tecidos periféricos poupa o consumo de glucose, e a necessidade da conversão das proteínas do corpo em glucose.

Por sua vez, o fígado, utilizando AG, fornece energia para a gluconeogénese e para a síntese de ureia.

As doenças principais que decorrem de anomalias ao nível dos quatro componentes atrás referidos ( 1 -, 2 -, 3 – , 4 – ) podem ser assim sistematizadas (ver caixa):

    • defeito do transportador da carnitina (CTD) – deficiência primária de carnitina e deficiência de captação de carnitina;
    • deficiência de carnitina-palmitoil-transferase 1 (CPT1);
    • deficiência de carnitina/acilcarnitina-translocase (CACT);
    • deficiência de carnitina-palmitoil-transferase 2 (CPT2);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia muito longa (VLCAD);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia média (MCAD);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia curta (SCAD);
    • deficiência de desidrogenase de hidroxiacil-CoA de cadeia longa (LCHAD);
    • deficiência de proteína trifuncional mitocondrial (MTP);
    • deficiência de desidrogenase de hidroxiacil-CoA de cadeia curta (SCHAD);
    • deficiência de 3-cetoacil-CoA tiolase da cadeia média (MCKT);
    • deficiência de desidrogenases de múltiplas acil-CoA (acidúria glutática tipo 2) ou de ETF/ETF-DH (flavoproteínas de transferência de electrões);
    • deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) sintetase conduzindo a defeito da cetogénese;
    • deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) liase conduzindo a defeito da cetogénese.


Dois aspectos com implicações clínicas importantes a reter são:

  • A produção insuficiente de corpos cetónicos, associada à inibição da gliconeogénese pelos baixos níveis de acetil-CoA durante os estados catabólicos (por ex. jejum prolongado, infecção, procedimento cirúrgico, etc.), poderá causar coma hipoglicémico hipocetótico típico, acompanhado por sinais de insuficiência hepática e hiperamoniémia;
  • A acumulação tóxica de acilcarnitinas de cadeia longa, especialmente nas perturbações de oxidação dos ácidos gordos de cadeia longa, poderá causar acidose láctica grave no RN e lactente, cardiomiopatia e hepatopatia.

Como consequência do que foi referido, os defeitos da ß-oxidação dos AG são actualmente considerados um grupo major de doenças neurometabólicas. As respectivas manifestações clínicas levantam problemas de diagnóstico diferencial com defeitos da CR.

Manifestações clínicas

As perturbações da oxidação de ácidos gordos e da cetogénese, evidenciando grande variabilidade de manifestações, apresentam-se na maioria dos casos, em 3 formas principais: hepáticas, cardíacas, e musculares.

Em geral, as manifestações ocorrem no lactente jovem com episódios potencialmente fatais de coma com hipoglicémia hipocetótica induzidos por jejum ou doença febril, por vezes em associação a falência hepática e hiperamoniémia.

O compromisso hepático é o mais comum e revelador (qualquer que seja o defeito): hepatomegália, esteatose, aumento do valor das transaminases, síndroma de Reye, colestase e falência hepática. A esteatose é um indicador seguro, mas não específico, que deverá conduzir à suspeita e estudo destas patologias.

Quanto ao compromisso extra-hepático, há a referir, no RN e lactente: sinais hemodimâmicos/ cardíacos, designadamente cardiomiopatia (CM), taquicardia ventricular e arritmia hipoglicémia hipocetótica.

Em crianças mais velhas é comum observar-se: fraqueza e dor musculares, rabdomiólise recorrente induzida pelo exercício ou CM aguda ou crónica.

Na LCHAD pode observar-se retinopatia ou neuropatia periférica e síndroma HELLP materna.

Os defeitos (def.) da cetogénese: def. de HMG-CoA sintetase e def. de HNG-CoA liase podem apresentar-se, precoce ou tardiamente, no contexto de infecção ou de estresse metabólico.

A descompensação pode levar a encefalopatia, vómitos, alterações da consciência, em associação frequente a hepatomegália, hipoglicémia hipocetótica. Na deficiência de liase, em que é possível a complicação de pancreatite, alguns pacientes podem estar assintomáticos durante anos ou evoluir para sequelas neurológicas.

A MCAD é, no geral, o defeito mais frequente, seguindo-se LCHAD, VLCAD e os defeitos do ciclo da carnitina (CPT1, CPT2, CACT). Em Portugal a MCAD é frequente na etnia cigana.

Salienta-se que a deficiência de CACT é frequentemente sintomática nas horas a seguir ao parto.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se em:

Exames laboratoriais

  • Perfil das acilcarnitinas no plasma ou urina por espectrofotometria de massa em tandem;
  • Doseamento da carnitina total no plasma, sendo que todas estas doenças (excepto a CPT1) têm concentrações de carnitina baixa ou muito baixa;
  • Cromatografia dos ácidos orgânicos na urina, a qual poderá evidenciar acidúria dicarboxílica específica durante o jejum ou doença;
  • Acilglicinas urinárias;
  • Doseamento de ácidos gordos plasmáticos.

Também relevantes para o diagnóstico: hiperamoniémia moderada (mais comum no RN), acidose metabólica moderada, hiperlactacidémia (que diminui com a idade). Os valores de ALT, AST e GGT são raramente superiores 2-3 vezes em relação aos valores de referência.

Por vezes são necessárias outras análises, in vitro ou in vivo, para estudo da via de oxidação dos ácidos gordos.

Estudo histológico hepático

O estudo histológico hepático na fase aguda pode evidenciar sinais de esteatose hepática micro ou macrovesicular que, nos intervalos das crises, podem normalizar.

Pode existir fibrose hepática (VLCAD) e alteração cirrótica (LCHAD).

Nas formas musculares poderá verificar-se quadro de miopatia lipóide/ acumulação de gordura.

Avaliação da actividade enzimática

A avaliação da actividade enzimática é possível nos fibroblastos e linfoblastos.

Diagnóstico molecular

O diagnóstico molecular pode ser de utilidade nas seguintes doenças, para pesquisa de mutações (designadas entre parênteses): MCAD (A985G), LCHAD (G1528C) e CPT2 na sua forma miopática (S113L).

Diagnóstico pré-natal

O diagnóstico pré-natal é possível em todas estas doenças usando amniócitos ou vilosidades coriónicas, excepto na deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) sintetase.

Há que admitir a possibilidade de defeito de beta-oxidação de AG perante hipoglicémia, miopatia ou cardiomiopatia não explicadas.

Tratamento

Fase aguda

  • Deve promover-se elevado suprimento de glucose IV (10 mg/kg/minuto ou superior) de imediato, estando proscritos lípidos por via IV;
  • Manter a glicémia > 100 mg/dL (> 5,5 mmol/L), com o objectivo de estimular a secreção de insulina, suprimir a oxidação de AG no fígado e músculo, e bloquear a lipólise;
  • Riboflavina:100 mg/dia (alguns doentes com SCAD e ETF/ETF-DH respondem bem):

A recuperação, não imediata, pode demorar 1-2 dias.

Fase de manutenção

  • Deve evitar-se o jejum prolongado na tentativa de evitar a utilização de AG como fonte energética;
  • Nos casos mais graves, especialmente nos doentes com fraqueza muscular e/ou CM, deve evitar-se o jejum, procedendo-se à alimentação intragástrica contínua nocturna, dar-se amido cru como meio libertador lento de glucose, e restringir-se o suprimento de gorduras;
  • TCM/ triglicéridos de cadeia média: nos defeitos de beta-oxidação da AG de cadeia longa e na LCHAD são de grande utilidade; de utilidade discutível nos SCAD, SCHAD e defeitos da cetogénese e; contraindicados nos casos de deficiência MCAD; no defeito VLCAD podem ter utilidade episodicamente antes do exercício físico;
  • Triglicérido C7 (tri-heptanoína) em formas seleccionadas, por ex. VLCAD, suprindo 30-35% do VCT; melhoria sobretudo em situações de hipoglicémia, rabdomiólise, fraqueza muscular e CM;
  • Carnitina: a sua utilização, se os respectivos níveis estiverem diminuídos, é crucial na forma CTD (defeito do transportador da carnitina); deve ser cautelosa ou evitada noutras formas;
  • Fórmulas especiais com redução da gordura: Monopen, Basic-f, úteis nos VLCAD e CPT2;
  • Ácidos gordos essenciais/ AGE, designadamente óleos de noz, de soja, de trigo, incorporando ácidos linoleico (ómega-6), linolénico (ómega-3) nos casos de restrição de AGCL muito severa;
  • Ácido docosa-hexanóico (DHA) na LCHAD;
  • Bezafibratos – a investigação em curso configura boas expectativas.

Nota final – os níveis séricos de vitaminas lipossolúveis devem ser vigiados.

Evolução

Com o rastreio neonatal alargado e o diagnóstico precoce das situações descritas, de acordo com estudos de grandes séries, a mortalidade, anteriormente rondando cerca de 48%, baixou significativamente. Como exemplos – no MCAD, anteriormente 20%, baixou para 0-4%; LCHAD e VLCAD, de 60% para 0%.

3. DOENÇAS POR DEFEITOS DA CETÓLISE

Etiopatogénese e nosologia

Os corpos cetónicos (cc): acetoacetato e 3-hidroxibutirato são metabólitos derivados dos ácidos gordos/ AG e dos aminoácidos/ AA cetogénicos, como a leucina.

A situação de cetose esporádica surge como resposta ao jejum, estado catabólico ou dieta cetogénica. A cetose permanente, rara, poderá traduzir defeito da cetólise.

A cetose, se associada a outras anomalias metabólicas, poderá traduzir: alterações do metabolismo mitocondrial, tais como acidúrias orgânicas e perturbações da cadeia respiratória; e, também, diabetes mellitus. A cetonúria no RN constitui, como regra, doença metabólica primária.

Após jejum prolongado os cc podem oferecer cerca de 2/3 da energia necessária para o cérebro.

Nas doenças por defeitos da cetólise verifica-se falência do processo de utilização dos corpos cetónicos sintetizados no fígado, originando cetoacidose grave e hipoglicémia hipercetótica.

Na prática clínica identificam-se duas entidades relacionadas com defeitos da cetólise:

  • Deficiência de succinil-CoA 3-oxoácido CoA-transferase (SCOT);
  • Deficiência de 3-oxotiolase ou beta-cetotiolase (acetoacetil-CoA tiolase mitocondrial), também envolvida no catabolismo da isoleucina.

Trata-se de doenças passíveis de bom prognóstico clínico se o diagnóstico e tratamento forem precoces e correctos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

As perturbações da cetólise traduzem-se fundamentalmente por episódios recorrentes de cetoacidose grave potencialmente fatais, taquipneia, hipotonia e coma (na SCOT) e também por episódios de náuseas e vómitos, com sinais neurológicos de expressão variável (na deficiência de 3-oxotiolase), raramente com apresentação neonatal.

Nalguns doentes poderá desenvolver-se insuficiência mental, ataxia ou distonia.

→ Na SCOT a função hepática não está afectada e não existe hepatomegália. Verifica-se elevação pemanente de cc – acetoacetato e 3-hidroxibutirato – no soro e urina.
Deve fazer-se o diagnóstico diferencial, designadamente com a hipoglicémia cetótica idiopática e a glicogenose tipo 0.
O diagnóstico deve ser confirmado por estudo enzimático em linfócitos, trombócitos e fibroblastos (essencial) em cultura.

→ Na deficiência de 3-oxotiolase para além da elevação acetonas (D-3-hidroxibutirato e acetoacetato) no soro e urina, verifica-se hipo ou hiperglicémia. Na urina salienta-se a elevação de metabólitos da isoleucina como a 2-metil-3 hidroxibutirato, 2-metilacetoacetato e tiglilglicina.
A elevada concentração de acetoacetato no sangue e urina pode originar resultados falsos positivos no teste dos salicilatos.

Através da RM poderão ser evidenciadas anomalias dos gânglios basais.

Tratamento

As bases fundamentais da actuação têm em conta que os doentes com defeitos da cetólise podem sofrer descompensação rápida já na primeira infância, o que poderá dar origem a sequelas neurológicas irreversíveis.

A actuação compreende os seguintes passos:

  • Devem ser evitados períodos de jejum, propiciando elevado suprimento em fluidos com elevado teor de hidratos de carbono desde a verificação do mínimo sinal de doença (designadamente intercorrências acompanhadas de estresse metabólico como infecções) ou em caso de intervenções cirúrgicas;
  • Hospitalização caso se comprove cetonúria; em tal circunstância deve ser aplicada perfusão IV de glucose para tentar interromper o estado catabólico (~10 mg/kg/minuto <> 60 kcal/kg/dia) e incorporando bicarbonato se a acidose for grave (pH<7,1);
  • Na fase aguda da descompensação deve ser evitado o suprimento de proteínas e gorduras;
  • Monitorização rigorosa do balanço hidroelectrolítico, prevenindo e/ou combatendo a desidratação, tendo em conta que a hipernatrémia poderá ser fatal;
  • Após melhoria está indicado suprimento de baixo teor em gorduras (não ultrapassando 1 g/kg/dia de lípidos IV);
  • Poderá estar indicado suplemento em carnitina se os respectivos níveis séricos forem baixos.

4. DOENÇAS POR DEFEITOS DA BIOSSÍNTESE e TRANSPORTE da CREATINA

Etiopatogénese e nosologia

O sistema creatina/ creatina-fosfato tem papel importante de reserva energética no cérebro e músculo.

A creatina (Cr) é sintetizada num processo que envolve duas enzimas: arginina-glicina amidinotransferase (AGAT) e guanidinoacetato metiltransferase (GAMT).

A S-adenosilmetionina (SAM) serve como dador do grupo metilo.

A creatina é sintetizada primariamente no rim e pâncreas (ambos ricos em AGAT), e no fígado (rico em GAMT). A creatina e a creatina-fosfato são convertidas, não enzimaticamente, em creatinina (Crn), que é excretada especialmente na urina.

Para que a Cr seja captada ao nível dos tecidos cerebral e muscular torna-se necessário um transportador da Cr (CRTR).

Nesta perspectiva, são identificadas três entidades relacionadas com defeitos da biossíntese ou do transporte de Cr, levando a concentrações baixas desta no SNC:

  • Deficiência de GAMT;
  • Deficiência de AGAT;
  • Deficiência de CRTR (ou def. SLC6A8) ligada ao cromossoma X.

A GAMT é a forma mais grave, a CRTR a forma mais comum, sendo a sua prevalência alta entre os doentes do sexo masculino com insuficiência mental ligada ao sexo.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

No que respeita a manifestações clínicas salienta-se que nas três afecções referidas, verifica-se atraso no neurodesenvolvimento, com especial relevância na área da fala (grave), epilepsia por vezes refractária (verificando-se anomalias no EEG), sinais extrapiramidais (na GAMT), autismo e alterações do comportamento.

Através da RM com espectrometria é possível comprovar-se as concentrações baixas/ muito baixas de Cr no cérebro (o órgão mais afectado) nas três entidades anteriormente referidas constituem um dado fundamental para o diagnóstico. O cérebro é, aliás, o órgão mais afectado.

O diagnóstico bioquímico faz-se pelo doseamento simultâneo de: creatina, creatinina, ácido guanidinoacético (AGA) no plasma, e pela razão Cr/Crn na urina. Para os resultados importa consultar a caixa seguinte.

A concentração muito elevada (e tóxica) do AGA, é marcador da GAMT. A ratio Cr/Crn elevada na urina é marcador de CRTR, especialmente no sexo masculino. Assim:

AGAT → AGA baixo (urina, plasma e LCR); Cr no plasma no limite do normal; Crn moderadamente baixa na urina.
GAMT → AGA muito elevado (tecidos e fluidos) – achado quase patognomónico -, e Cr baixa.
CRTR → AGA dentro do normal.

      • No sexo masculino: Cr elevada na urina; Crn baixa na urina; ratio Cr/Crn elevada na urina.
      • No sexo feminino: ratio Cr/Crn no limite do normal, ou elevada na urina.

A confirmação diagnóstica faz-se através de estudos enzimáticos, moleculares e funcionais de captação da Cr nas células em cultura, para o CRTR.

O estudo molecular, disponível para as três entidades, deve ser feito em todos os doentes.

Os doentes portugueses com GAMT apresentam a mutação c.59G>C (p.W20S), geralmente em homozigotia. A CRTR é diagnosticada em crianças e adultos; as mulheres heterozigotas, em 50% dos casos, apresentam dificuldades de aprendizagem e alterações do comportamento.

O tratamento inclui essencialmente a administração oral de mono-hidrato de creatina (300-400 mg/kg/dia), com suplemento de ornitina, e redução de arginina na GAMT, com melhoria de prognóstico e evolução.

Na AGAT a administração de mono-hidrato de creatina pode levar a melhoria dramática do desenvolvimento, se iniciada na fase pré-sintomas.

Aliás, se a terapia for instituída precocemente nos assintomáticos com AGAT e GAMT, poderá evitar-se o surgimento das manifestações clínicas.

A Cr tem efeitos neuroprotectores (in vivo e in vitro).

Recentemente foram propostas novas terapias:

  1. Suplemento de S-adenosilmetionina, a qual atravessa a barreira hemato-encefálica;
  2. Suplementos de ácido fólico, vitaminas B6 e B12 a fim de se promover o incremento da síntese de metionina e a redução da S-adenosil-homocisteína (que inibe a GAMT);
  3. Análogos lipofílicos de Cr, que atravessam a barreira hematoencefálica, são independentes do CRTR, e evidenciam efeitos promissores na experimentação animal.

Quanto ao defeito de CRTR (SLC6A8), a administração isolada do mono-hidrato de Cr não é eficaz. Foi proposto juntar suplementos de arginina e glicina (precursores da Cr), com resultados incertos ou não mantidos: em certos casos tem-se assistido a melhoria da epilepsia ou dos sintomas musculares, enquanto noutros se tem verificado agravamento do quadro clínico com a introdução da glicina.

No geral, salienta-se que os doentes com “pico” residual de Cr no cérebro beneficiam com o suplemento oral de Cr, mais eficazmente se iniciado em fase precoce.

Como conclusão prática pode afirmar-se:

  1. Perante uma situação de insuficiência mental ligada ao cromossoma X deverá admitir-se: síndroma do X-frágil; e defeito de CRTR.
  2. O rastreio destas doenças da creatina está indicado em doentes de ambos os sexos, com insuficiência mental não específica associada a: – comportamento autista ou outros sintomas psiquiátricos e; – convulsões ou hipotonia.

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Introdução

A não solubilidade aquosa dos lípidos (colesterol livre, colesterol esterificado e triglicéridos, exceptuando-se os fosfolípidos) implica um sistema de transporte plasmático constituído pela associação daqueles a diversas proteínas específicas (apoproteínas ou simplesmente apo) mediante ligações covalentes, formando-se macromoléculas complexas, designadas lipoproteínas.

As dislipoproteinémias definem-se como afecções caracterizadas essencialmente por valores elevados ou baixos das várias classes de lipoproteínas major adiante sistematizadas (quilomicrons, lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL), de baixa densidade (LDL) e alta densidade (HDL).

O metabolismo das lipoproteínas pode resultar, quer da mutação de um único gene, quer, mais frequentemente, de múltiplos genes, com influência no metabolismo das lipoproteínas.

Importa referir, contudo, a possibilidade da actuação concomitante de diversos factores ambientais (tais como a ingestão excessiva de gordura e o sedentarismo), contribuindo também para o surgimento de dislipoproteinémias.

Nosologia

As doenças hereditárias relacionadas com defeitos do metabolismo dos lípidos integram classicamente os seguintes subgrupos:

  1. Alterações da β-oxidação mitocondrial dos ácidos gordos;
  2. Alterações do metabolismo dos ácidos gordos de cadeia muito longa;
  3. Doenças de armazenamento de lípidos; e
  4. Doenças por anomalias do metabolismo e transporte das lipoproteínas (dislipoproteinémias).

Tendo os principais tópicos que integram as alíneas 1-, 2-, e 3- sido abordados nos dois capítulos anteriores (incluídos nas doenças dos organelos), o objectivo deste capítulo é proceder a uma descrição sucinta das disliproteinémias (alínea 4-), patologia que por sua vez tem afinidades com a doença aterosclerótica, incluída no 1º volume.

1. GENERALIDADES SOBRE LÍPIDOS

Lípidos e aterosclerose

Os estudos de investigação em lipidologia têm demonstrado a associação entre hipercolesterolémia, doença aterosclerótica e doença cardíaca coronária.

Os progressos realizados em técnicas laboratoriais sofisticadas permitindo identificar e separar subclasses de partículas lipídicas, assim como medir determinados marcadores de inflamação da parede arterial, têm permitido melhor compreensão da aterogénese e da ruptura da placa de ateroma conduzindo à síndroma coronária aguda.

Recorda-se, a propósito, que a aterosclerose afecta as artérias em geral e, com especial ênfase, as artérias coronárias, as artérias carótidas e as dos membros inferiores.

Admite-se que a fase inicial do desenvolvimento da aterosclerose corresponde a um processo de disfunção endotelial com espessamento da íntima e média ocorrendo na fase da pré-adolescência, com maior intensidade se existirem factores de risco como obesidade e hipercolesterolémia familiar.

De acordo com um estudo realizado em estudantes de Medicina de raça caucasiana nos EUA (The Johns Hopkins Precursors Study), verificou-se que a incidência de coronariopatia pelos 30-40 anos de idade era directamente proporcional aos valores de hipercolesterolémia na idade pediátrica.

A propósito dos factores de risco da aterogénese, cabe recordar os resultados de diversos estudos epidemiológicos abordados no capítulo sobre origens fetais de doenças no adulto (volume 1):

  • Maior incidência de coronariopatia no adulto com antecedentes de baixo peso de nascimento;
  • Maior risco de síndroma metabólica (resistência à insulina, diabetes mellitus de tipo 2, obesidade, coronariopatia) na idade adulta se houver antecedentes de ambiente intrauterino adverso, designadamente relacionável com diabetes e obesidade maternas.

Retomando o que foi referido no capítulo sobre doença aterosclerótica, reitera-se que o processo de penetração lipídica na íntima se pode dever a um conjunto de factores adversos, salientando-se o papel das partículas lipídicas LDL oxidadas e altamente tóxicas (ver adiante).

Linfócitos e monócitos, penetrando no endotélio lesado, evoluem para macrófagos “carregados“ com partículas LDL e, ulteriormente para células espumosas. Tal acumulação poderá, até certo ponto, ser contrabalançada por partículas HDL com capacidade de remoção dos lípidos da parede vascular.

Para a formação das placas fibrosas é fundamental a existência de processo inflamatório (testemunhado por elevação da PCR) em que participam macrófagos. A deposição de lípidos na camada subendotelial da parede arterial traduz-se macroscopicamente pelo aparecimento das estrias gordas que, até certo ponto, poderão ser reversíveis.

Numa fase mais tardia do desenvolvimento da placa, surge ruptura das células musculares lisas da parede arterial, o que é facilitado pela libertação de citocinas teciduais e de factores de crescimento.

A placa de ateroma (estrias gordas e placas fibrosas) é composta por uma parte central ou núcleo de substância gorda separada do lume por colagénio e tecido muscular liso. O crescimento da placa pode conduzir a isquémia dos tecidos cuja vascularização depende da artéria com parede lesada.

A inflamação crónica no interior do ateroma, possivelmente causada por agentes microbianos como Chlamydia pneumoniae, poderá conduzir a instabilidade da placa e a ruptura subsequente; se consequentemente surgir ruptura do endotélio, verifica-se fenómeno de agregação e adesão de plaquetas com formação de coágulo no local da ruptura.

Lipoproteínas

Tipos e estrutura dos lípidos

Os lípidos são ésteres, ou seja, a combinação de um ácido com um álcool; os ácidos constituintes dos lípidos chamam-se ácidos gordos. Os álcoois mais frequentemente encontrados nos lípidos são o glicerol e o colesterol.

Os principais lípidos existentes no organismo são classificados do seguinte modo:

  • Triglicéridos: em que as funções álcool do glicerol são esterificadas por três ácidos iguais ou diferentes;
  • Fosfolípidos: contendo na sua estrutura uma molécula de ácido fosfórico; são de 2 tipos:
    • glicerofosfolípidos e aglicerofosfolípidos ou esfingolípidos; os glicerofosfolípidos mais importantes são as lecitinas e as cefalinas,
    • esfingolípidos, lípidos predominantes no sistema nervoso, têm um álcool (a esfingosina), diferente do glicerol;
  • Ésteres do colesterol: resultam da esterificação da função álcool do colesterol por um ácido.

Sobre o sistema de transporte plasmático dos lípidos (designadamente do colesterol livre, colesterol esterificado e triglicéridos), importa salientar que os mesmos estão envolvidos por proteínas, com um pólo solúvel nos lípidos, e outro, solúvel na água, orientando-se o pólo solúvel nos lípidos para o interior, e o pólo solúvel na água para o exterior. [não solubilidade aquosa dos lípidos (colesterol livre, colesterol esterificado e triglicéridos, exceptuando-se os fosfolípidos]. Formam-se assim compostos/ partículas designados lipoproteínas.

O centro das referidas partículas contém macromoléculas hidrofóbicas incluindo triglicéridos e ésteres de colesterol, enquanto a superfície é composta de moléculas hidrofílicas como fosfolípidos e colesterol.

As apolipoproteínas (designadamente as Apo B-100, Apo B-48, Apo A-I) são necessárias para a integridade estrutural e servem como ligantes ou co-factores para enzimas específicas.

Com base no princípio de que os lípidos têm baixa densidade, e as proteínas densidade mais elevada, foi possível separar por ultracentrifugação aqueles dois componentes e sistematizar quatro classes de partículas lipoproteicas por ordem decrescente de dimensões, e crescente de densidade (Figura 1):

  • As Quilomicron (Qm), cuja apoproteína é a Apo B-48, transportam triglicéridos do intestino para os tecidos periféricos, quer para consumo energético, quer para deposição nas células adiposas; não são aterogénicos.
  • As Lipoproteínas segregadas pelo fígado (de densidade muito baixa), o segundo transportador de triglicéridos com a sigla VLDL (do inglês, very low density lipoproteins contendo Apo B-100, C e E), são aterogénicas e precursoras das lipoproteínas de densidade baixa.
  • As Lipoproteínas de densidade baixa, o principal transportador de colesterol, com a sigla LDL (do inglês, low density lipoproteins) contendo somente Apo B) são aterogénicas.
  • As Lipoproteínas de densidade intermédia (intermediate density lipoproteins/IDL) derivam das VLDL.
  • As Lipoproteínas de densidade elevada, com a sigla HDL (do inglês, high density lipoproteins, contendo Apo A, exercem efeito protector no que respeita à formação do ateroma.

FIGURA 1. Separação de lipoproteínas por ultracentrifugação.

Acentua-se que:

  • As LDL constituem o principal transportador de colesterol;
  • As Qm e as VLDL transportam predominantemente triglicéridos; e
  • As HDL transportam predominantemente fosfolípidos;
  • A proporção de colesterol associado às HDL é superior à das VLDL e inferior à das LDL.

Uma referência especial merece a chamada lipoproteína (a), abreviadamente Lp(a), a qual partilha características com determinados factores de coagulação: possui elevado conteúdo em hidratos de carbono e integra duas apoproteínas: Apo B-100 e Apo(a), esta última muito semelhante ao plasminogénio.

Metabolismo e transporte das lipoproteínas

Existem dois órgãos com papel crucial na biossíntese e secreção das partículas lipoproteicas: o intestino e o fígado (Figura 2).

O sistema de transporte das lipoproteínas compreende três vias: endógena, exógena e de transporte reverso.

O primeiro passo na biossíntese do colesterol é a formação de 3-hidroxi-3-metilglutaril CoA (HMG-CoA) a partir de acetil-CoA; a HMG-CoA, por acção da HMG-CoA redutase leva à formação de mevalonato e, em passos seguintes, a isoprenóides activados e lanosterol, este último, o principal esteróide precursor de colesterol.

FIGURA 2. Vias metabólicas do colesterol. (consultar texto)

→ Pela via endógena, o colesterol e os triglicéridos, sintetizados no fígado (HDL e VLDL) e noutros tecidos, são transportados a outros territórios, quer para utilização como fonte energética, quer para formação de reservas ou depósitos.

As HDL captam o colesterol das células, esterificando-o, e as VLDL transportam os triglicéridos endógenos formados no hepatócito.

As partículas HDL encontram-se em diferentes subfracções designadas com numeração (por ex. HDL1, HDL 2, HDL 3), sendo geradas principalmente pelo metabolismo dos Qm e pela interacção com VLDL.

→ Pela via exógena, o colesterol e os triglicéridos absorvidos ao nível do intestino são transportados a outros tecidos, nomeadamente fígado, músculo e tecido adiposo. A mucosa intestinal sintetiza, imediatamente a seguir à ingestão de alimentos, os Qm a partir das gorduras ingeridas e VLDL, quer no período de digestão, quer nos respectivos intervalos (via exógena).

As Qm e as VLDL são formadas nos microssomas das células da mucosa duodenal e hepatócitos, respectivamente. Neste passo do metabolismo desempenha papel importante uma proteína microssómica de transferência de VLDL para o retículo endoplásmico.

A Apo C-II tem um papel importante na cisão das Qm e VLDL como co-factor da lipoproteína-lipase, ou glicoproteína ligada ao endotélio (ver adiante), a qual desdobra o triglicérido em glicerol e ácidos gordos, para ulterior metabolismo na célula. Os remanescentes das Qm são absorvidos pelo fígado (via receptor de Apo E) e metabolizados.

A VLDL evolui para IDL (intermediate density lipoprotein) e, após remoção de todos os lípidos, transforma-se finalmente em partículas LDL ricas em colesterol. Não sendo estas necessárias nos tecidos periféricos, são absorvidas novamente pelo fígado via receptor de LDL.

A LDL é encontrada em diferentes subfracções (LDL àLDL 6); LDL 6 é descrita como uma partícula pequena, densa e altamente aterogénica. As mesmas partículas LDL ligando-se, via Apo B-100, ao receptor de LDL, são captadas por endocitose e cindidas no lisossoma, principalmente através da acção da lipase ácida.

O colesterol, quando libertado, inibe a actividade da HMG-CoA sintetase e é armazenado via acil-CoA colesterol-aciltransferase (ACAT) nas células sob a forma de “gotículas lipídicas”.  

→ Pela via de transporte reverso o colesterol não esterificado é transportado dos tecidos extra-hepáticos, de novo, para o fígado com a participação das HDL, o que tem efeito vasoprotector.

Através da Apo A-I e Apo A-IV, as HDL activam a lecitina-colesterol-acil-transferase ou LCAT, induzindo a formação de ésteres de colesterol. Estes podem ser trocados por triglicéridos de outras lipoproteínas através da proteína de transferência CETP ou cholesteryl ester transfer protein.

Por este mecanismo, a maioria do colesterol contido nas HDL é metabolizada através da via das LDL.

O Quadro 1 sintetiza as principais funções das apoproteínas.

QUADRO 1 – Principais funções das apoproteínas.

LipoproteínaApolipoproteína (Apo)Função
Quilomícrons

A-I, A-IV, C-I, C-II, C-III, E, B-48

Transporte de triglicéridos exógenos, vitaminas solúveis em gordura e drogas
VLDLCI-III, E, B-100Transporte de triglicéridos endógenos
IDLC-II, E, B-100Produto de remoção de triglicéridos VLDL
LDLB-100Produto da remoção de triglicéridos IDL; transporte de colesterol para tecido extra-hepático; regulação da biossíntese de colesterol
HDL

A-I, A-II, A-IV, C-I, C-III, D, E

Principalmente modificação de outras lipoproteínas, transporte de colesterol para o fígado
Lipoproteína (a)B-100, Apo (a)Incerta, possivelmente para reparação vascular; factor de risco de aterosclerose

Receptores

Para melhor compreensão dos problemas clínicos decorrentes das anomalias hereditárias do metabolismo das lipoproteínas, torna-se útil sintetizar alguns aspectos relacionados com o papel dos receptores a nível ultra-estrutural.

O conceito de receptores para as lipoproteínas deve-se a Goldstein e Brown (Pémio Nobel) ao estudarem o mecanismo de transporte do colesterol dentro das células. Utilizando como modelo os fibroblastos em culturas, demonstraram que, na sua maioria, as LDL só se catabolizavam após fixação a receptores na membrana celular.

Posteriormente, verificou-se que, para lá destes receptores que reconhecem as apoproteínas B e E (receptores BE) e fixam as LDL, há no fígado receptores apenas para as apo E (receptores E). O número de receptores B e E é máximo no RN e diminui com a idade. Existem também receptores para as HDL.

Os receptores cuja estrutura é esquematizada na Figura 3 são glicoproteínas cujos aminoácidos estão distribuídos em 5 domínios. Os seus precursores são sintetizados nos ribossomas, migrando para o aparelho de Golgi; a síntese destes receptores é regulada por gene no cromossoma 19.

O receptor na membrana celular, aparecendo à superfície da membrana cerca de 45 minutos após a sua síntese, capta as LDL formando-se, entretanto, vesículas de endocitose revestidas por clatrina. Estas vesículas perdem rapidamente a clatrina e fundem-se com outras para formar grandes vesículas de contorno irregular, os endossomas ou receptossomas.

FIGURA 3. Representação esquemática da estrutura do receptor BE.

Quando o pH desce a 6,5 as LDL separam-se dos receptores, voltando o receptor à superfície (reciclagem dos receptores). Na fase seguinte as LDL são captadas pelos lisossomas, sendo as proteínas hidrolisadas em aminoácidos por acção de proteases, e os ésteres de colesterol em colesterol livre, por acção de esterases.

A captação do colesterol pelos receptores celulares tem por objectivo fornecer à membrana celular o colesterol de que ela necessita para a sua estabilidade. Compreende-se, assim, que o metabolismo do colesterol seja regulado para que seja fornecida à membrana uma quantidade necessária, mas não excessiva.

Assim, a captação do colesterol provoca:

  • Acções sobre a HMG-CoA redutase
    • repressão da síntese da enzima como se comprova pela diminuição do seu RNA-m,
    • aceleração do seu catabolismo,
    • inibição da sua actividade por inibição alostérica pelo colesterol em excesso;
  • Aumento da actividade de acil-CoA-colesterol aciltransferase (ACAT), enzima que esterifica o excesso de colesterol que ficará depositado no citoplasma como gotículas;
  • Repressão da síntese dos receptores.

As Figuras 4 e 5 sintetizam os mecanismos de captação das LDL e os mecanismos de regulação desencadeados pelo colesterol em excesso.

A actividade dos receptores é regulada por um conjunto de factores, cujos mecanismos de acção (alguns demonstrados apenas em estudos experimentais) poderão, em situações especiais, ser aplicados na prática clínica em várias estratégias de terapêutica das anomalias do metabolismo. Eis alguns exemplos mais relevantes:

  • A insulina aumenta o número de receptores nos fibroblastos em cultura;
  • A adrenalina diminui a fixação, internalização e degradação das LDL;
  • O cortisol diminui a internalização das LDL sem afectar o número de receptores;
  • O cálcio é necessário para a interacção LDL- receptores no fibroblasto, sendo a sua acção menos nítida no hepatócito; de referir que os bloqueantes dos canais do cálcio estimulam o catabolismo das LDL;
  • Inibidores da HMG-CoA redutase aumentam o número de receptores, do mesmo modo que as resinas catiónicas como a colestiramina e colestipol; certos fibratos, idem.

O órgão com maior número de receptores é o fígado (cerca de 75% relativamente aos restantes órgãos). A actividade específica mais elevada foi encontrada no córtex suprarrenal e corpo amarelo, o que se pode explicar pelo facto de o colesterol ser o precursor das hormonas esteróides.

Um aspecto particular diz respeito às células endoteliais cujos receptores podem captar as LDL, mas não promovendo a sua endocitose, exceptuando nos casos de lesão endotelial.

2. DISLIPOPROTEINÉMIAS

As dislipoproteinémias (de acordo com o que foi referido no início, consideradas como anomalias qualitativas ou quantitativas, por excesso ou por defeito, na repartição das lipoproteínas plasmáticas e/ou apoproteínas), quer primárias ou hereditárias, quer secundárias, têm tendência a prevalecer na idade adulta. Por isso, torna-se imperioso detectar tal patologia tão precocemente quanto possível.

Antes da abordagem das principais dislipoproteinémias primárias ou hereditárias, discriminam-se as principais entidades nosológicas que poderão constituir causas secundárias (Quadro 2).

Em suma, reforça-se a necessidade de atitude preventiva de actuação precoce em ambas as situações pelas implicações práticas importantes na perspectiva de redução do risco de aterogénese.

FIGURA 4. Consequências do excesso de colesterol celular.

FIGURA 5. Visão global do metabolismo dos receptores.

QUADRO 2 – Causas secundárias de dislipoproteinémia.

Hipercolesterolémia
Síndroma nefrótica, hipotiroidismo, colestase, isotretinoína, tiazidas, contraceptivos orais, beta-bloqueantes, imunossupressores, inibidores das proteases no tratamento das infecções por VIH, carbamazepina, progesterona, ciclosporina, etc..

Hipertrigliceridémia
Obesidade, diabetes mellitus tipo 2, álcool, insuficiência renal, sépsis, estresse, síndroma de Cushing, gravidez, hepatite, inibidores da protease, beta-bloqueantes, estrogénios, tiazidas, etc..

Diminuição de colesterol-HDL
Obesidade, hábitos de tabaco, diabetes mellitus tipo 2, má-nutrição, beta-bloqueantes, anabolisantes, etc..

Hipercolesterolémias

Hipercolesterolémia familiar (HF)

A hipercolesterolémia familiar constitui uma das dislipoproteinémias monogénicas primárias mais frequentes com transmissão hereditária de tipo autossómico co-dominante. A HF autossómica dominante é a dislipoproteinémia hereditária mais comum. Descrevem-se formas homozigóticas e heterozigóticas.

Os estudos moleculares identificaram cinco classes de mutações de genes afectando a capacidade de o colesterol-LDL se ligar ao receptor de LDL. Estão descritas mais de 900 mutações; algumas destas resultam em falência da síntese do receptor LDL (a que correspondem fenótipos mais graves – formas homozigóticas, com actividade de receptor LDL < 2%), enquanto outras resultam, quer em deficiência de ligação ou de libertação na interface lipoproteína-receptor, quer em número reduzido de receptores de LDL – formas heterozigóticas, com actividade de receptor de LDL ~ 25%.

A HF monogénica causada por mutações nos genes LDLR, APOB ou PCSK9 está associada a doença cardiovascular aterosclerótica de início precoce/ prematura e a morte antes dos 60 anos por doença cardiovascular.

Importa salientar, contudo, que a introdução das estatinas há cerca de três décadas (ver adiante) alterou significativamente a história natural da HF, conduzindo a redução da mobilidade e mortalidade.

Está indicado o rastreio da doença através de análise de sangue do cordão umbilical nos casos de antecedentes familiares de HF.

Forma homozigótica

Na forma homozigótica, com uma prevalência aproximada de 1/ 160.000 indivíduos, são herdados dois alelos mutantes de receptores de LDL resultando em valores de hipercolesterolémia, em regra, superior a 600 mg/dL. Os níveis de C-HDL estão ligeiramente diminuídos e os de triglicéridos ligeiramente elevados ou normais.

Nos casos de indivíduos de idade inferior a 18 anos com colesterolémia total > 270 mg/dL e/ou C-LDL ~200 mg/dL, existe probabilidade ~90% de HF; e, se existir familiar em 1º grau com a doença, o diagnóstico pode considerar-se muitíssimo provável.

As manifestações clínicas na forma homozigótica, muito precoces, traduzem-se em aterosclerose prematura atingindo a aorta e coronárias desde a infância; outros sinais são xantomatose precoce [essencialmente xantomas tuberosos (Figura 6), não observáveis na forma heterozigótica e que podem ser notórios desde os primeiros anos de vida] nos tendões (designadamente do tendão de Aquiles), nas regiões palmares e na pele da superfície de extensão dos antebraços, pálpebras (xantelasma), etc.. Pode estar presente o arco corneano (gerontoxon), habitualmente antes dos 10 anos.

Há antecedentes de doença cardiovascular familiar prematura, designadamente com coronariopatia e enfarte do miocárdio nos progenitores e familiares jovens, com risco de morte súbita.

A etiopatogénese da doença pode ser determinada pela análise das mutações, e a gravidade, pelo estudo da actividade dos receptores de LDL em linfócitos.

Como se pode depreender, o prognóstico é reservado sem tratamento, o que compromete a sobrevivência até à idade adulta.

FIGURA 6. Xantomas no contexto de hipercolesterolémia familiar homozigótica. (NIHDE)

Forma heterozigótica

A HF heterozigótica é uma das mais frequentes formas de doença aterosclerótica com coronariopatia associada a mutações de um único gene.

A sua prevalência, oscilando entre 1/250 a 1/300 indivíduos (mais de 10 milhões em todo o mundo), explica mais de metade dos óbitos em indivíduos no Ocidente.

Salienta-se que a HF heterozigótica é um dos defeitos genéticos mais frequentemente observados na idade pediárica; em comparação, a sua frequência é muito superior à doutras afecções do foro genético como a fibrose quística (1/2.500) e doença falciforme (1/700).

Trata-se duma situação de hereditariedade co-dominante, com uma penetrância da ordem de 50% nos familiares em 1º grau de indivíduos afectados, e de 25% nos familiares em 2º grau. Na sua etiopatogénese interagem factores genéticos e ambientais, o que explica a variabilidade de expressão fenotípica entre povos de diferentes regiões do globo, traduzida pelos valores do colesterol-LDL (valor médio na China ~170 mg/dL e, no Canadá, ~290 mg/dL).

Podem verificar-se arco corneano, xantomas tendinosos ou xantelasma, em geral a partir da adolescência. Os sintomas de doença coronária iniciam-se pelos 45 anos no sexo masculino, e uma década mais tarde no sexo feminino.

No desconhecimento de antecedentes familiares/ eventuais casos familiares não diagnosticados e, sem estudo de genética molecular prévio, o diagnóstico provável de HF heterozigótica poderá ser admitido com base nas seguintes noções epidemiológicas: com valores de colesterolémia total ~310 mg/dL, sem antecedentes familiares em 1º grau, existe probabilidade de 4% de HF heterozigótica; havendo antecedentes familiares em 1º grau de HF, a probabilidade será já de 95%.

Nota importante: para confirmação do diagnóstico de HF, os valores de colesterol-LDL devem ser determinados pelo menos duas vezes no intervalo de 3 meses.

Os aspectos fundamentais do tratamento das HF são abordados na parte final do capítulo, em alínea especial, integrando as entidades clínicas descritas.

Deficiência de Apo B-100 familiar

A deficiência de Apo B-100 familiar, com uma frequência aproximada de 1/700 nos indivíduos de cultura ocidental, é uma doença autossómica dominante, com características muito semelhantes às da HF heterozigótica, por vezes indistinguível desta.

Trata-se dum defeito estrutural em que a mutação de um gene leva a substituição de um aminoácido (glutamina por arginina) no codão 3500 da Apo B-100. De tal resulta redução da capacidade de ligação das LDL ao receptor, e elevação do colesterol-LDL, estando os triglicéridos em nível normal.

Somente foram descritas formas heterozigóticas a que correspondem situações clínicas de expressão semelhante à da HF heterozigótica: xantomas tendinosos e coronariopatia prematura.

Como na prática o perfil clínico e bioquímico, e atitude terapêutica semelhantes aos da HF heterozigótica, somente em estudos de investigação está indicada a destrinça por biologia molecular.

Sitosterolémia (ou fitosterolémia)

Esta dislipoproteinémia rara, autossómica recessiva, resulta de absorção excessiva de esteróis de plantas (sito ou fitosteróis) por mutações de genes responsáveis pelo respectivo sistema de transporte dependente de ATP (que limita a absorção no intestino delgado e promove a excreção biliar da parcela absorvida). O resultado é a elevação de colesterolémia, aparecimento de xantomas e aterosclerose prematura.

O diagnóstico faz-se pela determinação da colesterolémia e sitosterolémia, que são elevadas.

Hipercolesterolémia autossómica recessiva

Esta forma é muito rara, salientando-se a maior prevalência na ilha da Sardenha e no Líbano. A etiopatogénese relaciona-se com defeito do processo de internalização/ endocitose das LDL nos lisossomas, sem que a captação das LDL pelos receptores esteja comprometida; a consequência é a elevação sanguínea de LDL (níveis intermédios entre HF homo e heterozigótica).

A coronariopatia surge menos precocemente do que na HF homozigótica.

Hipercolesterolémia poligénica

A maioria dos casos de hipercolesterolémia (cerca de 85%) resulta de elevação primária de colesterol-LDL de causa poligénica, sendo que o papel de muitos genes com escassa influência no fenótipo é fortemente influenciado pelo ambiente (regime de sobrecarga alimentar).

Este tipo de hipercolesterolémia verifica-se em famílias que partilham estilos de vida comuns sem obedecerem ao padrão hereditário segundo o qual “ao defeito de um gene corresponde um defeito de lipoproteína”.

Hipercolesterolémia associada a hipertrigliceridémia

Compreende duas formas:

Hiperlipémia familiar combinada (HFC)

Trata-se duma situação AD – a mais frequente dislipoproteinémia surgindo na proporção ~1/200 – caracterizada por elevação moderada de colesterol-LDL e de triglicéridos, com diminuição do nível de colesterol-HDL. Embora não tenha sido descrito qualquer processo específico de aterogénese relacionado com esta forma clínica, em cerca de 20% dos indivíduos com doença coronária pelos 60 anos de idade verifica-se HFC.

O perfil clínico e bioquímico desta afecção pode traduzir-se do seguinte modo:

  • História familiar de doença cardíaca prematura;
  • C-LDL > percentil 90;
  • C-LDL e trigliceridémia > percentil 90;
  • Triglicéridos > percentil 90.

O diagnóstico de HFC implica que, em pelo menos dois familiares em 1º grau do caso a investigar, se verifique, no mínimo, 1 dos 3 parâmetros laboratoriais. Uma das características é a variação do fenótipo ao longo do tempo (dislipoproteinémia variável). Não surgem xantomas. A elevação de Apo B associada à detecção de pequenas partículas densas LDL suporta o diagnóstico.

Do quadro clínico da HFC em crianças e adultos faz parte a chamada síndroma metabólica que é sugerida pela verificação de adiposidade, hipertensão e hiperinsulinémia.

De acordo com o NCEP (National Cholesterol Education Program), a referida síndroma integra como componentes principais: obesidade abdominal, dislipidémia aterogénica, hipertensão arterial, resistência à insulina, com ou sem intolerância à glucose, evidência de inflamação vascular e hipercoagulabilidade. Estima-se que cerca de 30% dos indivíduos adultos com excesso de peso preenchem os critérios de diagnóstico de síndroma metabólica, incluindo 2/3 dos casos de HFC.

O mecanismo pelo qual a adiposidade visceral se associa a síndroma metabólica e a DM2 não está completamente esclarecido. Admite-se que a obesidade origina estresse ao nível do retículo endoplásmico, levando a supressão do receptor da insulina e resistência a esta.

Por outro lado, na HFC, a associação de hipertrigliceridémia a hipercolesterolémia confere risco aterogénico. Tal como foi referido a propósito da doença aterosclerótica, a acumulação de gordura intra-abdominal avaliada por RM (em investigação) constitui seguramente o marcador mais importante da adiposidade com risco aterogénico.

Disbetalipoproteinémia familiar (DBLF)/ Hiperlipoproteinémia tipo III

Esta doença rara, que surge com uma frequência ~1/10.000 indivíduos, é causada por mutações no gene da apo E; traduz-se por elevação de colesterol e triglicéridos com valor normal de HDL na sequência de exposição a factores ambientais tais como regime hipercalórico com elevado teor em gorduras e ingestão de álcool.

A expressão da doença é facilitada em presença de diabetes, obesidade, doença renal e hipotiroidismo.

Há uma acumulação de IDL evidenciada na electroforese pela existência de uma banda β e pré-β beta (broad beta). Recorda-se que os remanescentes são captados no fígado pelos receptores E e que o gene da Apo E polimórfica se expressa em 3 isoformas: Apo E3, Apo E2, e Apo E4; este último é o alelo “normal” presente na maioria da população.

Assim, as alterações moleculares da Apo E impedem a captação dos remanescentes. É o que se passa com a Apo E2 com uma capacidade de ligação ao receptor deficiente, ao contrário das Apo E3 e E4. Em cerca de 1% da população existe homozigotia para Apo E2/E2; a mutação mais comum é associada a DBLF, mas só se expressa a doença numa minoria de casos. Curiosamente, a homozigotia Apo E4/E4 predispõe para doença de Alzheimer.

Na adolescência e idade adulta, surgem xantomas tuberosos nos joelhos, cotovelos, nádegas, e coloração amarela nas pregas das palmas das mãos. Pela 4ª ou 5º década de vida surge quadro de doença aterosclerótica vascular periférica.

O diagnóstico é confirmado por electroforese – banda broad beta (ver atrás), discriminativa em 50% dos casos; e por determinação das VLDL por ultracentrifugação.

As ratio colesterol/ triglicéridos no soro < 3,0 e colesterol/ triglicéridos nas VLDL < 0,02 são indicações úteis, mas não conclusivas. A verificação do polimorfismo das Apo E constitui critério a favor da doença.

Hipertrigliceridémias 

Este tópico inclui diversas dislipoproteinémias de gravidade e frequência diversas.

Quilomicronémia familiar/ Hiperlipoproteinémia tipos I ou V

Trata-se duma situação muito rara, AR (frequência ~1/1 milhão, explicada por mutação de um gene, do que resulta depuração defeituosa das lipoproteínas contendo Apo B. A deficiência ou ausência da lipoproteína lipase (LPL), ou do seu cofactor apoC-II que facilita a lipólise pela LPL, origina: aumento de quilomicron (tipo I) ou; aumento de QM e de triglicéridos/VLDL (tipo V). Os níveis de C-HDL estão diminuídos.

A testemunhar o excesso de Qm por depuração defeituosa (no tipo I) está o aspecto do soro após 24 horas de repouso a +4ºC: sobrenadante leitoso ou cremoso num soro límpido (Figura 7). No tipo V, o aspecto do soro é diverso: sobrenadante cremoso devido aos Qm, e infranadante turvo devido às VLDL.

De salientar que a quilomicronémia causada por deficiência de LPL está associada a hipertrigliceridémia mais modesta do que a relacionada com ausência ou carência de Apo C-II.

Um dos quadros de apresentação clínica é o de dores abdominais recorrentes e de pancreatite aguda. Pode verificar-se hepatosplenomegália e xantomatose eruptiva com as localizações habituais já referidas a propósito doutras dislipoproteinémias. Não existe risco aterogénico.

FIGURA 7. Soro de criança com hiperlipoproteinémia do tipo I.

Hipertrigliceridémia familiar (HTGF)/ Hiperlipoproteinémia tipo IV

A HTGF é uma doença AD de etiologia desconhecida, ocorrendo com uma frequência ~1/500 indivíduos. Traduz-se por elevação dos triglicéridos (> percentil 90, em geral entre 500 e 1.000 mg/dL); pode ser acompanhada por elevação ligeira do colesterol total com C-HDL baixo. De acordo com a experiência de vários centros, somente em cerca de 20% dos casos as manifestações surgem na idade pediátrica; ao contrário da HFC, não parece ser significativamente aterogénica (não se verifica o desenvolvimento de xantomas, nomeadamente).

As suas causas não são uniformes, pelo que não se trata de um grupo homogéneo de dislipoproteinémias. Fundamentalmente, a etiopatogénese pode relacionar-se com:

  • Síntese aumentada de VLDL, devida provavelmente a uma resistência periférica à insulina, com hiperinsulinismo secundário; esta modalidade encontra-se associada a síndroma metabólica (ver atrás-HFC);
  • Diminuição da destruição das VLDL, provavelmente por carência em Apo C-II, ou pela existência de variantes desta apoproteína.

Para o diagnóstico torna-se essencial que haja, pelo menos, um familiar em 1º grau com hipertrigliceridémia; o diagnóstico diferencial faz-se com a HFC e com a DBLF.

Nota: em geral, os valores de trigliceridémia na hiperlipoproteinémia de tipo V são muito superiores (> 1.000 mg/dL) aos dos verificados na HTGF.

Deficiência de lipase hepática

Esta afecção, muito rara, AR, resultante de défice de lipase hepática (LH) traduz-se por elevação de colesterol e de triglicéridos no plasma, em geral associada a elevação de c-HDL.

Recorda-se, a propósito, que a LH hidrolisa os triglicéridos e fosfolípidos em VLDL remanescentes e IDL, impedindo a conversão em LDL. A confirmação diagnóstica consiste em medir a actividade da LH em plasma heparinizado.

Antes da análise doutras dislipoproteinémias não necessariamente hiperlipémicas ou até normolipémicas, na perspectiva do diagnóstico diferencial, importa para o clínico a lista das principais hiperlipidémias secundárias, não hereditárias, em que deve ser considerado igualmente risco aterogénico (ver atrás- Quadro 2).

Alterações do metabolismo das HDL

Hipoalfalipoproteinémia primária

Esta dislipoproteinémia, a mais comum alteração do metabolismo das HDL e muitas vezes ocorrendo segundo o modo de transmissão AD, pode surgir na ausência de história familiar.

Define-se pelo padrão biológico: colesterolémia-HDL baixa (< percentil 10 para o género e idade) associada a C-LDL e trigliceridémia normais.

A etiopatogénese relaciona-se com diminuição da síntese de Apo A-I e aumento do catabolismo de HDL. Desconhecendo-se, com os dados disponíveis, o papel da doença na aterogénese, impõe-se o diagnóstico diferencial com outras afecções, como deficiência de LCAT, doença de Tangier e síndroma metabólica.

Hiperalfalipoproteinémia familiar

Trata-se duma situação rara que diminui o risco de aterosclerose e de coronariopatia, e probabilidade de sobrevida aumentada. Os níveis de colesterol-HDL excedem 80 mg/dL.

Défice da proteína de transferência colesterol-éster

A etiopatogénese relaciona-se com deficiência da proteína de transferência colesterol-éster (CETP) por mutações no respectivo gene localizado no cromossoma 16Y21. Tal facto traduz-se fundamentalmente numa desregulação do processo de transporte do colesterol para o fígado e ulterior excreção pela bílis. Na forma homozigótica (mais frequente no Japão), os valores de C-HDL poderão ser > 150 mg/dL.

Deficiência familiar de Apo A-I

Surge como resultado de mutações no gene da Apo A-I, determinando valores baixos ou vestigiais de HDL. Como consequência surge um quadro de gravidade variável em função das referidas mutações, caracterizado na maioria dos casos, por aterosclerose prematura, xantomatose, opacidade corneana e, ocasionalmente, associação a amiloidose.

O perfil laboratorial inclui diminuição de C-HDL e de Apo A-I no plasma.

Doença de Tangier

É uma doença autossómica co-dominante em que os valores de C-HDL são inferiores a 5 mg/dL. A etiopatogénese relaciona-se com mutações no gene ABCA1 de uma proteína implicada na ligação do colesterol celular à Apo A-I. A consequência é a acumulação de colesterol livre no SER, traduzida clinicamente pelos seguintes sinais e sintomas: neuropatia periférica intermitente, hepatosplenomegália, hipertrofia amigdalina com coloração alaranjada por acumulação de colesterol nas células de Schwann.

Deficiência de lecitina-colesterol aciltransferase familiar (LCAT)/ Doença fish-eye

A etiopatogénese desta doença rara relaciona-se com mutações nos genes que expressam a LCAT com deficiência total ou parcial desta enzima. Tal interfere com o processo de esterificação do colesterol e impede a formação de partículas de HDL e promove catabolismo de Apo A-I. Clinicamente verifica-se opacificação corneana (dado isolado na forma clínica designada por doença eye fish, em que a deficiência é parcial), anemia hemolítica e insuficiência renal progressiva a partir da adolescência e adultícia. Admite-se que não é aterogénica.

Para confirmação diagnóstica, os exames laboratoriais evidenciam diminuição de c-HDL, de Apo A-I, aumento de triglicéridos e relação colesterol livre/ colesterol total > 0,7.

Hipocolesterolémias

As situações associadas a alterações do metabolismo do colesterol intracelular das lipoproteínas com Apo B acompanham-se de hipocolesterolémia.

Abetalipoproteinémia

Esta anomalia rara, AR, origina-se por mutações no gene que codifica uma proteína microssómica de transporte de triglicéridos para o retículo endoplásmico, a qual é deficiente; como consequência, há produção deficiente de lipoproteínas contendo Apo B, necessárias para a transferência de lípidos no intestino delgado para as Qm nascentes e, no fígado, para as VLDL.

As manifestações clínicas incluem má absorção de gorduras com diarreia, carência de vitamina E, hipocrescimento, e sinais neurológicos (degenerescência espinocelular, hiporreflexia, ataxia, espasticidade na idade adulta, retinite pigmentar). Muitos dos sinais são o resultado de má absorção de vitaminas lipossolúveis. Os sinais neurológicos implicam o diagnóstico diferencial com a ataxia de Friedreich.

O perfil laboratorial inclui: ausência de Qm, VLDL, LDL e Apo B, com valores baixos de colesterol e triglicéridos; e disfunção eritrocitária (acantocitose).

Hipobetalipoproteinémia familiar

Esta doença familiar autossómica co-dominante, relacionada com mutações no gene que codifica a síntese de Apo B-100, na forma homozigótica evidencia sintomatologia semelhante à da abetalipoproteinémia.

Distingue-se da abetalipoproteinémia pelo facto de os progenitores heterozigóticos nos casos da doença em epígrafe evidenciarem diminuição do colesterol-LDL, de triglicéridos e de Apo B.

Doença de Anderson

Esta doença, com fenótipo sobreponível aos da abetalipoproteinémia e hipobetalipoproteinémia homozigótica, deve-se à incapacidade de secreção de Apo B-48 no intestino delgado.

A não absorção de Qm origina esteatorreia e carência de vitaminas lipossolúveis. O perfil bioquímico evidencia valor sanguíneo normal de Apo B-100 como resultado da sua secreção normal pelo hepatócito.

Síndroma de Smith-Lemli-Opitz (SSLO)

A etiopatogénese desta síndroma rara (incidência oscilando entre 1/20.000 – 1/60.000 RN caucasianos) está relacionada com mutações no gene DHCR7, do que resulta deficiência da enzima microssómica DHCR7 (7-di-hidrocolesterol redutase), a qual se traduz em défice da síntese de colesterol na sua fase final.

Desconhece-se até que ponto a síntese deficitária de colesterol poderá contribuir para a patogénese de defeitos congénitos, embora se conheça o papel importante da mielina no neurodesenvolvimento.

Recorda-se que as manifestações clínicas da SSLO integram em mais de metade dos casos anomalias craniofaciais, esqueléticas, genitais e do desenvolvimento; ao nível dos órgãos internos, podem estar afectados o SNC (holoprosencefalia, agenésia do corpo caloso, etc.), o sistema cardiovascular (canal atrioventricular, etc.), o tracto urinário (hipoplasia ou aplasia renal, etc.), tubo digestivo (doença de Hirschprung, etc.), sistema respiratório (hipoplasia pulmonar, anomalia dos lobos), sistema endócrino (insuficiência suprarrenal, etc.) e sindactilia cutânea (2º – 3º dedos do pé > 97%).

Nos casos de colesterolémia inferior a 20 mg/dL, a sobrevivência é improvável. O diagnóstico definitivo pode ser levado a cabo através da identificação de precursores do colesterol através da técnica de cromatografia gasosa e da análise mutacional.

Alterações do metabolismo intracelular do colesterol

Recorda-se que os ácidos biliares, sintetizados no fígado a partir do colesterol, são essenciais para a absorção lipídica no intestino, regulam a síntese do colesterol hepático e são necessários para a produção adequada de bílis.

Xantomatose cerebrotendinosa

Esta doença AR pode manifestar-se no RN como icterícia colestática (hepatite autolimitada). Em geral surge sintomatologia no fim da adolescência: inicialmente insuficiência mental, seguindo-se cataratas e deterioração neurológica progressiva, diarreia e aparecimento de xantomas tendinosos pelos 20-40 casos.

Outro dado clínico é o aparecimento de aterosclerose prematura podendo levar à morte por enfarte do miocárdio.

Segundo alguns autores, incluída no capítulo sobre perturbações da síntese dos ácidos biliares por mutação de gene, a referida xantomatose resulta em défice da enzima esterol-27 hidroxilase, necessário para a síntese mitocondrial de ácidos biliares no fígado. O resultado é a acumulação de colestanol e colesterol, sobretudo no sistema nervoso.

O diagnóstico faz-se pela demonstração de colestanol (e, por vezes, colesterol) elevado no plasma, assim como de álcoois biliares específicos na urina, também elevados. A deficiência enzimática pode demonstrar-se em fibroblastos; em certas populações, a análise de ADN pode ser um método rápido de diagnóstico.

Doença de Wolman

De transmissão AR, deve-se à falta da lipase ácida lisossómica, com consequente acumulação de ésteres de colesterol nas células por falência de hidrólise (doença de armazenamento).

As manifestações clínicas incluem hepatosplenomegália, esteatorreia, hipocrescimento; a morte surge em geral antes do 1 ano. O prognóstico é muito reservado (fatal).

Doença de Niemann-Pick tipo C

Trata-se duma esfingolipidose (doença AR) caracterizada pela acumulação de colesterol e esfingomielina no SNC e SRE. É devida, não a deficiência enzimática do lisossoma ou do seu co-factor, mas a defeito do tráfico de lípidos (perturbação da saída do colesterol do lisossoma, com consequente depósito de esfingomielina).

O prognóstico é reservado, com morte durante a 2ª infância ou adolescência.

Actualmente, é possível o tratamento com miglustat evidenciando resultados promissores.

Nota: os tipos A e B desta doença dos organelos foram tratados no capítulo sobre doenças do metabolismo dos organelos, incluído nesta Parte do livro.

Hiperlipoproteinémia (a) [Lp(a)]

A lipoproteína (a) [Lp(a)] tem constituição lipídica muito semelhante à das LDL. Identificada em 1963, o seu metabolismo não está completamente esclarecido na actualidade.

Contém uma molécula de apolipoproteína B-100 (como todas as LDL) ligada à apoproteína (a). Ou seja, é um tipo de LDL em que há adição doutra molécula, a Apo(a), o que lhe confere diferentes características e funções. Por sua vez, a estrutura molecular da Apo(a) é muito semelhante à do plasminogénio, uma proteína fundamental no processo de fibrinólise. Por outro lado, é mais aterogénica do que a LDL pelas suas propriedades pró- inflamatórias e pró-trombogénicas.

O gene da Apo(a), designado por LPA, localiza-se no cromossoma 6 e apresenta vários polimorfismos que determinam a concentração de Lp(a) no sangue. É reconhecida pelos receptores para Apo B e Apo E (receptores BE).

Demonstrou-se que existe uma relação inversa entre o tamanho da Apo(a) e os níveis sanguíneos ou plasmáticos da Lp(a) avaliados por métodos imunoquímicos.

Admite-se que concentrações de Lp(a) superiores a 50 mg/dL sejam relacionados com factores hereditários e comportem risco elevado de doença cardiovascular aterosclerótica prematura nalgumas famílias. Trata-se dum factor de risco independente.

O Expert Panel on Integrated Guidelines for Cardiovascular Health and Risk Reduction in Children and Adolescents da AHA (USA) não recomenda a determinação dos níveis de Lp(a) como rotina nos rastreios em jovens, excepto nos casos de antecedentes AVC isquémico ou hemorrágico não explicável pelos factores de risco clássicos.

A niacina constitui o único tratamento susceptível de promover diminuição dos valores de Lp(a). Desconhece-se se a diminuição dos níveis elevados de Lp(a) contribui para prevenir futura ou recorrente doença cardiovascular.

Avaliação do risco e tratamento das hiperlipidémias

Avaliação do risco associado

Em todas as crianças e jovens com dislipidémia devem ser avaliados os níveis de risco (risco elevado e risco moderado) em função de determinados parâmetros associados, o que tem implicações nas estratégias de actuação:

  • Risco elevado: hipertensão arterial/HTA requerendo tratamento com fármacos (PA > percentil 99 + 5 mmHg), hábitos tabágicos, IMC > percentil 97, diabetes mellitus dos tipos 1 ou 2, doença renal crónica, status pós-transplante cardíaco e/ou pós-Kawasaki com aneurismas;
  • Risco moderado: HTA não requerendo tratamento com fármacos, IMC entre percentis 95 e 97, colesterol-HDL < 40 mg/dL, status pós-Kawasaki sem aneurismas, doença inflamatória crónica, infecção por VIH, síndroma nefrótica.

A intervenção terapêutica propriamente dita compreende medidas gerais (algumas já referidas a propósito da doença aterosclerótica) dirigidas predominantemente às situações acompanhadas de hipercolesterolémia) e farmacoterapia.

Medidas gerais

  • Modificação do estilo de vida e exercício físico mantidos, como prioridade
    Este procedimento (idealmente a aplicar em toda e qualquer criança ou jovem saudável, sem dislipidémia), deverá ter lugar, durante pelo menos 6 meses, antes de outras medidas a aplicar eventualmente.
  • Regime alimentar
    Fazendo parte do estilo de vida saudável e considerando o parâmetro percentagem do valor calórico total para a quantificação do suprimento alimentar, nas situações de dislipidémia, tal medida diz respeito:
    • à redução do suprimento em gorduras: inferior a 30% (sendo gorduras saturadas inferior a 7-10%, poli-insaturadas 10% e mono-insaturadas 10-15 %),
    • à ingestão de alimentos com teor de colesterol inferior a 200-300 mg/dia,
    • ao incremento da ingestão de hidratos de carbono (50-60%, aumentando o teor em hidratos de carbono complexos e reduzindo o teor de açúcares) e de proteínas (15-20%).

    A restrição dietética somente deverá ser posta em prática em crianças com mais de dois anos, exceptuando nos casos de HF homozigótica (e ponderada nas formas heterozigóticas).
    O regime deverá igualmente ter suprimento rico em fibras, frutos e vegetais.
    Relativamente ao suprimento em fibras solúveis, o mesmo deve ser calculado em gramas (gramas a administrar = idade em anos + 5 a 10 até à idade de 15 anos) até máximo de 25 gramas por dia). Com esta estratégia é possível a diminuição da colesterolémia em cerca de 10-15%.

  • Exames clínicos planeados
    A avaliação clínica global periódica, incluindo a do peso e altura para determinação do IMC (índice de massa corporal) é fundamental, designadamente nos casos associados a hipertrigliceridémia, com tendência para obesidade.

Farmacoterapia

De acordo com as recomendações gerais do NCEP/USA (National Cholesterol Education Program) o tratamento farmacológico das hiperlipémias está indicado nas crianças com idade de 10 anos ou superior, após período mínimo de 6 meses de regime alimentar dietético e de mudança para estilo de vida mais saudável sem terem sido atingidos os objectivos terapêuticos.

Assim, para além das medidas gerais – que deverão continuar – deve ser considerada a administração de fármacos nas seguintes circunstâncias:

  • manutenção do colesterol-LDL > 190 mg/dL;
  • manutenção do colesterol-LDL > 160 mg/dL associado a 1 ou mais factores de risco elevado e/ou a 2 ou mais factores de risco moderado;
  • manutenção do colesterol-LDL > 130 mg/dL associado a 2 ou mais factores de risco elevado; ou a 1 factor de risco elevado + 2 ou mais factores de risco moderado, ou evidência de coronariopatia.

Estas normas, que têm vigorado ao longo de mais de 20 anos com algumas modificações, baseiam-se na probabilidade estatística de o caso em questão poder corresponder a uma forma hereditária de dislipoproteinémia, tal como HF. A idade de 10 anos foi seleccionada por corresponder à idade em que se tem verificado, em estudos, a formação das estrias gordas nas artérias coronárias e aorta.

De acordo com os peritos do NCEP, está previsto que, em casos específicos, correspondendo a valores muito elevados de colesterol, a terapêutica com fármacos possa ser antecipada.

Assim, por exemplo, a partir dos 3-4 anos poderão utilizar-se resinas fixadoras de ácidos biliares, como a colestiramina (entre 4-32 gramas/dia) em duas tomas ou o colestipol (5-40 gramas/dia), associados ao ácido fólico (5 mg 1 vez por semana).

Com a utilização de fármacos, é possível redução dos valores da colesterolémia cerca de 30%.

Não está indicada a intervenção farmacológica nos casos de hipertrigliceridémia isolada, devendo ser ponderada se os valores de triglicéridos ultrapassarem > 1.000 mg/dL no período pós-prandial pelo risco de pancreatite.

Os principais fármacos a utilizar no contexto das dislipoproteinémias em geral distribuem-se pelos seguintes grupos (Quadro 3):

QUADRO 3 – Farmacoterapia nas dislipoproteinémias.

Estatinas (Inibidores da HMG-CoA redutase): diminuem a síntese do colesterol e de VLDL; indicadas perante elevação das LDL; dose iniciais entre 5 e 80 mg/dia
Resinas fixadoras de ácidos biliares (colestiramina e colestipol): estimulam a função dos receptores hepáticos de LDL e a excreção biliar; indicadas perante elevação de LDL; doses iniciais entre 4 e 40 mg/dia
Ácido nicotínico/Niacina: diminui a síntese das VLDL hepáticas; indicado perante elevação de TG e LDL; diminuição de Lp(a); doses iniciais – 100-2000 mg 3x/dia
Fibratos/Gemfibroxil: estimulam a LPL e diminuem as VLDL; indicados perante elevação de TG; doses iniciais de 600 mg 2x/dia
Óleos de peixe: diminuem a produção de VLDL; indicados perante elevação de TG; doses iniciais entre 3 e 10 g/dia
Inibidores da absorção do colesterol/Exetimibe: diminuem a absorção do colesterol; indicados perante elevação das LDL; doses iniciais de 10 mg/dia
Inibidores da PCSK9/Inclisiran: promovem maior captação de LDL pelos seus respectivos receptores nos hepatócitos, com redução dos níveis de LDL. (*)

(*) A PCSK9 é uma proteína que promove a degradação de receptores hepáticos de LDL, levando à hipercolesterolémia. Os inibidores dessa proteína (anticorpos monoclonais) aumentam a disponibilidade dos receptores de LDL. Quando a PCSK9 é inibida, ocorre uma maior captação de LDL pelos respectivos receptores presentes nos hepatócitos, com redução de níveis séricos e plasmáticos de LDL.

Medidas específicas

Para além das medidas gerais explanadas antes e a aplicar em todas as situações de dislipoproteinémias em geral, são especificadas outras medidas a aplicar nas doenças descritas.

Hipercolesterolémia familiar homozigótica
  • Aférese das LDL.
  • Inibição da HMG CoA redutase com estatinas, eventualmente associadas a ezetimibe como forma de bloqueio da absorção intestinal do colesterol ou a resinas fixadoras de ácidos biliares como a colestiramina ou o colestipol.
  • Transplante hepático, ponderando as complicações associadas.
  • Terapêutica génica.
Hipercolesterolémia familiar heterozigótica e deficiência de Apo B-100 familiar
  • Inibição da HMG CoA redutase com estatinas, eventualmente associadas a ezetimibe como forma de bloqueio da absorção intestinal do colesterol, ou a resinas fixadoras de ácidos biliares como a colestiramina ou o colestipol.
    Na idade pediátrica há estudos que demonstram maior eficácia da colestiramina e colestipol em comparação com ezetmibe.
  • Inibição da PCSK9 (pró-proteína convertase subtilisina/kexina tipo 9) como forma de promover uma maior captação de LDL pelos respectivos receptores presentes nos hepatócitos, com redução de níveis séricos e plasmáticos de LDL. Com os inibidores de PCSK9 (PCSK9i) consegue-se promover uma redução adicional podendo atingir 60% nos níveis de LDL em comparação com as estatinas.
Hipercolesterolémia autossómica recessiva
  • Inibição da HMG CoA redutase com estatinas, com resposta escassa.
Sitosterolémia
  • Ezetimibe ou resinas fixadoras de ácidos biliares (colestiramina ou colestipol)

Nota: as estatinas são ineficazes.

Hipercolesterolémia poligénica
  • Têm cabimento as medidas gerais, eficazes. A farmacoterapia é raramente necessária.
Hiperlipémia familiar combinada (HFC)
  • Nos casos de C-LDL > 160 mg/dL, deverá ser considerada a farmacoterapia.
Disbetalipoproteinémia familiar (DBLF)
  • Embora as medidas gerais sejam suficientemente eficazes, a alternativa é a associação a farmacoterapia (estatinas, ácido nicotínico e fibratos).
Quilomicronémia familiar
  • Reforçando-se a noção de as medidas gerais incluírem suplemento de vitaminas lipossolúveis, nesta doença estão indicados óleos de peixe ou TCM, estes últimos absorvidos directamente para o sistema venoso porta. Há que evitar administração hormonal (esteróides, estrogénios), a qual é agravante.
Hipertrigliceridémia familiar (HTGF)
  • Tal como foi referido em Medidas Gerais, apenas está indicada farmacoterapia (fibratos, nicotinamida, óleo de peixe) se os valores de TG ultrapassarem 1.000 mg/dL, pelo risco de pancreatite.
Alterações do metabolismo das HDL
  • O tratamento é sintomático, devendo evitar-se outros factores de risco de aterosclerose.
Hipocolesterolémias
  • Na abetalipoproteinémia está indicado o suplemento precoce com vitamina E (100 mg/kg/dia), assim como com outras vitaminas lipossolúveis A, D e K por via IM.
  • Na síndroma de Smith-Lemli-Opitz (SSLO), para além do tratamento sintomático geral, está indicada alimentação com elevado teor em colesterol (por ex. incluindo colesterol liofilizado e gema de ovo) e a administração de estatinas para prevenir a síntese de precursores tóxicos formados a montante do bloqueio enzimático; nesta circunstância, os resultados são contraditórios.
Alterações do metabolismo intracelular do colesterol
  • Na xantomatose cerebrotendinosa, o tratamento precoce com ácido chenodeoxicólico reduz os níveis de colesterol e previne o surgimento de sintomas.
Hiperlipoproteinémia (a)
  • Perante antecedentes de AVC na criança e jovem e elevação do teor em Lp(a) está indicada a niacina/ácido nicotínico (ver atrás).

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Definição e importância do problema

A medicina baseada na evidência (MBE) é uma metodologia científica de apoio à decisão clínica que nas últimas três décadas adquiriu importância crescente na prática médica.

Considerando as diversas definições existentes, aquela que parece reflectir melhor os princípios e aplicações da MBE, foi descrita por Sackett (2000) que a refere como “the integration of best research with clinical expertise and patient values”. Na prática, a MBE pode ser vista como um processo sistemático de revisão, análise e utilização da literatura científica na avaliação das opções e no apoio às tomadas de decisão clínica.

Tal paradigma surge como opção do processo de tomada de decisão clínica utilizado durante séculos, que assentava, essencialmente, no ensino/ treino intensivo, na experiência individual (perícia/ expertise) acumulada e na aprendizagem com os “mestres” – medicina baseada na prática.

As principais críticas a este processo de decisão clínica residiam na enorme variabilidade das práticas, algumas delas com pouca sustentação científica e, consequentemente, dos resultados clínicos e económicos bem como no facto de nem sempre essas práticas serem avaliadas.

O desenvolvimento tecnológico, paralelamente aos sucessivos avanços na área da biomedicina, vieram colocar enormes desafios à prática clínica, exigindo uma constante actualização. Paralelamente, o difícil equilíbrio entre gerir recursos escassos e dispendiosos face a necessidades quase ilimitadas impõem, por parte da Sociedade, a prestação de cuidados efectivos, em tempo útil, centrados no doente, acessíveis, equitativos e com a máxima eficiência e segurança.

Na base desses desafios está a necessidade de obter e sintetizar a informação e o conhecimento científicos, válidos e relevantes, que sirvam de suporte à actividade clínica diária.

A questão central é, então, saber como podem os clínicos ter acesso à inovação e ao desenvolvimento que vai ocorrendo a um ritmo muito acelerado e, simultaneamente, dominar essa informação e conhecimento de modo a introduzir eventuais mudanças na sua prática para obter o máximo benefício para os doentes e o equilíbrio atrás referido.

Aspectos históricos

Historicamente, não obstante a utilização de estudos controlados no apoio à decisão clínica, remontar a 1940 pode dizer-se que a MBE, como metodologia sistemática, surgiu na década de 1970. Entre os pioneiros destaca-se Archie Cochrane (epidemiologista britânico), o principal impulsionador das revisões sistemáticas e o defensor da utilização de ensaios clínicos aleatorizados (randomized controlled trials – RCT) como “padrão de ouro” para se obter a prova ou a evidência em medicina, sendo igualmente.*

Mais tarde, nas décadas de 1980 e 1990, foram dados contributos muito significativos para a afirmação, conceptualização e desenvolvimento da MBE, salientando-se os estudos de David Sackett, Gordon Guyatt e Brian Haynes da Universidade de McMaster (Toronto, Canadá), e de David Eddy e colaboradores da Universidade de Duke (Carolina do Norte, EUA).

Virtudes e controvérsias

A MBE, ao defender a utilização da melhor prova ou evidência disponível para apoiar a tomada de decisão, incorpora três vantagens essenciais para a melhoria da prática clínica:

  • Proporcionar uma forma mais robusta e objectiva de definir e manter consistentemente elevados padrões de qualidade e segurança;
  • Promover o processo de transferência dos resultados decorrentes de estudos científicos para a prática clínica (medicina de translação);
  • Possibilitar ganhos de eficiência (através da diminuição de desperdícios e da aplicação de boas práticas).

Apesar de as virtudes atrás descritas serem facilmente identificáveis e estarem robustamente fundamentadas (prós), existem algumas resistências e oposições (contras) a este paradigma.

No essencial, as críticas assentam em dois argumentos:

  • A MBE diminui, ou não contempla, a importância da experiência clínica e a opinião do médico enquanto perito;
  • As condições em que são feitos os estudos e ensaios clínicos que definem as melhores práticas não são as que existem na prática clínica do dia-a-dia.

* Na verdade, segundo os filólogos, a palavra “evidência“, já radicada na gíria médica, é uma tradução não totalmente correcta da palavra em língua inglesa evidence que, em português significa “prova”. Mais correctamente, a tradução para português de, por ex. there is evidence seria “está provado” ou “existem provas de que…” Este anglicismo deve-se ao grande impacte que a língua inglesa tem hoje em diversas áreas da ciência.

João M. Videira Amaral

Haynes e colaboradores (2002) desenvolveram um modelo (Figura 1) que pretende demonstrar o papel central que a perícia/ experiência do médico tem na tomada de decisão clínica baseada na evidência.

Não pretendendo ser exaustivos na análise do modelo, parece-nos interessante referir o factor-chave nele contido: a experiência clínica (incluindo as competências básicas da prática clínica e a experiência individual do médico) deve ter em consideração e integrar, na tomada de decisão, as preferências dos doentes, o contexto e as circunstâncias da situação clínica, bem como o que está provado com rigor científico (isto é, a melhor prova ou evidência disponível).

Cinco passos fundamentais da MBE

Objectivamente, a MBE inclui cinco passos essenciais (Quadro 1):

  • A formulação de questões clínicas que emergem da constatação do problema, ou seja, converter a necessidade de informação em questões objectivas;
  • Pesquisar evidência, isto é, procurar e recolher provas que nos permitam dar resposta às questões clínicas levantadas;
  • Avaliação da qualidade da evidência (validade e utilidade clínica);
  • Aplicação da evidência ao doente individual ou grupo de doentes – população;
  • Avaliação do desempenho da aplicação da evidência na prática clínica (adesão à utilização da evidência e desfecho ou impacte nos resultados – Outcomes).

O Quadro 1 sintetiza estas ideias.

FIGURA 1. Modelo de tomada de decisão clínica baseada na evidência (adaptado de Haynes et al. 2002).

Haynes e colaboradores (2002) desenvolveram um modelo (Figura 1) que pretende demonstrar o papel central que a perícia/ experiência do médico tem na tomada de decisão clínica baseada na evidência.

Não pretendendo ser exaustivos na análise do modelo, parece-nos interessante referir o factor-chave nele contido: a experiência clínica (incluindo as competências básicas da prática clínica e a experiência individual do médico) deve ter em consideração e integrar, na tomada de decisão, as preferências dos doentes, o contexto e as circunstâncias da situação clínica, bem como o que está provado com rigor científico (isto é, a melhor prova ou evidência disponível).

Cinco passos fundamentais da MBE

Objectivamente, a MBE inclui cinco passos essenciais (Quadro 1):

  • A formulação de questões clínicas que emergem da constatação do problema, ou seja, converter a necessidade de informação em questões objectivas;
  • Pesquisar evidência, isto é, procurar e recolher provas que nos permitam dar resposta às questões clínicas levantadas;
  • Avaliação da qualidade da evidência (validade e utilidade clínica);
  • Aplicação da evidência ao doente individual ou grupo de doentes – população;
  • Avaliação do desempenho da aplicação da evidência na prática clínica (adesão à utilização da evidência e desfecho ou impacte nos resultados – Outcomes).

O Quadro 1 sintetiza estas ideias.

QUADRO 1 – Os cinco passos essenciais na medicina baseada na evidência.

    1. Formular uma questão clínica
    2. Pesquisar a informação mais relevante
    3. Avaliar a qualidade da prova ou evidência
    4. Aplicar a informação obtida ao doente
    5. Avaliar os resultados/ desempenho

 

A formulação de questões clínicas constitui o ponto de partida e, muitas vezes, a sua principal dificuldade, na medida em que nem sempre é fácil traduzir um problema clínico numa questão objectiva. Tendo essa dificuldade em consideração, Sackett e colaboradores (2000) desenvolveram um esquema que integra quatro pontos fundamentais (tipificados no acrónimo em Inglês, PICO, patient ou problema; intervention; comparison; outcomes), os quais devem ser tidos em consideração aquando da formulação de questões clínicas.

Apresentamos, como exemplo, o caso de um rapaz de 4 anos de idade que recorre ao seu médico assistente por febre com 12 horas de evolução e otalgia à direita. Na observação verifica-se uma membrana timpânica hiperemiada com abaulamento da mesma, compatível com otite média aguda (OMA) à direita. Surge a questão sobre medicar ou não com antibiótico, tendo em conta o seu efeito na duração dos sintomas, a ocorrência de complicações, a possibilidade de se estar perante uma situação frequente, a otite serosa, bem como potenciais efeitos adversos associados à terapêutica (Quadro 2).

QUADRO 2 – Exemplo duma questão clínica utilizando o acrónimo PICO.

P (Problema/ doente) Criança de 4 anos com otite média aguda

I (Intervenção) Antibioticoterapia

C (Comparação) Não medicar com antibiótico

O (Outcome/ Resultado) Duração dos sintomas, ocorrência de complicações, persistência de otite serosa e efeitos adversos da terapêutica

 

A pesquisa da literatura existente nas diferentes fontes de informação bibliográficas em formato digital (por exemplo: Cochrane; Pubmed; Web of Science; EMBASE, etc. onde se podem encontrar diversos títulos de publicação periódicas de carácter científico, tais como Evidence–Based Medicine; ACP Journal Club; Evidence-Based Practice; Clinical Evidence; Acta Paediatrica; Current Pediatrics; International Journal of Evidence Based Healthcare; Evidence-Based Child Health – Cochrane Review Journal; Pediatrics; Journal of Pediatrics; Pediatrics in Review; Archives of Disease in Childhood; British Medical Journal; New England Journal of Medicine; Lancet; Science) constitui um passo decisivo, uma vez que será esta a base da análise que posteriormente será avaliada e seleccionada, e que fundamentará as decisões/ opções a tomar.

Após pesquisar a literatura podemos obter:

  • quer estudos primários, como por exemplo, estudos retrospectivos de caso-controlo, estudos prospectivos de coorte, ensaios clínicos aleatorizados e controlados;
  • quer estudos secundários – síntese dos primários – de que são exemplo as revisões sistemáticas e as meta-análises relevantes para a questão colocada.

 

A fase seguinte consiste na avaliação crítica [em termos de validade interna (consistência do estudo entre a pergunta de investigação, a metodologia utilizada e os resultados obtidos), de validade externa (capacidade de obter resultados semelhantes quando se replica o estudo noutro contexto)] e utilidade clínica da evidência (ou implicações clínicas do que foi provado cientificamente).

Para o processo de avaliação crítica da evidência é fundamental obter respostas a um conjunto de questões e regras pré-definidas (por exemplo, risco de viés; como foi feita a aleatorização; grau de ocultação; os sujeitos foram tratados de maneira idêntica nos diferentes grupos do estudo?).

Outro critério para avaliar a utilidade da evidência em relação à capacidade para responder à questão clínica inicial pode ser ilustrado, numa forma hierárquica, conforme se apresenta na Figura 2 (hierarquia do valor relativo dos estudos primários e secundários).

Quando se considera estar perante um conjunto de literatura válida e útil (após passar pelo crivo de avaliação crítica) é chegada a fase de decidir qual a evidência que pode ser aplicada/ utilizada para determinado doente em particular, ou para uma determinada população.

Tal decisão deve contemplar os valores e preferências do doente, bem como as circunstâncias presentes. Outro aspecto crucial a ter em consideração diz respeito à discussão que deve haver entre o médico e o doente e/ou seus familiares, sobre a efectividade e os riscos inerentes às opções válidas. Dessa forma, o doente torna-se actor participante (aquilo que alguns autores anglo-saxónicos denominam de “therapeutic alliance”) e tem a possibilidade de fazer escolhas informadas. Ainda nesta fase, de aplicação do que está provado (da evidência), é fundamental integrar as questões custo-efectividade e a disponibilidade e exequibilidade da opção escolhida.

FIGURA 2. Hierarquia da evidência (adaptado, Haynes, 2006).

Por último, e não menos importante, vem a fase de avaliação após aplicação da evidência na prática clínica. Tal avaliação deve ser realizada periodicamente (em intervalos de tempo razoáveis), e possibilitar a introdução de melhorias em qualquer das quatro fases antecedentes.

Um exemplo importante é a realização de reuniões de revisão de casuística e de reuniões sobre morbilidade e mortalidade. Tais acções têm por base um processo de auto-avaliação da prática clínica de forma reflexiva.

Paralelamente, a execução prática de um programa de auditorias, internas e/ou externas é, de facto, desejável, pois permite medir o grau de utilização da MBE na tomada de decisão clínica, bem como o seu contributo para a melhoria da qualidade e da segurança dos cuidados prestados. Outro aspecto incontornável, principalmente na actual conjuntura socioeconómica, é a necessidade e a pertinência de se proceder a estudos de avaliação económica que permitam avaliar, numa perspectiva de custo-benefício, a adopção de tal metodologia na prática clínica do dia-a-dia.

Síndroma da morte súbita do lactente e plagiocefalia, exemplos de estudo

As recomendações actuais a nível nacional e internacional são unânimes em defender o decúbito dorsal como posição para dormir nos lactentes, por forma a prevenir a entidade síndroma de morte súbita do lactente (SMSL). Dado tratar-se dum tipo de patologia pouco frequente numa população saudável, as recomendações foram essencialmente baseadas em estudos de “caso-controlo”.

Na segunda metade do século XX fora aconselhado o decúbito ventral, com base em argumentos fisiológicos e fisiopatológicos. Com efeito, até 1970 foram publicados os resultados de dois estudos revelando um risco superior de SMSL associado ao decúbito ventral; a partir de 1986 estudos realizados em vários países revelaram consistentemente resultados semelhantes e, em 1988, foram publicados na revista Lancet os resultados preliminares duma primeira revisão sistemática.

Seguiram-se entretanto campanhas de saúde pública (a iniciativa Back to Sleep a partir de 1990) e a substancial redução da incidência de novos casos de SMSL (~50%) em concomitância com a redução da prevalência do decúbito ventral, o que se considerou sucesso. Contudo, aplicando tal medida, por outro lado e simultaneamente observou-se um incremento exponencial (~600%) da plagiocefalia.

Novos estudos foram realizados perante esta realidade e, numa perspectiva preventiva deste problema crescente relacionado com a campanha Back to Sleep, a Academia Americana de Pediatria em 2000 lançou nova campanha designada Back to Sleep – Tummy Time to Play, passando a aconselhar durante o período em que o bebé está acordado, o decúbito ventral de 10-15 minutos, pelo menos 3 vezes por dia, sob estrita vigilância.

Pode, pois, concluir-se que a concomitância ou associação dos factos descritos constituem provas convincentes ou evidências (ou, segundo a gíria da MBE, “as melhores evidências” disponíveis): no primeiro contexto, traduzidas em redução de mortes potencialmente evitáveis; no segundo contexto, traduzidas em redução da prevalência de plagiocefalias.

A este propósito, aconselha-se a consulta dos capítulos sobre Discranias e Plagiocefalia, na Parte XXI.

Normas de orientação clínica e MBE

As normas de orientação clínica – NOC (guidelines) – constituem um conjunto de recomendações desenvolvidas de forma sistematizada para apoiar o médico e o doente na tomada de decisões acerca dos cuidados de saúde, em situações clínicas específicas.

A metodologia de elaboração das NOC obedece aos princípios gerais da medicina baseada na evidência, ou seja, assenta na interpretação e síntese dos estudos científicos publicados sobre a matéria em discussão.

Cada NOC deve propiciar, de forma explícita, toda a informação disponível sobre a estrutura da sua concepção, como por exemplo: título; responsáveis pela sua elaboração; fontes de financiamento; objectivos; intervenções/ práticas; fonte e métodos de selecção da evidência científica; metodologia e avaliação crítica da referida evidência; recomendações principais; análise de custos; benefícios e riscos potenciais; e as datas previstas para se proceder à revisão das recomendações.

A “força ou robustez das recomendações de uma NOC deve ter por base um conjunto de factores, salientando-se os seguintes:

  • A qualidade da evidência (prova científica) em que se baseiam;
  • O balanço entre os riscos e os benefícios;
  • A aplicação e disponibilidade no contexto e nas circunstâncias em causa; e
  • O impacte em termos de custo-benefício.

Considerando as diferentes abordagens quanto à avaliação da qualidade da evidência e à hierarquização da força de recomendação das NOC, o Grading of Recommendation, Assessment, Development and Evaluation (GRADE) é, provavelmente, a mais conhecida e utilizada na generalidade dos vários centros mundiais. O GRADE tem por base uma abordagem sistemática relativamente a cada um dos factores enumerados no parágrafo anterior.

A concluir, cabe destacar que a MBE tem como principal objectivo melhorar a qualidade (senso lato)* dos cuidados através da integração da melhor evidência disponível com a perícia/ experiência do médico e as preferências dos doentes.

Longe de retirar a “arte” à prática da medicina, conforme alguns críticos afirmam, a MBE realça e potencia a interface entre “a ciência e a arte” na prestação de cuidados de saúde.

*Nas dimensões definidas por Maxwell: efectividade, eficiência, segurança, aceitabilidade; equidade; relevância.l

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Importância do problema: Primum non nocere

Os cuidados médicos podem, só por si, ser causadores de lesão. A dimensão do problema ao nível do sistema de saúde tornou-se evidente a partir dos anos 90, com a publicação por Lucian Leape dos primeiros artigos sobre a frequência do erro médico e com o relatório “To err is human: Building a safer Health System” do Institute of Medicine (1999).

Este estudo mostrou que doentes hospitalizados nos EUA, na proporção aproximada de 3 a 4%, sofriam danos como resultado de cuidados médicos, com um número de mortes anuais superior a 44.000. Nos hospitais portugueses, um estudo piloto revelou que 11% dos doentes adultos hospitalizados sofreram uma lesão associada aos cuidados de saúde. Para um profissional de saúde é hoje impossível ignorar esta realidade ou ficar indiferente à sua relevância na prática clínica.

À medida que os cuidados de saúde se tornam mais abrangentes, mais invasivos e mais complexos tecnologicamente, a intervenção do médico está cada vez mais dependente da subespecialização, da actualização científica e do trabalho de equipa. Neste contexto, tem-se verificado que os novos sucessos terapêuticos se acompanham de um risco cada vez maior, inerente ao sistema, e de maior número de oportunidades de erro e de lesão.

Paralelamente, os doentes e as suas famílias, estando mais atentos ao processo diagnóstico e terapêutico, tornam-se cada vez mais exigentes na avaliação dos resultados. E o grupo etário pediátrico está na linha da frente: quando consideramos os factores de risco para a ocorrência de incidentes (Quadro 1), verifica-se que a frequência de incidentes relacionados com a medicação em crianças e jovens é cerca de 3 vezes superior à dos adultos.

QUADRO 1 – Características de população pediátrica que a tornam mais susceptível à ocorrência de incidentes relacionados com os cuidados de saúde.

Dependência de um cuidador ou familiar para os cuidados habituais de sobrevivência (alimentação, locomoção, etc.) e para os cuidados médicos.

Comunicação difícil ou limitada pela idade e grau de desenvolvimento, com necessidade de interlocutores para a compreensão da história clínica, da doença e do plano terapêutico.

Anatomia e fisiologia imaturas, com desenvolvimento físico e cognitivo em mudança permanente limitando uma abordagem unificada a toda a pediatria.

Necessidade de equipamento ajustado à idade e necessidade de cálculos na prescrição e administração de medicação.

Epidemiologia diferente em relação à população adulta, com mais episódios de doença aguda e menos doença crónica.

 

A revisão de processos clínicos num hospital pediátrico mostrou que 15% das crianças hospitalizadas são vítimas de um evento adverso, ou seja, sofrem uma lesão relacionada com os procedimentos a que são submetidos. Muitos destes incidentes são considerados susceptíveis de prevenção.

A lesão originada pelos cuidados médicos é muitas vezes invisível para o doente e também para o próprio profissional, o qual é tentado a considerá-la inevitável ou pouco frequente.

O primeiro passo para a execução de práticas mais seguras na rotina é, por isso, garantir a maior visibilidade do erro e das suas implicações aos mais variados níveis (diagnóstico, medicação, utilização de equipamento, procedimentos, etc.).

Assim, recai sobre os pediatras grande responsabilidade, os quais deverão ser os principais promotores da segurança do doente.

Os incidentes relacionados com os cuidados de saúde na idade pediátrica

Como se definem

Para uniformizar os conceitos de incidente, de risco de evento adverso, de erro, de segurança e doutros termos relacionados com a qualidade dos cuidados de saúde, foi elaborada pela OMS em 2009 uma taxonomia internacional, recentemente adoptada pela Direcção Geral da Saúde (Quadro 2).

QUADRO 2 – Definição de conceitos em Segurança do doente.*

*Estrutura Conceptual da Classificação Internacional sobre Segurança do Doente, DGS 2011.
Segurança do Doente é a redução do risco de danos desnecessários relacionados com os cuidados de saúde, para um mínimo aceitável. Um mínimo aceitável refere-se à noção colectiva em face do conhecimento actual, recursos disponíveis e no contexto em que os cuidados foram prestados em oposição ao risco do não tratamento ou de outro tratamento alternativo.
Risco: a probabilidade de ocorrência de um incidente.
Dano associado ao Cuidado de Saúde é o dano resultante ou associado a planos ou acções tomadas durante a prestação de cuidados de saúde, e não de uma doença ou lesão subjacente.
Incidente de Segurança do Doente é um evento ou circunstância que poderia resultar, ou resultou, em dano desnecessário para o doente. Os incidentes surgem quer de actos intencionais quer de actos não intencionais.
Erro é a falha na execução de uma acção planeada de acordo com o desejado ou o desenvolvimento incorrecto de um plano. Os erros podem manifestar-se por prática da acção errada (comissão) ou por não se conseguir praticar a acção certa (omissão), quer seja na fase de planeamento, quer na fase de execução.
Ocorrência comunicável é uma situação com potencial significativo para causar dano, mas em que não ocorreu nenhum incidente.
Quase evento (near-miss) é um incidente que não alcançou o doente.
Evento sem danos é um incidente em que um evento chegou ao doente.
Incidente com danos (evento adverso) é um incidente que resulta em danos para o doente.

São frequentes?

Os incidentes relacionados com os cuidados pediátricos foram revistos por vários investigadores utilizando metodologias diferentes.

Diversos estudos adaptaram à Pediatria o método dos “triggers”, ou seja, a revisão dos processos clínicos dos doentes hospitalizados triados através da detecção de situações clínicas que podem fazer suspeitar de um incidente (ex: hipo ou hiperglicémia, hipo ou hipernatrémia, necessidade de antagonista de heparina ou de anticonvulsante).

Este método tem sido considerado o padrão para a determinação da frequência da lesão relacionada com os incidentes. A rede neonatal de Vermont Oxford analisando 1.230 relatos voluntários de incidentes em 54 unidades de cuidados intensivos neonatais, obteve os seguintes resultados:

  • 47% relacionados com a medicação;
  • 11% com erros de identificação; e
  • 7% com erro ou atraso no diagnóstico.

Em 10.778 prescrições pediátricas, o estudo de Kaushal et al detectou: 616 erros de medicação (5,7% das prescrições), dos quais 1% causaram lesão.

Num período de 1 ano, a National Patient Safety Agency no Reino Unido recebeu 910.089 relatos de incidentes dos quais 5% se relacionavam com os cuidados pediátricos e 2% com os cuidados a recém-nascidos.

Dos 339 diários clínicos pediátricos analisados por Carrol et al, 27% tinham registos errados referentes à medicação.

Os cuidados prestados em regime ambulatório têm sido menos estudados, não escapando contudo ao erro: de acordo com o estudo “Learning from errors in ambulatory pediatrics” analisando 147 relatos de erros médicos com origem em 14 consultórios, verificou-se que 37% eram relacionados com o tratamento, 22% com a identificação, 15% com as imunizações e 13% com exames diagnósticos.

Num serviço de urgência pediátrico canadiano foram verificadas as seguintes ocorrências: 100 erros de prescrição e 39 erros de administração de medicação por cada 1.000 doentes admitidos.

No Hospital de Dona Estefânia, o hospital pediátrico português com maior volume de doentes, foram relatados 3.418 incidentes relacionados com os cuidados de saúde entre 2002 e 2010 (8 anos), dos quais 428 (12,5%) foram relacionados com a medicação, 479 (14%) com o equipamento e 214 (6,3%) com a realização de procedimentos. 

Entre Janeiro de 2010 e Outubro de 2020, foram relatados 4.659 incidentes de segurança do doente, beneficiando já de uma plataforma electrónica de registo voluntário e confidencial. O padrão-tipo de incidentes relatados é semelhante ao dos anos anteriores, com predomínio de incidentes relacionados com os dispositivos e equipamentos (25,9%), medicação e fluidos intravenosos (16,9%), segurança geral (7,5%), dieta e alimentação (7%), comportamento (6,6%) e gestão do percurso do doente (6,5%).

Neste último período registaram-se também 210 incidentes relacionados com a informática. Os incidentes que se associaram com maior frequência a lesão do doente (evento adverso) foram as complicações cirúrgicas, as infecções associadas aos cuidados de saúde e os incidentes relacionados com a medicação.

Porque é que acontecem?

Embora uma acção ou omissão particular, um erro por desconhecimento do procedimento correcto, ou ainda um lapso momentâneo possam estar na origem imediata de um incidente (Quadro 3), a análise mais cuidada da situação revela invariavelmente uma sucessão prévia de pequenos desvios das práticas de segurança, influenciados pelo ambiente de trabalho.

QUADRO 3 – Alguns exemplos de eventos adversos em Pediatria.

Base de dados da Gestão de Risco do CHLC – HDE, Lisboa.
Lactente com suspeita de oclusão intestinal enviado para o bloco operatório sem observação prévia do cirurgião sénior, verificando-se a não indicação operatória quando o doente já estava ventilado e sedado na mesa operatória.
Erro na marcação na bomba infusora do ritmo de soro de correcção com cloreto de sódio (9 ml/hora em vez de 20 ml/hora) num recém-nascido com desidratação grave hiponatrémica, causando perfusão de dose infraterapêutica durante 12 horas.
Desconexão de cateter venoso umbilical, com consequente perda de sangue e necessidade de transfusão de concentrado eritrocitário e plaquetas.
Extubação acidental de criança ventilada e sedada durante a realização de radiografia do tórax originando bradicárdia e hipoxémia, sendo necessária ventilação manual com máscara e reentubação imediata.

 

Nos cuidados aos doentes no serviço de urgência pediátrico podem, por exemplo, ser factores contributivos para a ocorrência de incidentes: a incorrecta identificação dos doentes, a falta de experiência pediátrica do pessoal, o erro de cálculo nas doses de medicamentos, o défice de comunicação entre os profissionais que enviam e os que recebem o doente, ou entre os profissionais e os familiares, o diagnóstico errado por informação incompleta ou interrupções durante a avaliação do doente e a descoordenação por falta de treino em trabalho de equipa.

A cultura de segurança na prática clínica

A cultura de segurança ideal apoia-se em 4 elementos chave: os relatos de incidente, a justiça, a flexibilidade e a aprendizagem.

O relato voluntário dos incidentes detectados na prática clínica abre uma janela diagnóstica para as falhas do sistema. Para ultrapassar a habitual relutância dos profissionais em relatar é fundamental a compreensão, por parte da organização, do valor do relato como uma oportunidade para aprender e melhorar o sistema e não como factor de culpabilização.

A participação de enfermeiros, técnicos e médicos no sistema de relato ajuda a quebrar barreiras interprofissionais e a recolocar o interesse do doente (neste caso a prevenção da lesão) no centro dos cuidados. Sem desresponsabilizar os profissionais pelas quebras intencionais na segurança dos cuidados, uma cultura de justiça encoraja e valoriza a identificação das situações de risco, separando a sua análise e correcção da função disciplinar da instituição.

Uma cultura flexível favorece o trabalho de equipa disciplinado e a aquisição de competências técnicas em detrimento da hierarquia rígida ou do individualismo.

Numa organização de cuidados de saúde, todos os pormenores devem estar orientados para o doente. Em clínica pediátrica, este aspecto é particularmente importante: desde o treino dos vários profissionais no tratamento de crianças até à adaptação das instalações e dos equipamentos à dimensão infantil e à necessidade da presença permanente dos pais.

A flexibilidade também se traduz na incorporação da informação gerada pelos relatos de incidentes, avaliações de risco e auditorias na gestão diária da organização. São exemplos no Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Central (CHULC):

  • A substituição rápida de equipamento com defeito detectado em relatos de incidente (sistemas de medição de diurese com tubos muito rígidos impedindo a clampagem, seringas mal calibradas que se soltam dos prolongamentos, agulhas de punção que se partem facilmente, prolongamentos de soro que não permitem perfusão com ritmos baixos, compressas cujos folhetos se separam);
  • A elaboração de procedimentos para actividades onde se verifique grande variabilidade (administração de terapêutica pré-anestésica, antibioticoterapia pré- e intraoperatória, actuação na dor abdominal aguda pediátrica, organização do processo clínico); e
  • A formação profissional em áreas transversais a toda a organização (controlo de infecção, reanimação pediátrica, prevenção do erro na via utilizada para o medicamento, segurança das instalações, etc.).

Uma cultura de aprendizagem utiliza a informação obtida pelos vários instrumentos de gestão de risco para implementar planos de acção correctivos ou preventivos da lesão do doente (Quadro 4).

QUADRO 4 – Análise de incidente e plano de acção.

*Causa raiz: a causa original da falha ou falta de eficiência de um processo; isto é, a razão fundamental para a ocorrência de um evento.
Base de dados da Gestão de Risco do CHLC – HDE, Lisboa.

Incidente
Lactente internado com alimentação parentérica exclusiva através de cateter venoso central de longa duração. Corte acidental do cateter pelo pai do lactente ao tentar remover com bisturi o adesivo que segurava uma luva de protecção colocada na zona de conexão do cateter ao sistema de soro (utilizada durante o banho do lactente).
Consequências para o doente
Necessidade de colocação cirúrgica de novo acesso central, perda de capital venoso (necessidade de laqueação de veia jugular).
Causa raiz*
Manipulação do cateter com técnica errada (utilização de bisturi).
Factores contributivos
Falta de formação do pai na manipulação de cateteres, excesso de confiança, presença de bisturis nos quartos, utilização pelos profissionais de procedimento inapropriado (luva e adesivo) para a protecção do cateter.
Plano de acção
Remoção dos cortantes dos quartos; plano de formação faseado dos cuidadores na manipulação dos cateteres com registo escrito do ensino e aprendizagem; não utilização de luva e adesivo para protecção do cateter.

A sistematização da análise e correcção dos incidentes com maior gravidade utilizando, por exemplo, o Protocolo de Londres, assim como a comunicação “em anonimato” dos resultados da investigação permitem criar uma memória organizacional susceptível de previnir ocorrências semelhantes no futuro.

As áreas que têm sido alvo de mais atenção dizem respeito a:

    • segurança do circuito de medicação, desde a prescrição à administração;
    • controlo de infecção hospitalar;
    • reconhecimento precoce da deterioração clínica do doente;
    • actuação rápida na paragem cardiorrespiratória;
    • comunicação eficaz da informação clínica;
    • prevenção das complicações cirúrgicas (compressas retidas, lado errado); e
    • identificação correcta dos doentes.


As medidas gerais sugeridas para cumprir estes objectivos são a simplificação de processos, a diminuição da variabilidade com o uso de protocolos e listas de verificação, a melhoria da comunicação e o treino de simulação e trabalho de equipa (Quadro 5).

QUADRO 5 – Cinco sugestões para melhorar a segurança do doente pediátrico.

1. Seguir protocolos escritos de segurança
2. Falar quando há dúvidas
3. Comunicar com clareza e precisão
4. Não desleixar o trabalho e impedir que outros o façam
5. Relatar e analisar os incidentes

E o doente? Aspectos da comunicação na relação médico-doente

Um estudo da Healthcare Commission (no Reino Unido) analisou o serviço prestado às crianças nos hospitais e detectou que apenas 24% das enfermeiras e 7 a 9% dos médicos tinham recebido algum treino na comunicação com crianças.

Segundo o referido estudo, e de acordo com os pais das crianças, os profissionais de saúde não dão grande importância à informação esclarecida sobre o estado clínico dos pacientes familiares, designadamente no contexto de deterioração do estado clínico ou do surgimento de novos sintomas.

Muitos estudos têm avaliado a participação das famílias e dos próprios doentes na promoção da segurança nos seus cuidados. Alguns hospitais (incluindo o HDE) sugerem sistematicamente ao doente e à sua família a lavagem das mãos, a vigilância para prevenção de quedas (grades das camas levantadas), dão conhecimento pormenorizado da medicação e dos procedimentos programados, alertam para situações de risco e esclarecem sobre a probabilidade de erros detectados durante o internamento.

Nesta perspectiva, os doentes que foram vítimas de um incidente que se tenha traduzido em lesão esperam uma comunicação honesta e aberta desse facto por parte dos profissionais implicados. Esta é uma “boa prática” reconhecida, mas infelizmente pouco praticada.

A dificuldade desta comunicação, sendo evidente, requer coragem, preparação e suporte por parte da instituição. Neste processo, não pode ficar esquecido o plano de cuidados ao doente lesado e o apoio ao profissional implicado.

Como saber e fazer mais

A segurança (em prol da qualidade dos cuidados prestados) implica um esforço conjunto dos profissionais, da administração e dos doentes e famílias, realçando-se a importância da participação dos pais nos cuidados pediátricos.

Em suma, todos os profissionais, particularmente os médicos, com o dever ético de investir na formação pós-graduada e continuada, devem incluir o treino da comunicação, do trabalho de equipa e da prevenção do erro no seu plano de formação em serviço.

Nesta perspectiva será de grande utilidade utilizar a experiência e as estratégias de diversos organismos internacionais devotados à melhoria da segurança e qualidade dos serviços assistenciais na idade pediátrica, tais como: National Patient Safety Agency, World Alliance for Patient Safety, Institute for Healthcare Improvement, Joint Commission, Agency for Healthcare Research and Quality.

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Definição e importância do problema

Perante a complexidade de determinadas patologias, os clínicos confrontam-se frequentemente com certas limitações quanto à sensibilidade e especificidade dos métodos laboratoriais clássicos utilizados para o diagnóstico. Por outro lado, em tais circunstâncias, segundo a experiência de investigadores, os referidos métodos são marcadores tardios da lesão de órgão.

No final do século XX, após a sequenciação do genoma humano, foram desenvolvidas novas metodologias – cuja designação termina com o sufixo “ómica” – representando a chamada Biologia dos sistemas. Com tal modalidade, torna-se possível a identificação e quantificação em simultâneo, de número significativo de metabólitos celulares (biomarcadores).

Trata-se, pois, duma nova área da ciência (Ciência das ómicas) em franca expansão, com o propósito de se proceder ao estudo integrado das moléculas que compõem um organismo.

As “ómicas abrangem áreas ou níveis de complexidade diversa mas interdependente, tais como: – a genómica e a transcriptómica, relacionadas respectivamente com os genes (ADN) e a sua expressão (ARN); – a proteómica, relacionada com as proteínas; e a metabolómica, área emergente da bioquímica analítica que identifica e quantifica os produtos intermédios ou finais das vias metabólicas (metabólitos, moléculas de baixo peso molecular). Uma vez que os metabólitos representam a expressão do genoma, transcriptoma e proteoma, os mesmos poderão reflectir o fenótipo de um organismo ou determinadas patologias em tempo real.

A Epigenética – interface entre a genética e os factores ambientais – estudando as modificações do genoma que podem ser transmitidas hereditariamente (alterações moleculares, designadamente metilação ou modificação das histonas, sem alteração da sequência dos nucleótidos do ADN) veio salientar a importância da regulação metabólica do ADN, regulação que pode ser avaliada e monitorizada precisamente através da metabolómica.

Através da metabonómica, variante da metabolómica, procede-se à avaliação em tempo real de determinado perfil metabólico em resposta a determinados estímulos como fármacos, nutrientes, exposição ambiental, etc..

No âmbito da comunidade científica, é consensual que a metabolómica é actualmente, a área das “ómicas” com maior utilidade na prática clínica pediátrica no que respeita especificamente à descoberta de biomarcadores, ao diagnóstico, prognóstico, e à avaliação dos efeitos de fármacos.

O objectivo deste capítulo é uma abordagem sucinta dos principais aspectos da metabolómica na perspectiva da aplicação à clínica pediátrica.

Aspectos metodológicos e limitações

Os vários aspectos da metodologia do estudo metabolómico estão resumidos no fluxograma que integra a Figura 1.

FIGURA 1. O processo da metodologia nos estudos metabolómicos (adaptado de MH Hanna & PD Brophy, 2015).

Salienta-se que é fundamental:

I – a correcta execução sequencial destes “passos” para evitar resultados enviezados;

II – garantir a validação correcta dos mesmos para evitar conclusões erradas.

As análises metabolómicas podem aplicar-se a qualquer tipo de amostras de produtos biológicos (urina, plasma, soro, sangue do cordão umbilical, saliva, ar exalado, fezes, líquido sinovial, tecidos em biópsias, etc.).

A urina é o fluido que mais frequentemente tem sido utilizado, com diversas vantagens, designadamente: – método de colheita não invasivo; – possibilidade de obter informação metabólica mais alargada, holística. Destas características decorre o seu especial interesse em Pediatria e Neonatologia.

A metabolómica utiliza actualmente tecnologias analíticas de elevada sensibilidade e especificidade como a cromatografia gasosa (GC) ou líquida (LC) associada a espectrometria de massa (GC-MS ou LC-MS), e a espectroscopia de ressonância magnética (NMR).

As plataformas mais frequentemente utilizadas em metabolómica apenas identificam espectros de moléculas cuja separação foi obtida com base na sua carga/ massa (espectrometria de massa, MS) ou nas propriedades magnéticas de átomos como 1H ou 13C (NMR).

A identificação dos metabólitos pode ser feita posteriormente através da utilização de bases de dados, como por exemplo a Human Metaboloma Database Metabolite, que associa espectros de MS e de NMR a metabólitos específicos e a vias metabólicas. Estas bases de dados incluem também referências a concentrações dos metabólitos em diferentes fluidos biológicos.

Os resultados analíticos (perfis de metabólitos) são submetidos a complexa análise estatística multivariada, sendo que o número de metabólitos submetidos a estudo pode ultrapassar várias dezenas ou centenas.

O conjunto dos vários metabólitos identificados (combinados e integrados num algoritmo único, interpretado de forma unificada), integra as chamadas “assinaturas”, na gíria dos investigadores.

As “assinaturas” são assim designadas por se assemelharem às vulgares assinaturas, reconhecíveis apenas no seu todo e por poderem contribuir para uma caracterização (metabólica) mais personalizada de cada indivíduo.

As mesmas podem ser comparadas a um código de barras (cada barra, cada metabólito): no seu conjunto é fornecida informação relevante, conquanto cada barra, como peça única, possa não ter significado.

Limitações

Apesar de se tratar duma área do conhecimento muito promissora, na fase actual verificam-se ainda algumas limitações relacionadas:

  • Com as características da tecnologia (equipamentos muito sofisticados e muito caros);
  • Com os recursos humanos (ainda escassos, exigindo-se elevado grau de diferenciação);
  • Ausência de definição dos valores de referência nalgumas áreas, entre o normal e patológico, o que constitui limitação acrescida no caso do organismo em idade pediátrica, caracterizado por variações dos metabolomas com o tempo, face ao crescimento e desenvolvimento; e
  • Falta de estandardização.

Áreas de investigação e aplicações práticas

No quadro 1 são enumeradas as áreas em que a investigação em metabolómica tem sido mais activa.

QUADRO 1. Áreas de investigação metabolómica em Perinatologia e Pediatria.

Medicina FetalRestrição do crescimento
Exposição a agentes infecciosos
Idade gestacional
Peso de nascimento
Prematuridade

Pediatria Neonatal – Neonatologia

Asfixia perinatal
Doenças hereditárias do metabolismo
Fibrose quística
Nutrição

Pediatria Geral

Agressividade
Anorexia nervosa
Asma
Neuro-psicopatias/Autismo
Hiperactividade e défice de atenção
Diabetes
Displasia broncopulmonar
Doença celíaca
Doença inflamatória intestinal
Enterocolite necrosante
Espondilite anquilosante
Fibrose quística
Nefro-uropatias
Defeitos congénitos cardíacos
Microbioma intestinal
Subnutrição
Obesidade e excesso de peso
Obstipação
Oncologia
Sepsis
Susceptibilidade a infecções

 

Citam-se a seguir alguns exemplos concretos de investigação em metabolómica, com aplicações práticas, designadamente quanto a decisões clínicas.

→ Análises em amostras de sangue do cordão umbilical:

  • Diferenças no perfil de aminoácidos e de outros metabólitos entre recém-nascidos (RN) com peso adequado para a idade gestacional e com restrição do crescimento intrauterino; entre RN de baixo peso e de peso normal; e entre RN pré-termo e de termo;
  • Diferenças entre gémeos monocoriónicos e bicoriónicos;
  • Diferenças entre RN com e sem quadro de asfixia perinatal, permitindo compreender a patogénese da adaptação à vida extrauterina (amostras de sangue do cordão);
  • Previsão da evolução clínica de RN com quadro de infecção congénita por CMV (citomegalovírus).

→ Análises em amostras de urina:

  • Diferenças entre RN com persistência de PDA (ductus arteriosus patente) quanto a necessidade, ou não, de profilaxia com anti-inflamatório (ibuprofeno) e, em caso positivo, previsão da resposta ao fármaco.

→ Análises em amostras de lavado broncoalveolar:

  • Diferenças quanto ao perfil de metabólitos do lavado broncoalveolar de RN com síndroma de dificuldade respiratória, pré- e pós-administração de surfactante.

Dados da investigação recente apontam para a comprovação de “assinaturas” compostas de biomarcadores que podem ser mais úteis na fenotipagem da asma e na selecção de tratamentos personalizados, comparativamente a estratégias baseadas em biomarcadores únicos.

A metabolómica da diabetes mellitus do tipo 1 (DM1) tem revelado aspectos curiosos. Demonstrou-se que as alterações da regulação do metabolismo dos lípidos e aminoácidos precedem o processo de seroconversão da autoimunidade pancreática.

Quanto ao papel da metabolómica e da metabonómica em nutrição na idade pediátrica, salienta-se a sua importância na identificação, a curto prazo, de marcadores de estado nutricional e, a longo prazo, na personalização do regime alimentar a recomendar.

Em medicina materno-fetal, as provas científicas mais interessantes dizem respeito à identificação de “assinaturas” metabolómicas urinárias das grávidas, preditivas do crescimento fetal. Acresce a possibilidade de intervenção precoce em contexto de factores de risco modificáveis como o estilo de vida das grávidas, por forma a alterar o metabolismo materno e, assim, a reduzir o risco de doença no recém-nascido.

No âmbito da avaliação de fármacos (fármaco-metabolómica) cabe citar, entre outros, os estudos preditivos do metabolismo e toxicidade de drogas, assim como a descoberta dos mecanismos de idiossincrasia.

A prevalência da asma na população pediátrica e o seu impacte, a diversidade de fenótipos e de prognóstico, assim como as limitações das terapêuticas farmacológicas, são alguns dos factores que justificam o maior desenvolvimento desta área. Há resultados encorajadores na aplicação da metabolómica, em tempo real e com dispositivos portáteis, dirigida à análise de compostos orgânicos voláteis.

O quadro 2 sintetiza alguns estudos de metabolómica em amostras líquidas obtidas por colheitas não invasivas relacionados com a asma em diversas populações pediátricas.

QUADRO 2 – Resumo dos estudos de metabolómica em amostras líquidas obtidas por colheitas não invasivas na asma em diversas populações pediátricas.

População (n)Amostra
(Método)
Metabólitos identificados com potencial capacidade discriminativaBibliografia
(n) = nº de indivíduos investigados; EBC = utilizando condensado do ar exalado; LC-MS = por cromatografia líquida associada a espectrometria de massa; NMR = por ressonância magnética nuclear.
Controlo saudável (25)
Asma (33)
EBC
(LC-MS)
Metabólito da prostaglandina, prostaglandina D2, leucotrieno C4, ácido 5-hidroxieicosatetraenóico.Glowacka E, et al, 2013
Controlo saudável (15)
Asma não grave (31)
Asma grave (11)
EBC
(LC-MS)
Ácido retinóico, deoxiadenosina, calcitriol, 20-hidroxi-prostaglandina F2alfa, tromboxano B2 e 6-ceto-prostaglandina F1alfa.Carraro S, et al, 2013
Controlo saudável (24)
Asma (65)
Saliva
Urina
(NMR)
Saliva: arginina, aspartato, citrato, taurina.
Urina: ácido butírico, ácido glucónico, ácido pantoténico, ácido quinolínico, lisina, pseudouridina.
(Pité L, et al – dados não publicados)
Asma controlada com corticosteróides (15)
Asma sem resposta a corticosteróides (15)
Urina
(LC-MS)
Gama-glutamilcisteína, cisteína-glicina, ácido 3,6-di-hidronicotínico, 3,4-di-hidroxi-fenilalanina, 3-metoxi-4-hidroxifenil (etileno)glicol.Park YH, et al, 2016
Controlo saudável (12)
Asma (41)
Urina
(LC-MS)
Ácido urocânico, ácido metil-imidazoleacético, dipéptido isoleucina-prolina.Mattarucchi E, et al, 2012
Controlo saudável (42)
Asma controlada (53)
Asma agudizada (20)
Urina
(NMR)
1-Metil-histamina, 1-metilnicotinamida, 2-oxoglutarato, 3-metiladipato, 4-amino-hipurato, O-acetilcarnitina, fenilalanina, triptofano, etc..Saude EJ, et al, 2011
Asma agudizada sob budesonida e salbutamol (69) ou placebo (48)Urina
(NMR)
Urina: cis-aconitato, lactato, 2-deoxyinosina, 3-metilhistidina, ácido 5-hidroxiindoleacético, 2-aminoadipato, glicose, citrulina, homoserina, histamina, alanina, asparagina, glicilprolina, snglicero-3-fosfocolina, sarcosina, ornitina, creatina, creatinina, glicina, isoleucina and trimetilamine N-óxidoQuan-Jun Y, et al, 2017

Conclusão

Sobre metabolómica, área em grande expansão, existem já na actualidade muitos estudos, particularmente no campo da asma. Salienta-se o interesse desta disciplina em Pediatria, considerando a utilização de amostras biológicas obtidas por métodos não invasivos, designadamente a partir do ar exalado, saliva e/ou urina.

Tendo em conta algumas limitações, torna-se obrigatório proceder à padronização no desenho dos estudos para a validação dos resultados em diferentes populações.

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Introdução

As metodologias e estratégias no âmbito da Educação Médica evoluíram muito nos últimos 40 anos. Com efeito, tem-se assistido a um verdadeiro movimento renovador com base em estudos científicos cuja liderança tem cabido a vários centros dos EUA, Reino Unido, Holanda, Suécia, Canadá e Austrália. Na Europa, entre outros centros pioneiros, Maastricht na Holanda e Dundee na Escócia, podem ser considerados exemplos paradigmáticos de excelência.

Nesta perspectiva, chamando-se a atenção para as potencialidades das novas tecnologias, têm sido preconizadas mudanças curriculares clamando maior efectividade dos programas formativos, designadamente no período da pré-graduação.

Cabe, a este respeito, uma referência especial aos seguintes documentos: Tomorrow´s Doctors (versões de 1993 e 2003) sob os auspícios do General Medical Council (GMC), Declaração de Edimburgo (1988), Iniciativa de Lisboa (1988) e às conclusões do evento World Summit on Medical Education em 1994. Dos mesmos resultaram determinadas recomendações, salientando as relacionadas com os seguintes tópicos:

  • Programas formativos em torno de problemas clínicos;
  • Programas formativos chamados “em espiral” cuja ideia principal é a de que um mesmo conteúdo deve ser apresentado de modo progressivo, em diferentes níveis de complexidade crescente, para melhor compreensão da sua aplicação à prática. Tal implica um esquema organizativo muito rigoroso, o qual pode ser consubstanciado na criação de áreas pedagógicas “em rede” ou agrupamento harmonioso de conteúdos, em contraposição ao aglomerado de disciplinas em compartimentos estanques em que se verifica maior probabilidade de repetições, com inconvenientes óbvios, designadamente quanto à gestão do tempo lectivo;
  • Participação dos alunos em projectos de investigação, sendo desejável o contacto com centros de investigação e personalidades ligadas a esta área;
  • Contacto, desde os primeiros anos do curso, com a futura realidade profissional em diferentes ambientes em que se poderá processar a prática clínica (infantários, escolas, centros de assistência à terceira idade, centros de saúde, escolas, visitas domiciliárias, etc.);
  • Programas utilizando a simulação em diversas modalidades associada aos métodos clássicos.

O objectivo deste capítulo é a abordagem de aspectos essenciais da “Simulação aplicável à Clínica Pediátrica” como estratégia de treino clínico tendo em vista a aquisição de competências técnicas e não técnicas.*

    • No texto, os: vocábulos “ensino-aprendizagem”, “ensino” e “aprendizagem” são por vezes utilizados indiferentemente.
    • Considerou-se a seguinte definição de competência: capacidade para a realização de determinadas tarefas com base em conhecimentos, atitudes, aptidões e valores. De acordo com Englander et al [2017]: “Competency An observable ability of a health professional related to a specific activity that integrates knowledge, skills, values, and attitudes. Since competencies are observable, they can be measured and assessed to ensure their acquisition. Competencies can be assembled like building blocks to facilitate progressive development”.
    • O inglesismo skill foi considerado como noção ligada a perícia, habilidade, destreza.

Simulação aplicada à Medicina

Em Medicina, o treino para aquisição de skills implica a “utilização” de seres humanos, adultos ou crianças, saudáveis ou doentes, cujas manifestações traduzem grande variabilidade de fenómenos biológicos.

Imperativos éticos e certos condicionalismos actuais relacionados, quer com novas regras de governação, quer com novos paradigmas assistenciais (de que são exemplo os internamentos de duração cada vez mais curta) limitam significativamente as oportunidades de treino para a aquisição das referidas competências.

Exemplificando com a situação clínica de meningite, comprova-se que as oportunidades de um interno de uma especialidade médica fazer uma punção lombar são escassas e, mais escassas são para alunos no âmbito do ensino pré-graduado.

Nesta perspectiva, surgiu o conceito de ensino – aprendizagem através do treino baseado na simulação.

Simular é, como se sabe, imitar ou fingir, fazendo parecer real o que não é. Tal conceito tem sido aplicado com objectivos educativos em áreas profissionais muito diversas; cita-se como exemplo clássico o treino dos pilotos da aeronáutica militar e civil desde há mais de 80 anos, utilizando simuladores de voo, não só para aprendizagem e aperfeiçoamento do desempenho em situações reais, mas também para avaliação do desempenho e recertificação periódica.

Considerando a área da clínica pediátrica, as capacidades a adquirir podem ser de âmbito:

  • Não técnico, compreendendo quer aspectos cognitivos (relacionados com conhecimentos fundamentais para a interpretação de dados clínicos), quer comportamentais (em relação com atitudes, tais como comunicação, liderança, atenção, trabalho de equipa, etc.);
  • Técnico, compreendendo aspectos psicomotores (gestos, habilidades, procedimentos ou técnicas em relação com o manejo de diverso equipamento com destreza).

Em Medicina, o desenvolvimento da área de treino baseado em simulação tem sido lento. Efectivamente, foi nas últimas quatro décadas que se verificou o maior impulso na sequência de estudos de validação científica comprovando boa relação custo-efectividade em termos de desempenho profissional futuro.

Porém, tal área de treino deverá ser encarada como complemento do treino clínico de proximidade, à cabeceira do “doente “real”. Assim, através da simulação em ambiente fictício, o praticante poderá cometer erros e corrigi-los, o que se afigura de grande utilidade: o objectivo último é saber estar e saber fazer bem, de modo correcto, o que garantirá a segurança do doente em situações reais futuras.

Assim a concretização dum programa de simulação obrigará, pois, a três requisitos fundamentais:

  • Condições logísticas que permitam criar um cenário, o mais aproximado possível da realidade;
  • Equipa treinada de formadores;
  • Equipamento para a simulação.

Âmbito da Simulação

Em Medicina o âmbito da simulação é lato, podendo abranger diversos cenários ou modalidades de treino de competências. Na sua forma mais simples e primitiva pode ser considerado acto de simulação o treino clássico na realização de determinadas tarefas ou procedimentos, com ou sem instrumentos, discriminados adiante, na alínea “Simulação aplicada ao ensino da Pediatria”.

Como modalidade clássica mais antiga de simulação, ainda hoje utilizada, remontando a séculos, cita-se a dissecção de cadáveres humanos e de animais como forma de treino em técnicas cirúrgicas.

Na década de 1960, a simulação começou a ter lugar na Medicina de Adultos com “doentes simulados”, ou seja, com pessoas treinadas (muitas vezes actores), para imitar situações clínicas diversas como expressão de dor com diversas localizações, tipos de tosse, dispneia, sibilância, estridor, crises epilépticas, abdómen agudo, etc.. Esta modalidade (Simulação com actores “doentes”, previamente treinados) permite igualmente o treino em comunicação.

Com o desenvolvimento da electrónica, dos sistemas multimédia e da criação das condições para a chamada “realidade virtual”, passou a ser possível utilizar programas de software permitindo obter treino em diversas áreas, nomeadamente em ventilação mecânica e na interpretação de casos clínicos, valorizando a semiologia e o treino em raciocínio clínico (Simulação baseada em computadores).

Ao mesmo tempo, a indústria passou a criar modelos com pormenores anatómicos e funcionais de grande minúcia (manequins simuladores) imitando fielmente o corpo humano, no todo ou em partes; inicialmente para treino de anestesistas, mais tarde passaram a ser utilizados para treino em reanimação básica e em procedimentos invasivos vários, como cateterismo, entubação traqueal, punção lombar, etc.. A chamada simulação híbrida congrega a combinação do cenário doentes actores com manequins simuladores.

Surgindo posteriormente a aplicação de programas de software aos manequins, entrou-se na era dos simuladores manequins de alta fidelidade ou baixa fidelidade, conforme o grau de sofisticação da tecnologia. Tais manequins robotizados, de corpo inteiro e assistidos por computador, adaptados à idade pediátrica, permitem reproduzir mais de uma centena de situações clínicas com fisiopatologia diversa.

Com a tecnologia que lhes serve de base, entre outras funcionalidades, executam movimentos de expansão e retracção torácica, cianose, palidez, sons e sopros cardíacos, pestanejo, adejo nasal, diversos tons de voz, diversos tipos de tosse, etc..

É igualmente possível observar o seu “comportamento” traduzido por efeitos ou “reacções” em função de determinadas intervenções terapêuticas ou procedimentos (correctos ou incorrectos); por exemplo, surgimento de cianose ou palidez, grito de dor, taqui ou bradicardia, etc.. É o caso dos simuladores designados por certas marcas de fabrico – SimMan (Laerdal Medical Corporation, Gatesville, USA) e por METI (Medical Educational Technologies Inc., Sarasota, USA).

Em suma, a tecnologia sofisticada passou a viabilizar manequins verdadeiramente “interactivos” com especial interesse, designadamente no treino em suporte básico e avançado de vida e em pneumocardiologia (Figura 1).

Outra modalidade é a chamada simulação baseada nas realidades virtual e virtual aumentada, com aplicação em diversos contextos, como no treino em técnicas cirúrgicas, designadamente em cirurgia laparoscópica. (pela particularidade da terminologia “realidade” no contexto deste capítulo, menos habitual, deverá consultar-se a caixa, a seguir à Figura 1).

1. Simuladores de baixa fidelidade

2. Simuladores de alta fidelidade

3. Tecnologia para realidade virtual

4. Modelos de treino de técnicas isoladas

5. Simulação baseada em computadores (software)

6. Simulação híbrida

7. Tecnologia para realidade aumentada

FIGURA 1 – Modalidades de utilização da Simulação em Medicina.

Realidade Virtual (RV): tecnologia que, através de instrumentos computacionais, permite “transportar” o utilizador para um ambiente virtual.
Realidade Aumentada (RA): tecnologia que, permitindo sobrepor elementos virtuais à nossa visão da realidade, combina imagens do mundo real com o mundo virtual; trata-se de conceito derivado do de Realidade Virtual.
Estas modalidades, implicando tecnologia dispendiosa, utilizam diversos dispositivos ou equipamento como “capacete” específico, monitores e dispositivo com formato de “óculos” associado a projector, etc..

Simulação aplicada ao ensino da Pediatria

Treino nas fases pré-clínica e de integração na prática clínica

Nas fases pré-clínica e de integração gradual na prática clínica do Mestrado Integrado em Medicina/MIM, de modo progressivo, para além do treino de atitudes, podem ser utilizados diversos tipos de manequins, assim como de aparelhos para o treino de técnicas e procedimentos. Especificando:

  • Prática correcta da lavagem das mãos em diversos ambientes;
  • Treino em comunicação: anamnese no contexto de casos clínicos simples recorrendo ao médico, incluindo situações de normalidade na perspectiva da prevenção e da informação clínica explicativa a familiares, etc.;
  • Utilização de manequins “anatómicos” como alternativa ao treino em cadáveres;
  • Medição da pressão arterial, treino em oftalmoscopia e otoscopia, manejo do oxímetro de pulso, etc.;
  • Inspecção e palpação de manequins exibindo diversa patologia (por ex. adenomegálias, globo vesical palpável, hepatosplenomegália, etc.);
  • Auscultação cardiopulmonar em manequim, aplicando tecnologia sofisticada assistida por computador (manequim de alta fidelidade);
  • Em ligação estreita ao relato de casos clínicos simples, observação de resultados imagiológicos em diversas idades incluindo o período pré-natal (fetos): por ex. de radiografia convencional, tomografia axial computadorizada, ressonância magnética, ecografia, etc.;
  • Entubações (gástrica, traqueal) em manequim;
  • Toque rectal e punção suprapúbica em manequim;
  • Aplicação de venoclise em manequim.

Treino na fase clínica do MIM, de pós-graduação e formação contínua

Nestes períodos da formação pediátrica, as áreas de treino, de execução mais complexa, incluem suporte básico e avançado de vida, assim como estabilização e transporte da criança gravemente doente. Eis os tópicos clássicos:

  • Prática na mudança de posição dos doentes simulados e transposição para macas ou camas;
  • Execução de determinados procedimentos utilizando partes de manequins convencionais (por ex. dorso, região dorso-lombar e região glútea para prática de punção lombar, membro superior para prática de venoclise ou cateterismo venoso, abdómen de recém-nascido para prática de cateterismo de artéria ou veia umbilical, abdómen e pelve para treino da manobra de Ortolani no recém-nascido, região vulvar e coxas com cabeça fetal em expulsão para compreensão da patogénese do traumatismo ocorrendo durante o trabalho de parto);
  • Prática de entubação traqueal e ventilação com pressão positiva intermitente, utilizando manequins clássicos;
  • Prática com desfibrilhador;
  • Programas estruturados de software em computador com sistemas áudio e vídeo, possibilidade de observação virtual do doente, discussão interactiva de casos clínicos, e avaliação final do desempenho;
  • Prática em manequins da alta fidelidade em centros de simulação (situações seleccionadas e adaptadas ao curriculum do MIM);
  • Programas de treino em reanimação e suporte avançado de vida como o EPLS (European Pediatric Life Support course ) ou de Reanimação Neonatal como o NLS (Neonatal Life Support) do ERC (European Resuscitation Council). Estes programas são considerados actualmente de referência e altamente recomendados no âmbito do Internato de Formação Específica em Pediatria e do Colégio da Especialidade de Pediatria da Ordem dos Médicos. Desejável, contudo, é a inclusão nos programas já existentes de lista de técnicas e procedimentos, com aplicação de critérios de aprendizagem mensuráveis com base na simulação.

Nos EUA, o Accreditation Council for Graduate Medical Education (ACGME) e a Residency Review Committee (RRC) for Pediatrics recomendam a aquisição das referidas competências em reanimação, e doutras já citadas, através do ambiente simulado durante o internato de pediatria.
Também, no Canadá e na Austrália, o uso proficiente e apropriado de competências técnicas em procedimentos invasivos constitui um requisito de acreditação dos programas de treino no âmbito dos internatos de Pediatria.

Quer no período da pós-graduação, quer no da formação contínua, para além das diversas valências de treino discriminadas anteriormente, e em função das necessidades educativas do praticante discente, poderão ser desenvolvidas as seguintes áreas:

  • Técnicas endoscópicas com simuladores assistidos por computador, com especial interesse em Cirurgia, Otorrinolaringologia, Pneumologia, Gastrenterologia e Urologia. O simulador para laparoscopia, designadamente o denominado pela sigla MISTELS (McGill Inanimate System for Training and Evaluation of Laparoscopic Skills) utilizado na Universidade de McGill/Canadá-Montreal, permite o treino na aquisição de capacidades em laqueações, execução de nós e suturas, e coordenação olho-mão em executantes dextros e sinistros;
  • Prática com simuladores de doenças cardiovasculares e de situações de anestesia utilizando, quer sistemas multimédia assistidos por computador, quer manequins de alta fidelidade;
  • Prática de farmacoterapia utilizando programas assistidos por computador centrados em fisiologia e farmacologia humanas; com esta estratégia é possível avaliar, em doente virtual, respostas específicas a fármacos, utilizados correcta ou incorrectamente;
  • Prática com manequins de alta fidelidade.

Estratégias para a formação

Para garantir a rendibilidade da aprendizagem, importa salientar determinados requisitos de ordem geral (a adaptar em função dos cenários anteriormente explanados), salientando-se que deverá imperar a noção de versatilidade:

  1. Antes do treino de procedimentos propriamente dito (treino), o formador explicando pormenores sobre o treino, procede à distribuição de um guião explicativo a todos os praticantes integrando, designadamente, métodos e estratégias, videogramas, cronograma das sessões e respectivos objectivos educativos.
    Este passo, exemplificando situações concretas com que o discente praticante se irá confrontar, consubstancia a noção de Briefing ou Prebriefing, termos muito usados na gíria internacional.
    Nesta sessão prévia impõe-se igualmente abordar um tópico designado na gíria internacional pela sigla CRM (Crew Resource Management), exprimindo um conceito. Tal área do conhecimento (CRM) teve origem nos procedimentos preventivos levados a cabo pelas tripulações de aeronaves perante riscos e erros de comunicação susceptíveis de provocar desastres e tragédias (ver caixa).

O conceito CRM, dizendo respeito ao treino em competências não técnicas como complemento das técnicas, e na gestão dos recursos, pode ser assim esquematizado:

    • treino na aquisição de competências, designadamente de liderança, utilizando todos os recursos disponíveis, incluindo todas as pessoas envolvidas assim como os equipamentos utilizados;
    • treino na execução de procedimentos feitos em segurança e na resolução de problemas surgidos, admitindo a possibilidade de surgirem erros, o que exige atitude de alerta para a prevenção destes;
    • treino na identificação das limitações humanas e técnicas associadas ao sistema;
    • treino em comunicação com eficácia entre elementos da equipa e na relação médico-paciente-família.

 

  1. O treino de procedimentos inicia-se após a breve explicação prévia do formador: os praticantes reúnem-se em pequenos grupos (não mais do que 4 por tutor e, idealmente, aos pares) dispondo em geral de 10-15 minutos para a execução de cada.
    • Havendo mais do que uma sala, o material didáctico poderá ser disposto de modo sequencial, o que facilitará a aprendizagem.
    • A atitude dos praticantes em geral, deverá ser o mais aproximada possível da situação real (em cenário de “doente”/manequim, ou de “reunião” para discussão de casos assistidos por computador) em obediência às normas vigentes na instituição.
    • No âmbito da prática de procedimentos invasivos, a acção formativa deverá incluir:
    • o ritual do “contacto com o doente-família” para obtenção de consentimento esclarecido na perspectiva de treino de capacidades para a comunicação;
    • o ritual da assepsia exigida com a realização de gestos simples, mas fundamentais, como os da lavagem correcta das mãos e utilização de “bata esterilizada”, precedidos pela colocação de avental, barrete e máscara (tal como acontece em ambiente de “bloco operatório”, de “bloco de partos”, ou mesmo de enfermaria onde poderão ser realizados procedimentos invasivos).
  2. Terminada a sessão de treino, este é ulteriormente completado em sessão na sala de reuniões com discussão docente/ discente sobre o desempenho da cada praticante, documentado com gravação. Nesta parte da acção formativa são emitidas recomendações pelo tutor sobre o que se aprendeu e sobre aspectos a melhorar. Este passo corresponde, pois, a um balanço final reflexivo sobre as tarefas realizadas durante a simulação, na gíria internacional designado por Debriefing (ver caixa).

 

Notas sobre terminologia internacional

Briefing ou Prebriefing – Sessão informativa preparatória para todos os praticantes em treino, antecedendo a experiência de simulação. Liderada pelo coordenador responsável, o objectivo é esclarecer sobre os objectivos do cenário, incluindo orientações para o uso de equipamentos (manequins e simuladores em geral) e contexto clínico do paciente. São reforçados os seguintes pontos: – necessidade de criação de ambiente sério e formal de aprendizagem, conquanto acolhedor e não hostil; – confidencialidade; e – participação equitativa.

Debriefing – Actividade que ocorre posteriormente à experiência de simulação, com o objectivo de consolidação dos conhecimentos. Tratando-se dum balanço do que aconteceu durante o treino, o coordenador dá oportunidade aos praticantes para reflectirem sobre o respectivo desempenho, sugerindo a colocação de dúvidas e a menção de aspectos que necessitam de revisão.
Existem vários métodos de Debriefing, utilizados por diferentes escolas. Entre os mais conhecidos e utilizados, citamos apenas três exemplos com siglas que correspondem a variantes estruturadas: – RUST (Reaction, Understanding, Summarize, Take-Home Messages); – FFAST (Feelings, Facts, Activity, Summary, Take Home Messages); – OSAD (Objective Structured Assessment of Debriefing).

Centros de Simulação

Em certos países, em hospitais e universidades com recursos avultados, existem áreas específicas de dimensões variáveis com toda a logística inerente a um serviço ou unidade (secretariado, enfermaria convencional, gabinetes de consulta, unidade de cuidados intensivos, bloco operatório, bloco de partos, sala de reuniões, etc.) onde são concentrados todos os recursos para a simulação; todavia, em vez de doentes reais há manequins e equipamento acessório. Este contexto corresponde ao centro de simulação “ideal”, nem sempre exequível, pelos elevados custos envolvidos.

O recrutamento dos formadores poderá ser feito entre clínicos ou elementos de enfermagem (ou outros profissionais ligados à saúde) motivados para o ensino centrado na simulação e experientes quanto à realização de certas técnicas e ao manuseamento de certa aparelhagem. De salientar que o treino com manequins de alta fidelidade implica formação específica nesta área.

Para além do formador (ou formadores) e dos discentes praticantes, e não existindo “doentes reais” no ambiente criado, é suposta a colaboração doutras pessoas com diversas funções associadas ao processo de simulação: pessoal de secretaria, familiares ou pessoas simulando familiares, médicos e enfermeiros, etc.., outras. Existe, portanto, um cenário próprio, quase “teatral”.

No referido centro é possível, de modo integrado, o treino de todas as capacidades descritas nas alíneas anteriores, incluindo lavagem das mãos, uso de bata, máscara, barrete, luvas, elaboração de relatórios, exposição oral de casos à cabeceira do “doente” e na sala de reuniões, etc..

Reitera-se que o praticante é igualmente treinado a adoptar atitudes correctas aplicáveis a casos específicos e a comunicar com médicos, profissionais de saúde, pessoal de secretariado e familiares.

No que se refere à logística e a aspectos organizativos, importa salientar que a escolha do equipamento deverá ser muito criteriosa e adaptada à realidade de cada instituição.

Como se pode depreender, reunidas as condições indispensáveis para além do equipamento (referidas anteriormente – formadores treinados e espaço disponível), haverá que colher referências junto de instituições com experiência comprovada neste âmbito.

Numa fase inicial de arranque, deverá ser adquirido material e manequins para prática de procedimentos básicos e treino de capacidades considerados prioritários, sem a preocupação de criar centro sofisticado. Igualmente, antes da aquisição do material haverá que ponderar os custos com as reparações e a manutenção do mesmo.

Numa perspectiva económica de racionalização de recursos e de poupança, haverá que organizar o plano contando com material já não utilizável na prestação de cuidados a doentes reais, mas ainda adequados no contexto de simulação, desde que reunidas condições de segurança para formadores e praticantes.

A experiência de um centro de simulação de técnicas em Pediatria (**)

Desde 2001, por iniciativa de JMVA, com a colaboração de MTN, e em afiliação à Universidade Nova de Lisboa através da Faculdade de Ciência Médicas/ Nova Medical School, funciona num dos pavilhões do campus do Hospital Dona Estefânia, uma área designada Centro Universitário.

Neste, para além de salas polivalentes onde decorrem acções de formação teórico-práticas, seminários e reuniões assistidas por meios audiovisuais, computadores com acesso à internet e biblioteca, localiza-se um Centro de Simulação de Técnicas em Pediatria (CSTP), compreendendo sala de procedimentos, zona de lavagem e desinfecção das mãos e zona de armazenamento de equipamento. A equipa é constituída por elementos com formação em ensino por simulação, em número variável de acordo com as necessidades e a disponibilidade

(**) ABREVIATURAS: CSTP – Centro de Simulação de Técnicas em Pediatra; FCM/NMS/UNL – Faculdade de Ciência Médicas/Nova Medical School, da Universidade Nova de Lisboa; HDE – Hospital de Dona Estefânia, Lisboa; JMVA – João M. Videira Amaral; MTN – Maria Teresa Neto; PG – Pedro Garcia.

 

Os modelos disponíveis, representados na Figura 2, reproduzem de forma tão fidedigna quanto possível algumas das áreas anatómicas do corpo humano – cabeça e pescoço, boca, faringe e laringe (A), região abdominal, região umbilical neonatal com vasos umbilicais acessíveis (F), região lombo-sagrada para punção lombar (D), articulação coxo-femoral para manobra de Ortolani, membros superiores e inferiores (E) com componentes vascular e óssea e frascos com fluidos.

Existe também disponível o seguinte material, dum modo geral desactivado de diversas áreas assistenciais, tais como unidades de cuidados intensivos e bloco operatório: laringoscópios, tubos endotraqueais, máscaras laríngeas, insuflador manual auto-insuflável Sussex®, agulha intraóssea automática, cateteres venosos e arteriais umbilicais, material cirúrgico diverso (porta-agulhas, pinças, tesouras, pinças hemostáticas, etc.). Existe ainda material consumível diverso, tal como fios de sutura, cateteres, abocaths, agulhas, seringas e compressas.

Com os referidos modelos e material é propiciado o treino nos seguintes procedimentos e técnicas: estabelecimento de via aérea com máscara laríngea, tubo naso-faríngeo, entubação orotraqueal; ventilação com máscara e insuflador manual; cateterismo umbilical neonatal venoso e arterial; outros tipos de cateterismo venoso, periférico e central; estabelecimento de via emergente intraóssea; colheita de sangue venoso e arterial; punção lombar; limpeza e desinfecção de feridas; treino com material cirúrgico e suturas e drenagem de pneumotórax.

Figura 2 – Alguns dos modelos disponíveis no CSTP no Centro Universitário do Hospital de Dona Estefânia: modelo de estabelecimento da via aérea (A), modelos para punção venosa e arterial (B e E), instrumentos para suturas/ pequena cirurgia (C), modelo de punção lombar (D), modelo para canalização de artéria e veia umbilicais (F).
O CST tem vindo a crescer com a aquisição de novos modelos e substituição de outros, deteriorados pelo uso intensivo.

Nos primeiros anos, as acções de formação estiveram a cargo de um Professor (MTN). Desde 2011, o Coordenador responsável do CSTP é PG (Pedro Garcia), possuindo as seguintes competências: Tutor da FCM/NMS com Mestrado em Educação Médica, diferenciação em cirurgia e reanimação pediátrica e neonatal, e membro da Comissão de Reanimação do Hospital de Dona Estefânia, Lisboa.

Ao longo de cada ano lectivo, recebem aulas de simulação de técnicas em pediatria cerca de 280 alunos, no âmbito do ensino da Pediatria do 5ª ano do MIM. Durante todo o ano lectivo, são recebidos dois grupos de 6-7 alunos por semana para participação em aulas com duração médica de 2 horas.

A execução de cada técnica é precedida de um enquadramento teórico para a realização da mesma (Briefing) em função de cada caso clínico, indicações e fundamentação da mesma, exames complementares a solicitar, resultados esperados e sua interpretação.

Segue-se a descrição da técnica e a demonstração prática do procedimento por parte do docente, chamando-se a atenção para o conceito atrás definido de CRM.

Posteriormente, inicia-se o treino individual dos alunos praticantes, com supervisão directa do tutor, prevendo-se repetição, tantas as vezes quanto as necessárias. Salienta-se que a orientação do ensino de gestos é feita individualmente, com a preocupação da aprendizagem correcta de cada procedimento, o qual é repetido até o aluno “saber fazere, sobretudo,saber fazer bem”, em obediência ao referido conceito de CRM.

No fim de cada bloco é solicitada de modo informal, a cada estagiário, opinião reflexiva sobre a sessão concluída, enquadrada nesta área de aprendizagem (Debriefing).

As opiniões dos alunos sobre o treino centrado na simulação podem sintetizar-se nas seguintes ideias-chave:

  • Aprendizagem útil/muito útil;
  • Sugerida maior carga horária dedicada a esta actividade;
  • Necessidade de melhoria das instalações;
  • Necessidade de aquisição de modelos mais diversificados; e
  • Substituição dos modelos mais antigos e deteriorados;
  • Considerado como muito positivo o apoio e acompanhamento personalizado dos docentes até “os alunos saberem fazer bem”.

Conclusão

  • A aquisição de competências, técnicas e não técnicas, adoptando o treino baseado na simulação como complemento da prática convencional em pessoa real afigura-se de grande utilidade, o que é corroborado por estudos científicos de validação, evidenciando bons índices de custo-efectividade; tal noção aplica-se a diversas fases da diferenciação profissional: desde a pré-graduação, à pós-graduação e à formação contínua.
  • A simulação como método de ensino-aprendizagem pode ser considerada um acto de treino clínico (tão natural como a sessão em que se apresentam casos clínicos para discutir, a prática em consulta externa, ou a visita médica clássica nas enfermarias).
  • Em termos organizativos e de planeamento, importa uma referência aos custos médios inerentes a esta estratégia de ensino-aprendizagem: um manequim convencional para idade pediátrica (ou parte anatómica de manequim) poderá oscilar entre 800 e 4.000 euros (sendo que existem manequins para diversas idades), e o dum manequim de alta fidelidade (robotizado, agregando mecanismos de software assistidos por computador), entre 80.000 e 250.000 euros.

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Introdução

Ao longo do tempo, à palavra Medicina têm sido acrescentados adjectivos ou expressões adjectivadas traduzindo, quer diversas filosofias na prestação de cuidados de saúde de vária ordem, quer diversas atitudes e actuações profilácticas ou terapêuticas de acordo com certas experiências ou vivências.

Nesta perspectiva, virá a propósito mencionar alguns exemplos de terminologias com que frequentemente nos confrontamos: medicinas preditiva, preventiva, do trabalho, social, clássica (convencional, tradicional ou alopática), tradicional chinesa, homeopática, paliativa, alternativa ou complementar, baseada na evidência, narrativa, integrativa, etc.. As referidas terminologias, por sua vez, consubstanciam diversos cenários da relação médico-doente.

De acordo com fontes idóneas, a chamada medicina integrativa (MI) associa práticas da medicina clássica, ensinada nas universidades, com as práticas da chamada medicina alternativa ou complementar (que foram cientificamente comprovadas), criando-se um sinergismo.

Trata-se, com efeito, duma área em franca expansão na Europa e Américas, com alguns estudos publicados em revistas internacionais indexadas na PubMed, e sobre a qual a Organização Mundial da Saúde e a Academia Americana de Pediatria já se pronunciaram. A este respeito, cabe referir que no Brasil e Argentina, segundo estatísticas recentes, foi possível obter uma redução de custos em saúde da ordem dos 12,5%, explicável por menor consumismo de medicamentos.

Fundamentação

A medicina alternativa ou complementar (MA/C), integrando diversas modalidades e técnicas com indicações terapêuticas amplas, e baseando-se em conceitos filosóficos que correspondem a determinados estilos de vida, valoriza a noção de que os médicos devem, não só saber tratar, mas também saber cuidar, e de que o estresse psíquico influencia os sistemas nervoso, endócrino e imunitário. Desta última constatação nasceu uma nova disciplina designada psico-neuro-endócrino-imunologia.

No âmbito da MA/C, e em termos genéricos, os meios utilizados e a sofisticação tecnológica são muito variáveis: desde simples remédios caseiros, a produtos manufacturados complexos; estes poderão ser, ou altamente eficazes e seguros, ou ineficazes, perigosos e tóxicos.

De facto, a eficácia real atribuída à MA/C depende de diversos factores tais como a competência profissional e qualidades éticas de quem prescreve e pratica, e da idiossincrasia da pessoa assistida.

Contudo, há aspectos de grande relevância, contribuindo de sobremaneira para o êxito de tal prática: designadamente, as particularidades da relação médico-doente de quem exerce a MA/C, estabelecendo enorme empatia com o doente, ”preocupando-se mais com o doente que tem uma doença do que com a doença que o doente tem, colocando-se na posição do doente, e valorizando aspectos vividos para além da doença.

Esta postura, que dismistifica o poder absoluto da ciência, contribui para a humanização do acto clínico em medicina tradicional ou clássica e relaciona-se com a chamada “medicina narrativa”, área não desenvolvida neste capítulo.

No seguimento do que atrás foi referido e segundo os especialistas, a medicina integrativa (MI) é mais do que a soma da medicina clássica com a MA/C, no pressuposto (salienta-se) de serem utilizadas as modalidades desta última em que a eficácia e segurança foram cientificamente comprovadas.

E diz-se mais do que a soma…pelo facto de estar implícito obrigatoriamente um valor acrescido que se atribui à dimensão biopsicossocial, espiritual e holística, considerando a pessoa assistida como um todo e uma relação médico-doente mais humanizada.

Modalidades de MA/C

Entre os diversos grupos e modalidades de MA/C, derivados da medicina tradicional chinesa, cabe salientar aqueles em que se comprovou eficácia com base científica: a acupunctura, a osteopatia, a quiropraxia e os tratamentos farmacológicos biológicos, estes últimos já largamente utilizados em doenças do foro reumatológico.

Na caixa a seguir, anotam-se em síntese:

Acupunctura: esta prática é a mais conhecida como complemento da medicina convencional. Consiste na aplicação de agulhas para estimular pontos específicos do corpo. O alívio da dor, designadamente da dor crónica, como fibromialgia, contribuindo para o bem-estar, é o principal benefício associado a esta técnica.

Osteopatia: esta terapêutica (com nome derivado do grego osteon e relacionada com o tratamento dos ossos), idealizada pelo norte-americano Andrew Still (1828-1917) tem como filosofia uma abordagem holística, considerando o corpo como um todo. O objectivo é restabelecer a função de estruturas corporais através da intervenção manual sobre articulações, músculos e ligamentos. Os princípios da Osteopatia podem ser aplicados por fisiatras.

Quiropraxia: trata-se de terapêutica que, de certa forma, faz fronteira com a osteopatia. Etimologicamente, khei-ros, palavra grega, exprime a ideia de “mão”. Com efeito, na quiropraxia, para alívio da dor, as mãos (aliadas a uma ideia de conforto a transmitir) são utilizadas para promover o alinhamento das articulações, principalmente, da coluna vertebral, de modo a descomprimir as estruturas nervosas e a eliminar contracturas.

A posição de organismos internacionais

Em 1970, a Organização Mundial da Saúde (OMS) objectivou, em comunicados e resoluções, o compromisso de incentivar a nível mundial o desenvolvimento da Medicina Integrativa nos sistemas públicos de saúde; e, em 2002, reafirmou a respectiva estratégia, a qual teve seguidores na Europa e Américas.

Na transição para o século XXI, registou-se nos Estados Unidos um facto: uma proporção crescente de cidadãos (33-55%) passou a socorrer-se da MA/C pelo facto de se ter gerado certa desilusão com alguma falta de resultados em saúde em relação com a medicina clássica, considerando que “esta não satisfazia as necessidades” daqueles, “apesar do desenvolvimento da tecnologia”.

Nesta perspectiva, universidades de prestígio no Reino Unido, Israel e Estados Unidos (tais como Georgetown em Washington DC, Johns Hopkins, UCLA, etc.), reafirmando os valores humanísticos, e encarando o doente na perspectiva holística, ou seja, valorizando o conceito integrativo, passaram a incluir nos seus curricula programas educacionais conferindo competências nesta matéria aos seus graduados, após avaliação.

O próprio National Institute of Health (USA) criou um departamento para a investigação neste ramo, aguardando-se, entretanto, os resultados de estudos aleatorizados e observacionais sobre as implicações da formação no âmbito deste ramo da prestação de cuidados.

Por fim. relativamente à incorporação da MI nos programas de educação médica pré e pós-graduada e continuada, cabe citar a Academia Americana de Pediatria (AAP), de idoneidade indiscutível, e titular duma revista periódica de cariz formativo e enorme interesse pedagógico – Pediatrics in Review. Excelente repositório de temas de actualização, as respectivas edições incluem frequentemente artigos subordinados à rubrica Complementary, Holistic, and Integrative Medicine.

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Introdução

Em 1945, Spitz descreveu na criança pequena a chamada síndroma do hospitalismo e estados depressivos, relacionável com a separação da sua mãe e do ambiente da sua família em casa, e mais expressiva no contexto de hospitalizações prolongadas. Tal síndroma consiste essencialmente em manifestações de carência afectiva e em regressão no neurodesenvolvimento.

Em 1951, a Organização Mundial da Saúde publicou uma monografia da autoria de Bowlby, intitulada “Maternal Care and Mental Health”, abordando o problema da carência de cuidados maternos e sua repercussão no desenvolvimento da criança em várias situações (hospitais, creches e outras instituições).

Como conclusão de vários estudos de investigação, o referido autor lembrava aos médicos e outros profissionais de saúde uma noção fundamental: para uma boa saúde mental do lactente e criança pequena é essencial que se estabeleça um vínculo, isto é, uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe (ou seu substituto) conduzindo a satisfação, alegria e bem-estar a todos. Daí, o não ser desejável que em qualquer circunstância a criança se separe da mãe.

Em 1952, Robertson, em colaboração com Bowlby e Rosenbluth, demonstrando em imagens de filme os factos apontados, tentaram sensibilizar a sociedade e os profissionais para um problema que até então não era valorizado.

Posteriormente, em vários países, sobretudo da Europa e América do Norte, começou a esboçar-se uma tomada de consciência do problema, iniciando-se esforços no sentido de modificação das condições de hospitalização das crianças doentes, tornando-as mais adaptadas às suas exigências e necessidades.

Para esta tomada de consciência igualmente terá tido influência – com algum atraso – a Declaração dos Direitos Humanos em 1948, cujo artigo 25º refere o Direito da Criança a Cuidados e Assistência Especiais.

Em Portugal, três instituições foram pioneiras no cabal acolhimento e na aplicação prática de tal filosofia: Instituto de Apoio à Criança (IAC), Instituto Português de Oncologia (IPO) e Hospital Pediátrico de Coimbra (HPC). De salientar também o papel dinamizador da Sociedade Portuguesa de Pediatria, nomeadamente através da sua Secção de Pediatria Social.

Entretanto, nos EUA, nas décadas de 70-80, surgiu o conceito de Humanização, traduzindo o desenvolvimento duma estratégia ou cultura de cuidados à criança hospitalizada em ligação à mãe e família (acompanhando o doente), tornando também o ambiente hospitalar mais acolhedor com a colaboração de todos os profissionais; trata-se, pois, duma filosofia de prestação de cuidados não reduzida ao tecnicismo. Posteriormente, em 1988, viria a ser publicado um importante documento designado Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas.

Assim, em consonância com o conceito de Humanização, a par de medidas relacionadas com a melhoria da qualidade do atendimento nas diversas instituições, em Portugal e noutros países passou a ser cada vez mais habitual a mãe acompanhar o seu filho durante a hospitalização.

Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas

Este documento foi elaborado pela EACH (European Association for Child Health), aprovado em Leiden pela Confederação Europeia dos Sindicatos Nacionais e adoptado em Portugal pela Comissão Nacional de Saúde da Criança e Adolescente (CNSCA).

Descrita integralmente no capítulo 4 (Parte 1) desta obra, a referida Carta, passando a ser seguida por todos os profissionais que prestam cuidados hospitalares à criança e ao adolescente, traduz um abrir de portas das unidades de internamento ou de ambulatório às famílias segundo certas regras, as quais passaram a estar incluídas nos manuais de qualidade e segurança consagradas por legislação (DR: Lei 106/2009, 14 de Setembro).

Constando tal Carta de 10 regras, destacam-se três:

  1. As crianças somente serão admitidas para internamento hospitalar se os cuidados de que necessitam não puderem ser propiciados no domicílio ou em regime ambulatório.
  2. Os pacientes, com idade até aos 18 anos, internados em hospital ou unidade de saúde, têm direito ao acompanhamento permanente do pai e da mãe, ou de pessoa que os substitua.
  3. As crianças hospitalizadas devem ser agrupadas de acordo com as idades e separadas dos serviços para adultos.

No âmbito da organização e prestação dos cuidados especializados na idade pediátrica, importa uma referência especial a duas modalidades assistenciais seguindo os princípios da Humanização e da Qualidade: trata-se efectivamente de dois conceitos que permitem maior proximidade às famílias e melhor gestão de vagas de camas hospitalares: hospital de dia pediátrico e hospitalização domiciliária pediátrica, discriminados a seguir.

# Hospital de dia pediátrico – principais características (ver caixa):

    1. Estrutura organizacional integrada num Serviço de Pediatria, com espaço físico e meios técnicos próprios, integrando recursos humanos qualificados;
    2. Prestação de cuidados de saúde de modo programado em regime ambulatório (em alternativa ao internamento) a doentes com < 18 anos;
    3. Estadia de duração < 12 horas, fora do período nocturno.

 

A propósito desta modalidade, importa realçar o seguinte:

  • Papel especialmente relevante no contexto de doença crónica (situação surgindo com uma prevalência de cerca de 20% da população até aos 18 anos de idade);
  • Conquanto o título (hospital…) Possa gerar confusão, trata-se duma modalidade, considerada de ambulatório.

# Hospitalização domiciliária pediátrica (HDP).
Este último tópico, que na área pediátrica e no nosso País inicia os primeiros “passos”, constitui o objectivo principal deste capítulo.

Conceito de hospitalização domiciliária

Como facto histórico, importa referir que o conceito de “hospital em casa” surgiu pela primeira vez em 1947, nos Estados Unidos da América do Norte/EUA, com uma prática de cuidados médicos assistenciais em adultos designada por Home Care.

Ao tempo, com tal prática, tentava-se reduzir a taxa ocupacional dos hospitais, ao mesmo tempo que se criava um ambiente mais “humanizado”, próximo das famílias. Cerca de uma década depois, o modelo começou a ser praticado na Europa, mais propriamente, em França.

Trata-se, pois, dum modelo de prestação de cuidados em casa, dirigido a pacientes com doença aguda ou crónica, incluindo patologia complexa.

Constituindo uma alternativa ao internamento hospitalar convencional sob a responsabilidade duma equipa de saúde coordenada por médico, em ligação a serviço hospitalar clássico, para a referida hospitalização domiciliária é exigida a obediência a um conjunto de critérios clínicos, geográficos e sociais (incluindo acordo com o paciente ou familiar)

Numa perspectiva de visão holística do doente e considerando a pediatria como uma medicina integral de grupo etário, os princípios gerais enunciados deste modelo aplicam-se à idade pediátrica (< 18 anos), período da vida em que a doença crónica surge com uma prevalência relevante, atrás referida.

Objectivos da hospitalização domiciliária pediátrica (HDP)

Sistematizam-se os principais objectivos:

  • Promover o bem-estar do doente e a sua recuperação, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida de todo o agregado familiar;
  • Encurtar o tempo de hospitalização e evitar internamentos frequentes, desnecessários, rendibilizando recursos;
  • Estabelecer a comunicação entre os diversos níveis de cuidados, actuando em rede e promovendo a continuidade assistencial;
  • Valorizar o conceito de cuidados de saúde centrados na família e a prática da educação para a saúde.

Vantagens

Como principais vantagens, citam-se:

  • Favorecer o neurodesenvolvimento, diminuindo o risco de hospitalismo;
  • Diminuir o risco de infecções associadas aos cuidados de saúde;
  • Diminuir os custos familiares (por ex., com deslocações, alimentação, absentismo laboral, etc.;
  • Promover o trabalho em equipa, com a participação da família, assessorando a equipa de saúde.

Requisitos exigidos

Eis os requisitos obrigatórios:

  • A aceitação por parte da família desta modalidade de cuidados, a qual deve ser voluntária, não imposta;
  • Estabilidade clínica do paciente, não se prevendo agravamento a curto prazo, exceptuando situações assistidas no regime de cuidados paliativos;
  • Garantia da família quanto à assunção de responsabilidade e de disponibilidade permanente quanto a contacto telefónico ou através doutros meios de comunicação mais sofisticados;
  • Ambiente doméstico com condições logísticas e sanitárias garantindo segurança.

Tipologia dos pacientes com indicação para HDP

É a seguinte:

  • Doentes crónicos complexos, com falência de um ou mais órgãos (por ex. encefalopatias, cardiopatias, displasia broncopulmonar grave, síndromas polimalformativas, doenças do foro oncológico, etc.);
  • Doentes submetidos a antibioticoterapia endovenosa, quer em situações crónicas, quer agudas (por ex. infecções das partes moles, osteomielites, celulites orbitárias, endocardites, empiemas, infecção por cateter, etc.);
  • Doentes crónicos do foro respiratório dependentes da ventilação e/ou da oxigenoterapia, com ou sem traqueostomia;
  • Doentes assistidos no regime de cuidados paliativos; sobre esta modalidade, sugere-se ao leitor a consulta de capítulos próprios nas partes I e XXXI;
  • Recém-nascidos pré-termo pesando entre 1.600 gramas e 2.000 gramas, com alta hospitalar precoce;
  • Necessidade de nutrição enteral ou parenteral;
  • Necessidade de quimioterapia;
  • Necessidade de transfusão de componentes hemáticos;
  • Status pós-operatório de situações obrigando a vigilância contínua e a cuidados prolongados.

Equipa assistencial

A equipa de saúde da HDP (médica e de enfermagem), conduzida por um chefe, conta com o apoio de pessoal administrativo (fundamental para a gestão das admissões e de certa burocracia como a organização de processos e de relatórios clínicos), assim como de elementos da família e de auxiliares de acção médica. Em situações especiais, como no âmbito dos cuidados paliativos, prevê-se a colaboração de psicólogo.

No que respeita ao perfil dos elementos médicos e de enfermagem, são salientados dois tipos de pressupostos:

  • Experiência clínica abrangendo o amplo grupo etário pediátrico, desde o período neonatal até ao fim da adolescência ( 0 à < 18 anos);
  • Competência técnica no que respeita, designadamente, a ventilação mecânica, oxigenoterapia, nutrição enteral e parenteral, cateterismo central, canalização de veias periféricas, diálise peritoneal, transfusões, estomas, etc..

Aspectos organizativos

Seguidamente são sistematizadas de modo sucinto as principais características do funcionamento e manutenção da HDP.

Origem dos doentes: diversas dependências do hospital, desde cuidados intensivos, urgência, serviço hospitalar, hospital de dia, consulta externa, etc., até mesmo do próprio domicílio nos casos de anterior período de HDP.

Responsabilidade pela admissão em HDP: o médico hospitalar, assistente do paciente em causa, propondo à família e/ou paciente (tratando-se de adolescente) a modalidade assistencial de HDP. Nesta fase, é avaliada a eventual necessidade de dispositivos ou equipamento específico em função da patologia em causa (por ex. nebulizadores, bombas de perfusão, equipamento para oxigenoterapia em alto débito, etc.).

Área geográfica (distância entre local do hospital e local do domicílio): no caso de o doente com a indicação para HDP necessitar de transferência por qualquer razão do foro médico, importa que o tempo da transferência não seja superior a 20-30 minutos.

Formação teórico-prática dos elementos da família que autorizaram e assumiram a responsabilidade de colaboração na HDP; tal formação, na vertente teórica, poderá concretizar-se, por ex., através de material didáctico em papel, vídeo, DVD, etc. sobre problemas de saúde em geral; na vertente prática, cita-se como exemplo o tema sobre reanimação cardiorrespiratória, empregando modelos/ manequins de simulação, etc..

Garantia de meio de transporte para deslocação dos elementos da equipa ao domicílio: táxi, veículo próprio, etc..

Horário de trabalho: em condições ideais, a unidade de HDP presta assistência continuada 24 horas/dia, 365 dias/ano; contudo, por carência de recursos, tal não sendo possível, a alternativa é garantir a assistência entre 8-12 horas/dia, muitas vezes apenas nos dias úteis, gerindo o tempo e a periodicidade das visitas em função da patologia e do estado clínico. Fora do dito horário, está também prevista a modalidade não presencial de contacto telefónico diário com a família, designadamente utilizando por ex. as modalidades de sms, correio electrónico, vídeo-chamada, zoom ou skype.

Assistência integral: numa perspectiva holística, reforça-se a ideia de que é fundamental o trabalho multidisciplinar com a colaboração de todos os elementos da equipa, sendo desejável que exista contacto periódico com o médico de família responsável pelo paciente no âmbito dos cuidados primários/ centro de saúde. Aliás, numa fase de transição, está previsto que o médico de família possa integrar algumas das visitas da equipa ”titular” e, obrigatoriamente, aquando do dia em que termine o período assistencial a cargo da HDP (“alta” do paciente pela equipa de HDP).

Nota final: como foi referido no início, o funcionamento pleno da modalidade HDP, exigindo recursos, no nosso meio está ainda numa fase muito “embrionária”.

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CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
Videira-Amaral JM (MD, PhD) – Coordenador e autor. Tratado de Clínica Pediátrica. 3ª edição. Lisboa: Círculo Médico, 2022 | (ISBN: 978-989-54122-3-5)

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